história do português do brasil - · pdf filehistória do português...

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  • HISTRIA DO PORTUGUS DO BRASIL*

    FORMAO HISTRICA DA LNGUA PORTUGUESA: Parte 1.

    Do Proto-indo-europeu (ao latim e) ao portugus

    A descoberta de similaridades entre a maior parte das lnguas da Europa e as lnguas da Prsia e da ndia antigas (e modernas) chamou a ateno dos fillogos j no sculo XVI. Com o surgimento da lingustica comparativa, no incio do sculo XIX, a noo de uma origem comum se consolidou.

    Atualmente, acredita-se que as lnguas indo-europeias se originaram de uma lngua ancestral comum, que, na falta de um nome melhor, convencionou-se chamar proto-indo-europeu. Supe-se que essa lngua foi falada por um povo que viveu numa regio que compreende o que hoje o extremo oriental da atual Ucrnia e o sudeste da parte europeia da Rssia, entre os mares Negro e Cspio, num perodo que vai aproximadamente de 4.000 a.C. a 3.000 a.C. Esse povo teria migrado, em perodos diferentes da sua histria, para as regies onde se originaram as lnguas indo-europeias que foram posteriormente documentadas a maior parte da Europa, e uma regio da sia que vai da atual Turquia at o Subcontinente Indiano.

    A maior parte das lnguas da Europa se filia a essa famlia: o portugus e as outras lnguas romnicas, descendentes do latim; o ingls, o alemo, e as outras lnguas germnicas; as lnguas eslavas, como o polons e o russo; e alm delas o grego, o albans e o armnio. Mas tambm so lnguas indo-europeias a lngua falada pelos antigos persas e sua descendente moderna: o frsi, a lngua do Ir. Pertencem mesma famlia do persa o curdo, o dri e o pashto, estas ltimas duas faladas no Afeganisto. Estreitamente parentadas s lnguas iranianas so as lnguas arianas da ndia: o hindi, o urdu, o bengali e vrias outras.

    Lnguas indo-europeias foram faladas em regies em que hoje so faladas lnguas de outras famlias: o hitita, bem como outras lnguas aparentadas (as lnguas anatlicas), foi falado na maior parte do que hoje a parte asitica da Turquia, num perodo que vai de 2.000 a.C. (talvez antes) at o final da Antiguidade (quando primeiro o grego, depois o turco, foram impostos s populaes locais). O tocrio, ou tocariano, foi falado no que hoje a regio autnoma chinesa de Xinjiang Uigur, at uns 500 da Era Comum. Na regio das estepes, numa rea que vai do centro da atual Ucrnia at os confins da Monglia, j foram faladas vrias lnguas aparentadas com as lnguas iranianas. Depois disso, essa regio foi invadida por povos falando lnguas aparentadas com o turco (que no indo-europeia), para ser parcialmente re-indo-europeizada pelos russos, a partir do sculo XVI.

    * Apostila elaborada pelo Professor Mrcio Renato Guimares (UFPR/SCHLA/DLLCV) para uso exclusivo na disciplina HL 397 Lngua Portuguesa V do curso de Letras. Boa parte do material aqui foi copiado de outras obras, casos em que h indicao da fonte. A apostila no resume toda a matria da disciplina existe uma bibliografia auxiliar, que aprofunda alguns pontos. Alm disso, aquilo que dito em sala e passado no quadro considerado matria dada. No esqueam de vir para as aulas com caderno e caneta.

  • Mrcio Renato Guimares

    Atravs da anlise comparativa, propostas pelos primeiros lingustas do sculo XIX, propuseram-se formas reconstrudas de alguns morfemas-razes na protolngua, que podem ser vistos em comparao na tabela a seguir.

    Indo-europeu Snscrito Grego Germnico Latim Portugus *kntm satem (he)katon hundert (al.) centum cem, cento

    *kwis kim ts Wer, Was quis quem

    *dekm da dka ten (ingl.) decem dez

    *gwom gaws bs Kuh boues boi

    *aksis, *aksos ksah ksn axis eixo, axial

    *agrs jrah agrs acre ager agr(cola)

    *esti asti esti ist est

    *widhew vidhva theos (solteiro)

    widow uidua viva

    *oktw astu okt acht oct oito

    *iugom yugm dugn Joch iugum jugo

    *ptr pta petr Vater pater padre, pai

    *matr matr mtr Mutter mater madre, me - o asterisco antes das formas do indo-europeu indica que a forma reconstituda e no documentada; o mcron em cima de uma vogal (, , ) indica que ela longa; - exemplos retirados de Krahe (1953).

    A Origem das Palavras Alguns timos indo-europeus

    Os estudos comparativos iniciados no Sc. XIX rastrearam as lnguas indo-europeias atrs de palavras que pudessem ter uma origem em comum na lngua ancestral. claro que temos que sempre ter em considerao que as etimologias propostas pela lingustica histrico-comparativa se pretendem cientficas, o que significa que, por um lado, elas devem seguir os procedimentos rigorosos de comparao e, por outro lado, que elas so hipteses sobre uma realidade a que no se tem acesso direto. Como hipteses, elas esto sempre sujeitas crtica dos especialistas, de maneira que possvel que voc v encontrar diferenas bastante grandes, ao longo da literatura, na forma recostruda de cada timo e mesmo na filiao de palavras a determinadas origens etimolgica.

    Com o objetivo de abrirmos uma janela para o passado remoto da nossa lngua, listo aqui alguns timos indo-europeus, seu caminho at o portugus e as palavras cognatas nas outras lnguas indo-europeias, derivadas dos mesmos timos. A escolha no aleatria e inclui alguns termos que revelam aspectos importantes do que se supe que seja os primrdios de uma cultura indo-europeia.

    A L, o Cavalo, a Roda e o Carro

    O vocabulrio comum das lnguas indo-europeias contm termos respectivos a atividades agrcolas e pastoris, pelo que se supe que o povo que falava o proto-indo-europeu conhecesse tanto agricultura quanto pecuria. Alguns traos especficos desse vocabulrio,

  • Histria do Portugus 1: Do Indo-europeu ao Portugus

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    porm, serviram para estabelecer a cronologia da proto-lngua, alm de permitirem vislumbrar como deve ter sido a cultura e as relaes internas na sociedade proto-indo-europeia.

    Os falantes do proto-indo-europeus tinham palavras especficas para designar os campos de cultivo (*agr, *agrs1, de onde o lat. ager campo cultivado, cf. agr-cola), instrumentos de cultivo (*ar-, que aparece no lat. arare, aratrum), e uma distino importante entre semente (*s-, como lat. semen, seminare) e gro (*granm, lat. granum). Ambas as palavras representavam a mesma coisa, mas em situaes bem diferentes: semente quando utilizado para plantar e gro no momento da colheita e a partir disso. A pecuria, no entanto, parecia ser mais importante: eles conheciam e criavam os bovinos (*gwus, lat. boues), os ovinos, os equinos e os caprinos. A posse de gado, como ocorre at hoje em algumas sociedades indo-europeias, era o principal meio de acmulo de riqueza (e, por exetenso, de poder). Tanto que o termo para designar gado, sobretudo o bovino (*peks, lat. pecus, pecunia, peculium), significa tambm fortuna, riqueza.

    Entre os termos comuns encontrados na maioria das lnguas indo-europeias, esto palavras para designar os ovinos, a l e termos relativos ao processamento da l para confeco de roupas. Essa caracterstica importante, do ponto de vista da cronologia, porque se sabe que, apesar de a domesticao dos ovinos ter uma longa histria, a criao de ovelhas para obteno de l uma atividade bem mais recente e demandou uma seleo artificial nas ovelhas, para selecionar as que tinham um pelo mais longo e sedoso, que se prestasse a confeco de fios de l.

    Dado que a criao das ovelhas para a obteno de l no iniciou antes de 4.000 a.C., na regio que se supe ser a ptria ancestral dos falantes do proto-indo europeu, essa data foi determinada como o limite mximo do perodo em que a proto-lngua deve ter existido. O raciocnio simples: se as lnguas possuem palavras de uma mesma origem para designar a l, essa palavra no pode ter uma origem comum no perodo em que a l no era conhecida (ou seja, antes de 4.000 a.C.).

    *owis, ovelha deu o lat. ouis, de cujo diminutivo ouicla originaram-se os termos de algumas

    lnguas romnicas: port. ovelha, esp. oveja, rom. oaia. Provm da mesma raiz o a.ind. av-, gr. , a.ir. i, lit. avs,a.bulg. ov-ca, todos significando ovelha. Muitas lnguas acabaram substituindo a palavra para designar ovelha por alguma outra: as lnguas germnicas, por exemplo o ingls sheep e o alemo Schaf, devem ter origem em uma lngua no-indo-europeia (o ingls tem um termo arcaico para ovelha, ewe, que provm do timo indo-europeu. O francs utiliza mouton, que provavelmente um emprstimo do gauls moltone(m), ac., que aparece nas lnguas clticas: a.irl. molt, gal. moltt, breto mdio mout, todos significando carneiro. O italiano utiliza pecora, que vem do lat. pecus, pecoris, e que era um termo genrico para gado (embora preferencialmente para o gado bovino), e cuja raiz aparece em pecuria e tambm em pecunirio (cf. adiante).

    *wl-n, l deu o latim lan, que por sua vez originou os termos para l nas lnguas romnicas: port. l (arc. la), esp. it. lana, fr. laine, rom. ln. Do mesmo timo se originou o

    1 A base das etimologias rastreadas aqui o Proto-indo-european etymological dictionary, do indo-

    europesta tcheco Julius Pokorny, provavelmente o mais completo do gnero (cf. Pokorny, 2007). Tambm foi consultado Mallory & Adams (2006).

  • Mrcio Renato Guimares

    a.ind. rni, av. varn, gr. , dor. , lit. vlna, gal. gwlan, bret. gloan, gt. wulla, ing. wool, al. Wolle, todos significando l.

    O termo *wl-n parece ser derivado de uma raiz *wel- por um sufixo n, que levava a tonicidade para a ltima slaba. Isso encurtou a vogal da raiz, a ponto de ela no ser pronunciada (um fenmeno comum em vrias lnguas indo-europeias antigas, conhecido como grau zero da raiz, e que certamente existiu em proto-indo europeu). O fenmeno em si comparvel ao que ocorre no portugus de Portugal, em que algumas vogais tonas no so pronunciadas (como os e pretnicos em menino e perdido).

    Da raiz *wel- temos o latim vellus, do qual originou o portugus velo,