histórico do direito penal e política criminal

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Política Criminal e Direito Penal – Histórico e Tendências Contemporâneas Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo Tupinambá Pinto de Azevedo 1 A história do direito penal reflete os movimentos de política criminal dominantes em cada época. Da forma como responde aos desafios e aos conflitos, decorre a concepção de justiça de uma sociedade. Conquanto as sanções criminais reflitam a necessidade de afirmar certos valores ou interesses, podem ser seguidos diferentes caminhos, tendo em vista a preocupação ético-jurídica de retribuição ao delito como pura exigência de justiça (teorias absolutas) ou a prevenção de futuras violações, com a intimidação da generalidade das pessoas (prevenção geral) ou a atuação sobre o agente, com intenções reeducativas, corretivas ou intimidativas (prevenção especial). O direito penal não se esgota na legislação, mas a partir desta é possível empreender o estudo dos discursos (saber penal) que lhe dão fundamentação. Iniciamos o século XX sob vigência do Código Penal de 1890. Entre esse primeiro código republicano e o Código Penal de 1940, sucederam-se muitas alterações e leis esparsas. E foram de tal monta as novas leis penais, que se fez indispensável uma reunião de todas elas, no que se chamou Consolidação das Leis Penais, obra de Vicente Piragibe (uma versão nova do Código Penal, contendo acréscimos e alterações). A Consolidação substituiu o Código, a partir de 1932, e manteve, exatamente porque mera compilação, o caráter elitista de origem, debatendo-se entre as contradições da ordem escravocrata (a abolição não afastara a cultura das penas corporais e a discriminação) e da nascente ordem burguesa. O Rio de Janeiro da primeira metade do século XX serve de parâmetro para a situação prefigurada na legislação penal da época: como disse Gizlene Neder (1997, p. 106), havia uma cidade quilombada e outra, européia, “separadas por um paredão da 1 Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo é Doutor em Sociologia pela UFRGS e professor da Faculdade de Direito e dos Programas de Pós-Graduação em Ciências Criminais e em Ciências Sociais da PUCRS; Tupinambá Pinto de Azevedo é Doutor em Direito pela UFRGS e Chefe do Depto. de Direito Penal da Faculdade de Direito da UFRGS.

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Page 1: Histórico do direito penal e política criminal

Política Criminal e Direito Penal – Histórico e Tendências Contemporâneas

Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo

Tupinambá Pinto de Azevedo1

A história do direito penal reflete os movimentos de política criminal

dominantes em cada época. Da forma como responde aos desafios e aos conflitos, decorre a

concepção de justiça de uma sociedade. Conquanto as sanções criminais reflitam a

necessidade de afirmar certos valores ou interesses, podem ser seguidos diferentes

caminhos, tendo em vista a preocupação ético-jurídica de retribuição ao delito como pura

exigência de justiça (teorias absolutas) ou a prevenção de futuras violações, com a

intimidação da generalidade das pessoas (prevenção geral) ou a atuação sobre o agente,

com intenções reeducativas, corretivas ou intimidativas (prevenção especial). O direito

penal não se esgota na legislação, mas a partir desta é possível empreender o estudo dos

discursos (saber penal) que lhe dão fundamentação.

Iniciamos o século XX sob vigência do Código Penal de 1890. Entre esse

primeiro código republicano e o Código Penal de 1940, sucederam-se muitas alterações e

leis esparsas. E foram de tal monta as novas leis penais, que se fez indispensável uma

reunião de todas elas, no que se chamou Consolidação das Leis Penais, obra de Vicente

Piragibe (uma versão nova do Código Penal, contendo acréscimos e alterações). A

Consolidação substituiu o Código, a partir de 1932, e manteve, exatamente porque mera

compilação, o caráter elitista de origem, debatendo-se entre as contradições da ordem

escravocrata (a abolição não afastara a cultura das penas corporais e a discriminação) e da

nascente ordem burguesa.

O Rio de Janeiro da primeira metade do século XX serve de parâmetro para

a situação prefigurada na legislação penal da época: como disse Gizlene Neder (1997, p.

106), havia uma cidade quilombada e outra, européia, “separadas por um paredão da

1 Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo é Doutor em Sociologia pela UFRGS e professor da Faculdade de Direitoe dos Programas de Pós-Graduação em Ciências Criminais e em Ciências Sociais da PUCRS; TupinambáPinto de Azevedo é Doutor em Direito pela UFRGS e Chefe do Depto. de Direito Penal da Faculdade deDireito da UFRGS.

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ordem”. A legislação penal de então reprime os movimentos operários, criminaliza a greve,

combate a vadiagem, a capoeiragem e a mendicância, confina a prostituição a determinadas

zonas.

Originalmente, o Código Penal tinha feição liberal, frente ao inimputável,

que seria entregue à própria família, ou, se houvesse risco à segurança do público,

recolhido a hospital de alienados. Mas decreto de 1903 criou os manicômios criminais para

alienados delinqüentes, assumindo o tratamento verdadeira feição de pena. É o advento de

uma cultura institucionalizante, resultado do cruzamento entre o direito penal, as práticas

policiais e o saber médico: “ao lado de uma penitenciária que pretende avocar-se na tarefa

de adestrar para o trabalho, os asilos da mendicidade inválida, e as colônias correcionais

para “vadios, capoeiras e desordeiros”, os abrigos de “menores”, os manicômios

judiciários, tudo isso como que refletindo a “classificação” dos criminosos então em voga,

ensinada aos policiais na sua escola numa disciplina intitulada História Natural dos

Malfeitores.”(ZAFFARONI, BATISTA et al., 2003, p. 458)

O Código Penal de 1940 assinala o rompimento da aliança direito penal-

medicina, por influência do tecnicismo jurídico que presidiu à feitura do Código Penal

italiano (Código Rocco), desse modo afastando a criminologia positivista, afinal confinada

aos manicômios (medidas de segurança) e penitenciárias. Fiel à época de sua emergência,

o direito penal brasileiro traz como uma de suas inspirações a política criminal

intervencionista. Mas esse ideário não transparece tanto no Código Penal de 40, e sim nas

sucessivas leis de Economia Popular, criminalizando a usura, as taxas extorsivas, o

desrespeito a tabelas de preços, o abuso do poder econômico, etc.

É certo que o Código de 40 surgiu em período ditatorial, de duríssima

repressão, fechadas todas as casas legislativas do país, mas seus principais autores – Nelson

Hungria e Roberto Lyra -, e o supervisor dos trabalhos – A.J. Costa e Silva -, são juristas de

notório saber, vinculados a atividades acadêmicas, perfeitamente a par das grandes

correntes político-criminais de então. O insuspeito Heleno Cláudio Fragoso chegou a dizer

que esse Código Penal “incorpora fundamentalmente as bases de um direito punitivo

democrático e liberal” (FRAGOSO, 2003, p. 78). Sob o aspecto mais amplo da política, os

anos 30 demarcam a centralização do poder, sob Vargas, e seu reflexo na órbita penal é a

Page 3: Histórico do direito penal e política criminal

expropriação gradativa do poder de punição dos coronéis, submetidos, agora, ao monopólio

do poder punitivo do Estado.

Além do distanciamento do positivismo criminológico, que levou a afastar a

proposta de classificação dos criminosos, o novo código afastou a pena de morte, previu o

duplo binário, incluindo a possibilidade de aplicação de medida de segurança para

imputáveis (periculosidade presumida), e inverteu a ordem dos tipos penais, reservando

para a última parte os crimes contra o Estado, dando prevalência à pessoa e à comunidade

(vide Parte Especial).

A partir de 1930 o Brasil ingressa na época da industrialização e se dirige a

um modelo social ou previdenciário de Estado. Resultado desse panorama é a previsão, no

Código de 40, das penitenciárias agrícolas ou industriais. Em plena crença nas

possibilidades de prevenção pela lei penal, está clara no Código a proposta de readaptação

social.

Por isso, em 1984, a publicação da Lei 7.210, de execução penal (LEP), não

rompe com o ideário de 1940, antes o reforça e continua: “Art. 1º. A execução penal tem

por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar

condições para a harmônica integração social do condenado e do internado.” Não por

acaso, o diploma em questão coincide com a reforma da Parte Geral do Código Penal de

1940, e completa o projeto iniciado com a Lei 6.416/77. A lacuna de uma lei de execução

penal foi parcialmente suprida, pois a Lei 6.416/77 criava os regimes carcerários,

institucionalizando a prisão-albergue como uma das modalidades do regime aberto,

extinguia o pressuposto da reincidência, passados cinco anos do cumprimento da pena do

crime anterior, aperfeiçoava o sursis, o livramento condicional e a prescrição retroativa.

Frustrada a vigência de novo Código Penal (em 1969 chegou-se até à

promulgação, mas o novo texto foi revogado, durante a vacatio legis), a nova idéia

consistiu em reformá-lo. Toda a Parte Geral, desse modo, foi reformulada, após amplo

debate. Sob o aspecto técnico-jurídico, o texto não perde em qualidade para o Código Penal

de 1940. O princípio da culpabilidade é um dos eixos da reforma, as medidas de segurança

deixam de se somar à pena, adotado agora o sistema vicariante (pena ou medida de

segurança), não há periculosidade presumida, e a teoria do erro é aperfeiçoada, substituídos

o erro de direito e de fato pelo erro de tipo e de proibição. Um primeiro aceno à relevância

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da reparação do dano, em sede penal, aparece na minorante respectiva, desde que se trate de

crime sem violência ou grave ameaça. Os regimes carcerários são aperfeiçoados e

colocados em forma progressiva. Consagra-se o dia-multa e são introduzidas penas

restritivas, com caráter substitutivo.

Há nessa reforma influência de idéias minimalistas, ao menos em relação à

pena de prisão, submetida ao princípio de ultima ratio. A preocupação com a vítima

transparece na sua consideração como circunstância de graduação da pena (art. 59 CP),

além do instituto do arrependimento posterior, referido acima (reparação do dano como

minorante). Talvez seja, todavia, o último esforço legislativo penal na direção do Estado de

bem-estar – embora o paradoxo com a Constituição Federal que viria quatro anos depois da

reforma, proclamando o Estado Social e Democrático de Direito. É que a crença na

ressocialização, pelo cumprimento de pena, se esvai, e as leis que se seguirão obedecem à

frustração dos doutrinadores. René Dotti censura as Constituições italiana, espanhola e

portuguesa, por que declaram formalmente que a execução da pena deve ter, como objetivo

principal, a recuperação do infrator: “Os textos constitucionais e legais em tal sentido são

muito criticados frente à constatação dos elevados índices de reincidência.” (DOTTI, 2001,

p. 434)

O panorama traçado até aqui ressalta apenas o Código. Não temos reserva

de Código, ou sequer alguma centralidade do Código Penal, de modo que as leis que tratam

de matéria criminal muitas vezes obedecem a outras matrizes político-criminais e, com sua

especial dinâmica, expressam o pensamento mais atualizado do legislador.

O Código Penal de 1940 já está convivendo com a quinta Constituição, o

que revela sua vitalidade. A crise do Estado social parece não abalar o texto, que se mantém

coerente nas reformas, acréscimos e revogações. Mas não é possível esquecer que, surgindo

no seio de uma ditadura feroz, e convivendo, depois, com vinte anos de regime militar, leis

penais paralelas muito desfiguraram a implementação do projeto de criminalização do

Código Penal de 1940.

As mais importantes questões penais do Estado Novo, entre as quais os

crimes contra a economia popular, anteriormente referidos, estavam submetidas a um

tribunal de exceção (o Tribunal de Segurança Nacional); Ato Institucional do período

militar suspendeu o Habeas Corpus para crimes políticos, notando-se que os delitos

Page 5: Histórico do direito penal e política criminal

enquadrados como contrários à segurança nacional eram da competência de tribunais

militares. Para tais crimes, havia cominação de prisão perpétua e pena de morte (Decreto-

lei 510/69).

Com a redemocratização e o advento da Constituição de 1988, importantes

garantias penais foram inseridas ou mantidas, como o princípio da legalidade dos crimes e

penas, da culpabilidade (art. 5º, LVII, CF), da personalidade, da individualização da pena,

do direito à não auto-incriminação, da proibição de penas perpétuas, cruéis e desumanas

(reservada a pena de morte para o caso de guerra declarada).

Insere-se no direito penal brasileiro, pelo art. 98, I, CF, o novo modelo de

justiça penal consensual, permitida a transação. Há quem veja aí uma adesão ao

empreendimento neoliberal, pois o esvaziamento de prisões conseqüente à transação penal

(ou mesmo a composições cíveis despenalizadoras), atenderia a um cálculo custo-benefício.

Nessa linha, chega-se a sustentar que esse novo sistema “opera mediante uma dualidade

discursiva que distingue os delitos dos consumidores ativos (aos quais correspondem

medidas despenalizadoras em sentido amplo) dos delitos grosseiros dos consumidores

falhos (aos quais corresponde uma privação de liberdade neutralizadora” (ZAFFARONI,

BATISTA et al., 2003, p. 484-5). Outros, sustentam que se trata da revalorização da vítima,

nos primórdios do direito penal inteiramente afastada do conflito penal, pois o monopólio

da pretensão punitiva pelo Estado atenderia à erradicação da vingança privada. Agora,

atendida à condição de ultima ratio da repressão penal, seria preferível a via reparatória,

consentânea, inclusive, com o Estado social. Tal protagonismo da vítima não está presente

apenas nos Juizados Especiais Criminais, mas é ressaltado na legislação penal ambiental

(Lei 9.605/98).

Sobre a legislação penal produzida a partir da Constituição de 88, reflete

duas das tendências mais evidentes no tocante às normas penais nas sociedades

contemporâneas, ou seja, a da utilização de mecanismos penais “de emergência” e a da

hipertrofia ou inflação de normas penais, que invadem campos da vida social que

anteriormente não estavam regulados por sanções penais, aprofundando o intervencionismo

penal. O remédio penal é utilizado pelas instâncias de poder político como resposta para

quase todos os tipos de conflitos e problemas sociais.

Page 6: Histórico do direito penal e política criminal

A resposta penal se converte em resposta simbólica oferecida pelo Estado

frente as demandas de segurança e penalização da sociedade, expressas pela mídia, sem

relação direta com a verificação de sua eficácia instrumental como meio de prevenção ao

delito. O direito e o processo penal se convertem em recurso público de gestão de condutas

utilizado contingencialmente, e não mais como instrumento subsidiário de proteção de

interesses ou bens jurídicos (AZEVEDO, 2005, p. 236) .

Para caracterizar este momento de mudanças no âmbito da legislação e das

práticas punitivas, tem sido utilizada a denominação direito penal de emergência, ou

processo penal de emergência (FERRAJOLI, 2002). No Brasil, a emergência penal pode

ser constatada com a edição da lei 8.072/90, conhecida como Lei dos Crimes Hediondos,

que regulamentou o que havia sido previsto na Constituição de 88, que no art. 5º, inciso

XLIII, criou a figura dos crimes hediondos, nos seguintes termos: “A lei considerará crimes

inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática de tortura, o tráfico ilícito de

entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles

respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem.”

Em seu art. 1º, a Lei 8.072/90 definiu como hediondos os delitos de

homicídio qualificado e homicídio praticado em atividade típica de grupo de extermínio, o

latrocínio, a extorsão qualificada pela morte, a extorsão mediante seqüestro e na forma

qualificada, o estupro e o atentado violento ao pudor, a epidemia com resultado morte,

falsificação, corrupção, adulteração ou alteração de produto destinado a fins terapêuticos ou

medicinais, consumados ou tentados. O parágrafo único do art. 1º da mesma lei rotulou

também como hediondo o crime de genocídio previsto nos arts. 1º, 2º e 3º da Lei nº 2.889,

de 1º de outubro de 1956, tentado ou consumado, com redação dada pela Lei nº 8.930/94.

Em seus arts. 2º e 3º, a Lei 8.072/90 estabeleceu as regras aplicáveis aos

delitos hediondos e aos a eles equiparados, proibindo a anistia, graça, indulto, fiança e

liberdade provisória, e determinando o cumprimento da pena integralmente em regime

fechado.

O art. 5º acrescentou inciso ao art. 83 do Código Penal, determinando que,

para que haja a concessão de livramento condicional ao condenado a pena privativa de

liberdade, nos casos de condenação por crime hediondo, prática de tortura, tráfico ilícito de

Page 7: Histórico do direito penal e política criminal

entorpecentes e drogas afins, e terrorismo, deverão ter sido cumpridos mais de dois terços

da pena.

O art. 6º da mesma Lei aumentou a pena dos delitos rotulados como

hediondos. Para exemplificar, o latrocínio, que tinha pena mínima de 15 anos de reclusão,

passou ao mínimo de 20 anos; a extorsão mediante seqüestro, cuja pena mínima era de seis

anos de reclusão, passou a ter o mínimo no patamar de oito anos. O mesmo crime se

praticado contra menor de dezoito anos, ou por quadrilha ou se durar mais de 24 horas, que

tinha pena mínima de 8 anos, passou para 12 anos de reclusão. Se do sequestro resultar a

morte, a pena mínima, que era de 20 anos, passou para 24 anos. O estupro, que tinha pena

mínima de 3 anos de reclusão e 8 como máxima, passou ao mínimo de 6 anos e máximo de

10 anos. O atentado violento ao pudor passou de um apenamento mínimo de 2 anos e

máximo de 7 anos para 6 e dez anos, respectivamente.

Outro exemplo de legislação emergencial é a lei 9.034/95, que dispõe sobre

a utilização de meios operacionais (meios de prova e procedimentos investigatórios) para a

prevenção e repressão de ações praticadas por organizações criminosas. De acordo com o

art. 2º da referida Lei, em qualquer fase de persecução criminal são permitidos, sem

prejuízo dos já previstos em lei, os seguintes procedimentos de investigação e formação de

provas:

(...)II - a ação controlada, que consiste em retardar a interdição policial doque se supõe ação praticada por organizações criminosas ou a elavinculado, desde que mantida sob observação e acompanhamento paraque a medida legal se concretize no momento mais eficaz do ponto devista da formação de provas e fornecimento de informações;III - o acesso a dados, documentos e informações fiscais, bancárias,financeiras e eleitorais.IV - a captação e a interceptação ambiental de sinais eletromagnéticos,óticos ou acústicos, e o seu registro e análise, mediante circunstanciadaautorização judicial;V - infiltração por agentes de polícia ou de inteligência, em tarefas deinvestigação, constituída pelos órgãos especializados pertinentes,mediante circunstanciada autorização judicial.Parágrafo único. A autorização judicial será estritamente sigilosa epermanecerá nesta condição enquanto perdurar a infiltração.

Uma das principais inovações previstas pela Lei 9.034/95, em seu art. 6º, é a

que estabelece que, nos crimes praticados em organização criminosa, a pena será reduzida

Page 8: Histórico do direito penal e política criminal

de um a dois terços, quando a colaboração espontânea do agente levar ao esclarecimento de

infrações penais e sua autoria (delação premiada).

O art. 7º impede a concessão de liberdade provisória, com ou sem fiança, aos

agentes que tenham tido intensa e efetiva participação na organização criminosa,

estabelecendo o art. 8º que o prazo para encerramento da instrução criminal, nos processos

por crime de que trata esta lei, será de 81 (oitenta e um) dias, quando o réu estiver preso, e

de 120 (cento e vinte) dias, quando solto. Dispõe ainda o art. 9º que o réu não poderá apelar

em liberdade, nos crimes previstos nesta Lei.

Entre as áreas novas ou ao menos distintas das tradicionalmente contidas no

Código Penal, atingidas pela expansão do direito penal, cabe mencionar as disposições

penais em matéria de delitos econômicos e financeiros – sonegação fiscal, lavagem de

dinheiro, etc.; a criminalização das condutas contrárias às relações de consumo; a

criminalização de delitos ambientais; a tipificação de delitos de discriminação racial ou de

outro tipo e da chamada criminalidade organizada; e a criminalização do assédio sexual.

Os crimes contra a ordem tributária foram pela primeira vez tipificados de

forma específica pela Lei 4.729, de julho de 1965. Em seu art. 1º, a referida lei definia

como crime de sonegação fiscal o ato de prestar declaração falsa ou omitir informação, com

intenção de eximir-se do pagamento de tributos e taxas, e inserir elementos inexatos ou

omitir rendimentos em documentos ou livros exigidos pelas leis fiscais, com pena de seis

meses a dois anos de prisão e multa.

A aplicabilidade do referido diploma legal ficou bastante comprometida,

pela inclusão, no art. 2º, da previsão de extinção da punibilidade quando o agente

responsável pela sonegação promovesse o recolhimento do tributo devido, antes de ter

início a ação fiscal própria na esfera administrativa, e do conseqüente oferecimento da

denúncia pelo Ministério Público, que foi revogado em 1991, e reintroduzido pela Lei

9.249/95, art. 34.

Em 1990, foi editada a Lei 8.137, que ampliou a previsão a respeito dos

delitos contra a ordem tributária. A nova lei tipificou a supressão ou redução de tributo ou

contribuição social mediante a omissão ou falsidade de informação, fraude à fiscalização,

falsificação de nota fiscal, fatura, duplicata, nota de venda ou qualquer outro documento

relativo a operação tributável. Nestes casos, as penas foram ampliadas para de dois a cinco

Page 9: Histórico do direito penal e política criminal

anos de prisão e multa. Também foi previsto o delito de deixar de aplicar, ou aplicar em

desacordo com o estatuído, incentivo fiscal ou parcelas de imposto liberadas por órgão ou

entidade de desenvolvimento, com pena de detenção de seis meses a dois anos e multa.

A Lei 9.613/98 dispôs sobre os crimes de lavagem ou ocultação de bens,

direitos e valores. Foram tipificados os delitos de ocultação ou dissimulação da natureza,

origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores

provenientes direta ou indiretamente de crime de tráfico ilícito de substâncias

entorpecentes, de terrorismo, de contrabando ou tráfico de armas, munições ou material

destinado à sua produção; de extorsão mediante seqüestro; contra a Administração Pública,

inclusive a exigência, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, de qualquer

vantagem, como condição ou preço para a prática ou omissão de atos administrativos;

contra o sistema financeiro nacional; praticado por organização criminosa. A pena

cominada foi de reclusão de três a dez anos e multa.

Da mesma forma foram tipificadas as condutas de conversão dos bens,

direitos e valores provenientes de atividades criminosas em ativos lícitos (lavagem), de

utilização, na atividade econômica ou financeira, de bens, direitos ou valores que sabe

serem provenientes de atividades ilícitas, a participação de grupo, associação ou escritório

tendo conhecimento de que sua atividade principal ou secundária é dirigida à prática de

crimes previstos nesta lei.

A mesma lei previu, no parágrafo 5º do art. 1º, que a redução da pena de um

a dois terços e o seu cumprimento em regime aberto, podendo o juiz deixar de aplicá-la ou

substituí-la por pena restritiva de direitos, caso o autor, co-autor ou partícipe colaborar

espontaneamente com as autoridades, prestando esclarecimentos que conduzam à apuração

das infrações penais e de sua autoria ou à localização dos bens, direitos ou valores objeto

do crime.

O art. 3º estabelece que os crimes disciplinados nessa lei são insuscetíveis de

fiança e liberdade provisória e, em caso de sentença condenatória, o juiz decidirá

fundamentadamente se o réu poderá apelar em liberdade. A lei também ampliou os efeitos

da condenação para além dos previstos no Código Penal (art. 7º), com a previsão de perda,

em favor da União, dos bens, direitos e valores objeto de crime, ressalvado o direito do

lesado ou de terceiro de boa-fé; a interdição do exercício de cargo ou função pública de

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qualquer natureza e de diretor, de membro de conselho de administração ou de gerência das

pessoas jurídicas, pelo dobro do tempo da pena privativa de liberdade aplicada.

Outra área de neo-criminalização é a dos delitos de preconceito ou

discriminação racial ou de outro tipo. A tipificação específica destas condutas ocorreu com

a edição e promulgação da Lei 7.716/89, que definiu os crimes resultantes de preconceito

de raça ou de cor, etnia, religião ou procedência nacional. De acordo com o art. 1º do

diploma legal em tela, quem abertamente impeça, obstrua, restrinja ou de algum modo

dificulta o pleno exercício sobre bases igualitárias dos direitos e garantias fundamentais

reconhecidos na Constituição Nacional será obrigado, a pedido do prejudicado, a deixar

sem efeito o ato discriminatório, cessar sua realização e reparar o dano moral e material

ocasionado. A lei refere-se especificamente aos atos ou omissões discriminatórios

determinados por motivos de raça, religião, nacionalidade, ideologia, opinião política, sexo,

posição econômica, condição social ou características físicas (art. 1º).

É preciso ainda destacar a neo-criminalização das condutas atentatórias

contra as relações de consumo e o meio ambiente, por meio das leis 8.078/90 e 9.605/98. O

Código de Defesa do Consumidor – CDC (Lei 8.078/90) trouxe, em seu Título II, o rol das

infrações penais relacionadas com as relações de consumo (art. 61 a 80). Foram tipificadas,

entre outras condutas, a omissão de dizeres ou sinais ostentivos sobre a nocividade ou

periculosidade de produtos ou serviços (detenção de seis meses a dois anos e multa); deixar

de retirar do mercado e deixar de comunicar à autoridade competente e aos consumidores a

nocividade ou periculosidade de produtos cujo conhecimento seja posterior à sua colocação

no mercado (detenção de seis meses a dois anos e multa); executar serviço de alto grau de

periculosidade, contrariando determinação de autoridade competente (detenção de seis

meses a dois anos e multa); fazer afirmação falsa ou enganosa, ou omitir informação

relevante sobre a natureza, característica, qualidade, quantidade, segurança, desempenho,

durabilidade, preço ou garantia de produtos ou serviços (detenção de três meses a um ano e

multa); fazer ou promover publicidade que sabe ou deveria saber ser enganosa ou abusiva

(detenção de três meses a um ano e multa); etc.

O art. 75 do CDC estabelece a responsabilidade penal de quem, de qualquer

forma, concorrer para os crimes referidos no Código, bem como do diretor, administrador

ou gerente da pessoa jurídica que promover, permitir ou por qualquer modo aprovar o

Page 11: Histórico do direito penal e política criminal

fornecimento, oferta, exposição à venda ou manutenção em depósito de produtos ou a

oferta e prestação de serviços nas condições por ele proibidas.

Com relação às condutas lesivas ao meio ambiente, foram tipificadas pela

Lei 9.605/98, que previu sanções penais e administrativas.Uma das mais importantes e

polêmicas inovações desta lei em matéria penal foi a criminalização da pessoa jurídica,

novidade no direito brasileiro, de acordo com o previsto no art. 3º:

Art. 3º - As pessoas jurídicas serão responsabilizadas administrativa, civile penalmente conforme o disposto nesta Lei, nos casos em que a infraçãoseja cometida por decisão de seu representante legal ou contratual, ou deseu órgão colegiado, no interesse ou benefício da sua entidade.

A idéia de responsabilizar penalmente também a pessoa jurídica exige que se

abandonem conceitos como o de conduta punível, dolo ou culpa, imputabilidade e

imputabilidade, penas carcerárias – pois todos foram construídos em torno da pessoa

humana. Para alguns, não é possível esse salto dogmático, pois só há crime quando há

liberdade de escolha, consciência da ilicitude, ânimo de agir, etc. Outros assinalam que tais

argumentos também afastariam a possibilidade da responsabilidade civil da pessoa jurídica.

O certo é que vários países já adotam tal responsabilização.

O Capítulo V da lei 9.605/98 tipifica, em um extenso rol de mais de trinta

artigos, os delitos ambientais, que, a teor do art. 26, são de ação pública incondicionada.

Entre as condutas tipificadas, estão os crimes contra a fauna (ex.: art. 29 - Matar, perseguir,

caçar, apanhar, utilizar espécimes da fauna silvestre, nativos ou em rota migratória, sem a

devida permissão, licença ou autorização da autoridade competente, ou em desacordo com

a obtida: Pena: detenção de seis meses a um ano, e multa); os crimes contra a flora (Ex.:

Art. 38 - Destruir ou danificar floresta considerada de preservação permanente, mesmo que

em formação, ou utilizá-la com infringência das normas de proteção, pena - detenção, de

um a três anos, ou multa, ou ambas as penas cumulativamente); os crimes de poluição e

outros crimes ambientais (Ex.: Art. 54 - Causar poluição de qualquer natureza em níveis

tais que resultem ou possam resultar em danos à saúde humana, ou que provoquem a

mortandade de animais ou a destruição significativa da flora: Pena - reclusão, de um a

quatro anos, e multa); os crimes contra o ordenamento urbano e o patrimônio cultural (ex.:

Art. 62 - Destruir, inutilizar ou deteriorar: I - bem especialmente protegido por lei, ato

administrativo ou decisão judicial; II - arquivo, registro, museu, biblioteca, pinacoteca,

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instalação científica ou similar protegido por lei, ato administrativo ou decisão judicial:

Pena - reclusão, de um a três anos, e multa); e os crimes contra a Administração Ambiental

(Ex.: Art. 66 - Fazer o funcionário público afirmação falsa ou enganosa, omitir a verdade,

sonegar informações ou dados técnico-científicos em procedimentos de autorização ou de

licenciamento ambiental: Pena - reclusão, de um a três anos, e multa).

Frente aos crimes inerentes à sociedade de massas (contra o consumidor,

meio ambiente, trânsito), nota-se a opção por crimes de perigo abstrato, em que a norma

incide antes que o bem jurídico sequer sofra efetiva ameaça. Essa antecipação da resposta

penal é perigosíssima, pois desvincula a lei penal da proteção efetiva a bens jurídicos.

Libera-se o legislador do princípio da lesividade social.

Fenômeno correlato ao da preventividade penal é o da chamada

“administrativização” do direito penal, e que não se confunde com o denominado “direito

penal administrativo”. Ou seja: a desobediência a ordens ou regulamentos administrativos,

por si só, já caracteriza crime (são os chamados “crimes-obstáculo”).

Os exemplos acima demonstram que a utilização do direito penal como

instrumento de combate à chamada “criminalidade dos poderosos”, assim como para a

defesa de bens jurídicos considerados relevantes por diversos movimentos sociais

(feministas, ambientalistas, anti-discriminação), é amplamente aceita, tendo como resultado

a inflação punitiva. No entanto, é difícil determinar se os interesses da classe dominante

deixaram de pautar o pensamento penal, por uma evolução natural da consciência social, ou

se essa dissintonia advém de que “a criminalidade dominante se torna também a das classes

dominantes” (MAILLARD, 1995, p. 100).

É certo, porém, que a criminalidade de colarinho branco tem vários filtros,

antes de chegar ao judiciário. As Bolsas de Valores têm órgãos de fiscalização e mesmo de

aplicação de sanções; o Banco Central fiscaliza as instituições financeiras; os executivos

estadual e federal submetem-se aos tribunais de contas, e só remotamente se há de convocar

o poder judiciário. Assim, “os contenciosos econômicos e sociais, do topo ao fim da escala,

se mantêm distanciados da justiça penal"(MAILLARD, 1995, p. 110). A o m e s m o

tempo, a criminalidade convencional atinge, predominantemente, as classes pobres, mais

expostas à violência urbana.

Page 13: Histórico do direito penal e política criminal

É evidente que por trás da adesão ao punitivismo está o fato de que o

discurso do “eficientismo simbólico” se converteu em tecnologia de poder do sistema

político, em que se barganha a ilusão de segurança em troca do voto. Fundado em uma falsa

contraposição de dois interesses igualmente legítimos, a aplicação da lei penal e a proteção

das garantias individuais, o discurso eficientista converte-se também em argumento

legitimador de reformas legislativas e administrativas voltadas ao esvaziamento das

garantias processuais do suspeito e do acusado e ao recrudescimento dos poderes

investigatórios e punitivos do Estado. O Direito Penal se afasta de sua função de controle e

limite do emprego da força pelo Estado, para converter-se em instrumento “simbólico” de

combate à criminalidade (DIAS NETO, 2005, p. 94).

Assiste-se então, em matéria de política criminal, à emergência do

“gerencialismo”, isto é, a visão do Direito Penal como um mecanismo de gestão eficiente

de determinados problemas, sem conexão com os valores que estiveram na base do Direito

Penal clássico (verdade, justiça), que passam a ser vistos muito mais como obstáculos,

como problemas em si mesmos, que se opõem a uma gestão eficiente das questões de

segurança. O elemento comum às propostas gerencialistas é a desconfiança frente ao

público e ao formalizado e sua conseqüente deslegitimação, e o resultado é a expansão do

Direito Penal por via de mecanismos que pretendem fazer frente ao colapso da justiça penal

em sociedades sobrejuridificadas e sobrejudicializadas, reduzindo-o a uma simples

manifestação administrativo-executiva.

Ao gerencialismo penal corresponde o novo discurso criminológico,

chamado “atuarial”. Atuarialismo e gerencialismo, embora não signifiquem exatamente o

mesmo, respondem a uma mesma lógica tecnocrática, e foram assimilados como

manifestações de uma mesma racionalidade que impregna as técnicas de controle do delito

na atualidade. A criminologia atuarial propõe uma mudança de paradigma, com o abandono

do discurso correcionalista, característico do welfare state, e do debate a respeito das causas

do delito. No modelo atuarial, já não se pretende um projeto disciplinar, entendido no

sentido foucaultiano como modalidade de poder que garante a docilidade e utilidade dos

indivíduos. Nas palavras de Bergalli,

El control punitivo del Estado neo-liberal ya no se descarga más, comoantaño, sobre sujetos individuales, sino sobre sujetos colectivos, quienesson tratados institucionalmente como “grupos productores de riesgo”.

Page 14: Histórico do direito penal e política criminal

Estos sujetos no tienen nombre y apellido, sino que son consideradoscomo categorías. El objetivo es el de redistribuir un riesgo decriminalidad que se considera socialmente inevitable. (BERGALLI,2005, p. 205)

A aceitação da inevitabilidade da sociedade do risco, dominada pela

racionalidade econômica, implica em combater a criminalidade com técnicas de gestão

atuarial. No âmbito criminológico, se abandona a idéia de que a delinqüência existe como

conseqüência de determinadas privações ou problemas sociais. No âmbito da política-

criminal, o atuarialismo considera que os conceitos econômicos básicos, como

racionalidade, maximização, custos e benefícios, etc., são fundamentais para entender,

explicar e combater de maneira efetiva a atividade criminal (RIVERA BEIRAS, 2005,

p.234). As políticas neo-conservadoras de combate ao delito tem como principal objetivo a

dissuasão do delinqüente, mediante a modificação do preço do delito, ou a sua pura e

simples contenção. Se trata de encontrar políticas de otimização da relação custo benefício

do combate ao crime, como o mínimo custo possível para o Estado.

A premissa desse enfoque é a idéia de delito como escolha racional, na qual

o delinqüente é visto como uma “pessoa racional amoral”, que escolhe o delito com base

em uma análise prévia de custos e benefícios. É o homo economicus que habita o mundo

dos seguros, cujas práticas de gestão são estendidas aos mecanismos de controle penal. A

escolha dos instrumentos ótimos de castigo para aumentar os custos do delito e conseguir,

assim, a dissuasão esperada, se constitui no único ponto de divergência entre os defensores

do movimento Law and Economics, que se debatem entre a multa e o cárcere como

melhores instrumentos para conseguir o pretendido efeito dissuasivo.

O Estado neo-liberal não pretende reeducar, ressocializar, corrigir ou

prevenir, como pretendeu o Estado social. Os novos fins do sistema penal são os

estritamente orientados à punição: “Es decir que unicamente deve punir, pero no solo punir

ejemplarmente cada violación del nuevo orden, sino que incluso ha de llegar hasta el punto

de crear alarma social para convertirse en fuente de consenso en torno a las instituiciones,

previniendo así cualquer eventual disentimiento político”(BERGALLI, 2005, p. 204).

No Brasil, para o bem e para o mal, continuamos ecléticos: (a) a Lei nº

8.072/90 (dos crimes hediondos) é claramente contrária ao Estado de Direito, violando

princípios como da proporcionalidade, da igualdade, da individualização da pena. Sua

Page 15: Histórico do direito penal e política criminal

filosofia é: para crimes graves, penas extremadas, regime carcerário fechado, restrição aos

poderes do Juiz. Esta lei filia-se ao movimento “Law and Order”. E temos (b) a Lei nº

9.099/95, que instituiu os Juizados Especiais, Cíveis e Criminais. O crime de menor

gravidade submete o autor a simples audiência para composição (cível) do dano e/ou

transação penal, em que a sanção é aplicada, sem condenação. Esta lei filia-se à corrente do

direito penal consensual, mas é preciso consignar que o faz com sacrifício do direito de

ampla defesa e da presunção de inocência.

O poder da mídia, sobretudo eletrônica, é nova variável, inexistente em

outros tempos. Trata-se de um novo poder, capaz de manipular corações e mentes, a serviço

de quem paga melhor (aspecto econômico) ou detém posição de poder (aspecto político). A

experiência brasileira, em que testemunhamos crescente monopolização dos meios

televisivos, com programas e mensagens elaborados a partir de pesquisas de opinião, tende

a conduzir para a “direita penal”, ou seja, adesão ao discurso e à prática da Lei e da Ordem.

Por fim, a agudização da desigualdade social cava um fosso entre excluídos e as demais

classes sociais, favorecendo a criminalização do modus vivendi dos mais pobres. Ademais,

a retirada de benefícios sociais faz com que os recursos daí subtraídos sejam alocados em

políticas de segurança. Se não há empregos a oferecer, mobilize-se repressão aos

desempregados, para que deixem de ser ameaça.

Por fim, é preciso ter cautela com o uso simbólico do direito penal.

Incriminar condutas pode oferecer à população uma inicial sensação de segurança; mas

quando se percebe que a lei penal só pretendia oferecer tal conforto, sendo inaplicável ou

inócua no cotidiano, gera-se a frustração com o sistema. A sensação que sobrevém é de

impunidade – caldo de cultura de maior criminalidade. O sistema penal não é apto para a

erradicação da criminalidade. É forma de controle social que incide sobre efeitos, sem

combate às causas. Sua irresponsável utilização simbólica é também uma desesperada

tentativa de aliviar as tensões presentes, sabendo-se que as causas da criminalidade exigem

medidas sociais que demandarão vários anos para que sejam sentidos os primeiros

resultados positivos. A impaciência leva à preocupação com a eficácia penal, pretendendo-

se aferi-la onde não se encontra e no que jamais realizará.

No terreno estritamente jurídico-penal, insuperável anteparo a essa

perspectiva sombria está na constitucionalidade material do Estado Democrático e Social

Page 16: Histórico do direito penal e política criminal

de Direito. É de supor que o controle de constitucionalidade, nesse contexto, mesmo sem

levar à população o “milagre penal” que ela anseia, impedirá a vitória de um direito penal

discriminatório, autoritário e cruel.

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