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História do Brasil Colonial: Aspectos Formativos

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História do Brasil Colonial: Aspectos Formativos

O cotidiano e a vida doméstica na sociedade colonial portuguesa

Material Teórico

Responsável pelo Conteúdo:Prof. Esp. Pietro Henrique Fernandes Delallibera Sant’Anna

Revisão Textual:Prof. Ms. Claudio Brites

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Leia atentamente o conteúdo desta unidade. Ela trata das relações sociais existentes no Brasil colonial e das características do cotidiano e da vida privada daquele período.

Também recomendamos enfaticamente que você não se limite ao texto do material teórico, que apresenta o conteúdo de forma resumida, e consulte a bibliografia da aula e os materiais complementares indicados. São todas obras historiográficas importantes que o ajudarão a aprofundar seus conhecimentos sobre o tema desta unidade.

· Apresentar a pirâmide social da colônia e as relações entre os vários grupos do período;

· Compreender as condições, ditadas pela conjuntura mundial e local, em que floresceu uma vida privada na colônia;

· Ilustrar com exemplos o cotidiano da época, sempre buscando relações entre manifestações concretas da vida na colônia e a macroestrutura social.

O cotidiano e a vida doméstica na sociedade colonial portuguesa

· Introdução · A vida privada na Colônia · Hierarquias e Relações Sociais · Cotidiano: O Centro-Sul · Cotidiano: O Nordeste · Considerações Finais

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Unidade: O cotidiano e a vida doméstica na sociedade colonial portuguesa

Contextualização

Observe atentamente estas imagens:

Uma família brasileira, 1821 Quitandeiras da Lapa, 1819-20 A rede, 1821

As três imagens são do inglês Henry Chamberlain (1796-1844), que esteve no Brasil no início do século XIX, bem no período de transição da colônia para o império, e capturou em suas pinturas aspectos do cotidiano do nosso país nessa época decisiva, o que tornou seu trabalho uma das principais referências iconográficas do período colonial. Suas imagens deram origem ao livro Visões e costumes da cidade e dos arredores do Rio de Janeiro, série de 36 gravuras publicadas em 1821 na Inglaterra.

Olhe para essas cenas e reflita sobre as seguintes questões:

• Que hierarquia social é possível depreender dessas gravuras?

• Qual é a divisão do trabalho nessa sociedade?

• Quais são as relações de poder retratadas?

• Qual o papel (ou os papeis) do negro?

• Qual é a estrutura familiar?

• Que características são típicas desse local e época (o Rio de Janeiro do século XIX) e quais representam a situação geral da América Portuguesa?

Essas são apenas algumas das questões que o trabalho de Chamberlain pode suscitar, e que procuraremos responder ao longo desta unidade. Mantenha em mente essas perguntas – e quaisquer outras que conseguir formular – durante suas leituras.

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Introdução

Nesta unidade, trataremos das relações sociais no ambiente cotidiano da sociedade colonial. A primeira coisa que precisamos ter em mente antes de refletir sobre o tema é a incrível longevidade do período – mais de três séculos. Basta dizer que o Brasil não foi um Império ou uma República durante intervalo tão longo de tempo para que se dimensione a variedade de transformações históricas e formas de organização social que a América Portuguesa comportou. Em segundo lugar, precisamos levar em conta a vastidão do território brasileiro que, somada à falta de vias de comunicação regular entre as diversas regiões, exceto em alguns poucos pólos comerciais e demográficos mais importantes, dificultou a formação de hábitos e modos de vida compartilhados por todos os habitantes do país.

Isso significa que estudar a vida doméstica da Colônia implica necessariamente em estudar o cotidiano de cada região e em cada período. Exceção feita, por exemplo, ao consumo de alguns gêneros alimentícios como a farinha de mandioca, herança indígena que se cultivou de norte a sul do país, o dia a dia de um habitante da América Portuguesa poderia ser radicalmente diferente do de seu conterrâneo em outra região, e é impossível detalhar neste espaço cada uma dessas peculiaridades locais.

Sendo assim, nosso objetivo será apenas oferecer um panorama das relações sociais do período, destacando os vários grupos que compuseram a sociedade colonial, a hierarquia social vigente e as formas de interação possíveis entre esses vários grupos.

Antes de iniciar esta tarefa, no entanto, precisamos enquadrar esse objeto de estudo – as relações cotidianas na colônia – num contexto coerente. Por isso, iniciaremos esta unidade com uma reflexão sobre as condições históricas e sociais que determinaram a forma como uma vida privada pôde existir na América Portuguesa. Esse esforço é fundamental para dar um sentido, um “pano de fundo”, à descrição que faremos mais à frente das relações sociais concretas.

A vida privada na Colônia

Há um problema teórico bastante sério que se impõe quando buscamos analisar as relações sociais mais corriqueiras da colônia: o que exatamente significa o “privado” para os homens dos séculos XVI, XVII e XVIII e, mais especificamente, para os habitantes da América Portuguesa nessa época? Ou, dito de outra forma, onde exatamente devemos traçar uma linha divisória entre o público e o privado que seja adequada para analisar aquele período?

Esse problema decorre do fato de que a época do Absolutismo, ou seja, a época de formação das colônias modernas, incluindo o Brasil, está colocada entre a Idade Média e o nascimento do mundo político contemporâneo. É um período de transição, que justamente antecede a conhecida divisão entre as duas esferas (público e privado) instaurada pelas revoluções liberais do século XVIII – e que nos acompanha grosso modo até os dias de hoje. A dificuldade para estabelecer o conceito adequado de “privado” não é, portanto, exclusivamente brasileira, mas sim um problema teórico da história europeia e, em certa medida, da história mundial.

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Unidade: O cotidiano e a vida doméstica na sociedade colonial portuguesa

Evidentemente, não entraremos aqui nesse debate, que contempla praticamente nove séculos de história e foge muito ao escopo desta unidade. Ao invés de estabelecer conceitos completos de “público” e de “privado”, vamos apenas delimitar algumas das condições históricas que modelaram a mentalidade do período e a formação dessa vida privada em terras brasileiras. Nesta seção, tomamos como base as reflexões do historiador Fernando Novais em um texto fundamental sobre o tema (NOVAIS, 1997, p. 14-39).

O primeiro ponto a se ressaltar é o perfil das populações que constituíram a colônia – excluindo-se aqui o caso dos indígenas, que foram parte minoritária no processo de formação da América Portuguesa e cujas relações sociais já foram analisadas na primeira unidade deste curso.

O povoamento do Brasil colonial foi extremamente disperso, rarefeito, marcado pela instabilidade. Nossa população era composta basicamente por estrangeiros inseridos num território de baixíssima densidade demográfica. Essa característica persistiu ao longo dos três séculos de colonização e, com exceção do seu período final, foi a tônica mesmo nos centros urbanos e agrícolas mais importantes. As bases da colonização foram vilarejos e cidades ao longo da costa com pouca comunicação entre si.

Além disso, o país recebeu grandes ondas imigratórias ao longo de todo o período colonial, mesmo depois de sedimentados seus pólos demográficos principais, o que ocasionou a inserção constante de novos indivíduos, sempre estrangeiros, em qualquer círculo social.

Soma-se a isso a grande movimentação no interior da própria colônia, o que está intimamente relacionado ao modelo predatório de exploração adotado pelos portugueses: fosse pelo esgotamento dos recursos naturais de um local, fosse pelo surgimento de um empreendimento mais rentável em outra região do país, contingentes populacionais inteiros não hesitavam em deixar seus locais de origem em busca de enriquecimento e melhores oportunidades de negócio. O fluxo migratório maciço causado pelo ciclo do ouro é apenas um (e talvez o melhor) exemplo que temos desse tipo de movimento que foi regra no mundo colonial. Cabe aqui o lembrete de que formações sociais estáveis como as que se constituíram em torno da lavoura de cana no nordeste foram a exceção no mundo colonial, apesar de sua enorme importância econômica.

Observando esse quadro geral da população colonial, é possível calcular a enorme dificuldade dessas pessoas em formar e solidificar laços de intimidade interpessoal e laços de pertencimento com sua comunidade. Os traços mais marcantes dessa sociedade nascente seriam, portanto, a mobilidade, a precariedade das relações íntimas, a instabilidade geral e a falta de identificação com o território.

A extrema diversidade da população – colonos portugueses, mestiços nascidos no Brasil, indígenas aculturados ou não, africanos escravizados, etc. – só agravaria esse quadro, criando mais obstáculos para a conformação de sólidos laços comunitários entre os habitantes da América Portuguesa.

As condições da vida privada também foram determinadas pela estrutura política e econômica do mundo colonial. Em primeiro lugar, se lembrarmos que a colonização foi um empreendimento guiado fundamentalmente por motivos comerciais, porque os centros mais importantes da América Portuguesa, os mais densamente povoados e mais fartamente contemplados com investimentos da coroa lusitana, foram justamente os mais integrados ao comércio mundial, isto é, aqueles que mais estiveram voltados para fora do país.

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Temos, portanto, essa situação contraditória em que os núcleos sociais mais solidamente estabelecidos, onde as relações cotidianas se sedimentaram melhor e criaram-se formas de convívio privado estáveis, como as que encontramos nos estados do nordeste ou no Rio de Janeiro, eram, ao mesmo tempo, sociedades organizadas para a exportação. Já no centro-sul, pouco integrado ao comércio mundial, onde se formou uma agricultura e pecuária de subsistência e onde a colonização teve mais características de povoamento do que de exploração, as formações sociais foram instáveis, móveis, incompatíveis com laços de intimidade mais duradouros. Basta pensar no caráter das expedições dos bandeirantes para ter uma ideia da forma precária com que se sedimentou o cotidiano na porção do país que, ironicamente, era a mais interiorizada.

Outro aspecto importante do ambiente social da colônia – talvez o mais importante deles – foi a divisão clara entre homens livres e escravos, uma clivagem que serviria de pano de fundo para todas as demais interações sociais.

Essa barreira quase intransponível entre dominadores e dominados não poderia passar despercebida por um brasileiro da época colonial, sendo, portanto, um elemento fundamental a modelar as relações familiares (pensamos aqui nos casos de relações extraconjugais dos senhores com suas escravas, no trabalho doméstico realizado pelos cativos, na presença do negro durante a infância e adolescência das crianças brancas, etc.), a arquitetura e o estilo de construção das cidades, a demarcação de espaços a serem frequentados apenas por este ou aquele grupo social – toda a paisagem cotidiana do período, enfim.

Tomando dois exemplos extremos: por um lado a presença maciça da população escrava no Nordeste do país e, por outro, sua ausência na região de São Paulo, podemos acompanhar o surgimento de duas sociedades radicalmente distintas a partir dessas situações antagônicas. São casos que ilustram, portanto, o impacto do trabalho compulsório na construção da história de cada região do país.

Essa clivagem entre escravos e não-escravos, que de fato serviu como alicerce para todas as relações sociais da colônia, não foi, no entanto, estanque, livre de nuances, imune a qualquer forma de subversão e de interação. Além disso, ela não representa a totalidade das relações sociais que marcaram o cotidiano da América Portuguesa.

Portanto, agora que temos em mente esse quadro geral de referências – instabilidade, exterioridade, precariedade dos laços de intimidade, presença da escravidão –, podemos olhar em detalhes as divisões e os modos de interação que marcaram a sociedade brasileira no período.

Hierarquias e Relações Sociais

Um dos mais importantes critérios de exclusão na sociedade colonial foi o da pureza de sangue. De acordo com a legislação da época, cristãos-novos (judeus convertidos), indígenas e negros, mesmo os alforriados, não poderiam ocupar cargos públicos ou receber títulos de nobreza, pois tinham o sangue impuro. No final do século XVIII, os cristãos-novos foram excluídos desse grupo por conta de uma mudança na legislação que tornava equivalentes os cristãos tradicionais e os recentemente convertidos.

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Unidade: O cotidiano e a vida doméstica na sociedade colonial portuguesa

No entanto, não é difícil perceber que, apesar da importância do critério do sangue puro, a principal clivagem existente, a mais fundamental das divisões, era aquela entre homens livres e escravos. Juridicamente, o escravo equivalia a um objeto, sujeito a posse. O caráter racista dessa divisão é também evidente: escravos eram os negros, seguidos por indígenas e mestiços.

Mesmo assim, houve algumas diferenciações entre escravos negros e indígenas que são dignas de nota. Em primeiro lugar, desde os primórdios da colonização, séculos antes de qualquer lei abolicionista, os nativos poderiam ser escravos propriamente ou “forros”. Esses últimos, também chamados de “administrados”, eram aqueles que ficavam sob tutela, e não posse, dos colonizadores. Na prática, sua situação era muito similar à de qualquer indivíduo escravizado, mas seu estatuto jurídico era superior, o que, somado à presença das ordens religiosas tanto nos centros coloniais quanto nos aldeamentos indígenas, impedia situações extremas de exploração.

Em segundo lugar, a discriminação que recaía sobre os nativos era profundamente menor que aquela sofrida pelos africanos, a ponto de a própria coroa portuguesa emitir um alvará na metade do século XVIII afirmando a legitimidade dos casamentos entre brancos e indígenas e estimulando sua indicação para cargos e honrarias – não há nenhuma situação similar no caso dos negros escravos.

Havia também distinções entre os próprios africanos e afro-brasileiros, relacionadas a fatores múltiplos como a cor da pele, a região de procedência e, especialmente, o tipo de trabalho desempenhado – um “escravo de ganho” em pleno Rio de Janeiro gozava de estatuto social e de possibilidades de ascensão muito diferentes das de um africano na lavoura em Pernambuco, por exemplo.

Os negros recém chegados no país eram chamados de “boçais”, enquanto que os mais adaptados e relativamente fluentes no português eram os “ladinos”. Já o “crioulo” era o negro nascido no Brasil.

Do ponto de vista da cor, mulatos e crioulos mais claros eram os que tinham chance de trabalhar dentro da casa-grande em tarefas domésticas, executar trabalhos artesanais ou ainda supervisionar o trabalho de um grupo de escravos. Aos mais escuros, sobretudo recém-chegados da África, cabiam sempre trabalhos braçais mais pesados.

Ainda no âmbito da população negra, não se pode deixar de lado o caso dos ex-escravos, ou “libertos”. Em primeiro lugar por motivos numéricos: estimativas apontam que eles chegaram a compor mais de 40% dos afro-descendentes da colônia, uma população numericamente expressiva. Mas também por conta do seu interessante estatuto intermediário: formalmente livres, mas ainda proibidos, conforme já vimos, de exercer certos direitos políticos e civis apenas por serem negros, e sujeitos a perder sua cidadania caso, por exemplo, desrespeitassem o antigo dono. Além disso, a promessa da alforria foi uma peça importante na própria manutenção do sistema escravista, como vimos na unidade anterior.

Acima dos escravos, que em termos jurídicos eram apenas mercadorias, a sociedade colonial se dividia formalmente em três grandes grupos que replicavam a estrutura social da metrópole lusitana: nobreza, clero e povo. Essa divisão, no entanto, não pode ser levada à risca para compreender a América Portuguesa, porque aqui não se formou uma aristocracia hereditária, condição necessária para que essa separação típica da Europa do Antigo Regime faça algum sentido. Os títulos de nobreza foram praticamente todos comprados pela elite colonial escravista

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ou por homens livres que conseguiram enriquecer e aspiravam à fidalguia. Assim, nossa nobreza coincidia quase que perfeitamente com a camada social que era simplesmente a mais rica, sem qualquer ligação com linhagens de sangue nobre.

Essa elite econômica era composta pelos grandes proprietários rurais, pelos comerciantes ligados ao mercado de exportação e, no período mais tardio da colônia, por brasileiros concentrados no Rio de Janeiro que lidavam principalmente com o tráfico negreiro, mas também com a compra e venda de imóveis e com empréstimos monetários. Os objetivos políticos e econômicos desses grupos poderiam coincidir, como foi o caso durante muito tempo no tópico da manutenção do regime escravista, mas ocorreram situações de conflito em torno, por exemplo, do preço dos produtos de exportação: os latifundiários queriam obter o máximo lucro com a venda do açúcar a um valor elevado, mas a flutuação dos preços interessava aos comerciantes da costa.

Embora não seja o tema desta unidade, vale salientar que as aspirações de alguns desses atores mais ligados ao comércio interno começaram já nesse período a se chocar com os interesses exploratórios de Portugal. Na dinâmica interna desses grupos, mesmo no auge do período colonial, já podemos vislumbrar, portanto, o embrião de uma das forças que lutariam pela emancipação do país no século XIX.

Entre os escravos e a elite econômica do país havia uma camada bastante heterogênea de homens livres. Eles eram pequenos agricultores, comerciantes, artesãos, servidores públicos, transportadores de carga, trabalhadores autônomos. Esse é um dos grupos sociais mais interessantes da colônia, justamente por comportar homens com perfis completamente distintos e por ter em cada região uma relevância econômica, política ou cultural peculiar. Não há um “tipo ideal” de homem livre do Brasil colonial, e sua importância, inclusive numérica, não foi a mesma em todas as partes. O estudo dessa camada social, que durante décadas ficou ofuscado pela dicotomia senhores/escravos, é, aliás, uma das principais “novidades” da historiografia brasileira contemporânea, que nos últimos vinte anos foi descobrindo a importância – e por vezes o protagonismo – desses trabalhadores para algumas regiões do país. Por exemplo: em toda a colônia, mas especialmente no campo, havia a chamada “arraia-miúda”, isto é, a camada de proprietários urbanos ou rurais que não possuía escravos. Hoje sabemos que numa região como São Paulo, esse grupo chegou a representar ¾ da população (COSTA, 1992). Mas a estrutura arcaica da sociedade colonial, baseada no modelo do Antigo Regime, fazia com que a presença numérica ou a eventual importância econômica desses homens livres não fossem acompanhadas por prestígio social. A camada dos comerciantes, por exemplo, era mal vista, em parte porque sua profissão era considerada de menos valor, em parte porque a maioria dos membros dessa classe eram cristãos-novos. Os mercadores eram proibidos, por exemplo, de exercer mandato nas Câmaras legislativas.

O peso dessa casta de homens livres variou bastante ao longo da história porque sempre esteve atrelado às mudanças na paisagem econômica de cada região. Eventos como o ciclo do ouro no século XVIII em regiões de Minas Gerais, Mato Grosso e Goiás, ou a vinda da família real para o Brasil em 1808, criaram terreno fértil para o florescimento desses profissionais. No Rio de Janeiro do final do período colonial, por exemplo, podemos encontrar uma quantidade expressiva de homens letrados, de burocratas do governo colonial e de prestadores de serviços – tais como os advogados.

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Unidade: O cotidiano e a vida doméstica na sociedade colonial portuguesa

Temos até aqui uma síntese da hierarquia que caracterizou o Brasil colonial. Vejamos agora um quadro descritivo da vida privada e do cotidiano em duas importantes regiões do país. Pelo contraste de extremos, tentaremos ilustrar a gama de formações sociais que a América Portuguesa comportou em seus três séculos de existência. Além disso, esse exercício permitirá examinar como essa hierarquia que acabamos de apresentar se manifestou em situações históricas concretas, e como esses diferentes grupos sociais interagiram no cotidiano de fato da colônia.

Cotidiano: O Centro-Sul

O professor Sérgio Buarque de Holanda apontou no livro Caminhos e fronteiras, obra clássica da nossa historiografia, a “fórmula” básica da modelagem cultural dos aventureiros do centro-sul, especialmente dos bandeirantes paulistas: num primeiro momento, adaptação ao modus vivendi indígena; depois, invenção de um estilo de vida híbrido, aproveitando traços da cultura dos nativos e já introduzindo certos hábitos do Velho Mundo; só posteriormente, a criação de condições que permitiam adotar, ainda que com adaptações, hábitos europeus.

Muito disso se deve ao tipo de povoamento dessas regiões e às dificuldades impostas pelo meio natural inóspito. A alimentação desses primeiros colonizadores em Piratininga era baseada na caça e coleta de animais da mata durante as longas marchas rumo ao sertão e, complementarmente, nas pequenas roças criadas junto às trilhas. Isso resultou em traços culturais distintivos como a ausência de cavalos – já que o alimento era escasso demais para manter animais de maior porte e as rotas se embrenhavam por vegetação muito densa, inapropriada para a travessia montado –, o consumo do milho, mais difundido nessas regiões do que no restante do país – por tratar-se de alimento facilmente transportável em grãos –, e o hábito de dormir em redes, descritas como “a cama mais pronta e mais portátil”.

Mas as características sociais e geográficas paulistas também resultaram em certas vantagens: por razões estudadas na unidade II, não se desenvolveu a prática da monocultura no centro-sul do país, e as populações que lá se instalaram não eram formadas por agricultores empenhados em constituir grandes lavouras. Aliado à ótima qualidade do solo e ao clima mais ameno, esse traço social propiciou uma alimentação mais variada aos habitantes da região, seja por variar os gêneros cultivados, seja por dedicar suas terras também à pecuária.

De modo geral, a vida dos sertanistas do centro-sul, especialmente dos paulistas – dos quais dispomos de mais documentação –, era dura, marcada pelo convívio com uma vegetação inóspita, animais selvagens, mosquitos, embates constantes com indígenas tentando defender seus territórios e, como não poderia deixar de ser, com a morte. No bojo dessa cultura híbrida que ia se formando, era imprescindível para os piratininganos garantir os ritos de passagem cristãos aos que faleciam, a ponto de as bandeiras, apesar de todas as suas limitações logísticas e insuficiências, levarem sempre capelães.

Assim, a demografia da região foi se formando, condicionada sempre pelas rotas das bandeiras com a montagem de postos de parada e abastecimento, pequenos sítios e, mais tardiamente, povoamentos inteiros, todos à margem dos caminhos abertos pelos aventureiros europeus.

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Capistrano de Abreu (1853-1927), um dos primeiros e mais importantes historiadores do nosso país, oferece a seguinte descrição desse cenário nascente:

Diálogo com o Autor

[...] alguns, graças aos conhecimentos locais, melhoraram e encurtaram as estradas; fizeram açudes, plantaram canas, proporcionaram ao sertanejo uma de suas alegrias, a rapadura (apud NOVAIS; SOUZA, 1997, p. 64).

Foram nessas condições que a vida privada e um tipo mais estruturado de formação social pôde florescer nessa porção da América Portuguesa. Quando não se instalavam provisoriamente em sítios e estâncias, seus habitantes estavam constantemente marchando rumo ao sertão e ao longo das fronteiras ainda pouco definidas. O pouso foi, assim, o espaço por excelência do convívio civilizado entre os homens do centro-sul, e o mais próximo que se chegou de um modo de vida urbano. A convivência familiar nuclear e propriamente doméstica era impossível no contexto de organização grupal moldada pelas viagens, que tolhiam completamente a intimidade. A alternativa era o isolamento, o que nas circunstâncias da natureza tropical selvagem seria fatal.

Cotidiano: O Nordeste

No clássico Casa Grande e Senzala, o sociólogo Gilberto Freyre assinala com precisão a diferença entre os povoamentos do sul e do norte do país. Diz ele:

Diálogo com o Autor

A sociedade colonial no Brasil, principalmente em Pernambuco e no Recôncavo da Bahia, desenvolveu-se patriarcal e aristocraticamente à sombra das grandes plantações de açúcar, não em grupos a esmo e instáveis; em casas-grandes de taipa ou de pedra e cal, não em palhoças de aventureiros (FREYRE, 2003, p.77).

Essa diferença fundamental entre uma população seminômade e precariamente instalada como a do centro-sul e uma estável e hierárquica como a do nordeste brasileiro terá enorme impacto sobre os modos de vida em cada região.

Os engenhos do nordeste ocupavam grandes extensões de terra, constituindo mundos à parte com suas regras particulares. Sua divisão básica, expressão arquitetônica de uma profunda cisão social que não por um acaso batizou a obra de Freyre, era entre a casa-grande, residência do senhor de engenho com seus parentes e agregados, e a senzala, onde se instalavam precariamente os escravos.

Nesse ambiente, pôde florescer, como em nenhuma outra região do país, o modelo social baseado no patriarcado. O pai de família detinha poder absoluto de decisão sobre os rumos da sua parentela, incluindo a profissão a ser seguida pelos meninos e, muito especialmente, o casamento das mulheres. A devoção religiosa foi marcante, de modo que todo engenho possuía uma capela e formava-se um padre praticamente a cada geração de uma família.

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Unidade: O cotidiano e a vida doméstica na sociedade colonial portuguesa

O número de filhos era elevado (embora apenas o primogênito tivesse direito a herança de acordo com a legislação do período), assim como o número de agregados: em torno do pai de família orbitavam parentes mais distantes (primos, sobrinhos, etc.), homens sem posses – que conseguiam seu espaço no clã mediante a troca de favores –, empregados da fazenda (feitores, capatazes, capitães-do-mato), além de pequenos proprietários rurais ou mesmo donos de engenhos menores que usavam a estrutura mecânica da grande propriedade em troca de parte da sua produção.

O poder desses líderes familiares do nordeste sobre suas terras e seus escravos foi absoluto. Sua inserção na política regional era grande e, via de regra, sua zona de influência se estendia para as cidades e vilas próximas ao engenho, já fora de suas fronteiras.

Uma das características mais marcantes da sociedade patriarcal erguida em torno da lavoura monocultora, característica cujos ecos são facilmente identificáveis nos dias atuais, foi o abismo entre as condições de conforto e ócio dos senhores brancos e a carga de trabalhos braçais que recaía sobre a massa de escravos africanos. A existência desse fosso social seria impossível em um meio instável e pobre como o do centro-sul.

Na aurora do século XVII, o mercado da cana-de-açúcar viveu seu apogeu. Para ter uma ideia, Pernambuco tinha trinta engenhos em 1576, esse número passou a sessenta e seis até 1590 e, no início daquele século, já havia cento e vinte e um. Esse surto econômico levou ao incremento acelerado da quantidade de negros cativos importados pelos senhores de engenho e propiciou enriquecimento sem igual à classe de proprietários.

Dessa situação surgiu um modelo social em que todo trabalho físico recaía sobre os escravos, que passaram a cuidar de afazeres domésticos como a faxina ou a culinária e, mais tarde, a executar as tarefas mais banais da casa, chegando ao cúmulo de tratarem até da higiene pessoal de seus senhores. Era usual que, por exemplo, um colono abastado se deslocasse sempre carregado por negros em sua liteira, indo de um engenho ao outro ou passeando pelo centro das cidades. Se encontrasse um conhecido, igualmente carregado, permaneciam os dois deitados em suas redes sustentadas pelos cativos, enquanto conversavam.

Esse tipo de costume deu origem a uma cultura aristocrática profundamente arraigada no imaginário brasileiro que associa, até hoje: trabalho manual à posição social inferior; lazer a privilégio exclusivo da elite econômica; ócio a prestígio social; realização de tarefas domésticas ordinárias à condição de subalterno.

O tamanho descomunal dos engenhos e seu consequente isolamento também foram determinantes para o tipo de sociedade que se viu surgir no nordeste. Numa época que antecede as primeiras estradas de ferro, introduzidas no país só em meados do século XIX, a educação das crianças brancas se dava geralmente no interior do próprio engenho, ministrada por professores contratados ou pelo próprio capelão, e não era incomum encontrar salas de aula inteiras construídas nas cercanias da casa grande.

E havia, evidentemente, os colégios jesuítas, instalados preferencialmente nos centros mais populosos (presentes, portanto, não somente no nordeste, mas também em cidades como o Rio de Janeiro) ou em regiões que foram “ponta de lança” da invasão portuguesa, como São Paulo. Essas instituições foram durante os primeiros dois séculos da colônia as principais catalisadoras da produção escrita do país e, consequentemente, berços de uma ainda incipiente cultura

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brasileira. A composição étnica e social dos alunos desses colégios era variada: meninos brancos filhos de colonos, órfãos trazidos de Lisboa, filhos de portugueses com indígenas e, a partir do século XVII, também mulatos – apenas as crianças negras foram impedidas de frequentar as aulas durante todo o período colonial.

Nesse meio social regido pelo patriarcado, o sexo (ou o estupro) entre o conquistador europeu e a mulher indígena e, posteriormente, a escrava negra, foi prática corriqueira. Igualmente comuns foram as doenças venéreas – em especial a sífilis que, segundo documentação da época, ganhou proporções quase epidêmicas.

O fenômeno da miscigenação representou também um dos poucos espaços de aproximação entre “conquistadores” e “conquistados” – como, aliás, insiste Gilberto Freyre ao longo de todo o seu livro. O intercurso entre brancos, negros e indígenas foi característica marcante da sociedade colonial brasileira e não se repetiu, ao menos não com a mesma naturalidade, nas demais colônias da América. Juntamente com as festas, ele representou uma ponte entre o abismo racista que dividia nossa população.

Mas não se pode perder de vista o duplo significado da miscigenação: apesar de criar zonas de encontro entre os extremos da sociedade colonial, eram sempre encontros entre o dominador branco e a escrava negra, produzindo um filho mestiço que permanecia escravo. Trata-se, portanto, de uma forma de aproximação que, contraditoriamente, reforçava a estrutura do sistema, a clivagem social. É preciso reconhecer essa duplicidade para enxergar tal fenômeno histórico em toda a sua complexidade.

Considerações Finais

Com esta unidade, encerramos uma espécie de “primeiro ciclo” do nosso curso. Nele procuramos apresentar o processo de construção e estabilização do mundo colonial. Vimos, portanto, um panorama dos povos indígenas que ocupavam o território brasileiro no momento do contato com os europeus e suas interações posteriores (unidade I); as características gerais do sistema colonial e sua lógica de funcionamento (unidade II); a escravidão africana em nosso país e as condições de inserção do negro na sociedade brasileira (unidade III); e, finalmente, nesta unidade, os traços mais marcantes da sociedade que emergiu no Novo Mundo a partir desses alicerces.

Mantendo esses conhecimentos em mente, passaremos, daqui em diante, nas próximas aulas do curso, a analisar o declínio do mundo colonial, apontando suas contradições internas, os processos históricos que foram minando a dominação portuguesa e os caminhos de construção de um Brasil independente.

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Unidade: O cotidiano e a vida doméstica na sociedade colonial portuguesa

Material Complementar

As obras indicadas na bibliografia desta unidade, em especial as de Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Fernando Novais, são clássicos da nossa historiografia. É imprescindível entrar em contato com elas, não só para estudar a história colonial, mas principalmente para entender melhor todo o debate historiográfico sobre os assuntos que foram aqui abordados. De um modo ou de outro, qualquer trabalho sobre o período colonial escrito no Brasil se remete a esses autores.

Feita essa ressalva, nossa indicação de material complementar não será uma obra historiográfica, mas sim um documento de época, um dos mais importantes sobre o período colonial: Cultura e opulência no Brasil, escrito em 1711 pelo jesuíta italiano André João Antonil. O livro é uma riquíssima descrição da América Portuguesa do século XVIII e apresenta estruturas sociais que perpassaram todos os três séculos de colonização. Ele deve ser lido à luz de todos os assuntos que vimos até agora nas quatro primeiras unidades, como uma espécie de fechamento deste ciclo do nosso curso.

Recomendamos também a leitura preliminar deste texto curto, de divulgação cultural, em que a professora Andrée Mansuy-Diniz Silva contextualiza a obra e seu autor: http://www.revistadehistoria.com.br/secao/leituras/atribulada-obra-rara

O livro de Antonil pode ser baixado em PDF neste link:http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=1737

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Referências

COSTA, Iraci del Nero. Arraia-miúda: um estudo sobre os não-proprietários de escravos no Brasil. São Paulo: MSGP, 1992.

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Caminhos e fronteiras. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

_________. Raízes do Brasil. Companhia das letras, 1995.

FAUSTO, Boris. História do Brasil. 13. ed. São Paulo: Edusp, 2009.

FREYRE, Gilberto. Casa-grande e senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. 48. ed. São Paulo: Global, 2003.

NOVAIS, Fernando; SOUZA, Laura de Mello e (orgs.). História da vida privada no Brasil: cotidiano e vida privada na América Portuguesa. v. 1. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

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Unidade: O cotidiano e a vida doméstica na sociedade colonial portuguesa

Anotações