histÓrias dos trÊs machados

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Coletânea de Contos HISTÓRIAS DOS TRÊS MACHADOS Incluíndo: Missa do Galo (Machado de Assis) Gaetaninho (Alcântara Machado) Terror de Banheiro

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Selected texts written by Machado de Assis, Machado Alcantara Machado and Alves.Textos selecionados escritos por Machado de Assis, Alcantara Machado e Alves Machado.

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Page 1: HISTÓRIAS DOS TRÊS MACHADOS

Coletânea de Contos

HISTÓRIAS DOS TRÊS MACHADOS

Incluíndo:

Missa do Galo(Machado de Assis)

Gaetaninho(Alcântara Machado)

Terror de Banheiro(Alves Machado)

Organizadora: Ilma Pereira da Silva Machado2008

Page 2: HISTÓRIAS DOS TRÊS MACHADOS

ÍNDICE:

Alves Machado

Terror de Banheiro (04)

O Golpe da Rosa (08)

A Milésima Alma (13)

Santo Antônio do Rio Abaixo: O Milagre (16)

Sineiro das Almas (22)

Alcântara Machado

Gaetaninho (26)

Carmela (30)

Lisseta (38)

Corinthians (2) vs. Palestra (1) (41)

O Filósofo Platão (48)

Machado de Assis

Missa do Galo (56)

O Espelho (64)

A Cartomante (74)

O Enfermeiro (85)

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Page 3: HISTÓRIAS DOS TRÊS MACHADOS

A Igreja do Diabo (94)

Em Busca do Prazer

A leitura é uma das formas mais saudáveis e construtivas de lazer que existe.

Nos dias atuais, a leitura, muitas vezes, parece estar ligada apenas aos estudos e ao

trabalho, subtraindo dela sua principal função: o lazer.

Entendo que o leitor tem, normalmente, dificuldade de acesso a uma

literatura de qualidade, tanto no aspecto econômico como relativo à linguagem, já que o

Português Padrão (da escrita) é um tanto distante da linguagem falada, hoje, no Brasil.

Portanto, quando o cidadão comum a busca, frustra-se ao perceber que esta não lhe é muito

acessível.

Foi nesse intuito que propusemos esta coletânea, buscando despertar o prazer

pela leitura, através de excelentes textos desde a contemporaneidade até o século XIX.

Representando a contemporaneidade, apresentamos um escritor ainda inédito

nas editoras, mas de alta qualidade de produção: Alves Machado; representando o

modernismo brasileiro do início do século XX, trazemos o irreverente Alcântara Machado

e, para encerrar a coletânea, temos o mais importante escritor brasileiro (e quem sabe do

idioma Português) Machado de Assis.

A coincidência, por serem ambos contistas e carregarem o mesmo nome

(Machado), fez-nos perceber que esse era o caminho certo em busca de um despertar pelo

prazer da leitura.

Divirtam-se!

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Page 4: HISTÓRIAS DOS TRÊS MACHADOS

Ilma Pereira da Silva Machado (organizadora)

Alves Machado

TERROR DE BANHEIRO

Lembro-me que, aos sete anos, eu detestava ter que ir ao

banheiro da escola. O mau cheiro era percebido há muitos metros de

distância. O interior do lugar era deprimente, com muitos aparelhos

quebrados, vazamentos, bacias entupidas, detritos nas latrinas e uma

mistura de água, urina e barro que recobria todo o piso do banheiro.

Apesar da total falta de higiene, que não parece ter mudado nos últimos

trinta anos, não era exatamente o motivo da minha total aversão ao

banheiro da escola.

Eu não era o único. Na verdade, tornara-se um problema

social naquele lugar. Maria Dolores fez pipi pernas abaixo na sala de

aula mesmo, após ter segurado o quanto pôde. Os garotos

despachavam no tronco das árvores e sempre havia alguém que fazia

seu cocô nas calças após um imenso suplício. O motivo de todo esse

vexame, que para nós não era nada natural, era o banheiro da escola,

ou melhor, algo que havia lá.

Corria o boato de que, naquele banheiro, muitas crianças

viam uma mulher vestida de branco, como uma noiva, com as narinas

todas entupidas de algodão; ela era pálida como uma defunta, mas

parecia estar viva e surpreendia, vez por outra, um estudante. Era

comum que crianças saíssem correndo desesperadas do banheiro,

jurando tê-la visto.

Íamos ao banheiro aos pares, mas não era o suficiente para

que superássemos o medo, pois aquilo era alimentado o tempo todo

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Page 5: HISTÓRIAS DOS TRÊS MACHADOS

pelos professores, funcionários e alunos mais velhos. Se alguém estava

se divertindo com aquela história, certamente não éramos nós.

Estranhamente, o fenômeno ocorria tanto no banheiro dos meninos

quanto o das meninas, já que todos os dias assistíamos a garotas que

gritavam de desespero e, aos prantos, saiam correndo daquele lugar.

Lembro-me que minha bexiga já estava preste a estourar e

ainda faltava muito tempo para o esperado “último sinal”. Maurício era

um bom companheiro, já que sempre fazíamos nossos exercícios e

brincávamos juntos no recreio. Cochichei:

- Maurício, tô com vontade de mijar!

- Fala pra Dona Fátima pra ela deixar você ir ao banheiro.

Eu não sabia o que era pior: sentir aquela dor, ir ao banheiro,

ou ter que pedir para a Dona Fátima que era nossa professora. Ela era

muito brava e sempre achava que a gente estava era querendo passear

no corredor. E ela nunca acreditava em mim. Não sei porquê, se eu não

me lembro de ter pedido para ir ao banheiro e ter ido fazer outra coisa.

Acho que a professora não ia com a minha cara. Mas o Maurício era o

xodó da professora que sempre atendia aos seus pedidos.

- Pede pra ela deixar a gente ir ao banheiro!

- Deixa eu terminar de copiar mais esse parágrafo.

- Cara, eu vou mijar nas calças!

- Dona Fátima, o Henrique tá precisando ir ao banheiro e

está com vergonha de falar!

A professora olhou desconfiada para mim. Pensei que ela

não fosse liberar, mas eu acho que já estava quase chorando.

- Vá, mas não demore!

- Posso ir com ele, Dona Fátima? Ele tem medo de ir ao

banheiro!

- Pode sim, mas não vão ficar de brincadeira por esse

corredor.

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Page 6: HISTÓRIAS DOS TRÊS MACHADOS

Não gostei daquela última argumentação do Maurício: “Ele

tem medo de ir ao banheiro...” até parece que aquele cara não tinha

medo de ir sozinho ao banheiro também.

Quando tomamos o corredor, a dor parece ter aliviado um

pouco. Acho que era medo de chega ao banheiro. Puxei uma conversa

sobre figurinhas e, como sempre, Maurício veio com aquela conversa

fiada da figurinha rara que ele chegou a ter em suas mãos, mas que a

havia dado a outro guri. Eu ficava fulo da vida: porque não a dera para

mim? Lembro de ter reparado no teto da escola que parecia preste a

cair. Não era só o banheiro que precisava urgentemente ser refeito, toda

a escola parecia estar a um minuto da ruína. Imaginei que já era um

prédio muito velho e que devia ter sido a escola de pessoas que já

haviam morrido e talvez voltassem para revê-la. Senti mais medo ainda.

Imaginei um mundo invisível paralelo ao meu, onde criaturas invisíveis

transitavam por aqueles corredores fantasmagóricos. E se a moça do

banheiro quisesse arrastar a gente para o outro lado da vida? Não podia

nem pensar naquilo. Minhas pernas endureciam.

Naquele tempo, estava em cartaz o filmo “O exorcista” e

minha prima, que já era de maior, fora assistir e contara-me tudo: o

demônio tinha o poder de tomar o corpo das pessoas e transformá-las

em monstros horrendos. A música “Don’t Cry for Me, Argentina” era,

para mim, uma trilha sonora de terror. Não sei ao certo porque associei

aquela música a Dama do Banheiro, mas a verdade é que, sempre que a

ouvia, sentia um arrepio ruim e vontade de esconder-me embaixo de

alguma coisa.

Quem conheceu o “Patronato Bom Jesus” de Três Lagoas

sabe que bem ao lado do banheiro havia o “Cine Lapa”. Àquela hora da

manhã não havia sessão, mas acho que estavam dando alguma

manutenção no som. O fato é que, quando íamos entrar no banheiro,

“Don’t Cry for Me, Argentina” começou a tocar em alto e bom som. Olhei

para o Maurício e o vi amarelo, calado e sério. Nada cooperava para nos

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Page 7: HISTÓRIAS DOS TRÊS MACHADOS

fazer deixar o medo, pois o encanamento velho do banheiro fazia um

barulho pra lá de estranho e, naquele dia, parecia que estava pior. Meu

colega disse que não entraria de jeito nenhum. Implorei pela sua ajuda e

o pobre coitado entrou pra que eu não urinasse nas calças. Entramos

naquele lugar inóspito, há tempos a última lâmpada queimara e o dia

nublado e frio mergulhava o ambiente em quase trevas.

Dirigi-me ao urinol menor, destinado aos pequenos como eu,

e desabotoando a braguilha fui logo despachando. Um segundo a mais e

seria um vexame. Foi quando a porta de um dos boxes se abriu, num de

repente, e algo vivo se movimentou. O susto cortou a urina e, sem por

as vergonhas para dentro, saímos em disparada. Apavorado, meu

companheiro escorregou naquele caldo e caiu sujando a roupa. Quando

cheguei lá fora ouvi seu choro aos gritos e senti que infelizmente teria

que voltar. Foi quando vi, no meio daquela escuridão, um moço muito

grande e cabeludo ajudando-o a se levantar todo sujo e chorando. Era

um aluno do ginásio que ria da desgraça do pobre garoto. Tive ódio dele,

pois sabia que fizera tudo aquilo de propósito para nos assustar. Queria

ter algum primo grande naquela escola só para pedir para lhe dar um

corretivo, mas eu só tinha duas primas, que eram boas de briga

também, apesar de não poderem com aquele grandalhão.

Depois disso o Maurício nunca mais foi o mesmo comigo. O

incidente do banheiro o fez se afastar de mim. Coitado! Não gostaria de

estar no lugar dele: todo melecado com aquela coisa que sempre me

causou muito asco. E o medo da Dama do Banheiro continuou por muito

tempo ainda. Certa noite, tive um sonho medonho com ela: no fundo

daquele banheiro escuro, ela flutuava com sua camisola esvoaçante e

cantava, com sua boca pálida de defunta, “don’t cry for me,

Argentina...” suave como um soprano. Ao ver-me, sua cabeça deu uma

volta inteira sobre o pescoço e a voz, outrora suave, tornou-se rouca e

grossa, dizendo:

- Venha comigo, meu anjo! Meu senhor quer ver você!

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Page 8: HISTÓRIAS DOS TRÊS MACHADOS

Tive vontade de correr, mas minhas pernas não me

obedeciam. Acordei com meu próprio grito e o meu pavor piorou ainda

mais.

Na verdade, esse medo só desapareceu com o tempo,

depois de ver que em toda escola havia aquela estória boba para meter

medo nos pequenos. Mas ainda muito tempo depois, morando em uma

casa cujo banheiro ficava do lado de fora, eu detestava acordar de noite

e ter que atravessar a escuridão para ir até lá. Medo de reencontrar,

talvez, uma velha conhecida.

O GOLPE DA ROSA

O ônibus parou no ponto lotado. Agripina desceu xingando o

infeliz que tinha bulido com ela a viajem toda.

- Vai esfregar no rabo da tua mãe! Dizia.

Já não bastava a Rosa ter morrido, devendo um montão para ela,

ainda tinha correr atrás do prejuízo e agüentar marmanjo tirando uma

“casca”. “Pobre, Rosa!” pensava “mas tinha que morrer justo agora,

antes de terminar de pagar o produtos?”.

Agripina seguia apressada, rumo ao velório municipal. O coração

quase saía pela boca, não parava de pensar nas contas, para as quais já

contava com o lucro da venda.

Naquela manhã, ela estava no trabalho, dando duro em uma

cozinha emporcalhada de gordura, quando a Jorgete ligou no seu celular

– chamada a cobrar, quase não atendeu – dizendo que a Rosa havia

morrido. A diarista, também “consultora de perfumes e cosméticos”,

ameaçou desmaiar, entretanto não exatamente pela perda da amiga de

tantos anos, mas pela perda da cliente e do dinheiro. Acabou fazendo o

serviço meia boca, para ir ao velório. Droga! Gastando o vale transporte,

teria que sair mais cedo de casa, no outro dia, para seguir a pé até o

serviço. Mas fazer o quê? Merdas acontecem.

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Page 9: HISTÓRIAS DOS TRÊS MACHADOS

Naquele momento ela adentrava o velório municipal. O recinto em

questão fora construído em forma de uma cruz: a nave central dava em

uma capela, ladeada por outras duas, menores. Agripina seguiu reto, até

encontrar o corpo moribundo da amiga, velada por uma única pessoa.

- O senhor é parente dela?

- Não senhora! Sou o agente funerário. Estou aguardando a

chegada da família. E a senhora? É parente?

- Não. Apenas amiga.

- Sinto muito.

- Ela era tão forte...

O agente tornou a ficar quieto no seu canto. Deixando a amiga

entregue aos seus sentimentos.

Agripina achou a colega muito abatida e inchada. Nunca fora

bonita, mas, se a vida não lhe havia premiado com a beleza, a morte lhe

fora ainda mais cruel. Nem parecia a Rosa.

Elas se conheceram trabalhando na casa de D. Fé (Maria da Fé

Carrancudo). Era uma casa imensa, com dez suítes, além de três

banheiros sociais, três salas, duas copas, salão de jogos e varanda

social. Para dar conta de tudo isso, apenas três faxineiras, uma

cozinheira, um jardineiro e dois porteiros. Na verdade quem trabalhava

mais mesmo eram a faxineiras (Agripina, Jucineide e Rosa) e, das três,

quem trabalhava mais era a Rosa. Os patrões pediam para deixar todo o

peso para ela. Tinha um tapete pesado para levar para fora? Chamem a

Rosa; é para levantar os móveis? Deixem para a Rosa.

Surpreendentemente, ela suportava tudo com muita resignação. Parecia

até que não lhe era nada pesado. A mulher era um pé de boi. Nunca

falou muito. Gostava de ouvir as conversas das colegas e ria uma risada

muito feia e grossa. As colegas se divertiam com seu jeito

desengonçado.

Trabalharam vários anos ali, mas, apesar dos patrões

ficarem mais ricos, a cada dia, o salário delas nunca aumentava; na

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Page 10: HISTÓRIAS DOS TRÊS MACHADOS

verdade só aumentava mesmo o serviço, com as festas e jantares de

negócio. Foi aí que elas conheceram a Jorgete que era diarista e

ganhava bastante dinheiro com isso. Serviço não faltava, pagava-se

melhor do que na D. Fé e, muitas vezes, o serviço era mais leve.

Disseram adeus a mansão dos Carrancudo e tornaram-se autônomas.

A vida, naquele momento, não era nenhuma maravilha,

porém libertarem-se daqueles patrões para servirem a vários fez muito

bem para elas, já que, a partir dali, conseguiram construir suas humildes

casinhas, apenas com o dinheiro das diárias. O mais surpreendente de

tudo é que a Rosa foi a engenheira-construtora. É!!! A Rosa não era

meia-colher. Não senhores! Ela era pedreira de colher cheia e ensinou às

colegas a profissão. Trabalharam em mutirão até terminarem as três

casas, sem ajuda de homem nenhum. Foi uma conquista e tanto na vida

delas. Quando a coisa apertava, Rosa gritava grosso, com seu jeito

desajeitado:

- Corre logo, menina!

E lá vinha um carrinho de massa, ou de tijolo, ou uma

ferramenta qualquer. Quando terminaram tudo, comemoraram com uma

cervejinha gelada até mais tarde. Aquilo serviu para unir ainda mais o

grupo e aumentar a admiração pela estranha amiga. Quando, no

entanto, falavam de homens, Rosa ficava quieta e bem calada; parecia

não ter interesse por aquele assunto. Agripina e Jucineide já

suspeitavam de sua sexualidade, até que tiveram coragem de fazer-lhe

perguntas indiscretas. Rosa riu do seu jeito engraçado, surpreendida

com aquelas perguntas.

- Claro que não!

- Você já teve namorado?

- Uma vez, eu transei com um homem, mas não gostei.

- Como assim?

- Foi ruim.

- Ele deve ter machucado você. Deve ter sido isso.

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Page 11: HISTÓRIAS DOS TRÊS MACHADOS

- Mas você não gosta de homem?

- Gosto de apreciar os homens, mas não gosto que eles se

aproximem de mim.

- E de mulher? Perguntou a segunda amiga.

- De mulher, eu só gosto da companhia e de ficar ouvindo

essas histórias besta que vocês contam.

E ria de maneira expansiva junto às amigas.

Ninguém conhecia parentes da Rosa. Ela mesma só falava,

de vez em quando, da mãe. Ninguém sabia se ela conhecia o pai ou se

já tivera algum filho. Era uma semente que nasceu do vento. Na verdade

não se sabia muita coisa dela, nem mesmo o nome. Para todos era

sempre Rosa e nada mais. Nos últimos anos, como Agripina se tornara

“consultora de perfumes e cosméticos”, pusera na cabeça da

desajeitada mulher que deveria se cuidar. Fez regime, surpreendendo as

companheiras com sua capacidade de emagrecer, mas não ficou mais

bonita. Ficou muito comprida e ainda mais desajeitada. Depois começou

a usar cosméticos (coisa que jamais fizera na vida). Não melhorou nada

e sua beleza aumentou tanto quanto seu interesse pelos homens.

Jucineide e Agripina armaram uma roubada pra a pobre

mulher. Convenceram o Chicão (um tipo vulgar, mas que encarava

qualquer parada) de que ela era um fogo só. Na primeira investida, o

homem arrependeu-se como nunca em sua vida, pois Rosa despachou-o

a socos e ponta-pés. Essa aversão, no entanto, não diminuía seu

entusiasmo com os cosméticos, já que estava sempre investigando

sobre “as novidades”. Para a última remessa, ela encomendou um

salário mínimo de cremes e perfumes. A amiga havia parcelado o

pagamento em duas prestações, mas só recebera a primeira parcela.

Agripina estava torcendo para que ela não houvesse usado todos os

produtos. Talvez ainda pudesse reaver a mercadoria e a vendesse,

quem sabe ainda, por um preço promocional.

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Page 12: HISTÓRIAS DOS TRÊS MACHADOS

Nesse instante uma jovem e elegante senhora entra

transtornada pela capela e, chorando, abraça o caixão. Junto dela uma

dezena de pessoas parece estar ali para apoiá-la. Agripina fica um pouco

espantada com a emoção da mulher. Quem sabe fosse uma patroa da

Rosa, mas ela nunca havia mencionado uma patroa assim: tão ligada a

ela. A diarista – “e consultora de perfumes e cosméticos” – tenta mostrar

sua solidariedade abraçando a elegante mulher.

- Ela era tão querida!

A mulher retribui o abraço, aceitando a solidariedade.

Emocionada comentou:

- Ela era tudo para mim!

Inoportunamente, mas ainda chorando, Agripina direciona o

assunto para seu foco:

- Sabe, antes de falecer, coitadinha, ela guardou algumas

coisas minhas na sua casa e... sabe... eu estou até sem jeito, mas eu

precisava pegar algumas coisas minhas que estão na casa dela.

A mulher se assusta.

- Pegar o quê na casa da minha mãe?!

- Mãe! A Rosa era sua... mãe!

- Minha mãe se chama Mariana Brandão!

Ao perceber o fiasco, Agripina simula um choro convulsivo e

se afasta rapidamente do velório. Mas, ao andar em direção a saída e

passando em frente a uma das capelas laterais, vê a D. Fé, além de

vários trabalhadores do lar conhecidos e um bando de gente

desconhecida. Todos estavam com uma expressão de espanto no olhar.

Aqui e ali pessoas cochichavam, alguns riam e outros simplesmente

miravam Rosa no caixão com uma cara de meu-deus-o-que-é-isso.

A Jucineide veio logo encontrar a amiga cheia de faniquitos.

- Agripina! Amiga, você não sabe da maior...

- Tenha compostura, Jucineide. É o velório da Rosa e você já

me vem com suas fofocas?

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Page 13: HISTÓRIAS DOS TRÊS MACHADOS

- Que isso, amiga! Tá estressada é?

- Não. É que já aconteceu tanta coisa hoje... me conta: do

que foi que a Rosa morreu.

- Um ataque do coração. Dizem que foi um só.

- Coitadinha! A chave do barraco dela está com quem?

- Sei lá.

- Merda!

- Que foi?

- Nada.

De repente irrompe um riso tão escandaloso que incomoda

Agripina.

- Ô gente baixa, hein?! Falta de respeito com a falecida.

- Também... numa situação dessas...

- Do que é que você está falando?

- Tô tentando te contar: Rosa era homem!

- Quê? Tá doida?!

Jucineide ri a valer.

- Depois que ela morreu, a gente foi dar o banho e

descobriu: Rosa tinha tudinho que um homem tem. Acredita?

- Não.

Agripina não tinha nem o que dizer. Foi até o caixão e olhou

bem para o rosto da amiga falecida, percebendo que o queixo e o

espaço entre o nariz e o lábio superior eram até azuis: marca que

revelava o cuidado dela em se barbear todos os dias. Apesar da

“amizade” parece que nunca alguém reparou direito naquela pessoa. D.

Fé disse que já sabia, mas que não tinha nada a ver com a vida dela.

Sendo assim, nunca disse nada a ninguém.

A diarista estava transtornada era muito para um dia só.

Queria encarar logo o ônibus lotado. Talvez em casa, depois de um bom

banho, ela pudesse descansar um pouco para encarar o trabalho no dia

seguinte. Quanto à dívida: impossível pensar nisso agora. Rosa era

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Page 14: HISTÓRIAS DOS TRÊS MACHADOS

homem! Talvez ela precisasse de um gole, depois pensava na questão

da chave, nos produtos. Já não dava para confiar em mais nada. Que dia

horrível!

A MILÉSIMA ALMA

Minha avó tinha devoção pelas almas. Não havia santo, para ela,

mais importante que as novecentas e noventa e nove almas do

purgatório. Era estranho, mas minha avó era muito correta naquela

devoção. Toda sexta-feira, ela rezava novena para “as arma”. Dizia ela

que esses espíritos visitavam-na, que sonhava com eles quando alguma

coisa ia acontecer. Também enfrentava momentos difíceis, como da vez

que os espíritos não a deixaram dormir a noite, levantando a cama e

largando-a com força no chão.

Todos estranhavam aquela devoção sinistra, mas ela não se

importava, pois dizia que era sua missão. Apesar do medo e do repúdio,

as pessoas a procuravam para encaminhar pedidos para as almas, pois,

diziam, suas orações eram tiro e queda. Políticos, jovens apaixonados,

pessoas em crise no casamento, moribundos, todos procuravam minha

avó, para que ela pedisse às almas. Porém, um dia repentinamente, ela

abandonou a devoção e informava a todos que a procuravam que não

mexia mais com isso.

- Virou crente, Bastiana?

- Não. Só não mexo mais com isso.

Era estranho tanta fé desaparecer assim, de uma hora pra outra.

Mas a verdade é que minha avó, já não queria nem ouvir falar mais das

novecentas e noventa e nove almas do purgatório. A gente perguntava,

mas ela não queria dar explicações. Porém, um dia, estando somente eu

e minha mãe conversando sobre o assunto, ela nos fez uma revelação.

Disse-nos que a devoção aparecera em sua vida quando um dos

filhos esteve muito doente e preste a morte. Preocupada com a saúde

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Page 15: HISTÓRIAS DOS TRÊS MACHADOS

do menino, ela adormeceu e sonhou que uma criança aconselhou-a a

rezar para as novecentas e noventa e nove almas do purgatório e que

fosse dado para o garoto o chá de uma tal raiz, encontrada em tal lugar.

Quando acordou, ela fez conforme se lembrava de ter sido

aconselhada no sonho. No mesmo dia, o menino levantou da cama e foi

brincar. Depois disso, ela contava que sonhou várias vezes com a

criança que lhe ensinava remédios e orações milagrosas. Certa noite,

alguém bateu na porta. Era uma figura de capa e chapéu, cuja luz da

lamparina não podia revelar seu rosto, que lhe disse que tudo o que

pedisse às almas seria atendido, pois ela havia alcançado graça diante

delas. Enquanto fora passar um café, a visita desapareceu sem que ela

soubesse, ao menos, o nome. Minha avó acreditava ter sido uma delas

que estivera ali.

O seu irmão se candidatou para a câmara e ela pedira às almas.

Foi o mais votado daquela eleição; na falta de médico (e como faltava)

era a Tiana, com seus chás e benzimentos que dava jeito nas

enfermidades. Um sujeito acertou a perna com um machado; Tiana deu

banho de barbatimão com arnica, benzeu sete dias seguidos e a ferida

fechou. Um garoto se queimou da cabeça aos pés; Tiana bezuntou seu

corpo com clara de ovo, misturado com um analgésico líquido, rezou

para as almas e o menino sarou. Os médicos a parabenizavam pela sua

capacidade terapêutica. Ela dizia que ninguém lhe havia ensinado nada,

apenas as almas.

Dinheiro ela só recebia dos políticos e das pessoas apaixonadas

que a procuravam. De gente doente nunca recebeu um tostão. Toda

sexta-feira, ela acendia as nove velas em um pequeno cruzeiro que

colocara no fundo do quintal e rezava nove terços pelas 999 almas do

purgatório. Quando alguém morria, ela era a primeira pessoa que

aparecia pelo velório. As pessoas acreditavam que ela era capaz de

encomendar a alma para ser conduzida ao paraíso. Com o passar do

tempo, essa sua mania começou a ser repudiada pelas pessoas que

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Page 16: HISTÓRIAS DOS TRÊS MACHADOS

diziam ser ela um mau agouro. Os médicos, os farmacêuticos foram

chegando e a velha Tiana foi, aos poucos, esquecida.

Numa certa manhã, minha avó acordou de um sonho muito

realista: o homem de capa e chapéu pedia-lhe que acendesse agora dez

velas e rezasse uma dezena no cruzeiro do Cemitério da Piedade. Ela foi

sozinha. O cemitério estava praticamente deserto. Ela fez o sinal-da-cruz

e atravessou o portão, caminhando por entre as tumbas. Aqui e ali

deparava com algum nome conhecido e parava para rezar pela sua

alma. Já passava das dez da manhã e ela se lembrava de que não havia

ainda arrumado sua casa e aquele serviço religioso tomaria muito

tempo. Por que agora dez velas? Por que uma dezena? Por que ali

naquele cemitério? Ela aproximou-se do cruzeiro, acendeu as velas e

iniciou sua reza. O tempo fechou de repente, formando para chuva, e

um vento frio começou a incomodá-la. Uma a uma, pessoas se juntavam

a ela naquela rezação. Parecia até que haviam combinado; sem olhar

pra trás ela sentiu que havia uma multidão naquele lugar e todos

rezavam juntos de maneira estranha. Quando voltou seu rosto, percebeu

que estava rodeada pelas novecentas e noventa e nove almas do

purgatório. Ao seu lado o estranho homem de capa e chapéu.

- Quem é você?

- A nonocentésima nonagésima nona alma.

- E por que a minha devoção mudou?

- Por que mais uma alma está entrando no purgatório: a sua.

Minha avó disse que não deu mais trela àquela conversa. Foi

abrindo passagem por aquela multidão de mortos até chegar à porta do

cemitério, fez o sinal e partiu sem olhar para trás até entrar dentro de

casa. Lá caiu de joelhos em plena sala, pedindo perdão a Deus e jurando

jamais rezar por nada que não fosse o próprio Deus. Ela repetia

emocionada que só Deus tem poder e só ele é bom para o ser humano.

Eu duvidei muitas vezes das histórias fantásticas da minha avó,

mas havia medo e convicção naquela sua história mais recente. Ao

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Page 17: HISTÓRIAS DOS TRÊS MACHADOS

morrer, ela foi rapidamente sepultada, atendendo a um pedido seu

ainda em vida. Quanto às orações só pediu que clamássemos pela

misericórdia divina. Difícil de entender, mas foi assim.

SANTO ANTÔNIO DO RIO ABAIXA: O MILAGRE

Frei José era um italianinho de vinte e cinco anos,

aparentando, no entanto, ser senhor de seus trinta e tantos. Estava ali

naquela balsa numa missão muito triste: dar extrema unção aos

viajantes moribundos. Até aquele momento, já havia sido obrigado a

fazê-lo em duas ocasiões; todas elas por uma única causa: afogamento.

Havia seis meses, saíram de São Paulo, tomando o rio Tietê – o estranho

rio que sai de bem próximo do litoral e corre para o interior – depois

foram parar em um outro muito grande, chamado Paraná; desceram até

as terras da coroa espanhola, subiram por outro chamado Paraguai e

agora navegavam por um rio tortuoso e cheio de armadilhas, chamado

Rio Cuiabá. Os perigos maiores daquela viagem eram os selvagens da

terra e as maleitas.

Aqueles homens não era o que se poderia chamar “civilizados”.

Tinham um único propósito na vida que era o de ficarem ricos o mais

rápido possível. E, em nome desse ideal faziam loucuras como aquela,

ficar de seis meses a cinco anos no sertão, voltando, muitas vezes, de

mãos vazias, ou mesmo jamais retornando ao lar.

Era como uma guerra. Tudo era precário, sem conforto. Aquelas

pessoas desiludidas já não respeitavam nada. Somente as armas

impunham respeito ali. À religião, recorriam em caso de morte, doença

ou perigo iminente. Frei José não se sentia nada confortável junto

àquelas criaturas brutalizadas. Ele fora um menino mimoso, educado

numa excelente escola de Florença. Aos quinze anos já era professor de

latim, escrevera ensaios elogiados sobre história e sobre a arte

renascentista, trabalhara no Vaticano e agora estava ali naquele fim de

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Page 18: HISTÓRIAS DOS TRÊS MACHADOS

mundo, junto a homens que não sabiam sequer o que fora o

renascimento. Na tentativa de cativá-los, o jovem monge carregava

junto a sua bagagem uma imagem de Santo Antônio, o santo português.

Sendo eles portugueses ou descendentes diretos desses, frei José

acreditou que aquela imagem os tornaria mansos, mas aquela gente já

não respeitava nada: eram adeptos da luxúria e da libertinagem. Esta

imagem de Santo Antônio, no entanto servia de companhia a pobre

figura do frade franciscano, ao menos dois franciscanos ali, tementes a

Deus.

O sol já começava a declinar quando passaram pela aldeia dos

Bororos. Isso significava que estavam há duas milhas do arraial do Rio

Abaixo. A tripulação ficara alvoroçada ao se aproximar da aldeia;

certamente loucos para tomarem liberdades com as mulheres selvagens

– conhecidas pela beleza de seus corpos, bem como pelos seus cabelos

muito negros e escorridos – mas era melhor se apressarem para chegar

ao arraial, onde era a parada de costume. Ali descansariam dormindo

em terra, comeriam a mujica de peixe feita por “nhá Mariquinha”, ou “xá

Mariquinha”, como preferia os aldeões, e depois seguiriam até Lavras do

Sutil.

Porém, em boa hora, aportavam no Rio Abaixo, já que os Guatós

(índios inimigos) montavam emboscadas no trecho entre Rio Abaixo e

Lavras. A notícia foi recebida com decepção pela maioria já contaminada

pela febre do ouro e ansiosa por encontrar logo sua fortuna para

empreender o quanto antes à viagem de volta. Frei José era um desses,

tão logo chegasse às Lavras e recebesse a devida esmola por seus

serviços religiosos, retornaria na próxima balsa para São Paulo e dali só

sairia se fosse para retornar a velha e boa Itália; do contrário, passaria o

resto da vida limpando o chão de algum liceu, mas nunca mais

retornaria àqueles sertões.

Em terra, os homens pareciam recobrar sua humanidade: alguns

faziam a barba, lavavam as roupas para irem a missa, usavam um

18

Page 19: HISTÓRIAS DOS TRÊS MACHADOS

vocabulário mais cristão e chegam mesmo a fazer pé-de-alferes a

alguma rapariga do povo. Tão diferentes daqueles animais que viajavam

em companhia de um frei assustado com tamanha selvageria. E assim

passaram três dias; o Franciscano chegou mesmo a rezar missa no

arraial, enchendo de esperança o coração dos aldeões que há muito

imploravam por um padre. Mas eis que as balsas começaram a descer e

a trazer notícias de que um tal comandante José Maria afugentara os

selvagens, expulsando-os para muitas léguas de distância. Tão logo

souberam, os viajantes deixaram suas ocupações temporárias para

voltarem à balsa.

Creio ter-me esquecido de dizer que os viajantes haviam chegado

num dia de muita chuva, encontrando um rio bastante ressaqueado,

cheio e furioso. Três dias depois, ele estava bem mais calmo e o nível

das águas abaixara um pouco. Pois reside aí a segunda grande

frustração dos aventureiros: a balsa chata estava encalhada em um

banco de areia.

Mestre Vasques, aldeão e canoeiro velho, coçou a cabeça

cabeluda e sentenciou:

- É ter paciência e esperar o estio.

Antônio Golvea ficou furioso:

- Arrelio! É alugar os burros e seguir por terra.

Gomes era um homem alto, moreno de olhos muito negros e barba

cerrada. Era a figura mais robusta daquela comitiva. Amarrou uma corda

à cintura e a atou ao barco, lançando-se, em seguida, ao rio. Frei José

pensou consigo: “Mais uma vítima para esse rio-serpente!” Crendo que

Gomes também morresse afogado, mas o musculoso jovem teve

sucesso no seu trabalho.

- Só a frente está encalhada.

- Arrumem então um cavalo! Disse Manoel Dias.

- Matam-me todos os cavalos e burros sem sucesso. Respondeu

Mestre Vasques.

19

Page 20: HISTÓRIAS DOS TRÊS MACHADOS

Gomes tinha um plano: primeiro aliviar toda a carga da chata e

depois rebocá-la com três canoas indígenas (cada uma com três

remadores), puxando-a a favor da correnteza. O trabalho era arriscado,

no entanto, para os rebocadores que poderiam ser atropelados pela

balsa. Porém Gomes garantia que tão logo a embarcação fosse

desencravada, as cordas seriam cortadas para que as canoas fugissem

do rebote da chata, enquanto os homens em terra a seguravam. E assim

fizeram.

Tudo fora retirado da embarcação, até mesmo o pequeno Santo

Antônio que fora imediatamente levado para o interior da casa mais

próxima. Os aldeões tinham veneração por imagem de santos e não

poderia deixá-la ali, no meio dos cacarecos imundos.

Gomes estava pronto para executar o trabalho, não estava, no

entanto, seguro do sucesso e temeroso de uma tragédia. Os

companheiros de empreitada também temiam pelo pior e, assim, logo

ouviu-se:

- Valei-nos Nossa Senhora!

Mas Gomes era Espanhol e moçárabe. Sua história estava mais

voltada ao islão que ao cristianismo. Com todo o respeito à mãe de

Jesus, mas não era esse grito que lhe vinha à garganta.

- Deus é grande! Gritou finalmente.

E ao som daquela invocação do nome de Deus os esquifes

dispararam puxando com força. Gomes liderava, no remo, um dos

esquifes. Suor e água misturavam-se naquela jornada perigosa e brutal.

Eis que o mouro sentiu a embarcação deslizando lentamente.

- Mais forças, homens lá!

A madeira da embarcação cantou escorregando do barro para a

água profunda.

- Corta agora! Gritou o mouro.

20

Page 21: HISTÓRIAS DOS TRÊS MACHADOS

A chata, como se esperava, avançou contra as canoas com

ferocidade. A de Gomes, que estava no meio, sofreu o golpe da

embarcação maior. Xá Mariquinha já gritava chorando:

- Oh Jesus, que eu encomendo! Meu sonho ruim! Ai! Ai!

- Homem na água!

- Não carece desespero. O homem está com vida. Disse mestre

Vasques.

Gomes quebrara a perna, mas não havia nada que o fizesse ficar

ali, queria ir para Lavras com os companheiros. O desfecho dramático

não foi empecilho, para os viajantes ansiosos por chegar ao “El Dorado”;

de forma que recomeçaram a viagem tão logo a tala foi colocada em

Gomes. Frei José nem conseguiu terminar o chá de ervas que a velha

Mariana fizera para o seu resfriado.

- Embora, padre de Deus!

O frade entrou na embarcação, rebuçou e dormiu um sono pesado

sob o balanço das remadas da galé. Quando acordou já era noite e

alguns dormiam enquanto outros montavam guarda à embarcação,

bebendo aguardente e fumando seus cachimbos. Frei José procurou a

companhia do ilustre franciscano, mas não o encontrou. A imagem de

Santo Antônio ficara no arraial do Rio Abaixo para alegria dos aldeões e

tristeza do pobre frade.

Frei José ficou ainda uma semana nas Lavras do Sutil, também

conhecido pelo nome do rio: Cuiabá. Mas não houve como se adaptar,

tão logo recebeu um bom número de recompensas, tratou logo de se

retirar. Ao pararem no arraial do Rio Abaixo, frei José constatou com

alívio que os aldeões haviam cuidado muito bem da imagem do santo; e

o devolveram com tristeza. Porém, ao embarcarem para continuar a

viagem, eis que a balsa encalha novamente, por sorte havia outra balsa

que, bem atrelada à outra por uma trave, fez o reboque de maneira

menos dramática que a anterior. Os passageiros, no entanto, estavam

indignados, dizendo que a culpa era do padre, “designo de Deus”;

21

Page 22: HISTÓRIAS DOS TRÊS MACHADOS

“Nosso Senhor quer que ele fique!” E não o aceitavam na embarcação.

Mas o capitão, usando de muita perspicácia e bom senso, sentenciou

com cara de piedade:

- É o santinho! O santo quer ficar! Deixe a imagem, bom padre, e

vamos seguir viagem.

Os passageiros esperavam a decisão do franciscano com

ansiedade e ele entendeu que era a única maneira de seguir para a

civilização. Beijou a imagem e pediu desculpas em latim, entregando-o a

xá Mariquinha.

- Cuide bem desse santinho, nhá!

Ela, com lágrima nos olhos:

- Com a minha vida, meu bom padre.

O frei embarcou muito triste e nunca mais foi visto por aquele

povoado. Mas, quando a balsa desapareceu no rio, mestre Vasques

comemorou:

- O santo quis ficar com a gente! Viva nosso santo milagreiro! Viva

Santo Antônio do Rio Abaixo.

SINEIRO DAS ALMAS

Existem demônios. Há anjos também, mas as pessoas preferem os

demônios. Quantos comprariam um livro sobre anjos? Quantos

comprariam um sobre demônios? Quantos iriam ao cinema pra ver anjos

ajudando pessoas? E quantos vão para ver demônios atormentando a

espécie humana?

Imaginemos uma manchete: “Família se emociona ao adquirir a

casa própria”. É, no mínimo, careta. Mas “Neto mata a avó para herdar

bicicleta” dá uma vontade de ler, não é?

22

Page 23: HISTÓRIAS DOS TRÊS MACHADOS

Eu só sei que voltávamos, Maria e eu, de um jantar naquela sexta-

feira. Não, não nos divertíamos; trabalhávamos em um buffet. Eu tinha

19 e Maria 23; eu era garçon e Maria auxiliar de cozinha. Ela era

deliciosa e eu, um jovem faminto. A noite estava muito fria e deserta,

além de um denso nevoeiro que cobria a cidade de Três Lagoas. Na rua

não se via viva-alma e o relógio do centro marcava duas horas da

madrugada. Na estação, a última composição já havia saído e a próxima

ainda demoraria.

Apesar do frio, eu voltava feliz: com gorjeta no bolso e ao lado de

Maria. Eu fazia companhia a ela, em contrapartida, ela suportava minhas

investidas. A moça era medrosa, mas o que presenciamos foi de meter

medo a qualquer um. Quando cruzávamos a Praça das Bandeiras, Maria

parecia não ter resistido ao frio e estatelou ali, parecendo congelada.

- Anda, Maria! Parar é pior, que o corpo esfria!

- Perai!

- Quê foi?

- O sino da Igrejinha tá tocando?

Pois é! O sino da Igrejinha de Santo Antônio tocava um discreto e

longo toque que cortava o silêncio da madrugada. Estatelamos ali os

dois a ouvir o sinistro e impróprio sino.

- Legião das arma!

Senti meus cabelos arrepiando. Quem, por Deus, havia dito aquilo?

Os olhos de Maria quase caíram fora do rosto e a pobre já não sentiu as

pernas.

- Os condenado do inferno e um preto que, com seu único braço,

conduz essa legião de armas, pela escuridão da noite.

Quando consegui voltar meu rosto, vi um senhor alto e magro,

porém forte, com boné de charreteiro na cabeça e um cachecol que lhe

cobria do pescoço até o nariz.

Naquele tempo, corriam pela cidade rumores de que o lobisomem

andava a solta pela madrugadas da cidade. Havia muito medo,

23

Page 24: HISTÓRIAS DOS TRÊS MACHADOS

sobretudo na periferia, e o medo é algo contagioso. Não era preciso

muito para meter medo à Maria, mas confesso que mesmo eu, que não

dava crédito aos boatos, tive medo de estar diante do monstro.

- Isso é assombração, meus fi! Vamo andano que eu conto.

Acompanhamos o estranho no nosso trajeto, mesmo suspeitando

de suas intenções.

O homem contou que, antes da ferrovia chegar à região, os índios

Ofaié viviam ali e tinha uma religião muito rica no aspecto sobrenatural,

com seus encantamentos e rituais mágicos. Acreditavam, por exemplo,

que tudo tinha duas origens: vinha da terra ou vinha das árvores. Era

como se o céu fosse no interior da terra e o inferno no interior das

árvores, apesar de ser quase impossível alguma comparação. Os

primeiros Ofaiés, segundo eles próprios, tinham vindo do interior da

terra.

Durante a guerra do Paraguai, um soldado desertor teria anotado

detalhes sobre essa religião. Ele teria vivido seus últimos dias entre os

indígenas e, tendo falecido, deixou para eles suas anotações: uma

pequena pilha de papeis pardos e amarrotados, mas que continha todas

as tradições que o desertor pôde aprender durante sua estadia.

Quando os mineiros chegaram à região, onde futuramente seria a

cidade, conheceram os manuscritos e adotaram as práticas religiosas

prescritas nele, tendo se tornado tão popular, quanto os ritos católicos.

Muitas décadas mais tarde, um vigário da região teria considerado

oficialmente as práticas como heréticas e recolhido os papéis. Conta-se

que eles foram trancados em uma caixa de bronze e guardados na

sacristia da Igrejinha de Santo Antônio, a espera de uma missão que os

levasse para o Vaticano.

Porém, um jovem comerciante sírio, entregue a ambição de fazer-

se rico em pouco tempo e tendo tomado conhecimento de que o

manuscrito continha o “segredo da fortuna”, contratou um facínora para

subtrair a relíquia da guarda da igreja. Entretanto, essa igreja era

24

Page 25: HISTÓRIAS DOS TRÊS MACHADOS

guardada por uma atalaia singular: um jovem homem negro, cujo braço

fora-lhe amputado por um homem perverso que se dizia “seu

proprietário”. Após o ato brutal, a comunidade o resgatou dando-lhe

como casa a própria Igrejinha, da qual ele cuidava com carinho e muito

zelo. Seu nome era José Maria de Jesus (um sobrenome arranjado,

certamente, já que todo o conjunto reporta à sagrada família) era o

sacristão residente, fazia de tudo e dormia embolado na minúscula

sacristia. A morada, no entanto, dava-lhe muito orgulho, pois dizia que

sua casa era na “portinha do céu”. Todos diziam que o rapaz era um

anjinho de Deus, sem boca para responder, ou maltratar. Ás ave-marias,

domingos e velórios, seu único e vigoroso braço fazia soar o sino a

quase uma légua. Era calado e tímido, mas um homem de fé, para quem

a oração era um dever constante. Mas nosso mundo não gosta dos bons

e o bondoso homem foi cruelmente assassinado na sacristia, enquanto

dormia. O mal-feitor levou consigo duas caixas: a da oferta e a que

continha o manuscrito.

O sírio a recebeu longe dali num porto do Rio Paraná, de onde o

assassino seguiria para o Paraguai.

O crime abalou o pequeno lugar que velou com pesar o pobre

sacristão; o sírio, pelo visto, conseguiu o que queria, tendo se tornado

senhor de grandes bens e tendo entrado para a história do lugar, mas

até hoje o sacristão volta para tocar o sino da igrejinha para as almas

que foram condenadas ao inferno antes do juízo final: os assassinos, os

que roubam os órfãos inocentes, os agiotas e os soberbos.

Quando aquele senhor terminou de contar essa história, Maria e

eu estávamos petrificados. Ele falara o tempo todo, de forma que, ao

percebermos, já estávamos nos confins do bairro Nossa Senhora

Aparecida. A escuridão nos banhava de medo e congelava mais que o

frio. Parecia haver algo ali.

Foi então que do meio do nevoeiro saiu uma fera semelhante a um

porco, porém mais ágil e peluda. Eu confesso que achei que era meu

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Page 26: HISTÓRIAS DOS TRÊS MACHADOS

fim, Maria encostou-se a mim e desabou, mas a fera queria mesmo era

aquele senhor que nos havia contado uma estranha história.

A criatura preparou o bote e o atacou; ele defendeu-se colocando

um braço à frente da jugular. Ela, porém, arrancou-o com facilidade e o

levou para a escuridão, sumindo-se enfim. O homem ficou ali caído,

acompanhando a mim e Maria, que nos entregamos ao medo

totalmente. Eu acreditei que ele estava morto, dada a violência com que

fora mutilado, mas o homem começou a se mexer e a levantar-se com

naturalidade.

- Como você está, amigo?

- Tô bem.

- E o braço?

- Era uma prótese. O braço mermo, eu já perdi faiz hora.

- O que era aquilo?

- O dimonho!

Maria parecia morta e eu estava atônito olhando aquele homem,

pensando sobre o ocorrido. Só agora é que eu pude ver seu rosto negro

que já não se ocultava sob o boné e o cachecol. Ele olhava firme para

algo atrás de mim. Quando, voltando-me, vi uma imensa procissão

desfilava através do nevoeiro que se abria, muito maior que qualquer

uma que eu já tenha visto: “a procissão dos penados”. Foi então que ele

retirou debaixo da sua capa um sinete e o fez vibrar. A procissão o

seguiu, deixando-nos ali, entregues ao medo enlouquecedor.

Despertei na minha cama. Não. Não foi um sonho, mas como eu

havia chegado ali? Eu não me lembrava de ter andado nem mais um

passo até chegar a casa! E Maria? O que fora feito dela? Peguei a

bicicleta e fui à sua casa imediatamente. Ao chegar, seus parentes

disseram-me que a garota estava fora de seu normal, empenhada em

uma novena desde que chegara durante a madrugada. Eu quis vê-la e

foi deveras enigmático ver a pobre Maria, que não era de religião,

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Page 27: HISTÓRIAS DOS TRÊS MACHADOS

ajoelhada, com véu na cabeça, terço nas mãos, rezando, alheia a tudo a

sua volta.

ALVES MACHADO

Paulo Henrique Alves Machado nasceu em Três Lagoas – Mato Grosso do Sul – em 1970. Graduou-se em Letras, pela Universidade Federal de seu estado, em 1995. Fez carreira com professor (sobretudo de Língua Portuguesa) em Cuiabá.

Apesar da formação acadêmica e a nítida influência de autores como Machado de Assis e Alcântara Machado, diz ter se inspirado pelas narrativas orais da avó paterna (Sebastiana Rita do Carmo), além de outros contadores de “causos” que conheceu na infância.

Tem inúmeros trabalhos publicados em sites da Internet e um livro (ainda inédito) intitulado “COMBOIO DE CAUSOS”.

(***)

Alcântara Machado

GAETANINHO

- Xi, Gaetaninho, como é bom!

Gaetaninho ficou banzando bem no meio da rua. O Ford

quase o derrubou e ele não viu o Ford.

O carroceiro disse um palavrão e ele não ouviu o palavrão.

- Eh! Gaetaninho! Vem prá dentro.

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Page 28: HISTÓRIAS DOS TRÊS MACHADOS

Grito materno sim: até filho surdo escuta. Virou o rosto tão

feio de sardento, viu a mãe e viu o chinelo.

- Subito!

Foi-se chegando devagarinho, devagarinho. Fazendo

beicinho. Estudando o terreno. Diante da mãe e do chinelo parou.

Balançou o corpo. Recurso de campeão de futebol. Fingiu tomar a

direita. Mas deu meia volta instantânea e varou pela esquerda porta

adentro.

Êta salame de mestre!

Ali na Rua Oriente a ralé quando muito andava de bonde. De

automóvel ou carro só mesmo em dia de enterro. De enterro ou de

casamento. Por isso mesmo o sonho de Gaetaninho era de realização

muito difícil. Um sonho.

O Beppino por exemplo. O Beppino naquela tarde

atravessara de carro a cidade. Mas como? Atrás da tia Peronetta que se

mudava para o Araçá. Assim também não era vantagem.

Mas se era o único meio? Paciência.

Gaetaninho enfiou a cabeça embaixo do travesseiro.

Que beleza, rapaz! Na frente quatro cavalos pretos

empenachados levavam a tia Filomena para o cemitério. Depois o padre.

Depois o Savério noivo dela de lenço nos olhos. Depois ele. Na boléia do

carro. Ao lado do cocheiro. Com a roupa marinheira e o gorro branco

onde se lia: ENCOURAÇADO SÃO PAULO. Não. Ficava mais bonito de

roupa marinheira mas com a palhetinha nova que o irmão lhe trouxera

da fábrica. E ligas pretas segurando as meias. Que beleza rapaz! Dentro

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Page 29: HISTÓRIAS DOS TRÊS MACHADOS

do carro o pai os dois irmãos mais velhos (um de gravata vermelha

outro de gravata verde) e o padrinho Seu Salomone. Muita gente nas

calçadas, nas portas e nas janelas dos palacetes, vendo o enterro.

Sobretudo admirando o Caetaninho.

Mas Gaetaninho ainda não estava satisfeito. Queria ir

carregando o chicote. O desgraçado do cocheiro não queria deixar. Nem

por um instantinho só.

Gaetaninho ia berrar mas a tia Filomena com a mania de

cantar o "Ahi, Mari!" todas as manhãs o acordou.

Primeiro ficou desapontado. Depois quase chorou de ódio.

Tia Filomena teve um ataque de nervos quando soube do

sonho de Gaetaninho. Tão forte que ele sentiu remorsos. E para sossego

da família alarmada com o agouro tratou logo de substituir a tia por

outra pessoa numa nova versão de seu sonho. Matutou, matutou, e

escolheu o acendedor da Companhia de Gás, Seu Rubino, que uma vez

lhe deu um cocre danado de doído.

Os irmãos (esses) quando souberam da história resolveram

arriscar de sociedade quinhentão no elefante. Deu a vaca. E eles ficaram

loucos de raiva por não haverem logo adivinhado que não podia deixar

de dar a vaca mesmo.

O jogo na calçada parecia de vida ou morte. Muito embora

Gaetaninho não estava ligando.

- Você conhecia o pai do Afonso, Beppino?

- Meu pai deu uma vez na cara dele.

- Então você não vai amanhã no enterro. Eu vou!

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Page 30: HISTÓRIAS DOS TRÊS MACHADOS

O Vicente protestou indignado:

- Assim não jogo mais! O Gaetaninho está atrapalhando!

Gaetaninho voltou para o seu posto de guardião. Tão cheio

de responsabilidades.

O Nino veio correndo com a bolinha de meia. Chegou bem

perto. Com o tronco arqueado, as pernas dobradas, os braços

estendidos, as mãos abertas, Gaetaninho ficou pronto para a defesa.

- Passa pro Beppino!

Beppino deu dois passos e meteu o pé na bola. Com todo o

muque. Ela cobriu o guardião sardento e foi parar no meio da rua.

- Vá dar tiro no inferno!

- Cala a boca, palestrino!

- Traga a bola!

Gaetaninho saiu correndo. Antes de alcançar a bola um

bonde o pegou. Pegou e matou.

No bonde vinha o pai do Gaetaninho.

A gurizada assustada espalhou a noticia na noite.

- Sabe o Gaetaninho?

- Que é que tem?

- Amassou o bonde!

A vizinhança limpou com benzina suas roupas domingueiras.

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Page 31: HISTÓRIAS DOS TRÊS MACHADOS

Às dezesseis horas do dia seguinte saiu um enterro da Rua

do Oriente e Gaetaninho não ia na boléia de nenhum dos carros do

acompanhamento. Ia no da frente dentro de um caixão fechado com

flores pobres por cima. Vestia a roupa marinheira, tinha as ligas, mas

não levava a palhetinha.

Quem na boléia de um dos carros do cortejo mirim exibia

soberbo terno vermelho que feria a vista da gente era o Beppino.

CARMELA

Dezoito horas e meia. Nem mais um minuto porque a

madama respeita as horas de trabalho. Carmela sai da oficina. Bianca

vem ao seu lado.

A Rua Barão de Itapetininga é um depósito sarapintado de

automóveis gritadores. As casas de modas (AO CHIC PARISIENSE, SÃO

PAULO-PARIS, PARIS ELEGANTE) despejam nas calçadas as

costureirinhas que riem, falam alto, balançam os quadris como

gangorras.

- Espia se ele está na esquina.

- Não está.

- Então está na Praça da República. Aqui tem muita gente

mesmo.

- Que fiteiro!

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Page 32: HISTÓRIAS DOS TRÊS MACHADOS

O vestido de Carmela coladinho no corpo é de organdi verde.

Braços nus, colo nu, joelhos de fora. Sapatinhos verdes. Bago de uva

Marengo maduro para os lábios dos amadores.

- Ai que rico corpinho!

- Não se enxerga, seu cafajeste? Português sem educação!

Abre a bolsa e espreita o espelhinho quebrado, que reflete a

boca reluzente de carmim primeiro, depois o nariz chumbeva, depois os

fiapos de sobrancelha, por último as bolas de metal branco na ponta das

orelhas descobertas.

Bianca por ser estrábica e feia é a sentinela da companheira.

- Olha o automóvel do outro dia.

- O caixa-d'óculos?

- Com uma bruta luva vermelha.

O caixa-d'óculos pára o Buick de propósito na esquina da

praça.

- Pode passar.

- Muito obrigada.

Passa na pontinha dos pés. Cabeça baixa. Toda nervosa.

- Não vira para trás, Bianca. Escandalosa!

Diante de Álvares de Azevedo (ou Fagundes Varela) o Ângelo

Cuoco de sapatos vermelhos de ponta afilada, meias brancas,

gravatinha deste tamanhinho, chapéu à Rodolfo Valentino, paletó de um

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Page 33: HISTÓRIAS DOS TRÊS MACHADOS

botão só, espera há muito com os olhos escangalhados de inspecionar a

Rua Barão de Itapetininga.

- O Ângelo!

- Dê o fora.

Bianca retarda o passo.

Carmela continua no mesmo. Como se não houvesse nada. E

o Ângelo junta-se a ela. Também como se não houvesse nada. Só que

sorri.

- Já acabou o romance?

- A madama não deixa a gente ler na oficina.

- É? Sei. Amanhã tem baile na Sociedade.

- Que bruta novidade, Ângelo! Tem todo domingo. Não

segura no braço!

- Enjoada!

Na Rua do Arouche o Buick de novo. Passa. Repassa. Torna a

passar.

- Quem é aquele cara?

- Como é que eu hei de saber?

- Você dá confiança para qualquer um. Nunca vi, puxa! Não

olha pra ele que eu armo já uma encrenca!

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Page 34: HISTÓRIAS DOS TRÊS MACHADOS

Bianca rói as unhas. Vinte metros atrás. Os freios do Buick

guincham nas rodas e os pneumáticos deslizam rente à calçada. E

estacam.

- Boa tarde, belezinha...

- Quem? Eu?

- Por que não? Você mesma...

Bianca rói as unhas com apetite.

- Diga uma cousa. Onde mora a sua companheira?

- Ao lado de minha casa.

- Onde é sua casa?

- Não é de sua conta.

O caixa-d'óculos não se zanga. Nem se atrapalha. É um

traquejado.

- Responda direitinho. Não faça assim. Diga onde mora.

- Na Rua Lopes de Oliveira. Numa vila. Vila Margarida n.0 4.

Carmela mora com a família dela no 5.

- Ah! Chama-se Carmela... Lindo nome. Você é capaz de lhe

dar um recado?

Bianca rói as unhas.

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Page 35: HISTÓRIAS DOS TRÊS MACHADOS

- Diga a ela que eu a espero amanhã de noite, às oito horas,

na rua... na.... atrás da Igreja de Santa Cecília. Mas que ela vá sozinha,

hein? Sem você. O barbeirinho também pode ficar em casa.

- Barbeirinho nada! Entregador da Casa Clark!

- É a mesma cousa. Não se esqueça do recado. Amanhã, as

oito horas, atrás da igreja.

- Vá saindo que pode vir gente conhecida.

Também o grilo já havia apitado.

- Ele falou com você. Pensa que eu não vi?

O Ângelo também viu. Ficou danado.

- Que me importa? O caixa-d'óculos disse que espera você

amanhã de noite, às oito horas, no Largo Santa Cecília. Atrás da igreja.

- Que é que ele pensa? Eu não sou dessas. Eu não!

- Que fita, Nossa Senhora! Ele gosta de você, sua boba.

- Ele disse?

- Gosta pra burro.

- Não vou na onda.

- Que fingida que você é!

- Ciao.

- Ciao.

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Page 36: HISTÓRIAS DOS TRÊS MACHADOS

Antes de se estender ao lado da irmãzinha na cama de ferro

Carmela abre o romance à luz da lâmpada de 16 velas: Joana a

Desgraçada ou A Odisséia de uma Virgem, fascículo II.

Percorre logo as gravuras. Umas tetéias. A da capa então é

linda mesmo. No fundo o imponente castelo. No primeiro plano a

íngreme ladeira que conduz ao castelo. Descendo a ladeira numa

disparada louca o fogoso ginete. Montado no ginete o apaixonado caçula

do castelão inimigo de capacete prateado com plumas brancas. E

atravessada no cachaço do ginete a formosa donzela desmaiada

entregando ao vento os cabelos cor de carambola.

Quando Carmela reparando bem começa a verificar que o

castelo não é mais um castelo mas uma igreja o tripeiro Giuseppe

Santini berra no corredor:

- Spegni la luce! Subito! Mi vuole proprio rovinare questa

principessa!

E - raatá! - uma cusparada daquelas.

- Eu só vou até a esquina da Alameda Glette. Já vou

avisando.

- Trouxa. Que tem?

No Largo Santa Cecília atrás da igreja o caixa-d'óculos sem

tirar as mãos do volante insiste pela segunda vez:

- Uma voltinha de cinco minutos só... Ninguém nos verá.

Você verá. Não seja má. Suba aqui.

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Page 37: HISTÓRIAS DOS TRÊS MACHADOS

Carmela olha primeiro a ponta do sapato esquerdo, depois a

do direito, depois a do esquerdo de novo, depois a do direito outra vez,

levantando e descendo a cinta. Bianca rói as unhas.

- Só com a Bianca...

- Não. Para quê? Venha você sozinha.

- Sem a Bianca não vou.

- Está bem. Não vale a pena brigar por isso.

- Você vem aqui na frente comigo. A Bianca senta atrás.

- Mas cinco minutos só. O senhor falou...

- Não precisa me chamar de senhor. Entrem depressa.

Depressa o Buick sobe a Rua Viridiana.

Só pára no Jardim América.

Bianca no domingo seguinte encontra Carmela raspando a

penugenzinha que lhe une as sobrancelhas com a navalha denticulada

do tripeiro Giuseppe Santini.

- Xi, quanta cousa pra ficar bonita!

- Ah! Bianca, eu quero dizer uma cousa pra você.

- Que é?

- Você hoje não vai com a gente no automóvel. Foi ele que

disse.

- Pirata!

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Page 38: HISTÓRIAS DOS TRÊS MACHADOS

- Pirata por quê? Você está ficando boba, Bianca.

- É. Eu sei porquê. Piratão. E você, Carmela, sim senhora! Por

isso é que o Ângelo me disse que você está ficando mesmo uma vaca.

- Ele disse assim? Eu quebro a cara dele, hein? Não me

conhece.

- Pode ser, não é? Mas namorado de máquina não dá certo

mesmo.

Saem à rua suja de negras e cascas de amendoim. No

degrau de cimento ao lado da mulher Giuseppe Santini torcendo a

belezinha do queixo cospe e cachimba, cachimba e cospe.

- Vamos dar uma volta até a Rua das Palmeiras, Bianca?

- Andiamo.

Depois que os seus olhos cheios de estrabismo e despeito

vêem a lanterninha traseira do Buick desaparecer, Bianca resolve dar

um giro pelo bairro. Imaginando cousas. Roendo as unhas. Nervosissima.

Logo encontra a Ernestina. Conta tudo ã Ernestina.

- E o Ângelo, Bianca?

- O Ângelo? O Ângelo é outra cousa. E pra casar.

- Há!...

38

Page 39: HISTÓRIAS DOS TRÊS MACHADOS

LISETTA

Quando Lisetta subiu no bonde (o condutor ajudou) viu logo

o urso. Felpudo, felpudo. E amarelo. Tão engraçadinho.

Dona Mariana sentou-se, colocou a filha em pé diante dela.

Lisetta começou a namorar o bicho. Pôs o pirulito de abacaxi na

boca. Pôs mas não chupou. Olhava o urso. O urso não ligava. Seus

olhinhos de vidro não diziam absolutamente nada. No colo da menina de

pulseira de ouro e meias de seda parecia um urso importante e feliz.

- Olha o ursinho que lindo, mamãe!

- Stai zitta!

A menina rica viu o enlevo e a inveja da Lisetta. E deu de

brincar com o urso. Mexeu-lhe com o toquinho do rabo: e a cabeça do

bicho virou para a esquerda, depois para a direita, olhou para cima,

depois para baixo. Lisetta acompanhava a manobra. Sorrindo fascinada.

E com um ardor nos olhos! O pirulito perdeu definitivamente toda a

importância.

Agora são as pernas que sobem e descem, cumprimentam,

se cruzam, batem umas nas outras.

- As patas também mexem, mamã. Olha lá!

- Stai ferma!

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Page 40: HISTÓRIAS DOS TRÊS MACHADOS

Lisetta sentia um desejo louco de tocar no ursinho.

Jeitosamente procurou alcançá-lo. A menina rica percebeu, encarou a

coitada com raiva, fez uma careta horrível e apertou contra o peito o

bichinho que custara cinqüenta mil-réis na Casa São Nicolau.

- Deixa pegar um pouquinho, um pouquinho só nele, deixa?

- Ah!

- Scusi, senhora. Desculpe por favor. A senhora sabe, essas

crianças são muito levadas. Scusi. Desculpe.

A mãe da menina rica não respondeu. Ajeitou o chapeuzinho

da filha, sorriu para o bicho, fez uma carícia na cabeça dele, abriu a

bolsa e olhou o espelho.

Dona Mariana, escarlate de vergonha, murmurou no ouvido

da filha:

- In casa me lo pagherai!

E pespegou por conta um beliscão no bracinho magro. Um

beliscão daqueles.

Lisetta então perdeu toda a compostura de uma vez. Chorou.

Soluçou. Chorou. Soluçou. Falando sempre.

- Hã! Hã! Hã! Hã! Eu que...ro o ur...so! O ur...so! Ai, mamãe!

Ai, mamãe! Eu que...ro o... o... o... Hã! Hã!

- Stai ferina o ti amazzo, parola d'onore!

- Um pou...qui...nho só! Hã! E... hã! E... hã! Um pou...qui...

- Senti, Lisetta. Non ti porterò più in città! Mai più!

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Page 41: HISTÓRIAS DOS TRÊS MACHADOS

Um escândalo. E logo no banco da frente. O bonde inteiro

testemunhou o feio que Lisetta fez.

O urso recomeçou a mexer com a cabeça. Da esquerda para

a direita, para cima e para baixo.

- Non piangere più adesso!

Impossível.

O urso lá se fora nos braços da dona. E a dona só de má,

antes de entrar no palacete estilo empreiteiro português, voltou-se e

agitou no ar O bichinho. Para Lisetta ver. E Lisetta viu.

Dem-dem! O bonde deu um solavanco, sacudiu os

passageiros, deslizou, rolou, seguiu. Dem-dem!

- Olha à direita!

Lisetta como compensação quis sentar-se no banco. Dona

Mariana (havia pago uma passagem só) opôs-se com energia e outro

beliscão.

A entrada de Lisetta em casa marcou época na história

dramática da família Garbone.

Logo na porta um safanão. Depois um tabefe, Outro no

corredor. Intervalo de dois minutos. Foi então a vez das chineladas. Para

remate. Que não acabava mais.

O resto da gurizada (narizes escorrendo, pernas arranhadas,

suspensórios de barbante) reunido na sala de jantar sapeava de longe.

Mas o Ugo chegou da oficina.

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Page 42: HISTÓRIAS DOS TRÊS MACHADOS

- Você assim machuca a menina, mamãe! Cotadinha dela!

Também Lisetta já não agüentava mais.

- Toma pra você. Mas não escache.

Lisetta deu um pulo de contente. Pequerrucho. Pequerrucho

e de lata. Do tamanho de um passarinho. Mas urso.

Os irmãos chegaram-se para admirar. O Pasqualino quis logo

pegar no bichinho. Quis mesmo tomá-lo à força. Lisetta berrou como

uma desesperada:

- Ele é meu! O Ugo me deu!

Correu para o quarto. Fechou-se por dentro.

CORINTHIANS (2) vs. PALESTRA (1)

Prrrrii!

- Aí, Heitor!

A bola foi parar na extrema esquerda. Melle desembestou

com ela.

A arquibancada pôs-se em pé. Conteve a respiração.

Suspirou:

- Aaaah!

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Page 43: HISTÓRIAS DOS TRÊS MACHADOS

Miquelina cravava as unhas no braço gordo da Iolanda. Em

torno do trapézio verde a ânsia de vinte mi1 pessoas. De olhos ávidos.

De nervos elétricos. De preto. De branco. De azul. De vermelho.

Delírio futebolístico no Parque Antártica.

Camisas verdes e calções negros corriam, pulavam,

chocavam-se, embaralhavam-se, caíam, contorcionavam-se, esfalfavam-

se, brigavam. Por causa da bola de couro amarelo que não parava, que

não parava um minuto, um segundo. Não parava.

- Neco! Neco!

Parecia um louco. Driblou. Escorregou. Driblou. Correu.

Parou. Chutou.

- Gooool! Gooool!

Miquelina ficou abobada com o olhar parado. Arquejando.

Achando aquilo um desaforo, um absurdo.

Aleguá-guá-guá! Aleguá-guá-guá! Hurra! Hurra! Corinthians!

Palhetas subiram no ar. Com os gritos. Entusiasmos rugiam.

Pulavam. Dançavam. E as mãos batendo nas bocas:

- Go-o-o-o-o-o-ol!

Miquelina fechou os olhos de ódio.

- Corinthians! Corinthians!

Tapou os ouvidos.

- Já me estou deixando ficar com raiva!

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Page 44: HISTÓRIAS DOS TRÊS MACHADOS

A exaltação decresceu como um trovão.

- O Rocco é que está garantindo o Palestra. Aí, Rocco!

Quebra eles sem dó!

A Iolanda achou graça. Deu risada.

- Você está ficando maluca, Miquelina. Puxa! Que bruta

paixão!

Era mesmo. Gostava do Rocco, pronto. Deu o fora no Biagio

(o jovem e esperançoso esportista Biagio Panaiocchi, diligente auxiliar

da firma desta praça G. Gasparoni & Filhos e denodado meia-direita do

S. C. Corinthians Paulista, campeão do Centenário) só por causa dele.

- Juiz ladrão, indecente! Larga o apito. gatuno!

Na Sociedade Beneficente e Recreativa do Bexiga toda a

gente sabia de sua história com o Biagio. Só porque ele era freqüentador

dos bailes dominicais da Sociedade não pôs mais os pés lá. E passou a

torcer para O Palestra. E começou a namorar o Rocco.

- O Palestra não dá pro pulo!

- Fecha essa latrina, seu burro!

Miquelina ergueu-se na ponta dos pés. Ergueu os braços.

Ergueu a voz:

- Centra, Matias! Centra, Matias!

Matias centrou. A assistência silenciou. Imparato emendou. A

assistência berrou.

- Palestra! Palestra! Aleguá-guá! Palestra Aleguá! Aleguá!

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Page 45: HISTÓRIAS DOS TRÊS MACHADOS

O italianinho sem dentes com um soco furou a palheta

Ramenzoni de contentamento. Miquelina nem podia falar. E o menino de

ligas saiu de seu lugar. todo ofegante, todo vermelho, todo triunfante, e

foi dizer para os primos corinthianos na última fileira da arquibancada:

- Conheceram, seus canjas?

O campo ficou vazio.

- Ó... lh'a gasosa!

Moças comiam amendoim torrado sentadas nas capotas dos

automóveis. A sombra avançava no gramado maltratado. Mulatas de

vestidos azuis ganham beliscões. E riam. Torcedores discutiam com

gestos.

- Ó... lh'a gasosa!

Um aeroplano passeou sobre o campo.

Miquelina mandou pelo irmão um recado ao Rocco.

- Diga pra ele quebrar o Biagio que é o perigo do Corinthians.

Filipino mergulhou na multidão.

Palmas saudaram os jogadores de cabelos molhados.

Prrrrii!

- O Rocco disse pra você ficar sossegada.

Amilcar deu uma cabeçada. A bola foi bater em Tedesco que

saiu correndo com ela. E a linha toda avançou.

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Page 46: HISTÓRIAS DOS TRÊS MACHADOS

- Costura, macacada

Mas o juiz marcou um impedimento.

- Vendido! Bandido! Assassino!

Turumbamba na arquibancada. O refle do sargento subiu a

escada.

- Não pode! Põe pra fora! Não pode!

Turumbamba na geral. A cavalaria movimentou-se.

Miquelina teve medo. O sargento prendeu o palestrino.

Miquelina protestou baixinho:

- Nem torcer a gente pode mais! Nunca vi!

- Quantos minutos ainda?

- Oito.

Biagio alcançou a bola. Aí, Biagio! Foi levando, foi levando.

Assim, Biagio! Driblou um. Isso! Fugiu de outro. Isso! Avançava para a

vitória. Salame nele, Biagio! Arremeteu. Chute agora! Parou. Disparou.

Parou. Aí! Reparou. Hesitou. Biagio Biagio! Calculou. Agora! Preparou-se.

Olha o Rocco! É agora. Aí! Olha o Rocco! Caiu.

- CA-VA-LO!

Prrrrii!

- Pênalti!

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Page 47: HISTÓRIAS DOS TRÊS MACHADOS

Miquelina pôs a mão no coração. Depois fechou os olhos.

Depois perguntou:

- Quem é que vai bater, Iolanda?

- O Biagio mesmo.

- Desgraçado.

O medo fez silêncio.

Prrrrii!

Pan!

- Go-o-o-o-ol! Corinthians!

- Quantos minutos ainda?

Pri-pri-pri!

- Acabou, Nossa Senhora!

Acabou.

As árvores da geral derrubaram gente.

- Abr'a porteira! Rá! Fech'a porteira! Prá!

O entusiasmo invadiu o campo e levantou o Biagio nos

braços.

- Solt'o rojão! Fiu! Rebent'a bomba! Pum! CORINTHIANS!

O ruído dos automóveis festejava a vitória. O campo foi-se

esvaziando como um tanque. Miquelina murchou dentro de sua tristeza.

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Page 48: HISTÓRIAS DOS TRÊS MACHADOS

- Que é - que é? É jacaré? Não é!

Miquelina nem sentia os empurrões.

- Que é - que é? É tubarão? Não é!

Miquelina não sentia nada.

- Então que é? CORINTHIANS!

Miquelina não vivia.

Na Avenida Água Branca os bondes formando cordão

esperavam campainhando o zé-pereira.

- Aqui, Miquelina.

Os três espremeram-se no banco onde já havia três. E gente

no estribo. E gente na coberta. E gente nas plataformas. E gente do lado

da entrevia.

A alegria dos vitoriosos demandou a cidade. Berrando,

assobiando e cantando. O mulato com a mão no guindaste é quem

puxava a ladainha:

- O Palestra levou na testa!

E o pessoal entoava:

- Ora pro nobis!

Ao lado de Miquelina o gordo de lenço no pescoço

desabafou:

- Tudo culpa daquela besta do Rocco!

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Page 49: HISTÓRIAS DOS TRÊS MACHADOS

Ouviu, não é Miquelina? Você ouviu?

- Não liga pra esses trouxas, Miquelina.

Como não liga?

- O Palestra levou na testa!

Cretinos.

- Ora pro nobis!

Só a tiro.

- Diga uma cousa, Iolanda. Você vai hoje na Sociedade?

- Vou com o meu irmão.

- Então passa por casa que eu também vou.

- Não!

- Que bruta admiração! Por que não?

- E o Biagio?

- Não é de sua conta.

Os pingentes mexiam com as moças de braço dado nas

calçadas.

O FILÓSOFO PLATÃO

(Senhor Platão Soares)

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Page 50: HISTÓRIAS DOS TRÊS MACHADOS

Fechou a porta da rua. Deu dois passos. E se lembrou de que

havia fechado com uma volta só. Voltou. Deu outra volta. Então se

lembrou de que havia esquecido a carta de apresentação para o diretor

do Serviço Sanitário de São Paulo. Deu uma volta na chave. Nada. É

verdade: deu mais uma.

- Nhana! Nhana! Nhana!

Nhana apareceu sem meias no alto da escada.

- Estou vendo tudo.

- Ora vá amolar o boi! Que é que você quer?

- Na gaveta do criado-mudo tem uma carta. Dentro de um

envelope da Câmara dos Deputados. Você me traga por favor. Não. Eu

mesmo vou buscar. Prefiro.

- Como queira.

E foi buscar. Saiu do quarto e parou na sala de jantar.

- Ainda tem geléia ai, Nhana?

- No armário debaixo de uma folha de papel.

- Obrigado.

Escolheu cuidadosamente o cálice. Limpou a colherinha no

lenço. Nhana ia passando com o ferro de passar. Mas não se conteve.

- Platão, Platão, você não vai falar com o homem, Platão?

- Calma. Muita calma. Glorinha entregou o ordenado?

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Page 51: HISTÓRIAS DOS TRÊS MACHADOS

Nhana sacudiu a cabeça:

- Sim senhor!

Fingiu que não compreendeu. Raspado o fundo do cálice

lavou meticulosamente as mãos. E enxugou sem pressa. Dedo por dedo.

Abriu a porta. Fechou. Vinha vindo um bonde a duzentos metros.

Esperou. Agora o ônibus. Esperou. Agora um automóvel do lado

contrário. Esperou. Olhou bem de um lado. Olhou bem de outro.

Certificou-se das condições atmosféricas de nariz para o ar.

Marcialmente atravessou a rua.

O poste cintado esperava os bondes com gente em volta.

Platão quando ia chegando escorregou numa casca de laranja. Todos

olharam. Platão equilibrou-se que nem japonês. Encarou os presentes

vitoriosamente. Na lata, seus cretinos. Esfregou a sola do sapato na

calçada e foi esperar em outro poste. Chegou de cabeça baixa.

- Boa tarde, Platão.

- O mesmo, Argemiro, como vai você?

- Aqui neste solão esperando o maldito 19 que não chega!

Platão cavou um arzinho risonho. Acendeu um cigarro. Disse

sem olhar:

- Eu espero o ônibus da Light.

- Milionário é assim.

Primeiro deu um puxão nos punhos postiços. Depois

respondeu:

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Page 52: HISTÓRIAS DOS TRÊS MACHADOS

- Nem tanto...

O19 passou abarrotado. Argemiro não falava. Platão sim de

vez em quando:

- Esse é um dos motivos por que eu prefiro o ônibus da Light

apesar do preço. Tem sempre lugar. Depois é um Patek.

Mas era só para moer.

Argemiro deu adeusinho e aboletou-se à larga num 19 vazio.

Então Platão soltou um suspiro e pongou o 13 que vinha atrás.

Ficou no estribo. Agarrado no balaustre. Imaginando

desastres medonhos. Por exemplo: cabeçada num poste. Escapando do

primeiro no segundo. Impossível evitar. Era fatal. Uma sacudidela do

bonde e pronto. Miolos à mostra. E será que a Nhana casaria de novo?

- O senhor dá licença?

- Toda.

Não tinha visto o lugar. Pois a mulher viu. Que danada. Toda

a gente passava na frente dele. Triste sina. Tomava cocaína. Ora que

bobagem.

- Ô Seu Platãozinho!

A voz do Argemiro. Enfiou o rosto dentro do bonde.

- Ô seu pândego!

O cavalheiro do balaústre foi amável:

- Parece que é com o senhor.

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Page 53: HISTÓRIAS DOS TRÊS MACHADOS

- Olá, Argemiro, como vai você?

- Te gozando, Platãozinho querido!

Resolveu a situação descendo.

- Não tem nada de extraordinário3 Argemiro. Não precisava

lazer tanto escândalo. Homessa! Então eu sou obrigado a andar de

ônibus só? E ainda por cima da Light? E não tendo dinheiro trocado no

bolso? Homessa agora! Homessa agora!

- Até outra vez, seu bocó!

Profunda humilhação com o sol assando as costas.

Mas não é que tinha de descer ali mesmo? Praça da

República, Rua do Ipiranga, Serviço Sanitário. Esta agora é de

primeiríssima ordem. Argemiro sem querer fez um favor. Um grande?

Um grandérrimo.

Para a satisfação consigo mesmo ser completa só faltava

abrir o guarda-sol. Você não quer abrir. desgraçado? Você abre,

desgraçado, amaldiçoado, excomungado. Abre nada. Nunca viu, seu

italianinho de borra? Guarda-sol, guarda-sol, não me provoque que é

pior. Desgraçado, amaldiçoado, excomungado. Platão heroicamente fez

mais três tentativas. Qual o quê. Foi andando. Batia duro com a ponteira

na calçada de quadrados. De vingança. Se duvidarem muito as costas já

estão fumegando. Depois asfalto foi feito ES-PE-CI-AL-MEN-TE para

aumentar o calor da gente. Platão parou. Concentrou toda a sua

habilidade na ponta dos dedos. É agora. Não e não. Vamos ver se vai

com jeito. Guarda-solzinho de meu coração, abra, sim meu bem? Com

delicadeza se faz tudo. Você não quer mesmo abrir, meu amorzinho?

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Page 54: HISTÓRIAS DOS TRÊS MACHADOS

Está bem. Está bem. Paciência. Fica para outra vez. Você volta pro

cabide. Cabide é o braço. Que cousa mais engraçada.

Rua do Ipiranga. Êta zona perigosa. Platão não tirava os

olhos das venezianas. Só mulatas. Êta zona estragada.

- Entra, cheiroso!

- Sai, fedida!

Que resposta mais na hora, Nossa Senhora. É longe como o

diabo esse tal de Serviço Sanitário. Pensando bem.

- Boa tarde, Seu Platão, como vai o senhor? Ó Dona Eurídice,

como vai passando a senho... ora que se fomente!

Olhou para trás. Não ouviu. Que ouvisse. Parou diante da

placa dourada. Sem saber se entrava ou não. Não será melhor não?

Tanta escada para subir, meu Deus.

O tição fardado chegou na porta contando dinheiro.

- O doutor diretor já terá chegado?

- Parece que ainda não chegou, não senhor.

Aí resolveu subir.

- O doutor diretor ainda não chegou?

O cabeça-chata custou para responder.

- Chegou, sim senhor. Quer falar com ele?

- Ah, chegou?

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Page 55: HISTÓRIAS DOS TRÊS MACHADOS

O cabeça-chata papou uma pastilha de hortelã-pimenta e

falou:

- Agora é que eu estou reparando... o Seu Platão Soares...

Sim senhor, Seu Platão. Desta vez o senhor teve sorte mesmo:

encontrou o homem. Vá se sentando que o bicho hoje atende.

Platão deu uma espiada na sala.

- Xi! Tem uns dez antes de mim.

- Paciência, não é?

Platão se abanava com o chapéu-coco. Triste. Triste. Triste.

- Que é que você está chupando?

- Eu? Eunãoestouchupandonadanãosenhor!

Platão deu um balanço na cabeça.

- Sabe de uma cousa? Aai!.. . Eu volto amanhã...

- O senhor dá licença de um aparte, Seu Platão? Eu se fosse

o senhor não deixava para amanhã não. O senhor já veio aqui umas dez

vezes?

- Não tem importância. Eu volto amanhã.

- Admiro o senhor, Seu Platão. O senhor é um FI-LÓ-SO-FO,

Seu Platão, um grande FI-LÓ-SO-FO!

- Até amanhã.

- Se Deus quiser.

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Page 56: HISTÓRIAS DOS TRÊS MACHADOS

Desceu a escada devagarzinho. Tirando a sorte. Pé direito:

volto. Pé esquerdo: não volto. Foi descendo. Volto, não volto, volto, não

volto, vol.... to, não vol... to, vol... to! Parou. Virou-se. Mediu a escada.

Virou-se. Olhou a rua. É verdade: e o degrau da soleira da porta? Mais

um não-volto. Mais um. Porém para chegar até ele justamente um

passo: volto. Ai está. Azar. O que se chama azar. Platão retesou os

músculos armando o pulo. Deu. De costas na calçada. A mocinha que ia

chegando com a velhinha suspendeu o chapéu. A velhinha suspendeu o

guarda-sol. O chofer do outro lado da rua suspendeu o olhar. Platão

Soares finalmente suspendeu o corpo. Ficou tudo suspenso. Até que

Platão muito digno pegou o chapéu. Agradeceu. Ia pegando o guarda-

sol. A velhinha quis fechá-lo primeiro.

- Não, minha senhora! Prefiro assim mesmo aberto, por

favor. Muito agradecido. Muito agradecido.

De guarda-sol em punho deu uns tapinhas nas calças.

Depois atravessou a rua. Parou diante do chofer. Cousa mais

interessante ver mudar um pneumático.

E não demorou muito.

- Eu se fosse o senhor levantava um pouquinho mais o

macaco, não acredita?

ALCÂNTARA MACHADO

Antônio Castilho de Alcântara Machado d'Oliveira (São Paulo, 25 de maio de 1901 — Rio de Janeiro, 14 de abril de 1935) foi um jornalista, político e escritor brasileiro. Apesar de não ter participado da

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Page 57: HISTÓRIAS DOS TRÊS MACHADOS

Semana de 1922, Alcântara Machado escreveu diversos contos e crônicas modernistas, além de um romance inacabado.

Formou-se em direito no ano de 1924, na Faculdade de Direito de São Paulo. Estreou na literatura primeiramente ao escrever críticas de peças de teatro para o jornal. No ano de 1925, viajou à Europa, onde já estivera quando criança, e de onde se inspirou para escrever crônicas e reportagens que viriam a dar origem ao seu primeiro livro, Pathé-Baby (primeiramente publicado em 1926), o qual recebeu um prefácio de Oswald de Andrade, este que estreitava os laços de amizade com Alcântara.

Brás, Bexiga e Barra Funda Uma de suas obras mais conhecidas é Brás, Bexiga e Barra Funda, uma coletânea de contos. Publicada em 1928, trata do quotidiano dos imigrantes italianos e dos ítalo-descendentes na cidade de São Paulo, expressando-se a narrativa numa linguagem livre, próxima da coloquial. Mostrava as impressões duma São Paulo imersa na experiência da imigração, que então vinha modificando os trejeitos da cidade.

Obra:

Pathé-Baby (1926), romance Brás, Bexiga e Barra Funda (1927), contos Laranja da China (1928), contos Mana Maria (inacabado), romance Cavaquinho e saxofone (1940, póstuma), crônicas e ensaios Contos Avulsos (1961, póstuma), contos

Extraído da “Wikipédia: a enciclopédia livre” http://pt.wikipedia.org/wiki/Ant%C3%B4nio_de_Alc%C3%A2ntara_Machado

(***) 

Machado de Assis

MISSA DO GALO

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Page 58: HISTÓRIAS DOS TRÊS MACHADOS

 

Nunca pude entender a conversação que tive com uma senhora, há

muitos anos, contava eu dezessete, ela trinta. Era noite de Natal.

Havendo ajustado com um vizinho irmos à missa do galo, preferi não

dormir; combinei que eu iria acordá-lo à meia-noite.

A casa em que eu estava hospedado era a do escrivão Meneses,

que fora casado, em primeiras núpcias, com uma de minhas primas. A

segunda mulher, Conceição, e a mãe desta acolheram-me bem, quando

vim de Mangaratiba para o Rio de Janeiro, meses antes, a estudar

preparatórios. Vivia tranqüilo, naquela casa assobradada da rua do

Senado, com os meus livros, poucas relações, alguns passeios. A família

era pequena, o escrivão, a mulher, a sogra e duas escravas. Costumes

velhos. Às dez horas da noite toda a gente estava nos quartos; às dez e

meia a casa dormia. Nunca tinha ido ao teatro, e mais de uma vez,

ouvindo dizer ao Meneses que ia ao teatro, pedi-lhe que me levasse

consigo. Nessas ocasiões, a sogra fazia uma careta, e as escravas riam à

socapa; ele não respondia, vestia-se, saía e só tornava na manhã

seguinte. Mais tarde é que eu soube que o teatro era um eufemismo em

ação. Meneses trazia amores com uma senhora, separada do marido, e

dormia fora de casa uma vez por semana. Conceição padecera, a

princípio, com a existência da comborça; mas, afinal, resignara-se,

acostumara-se, e acabou achando que era muito direito.

Boa Conceição! Chamavam-lhe "a santa", e fazia jus ao título, tão

facilmente suportava os esquecimentos do marido. Em verdade, era um

temperamento moderado, sem extremos, nem grandes lágrimas, nem

grandes risos. No capítulo de que trato, dava para maometana; aceitaria

um harém, com as aparências salvas. Deus me perdoe, se a julgo mal.

Tudo nela era atenuado e passivo. O próprio rosto era mediano, nem

bonito nem feio. Era o que chamamos uma pessoa simpática. Não dizia

mal de ninguém, perdoava tudo. Não sabia odiar; pode ser até que não

soubesse amar.

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Page 59: HISTÓRIAS DOS TRÊS MACHADOS

Naquela noite de Natal foi o escrivão ao teatro. Era pelos anos de

1861 ou 1862. Eu já devia estar em Mangaratiba, em férias; mas fiquei

até o Natal para ver "a missa do galo na Corte". A família recolheu-se à

hora do costume; eu meti-me na sala da frente, vestido e pronto. Dali

passaria ao corredor da entrada e sairia sem acordar ninguém. Tinha

três chaves a porta; uma estava com o escrivão, eu levaria outra, a

terceira ficava em casa.

- Mas, Sr. Nogueira, que fará você todo esse tempo? perguntou-me

a mãe de Conceição.

- Leio, D. Inácia.

Tinha comigo um romance, os Três Mosqueteiros, velha tradução

creio do Jornal do Comércio. Sentei-me à mesa que havia no centro da

sala, e à luz de um candeeiro de querosene, enquanto a casa dormia,

trepei ainda uma vez ao cavalo magro de D’Artagnan e fui-me às

aventuras. Dentro em pouco estava completamente ébrio de Dumas. Os

minutos voavam, ao contrário do que costumam fazer, quando são de

espera; ouvi bater onze horas, mas quase sem dar por elas, um acaso.

Entretanto, um pequeno rumor que ouvi dentro veio acordar-me da

leitura. Eram uns passos no corredor que ia da sala de visitas à de

jantar; levantei a cabeça; logo depois vi assomar à porta da sala o vulto

de Conceição.

- Ainda não foi? Perguntou ela.

- Não fui; parece que ainda não é meia-noite.

- Que paciência!

Conceição entrou na sala, arrastando as chinelinhas da a1cova.

Vestia um roupão branco, mal apanhado na cintura. Sendo magra, tinha

um ar de visão romântica, não disparatada com o meu livro de

aventuras. Fechei o livro; ela foi sentar-se na cadeira que ficava defronte

de mim, perto do canapé. Como eu lhe perguntasse se a havia

acordado, sem querer, fazendo barulho, respondeu com presteza:

- Não! qual! Acordei por acordar.

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Page 60: HISTÓRIAS DOS TRÊS MACHADOS

Fitei-a um pouco e duvidei da afirmativa. Os olhos não eram de

pessoa que acabasse de dormir; pareciam não ter ainda pegado no

sono. Essa observação, porém, que valeria alguma coisa em outro

espírito, depressa a botei fora, sem advertir que talvez não dormisse

justamente por minha causa, e mentisse para me não afligir ou

aborrecer. Já disse que ela era boa, muito boa.

- Mas a hora já há de estar próxima, disse eu.

- Que paciência a sua de esperar acordado, enquanto o vizinho

dorme! E esperar sozinho! Não tem medo de almas do outro mundo? Eu

cuidei que se assustasse quando me viu.

- Quando ouvi os passos estranhei; mas a senhora apareceu logo.

- Que é que estava lendo? Não diga, já sei, é o romance dos

Mosqueteiros.

- Justamente: é muito bonito.

- Gosta de romances?

- Gosto.

- Já leu a Moreninha?

- Do Dr. Macedo? Tenho lá em Mangaratiba.

- Eu gosto muito de romances, mas leio pouco, por falta de tempo.

Que romances é que você tem lido?

Comecei a dizer-lhe os nomes de alguns. Conceição ouvia-me com a

cabeça reclinada no espaldar, enfiando os olhos por entre as pálpebras

meio-cerradas, sem os tirar de mim. De vez em quando passava a língua

pelos beiços, para umedecê-los. Quando acabei de falar, não me disse

nada; ficamos assim alguns segundos. Em seguida, vi-a endireitar a

cabeça, cruzar os dedos e sobre eles pousar o queixo, tendo os

cotovelos nos braços da cadeira, tudo sem desviar de mim os grandes

olhos espertos.

- Talvez esteja aborrecida, pensei eu.

E logo alto:

- D. Conceição, creio que vão sendo horas, e eu...

60

Page 61: HISTÓRIAS DOS TRÊS MACHADOS

- Não, não, ainda é cedo. Vi agora mesmo o relógio; são onze e

meia. Tem tempo. Você, perdendo a noite, é capaz de não dormir de

dia?

- Já tenho feito isso.

- Eu, não; perdendo uma noite, no outro dia estou que não posso, e,

meia hora que seja, hei de passar pelo sono. Mas também estou ficando

velha.

- Que velha o quê, D. Conceição?

Tal foi o calor da minha palavra que a fez sorrir. De costume tinha

os gestos demorados e as atitudes tranqüilas; agora, porém, ergueu-se

rapidamente, passou para o outro lado da sala e deu alguns passos,

entre a janela da rua e a porta do gabinete do marido. Assim, com o

desalinho honesto que trazia, dava-me uma impressão singular. Magra

embora, tinha não sei que balanço no andar, como quem lhe custa levar

o corpo; essa feição nunca me pareceu tão distinta como naquela noite.

Parava algumas vezes, examinando um trecho de cortina ou

consertando a posição de algum objeto no aparador; afinal deteve-se,

ante mim, com a mesa de permeio. Estreito era o círculo das suas

idéias; tornou ao espanto de me ver esperar acordado; eu repeti-lhe o

que ela sabia, isto é, que nunca ouvira missa do galo na Corte, e não

queria perdê-la.

- É a mesma missa da roça; todas as missas se parecem.

- Acredito; mas aqui há de haver mais luxo e mais gente também.

Olhe, a semana santa na Corte é mais bonita que na roça. São João não

digo, nem Santo Antônio...

Pouco a pouco, tinha-se inclinado; fincara os cotovelos no mármore

da mesa e metera o rosto entre as mãos espalmadas. Não estando

abotoadas, as mangas, caíram naturalmente, e eu vi-lhe metade dos

braços, muitos claros, e menos magros do que se poderiam supor. A

vista não era nova para mim, posto também não fosse comum; naquele

momento, porém, a impressão que tive foi grande. As veias eram tão

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Page 62: HISTÓRIAS DOS TRÊS MACHADOS

azuis, que apesar da pouca claridade, podia contá-las do meu lugar. A

presença de Conceição espertara-me ainda mais que o livro. Continuei a

dizer o que pensava das festas da roça e da cidade, e de outras coisas

que me iam vindo à boca. Falava emendando os assuntos, sem saber

por quê, variando deles ou tornando aos primeiros, e rindo para fazê-la

sorrir e ver-lhe os dentes que luziam de brancos, todos iguaizinhos. Os

olhos dela não eram bem negros, mas escuros; o nariz, seco e longo, um

tantinho curvo, dava-lhe ao rosto um ar interrogativo. Quando eu

alteava um pouco a voz, ela reprimia-me:

- Mais baixo! Mamãe pode acordar.

E não saía daquela posição, que me enchia de gosto, tão perto

ficavam as nossas caras. Realmente, não era preciso falar alto para ser

ouvido; cochichávamos os dois, eu mais que ela, porque falava mais;

ela, às vezes, ficava séria, muito séria, com a testa um pouco franzida.

Afinal, cansou; trocou de atitude e de lugar. Deu volta à mesa e veio

sentar-se do meu lado, no canapé. Voltei-me, e pude ver, a furto, o bico

das chinelas; mas foi só o tempo que ela gastou em sentar-se, o roupão

era comprido e cobriu-as logo. Recordo-me que eram pretas. Conceição

disse baixinho:

- Mamãe está longe, mas tem o sono muito leve; se acordasse

agora, coitada, tão cedo não pegava no sono.

- Eu também sou assim.

- O quê? Perguntou ela inclinando o corpo para ouvir melhor.

Fui sentar-me na cadeira que ficava ao lado do canapé e repeti a

palavra. Riu-se da coincidência; também ela tinha o sono leve; éramos

três sonos leves.

- Há ocasiões em que sou como mamãe: acordando, custa-me

dormir outra vez, rolo na cama, à toa, levanto-me, acendo vela, passeio,

torno a deitar-me, e nada.

- Foi o que lhe aconteceu hoje.

- Não, não, atalhou ela.

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Page 63: HISTÓRIAS DOS TRÊS MACHADOS

Não entendi a negativa; ela pode ser que também não a

entendesse. Pegou das pontas do cinto e bateu com elas sobre os

joelhos, isto é, o joelho direito, porque acabava de cruzar as pernas.

Depois referiu uma história de sonhos, e afirmou-me que só tivera um

pesadelo, em criança. Quis saber se eu os tinha. A conversa reatou-se

assim lentamente, longamente, sem que eu desse pela hora nem pela

missa. Quando eu acabava uma narração ou uma explicação, ela

inventava outra pergunta ou outra matéria, e eu pegava novamente na

palavra. De quando em quando, reprimia-me:

- Mais baixo, mais baixo...

Havia também umas pausas. Duas outras vezes, pareceu-me que a

via dormir; mas os olhos, cerrados por um instante, abriam-se logo sem

sono nem fadiga, como se ela os houvesse fechado para ver melhor.

Uma dessas vezes creio que deu por mim embebido na sua pessoa, e

lembra-me que os tornou a fechar, não sei se apressada ou

vagarosamente. Há impressões dessa noite, que me aparecem

truncadas ou confusas. Contradigo-me, atrapalho-me. Uma das que

ainda tenho frescas é que, em certa ocasião, ela, que era apenas

simpática, ficou linda, ficou lindíssima. Estava de pé, os braços cruzados;

eu, em respeito a ela, quis levantar-me; não consentiu, pôs uma das

mãos no meu ombro, e obrigou-me a estar sentado. Cuidei que ia dizer

alguma coisa; mas estremeceu, como se tivesse um arrepio de frio,

voltou as costas e foi sentar-se na cadeira, onde me achara lendo. Dali

relanceou a vista pelo espelho, que ficava por cima do canapé, falou de

duas gravuras que pendiam da parede.

- Estes quadros estão ficando velhos. Já pedi a Chiquinho para

comprar outros.

Chiquinho era o marido. Os quadros falavam do principal negócio

deste homem. Um representava "Cleópatra"; não me recordo o assunto

do outro, mas eram mulheres. Vulgares ambos; naquele tempo não me

pareciam feios.

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Page 64: HISTÓRIAS DOS TRÊS MACHADOS

- São bonitos, disse eu.

- Bonitos são; mas estão manchados. E depois francamente, eu

preferia duas imagens, duas santas. Estas são mais próprias para sala

de rapaz ou de barbeiro.

- De barbeiro? A senhora nunca foi a casa de barbeiro.

- Mas imagino que os fregueses, enquanto esperam, falam de

moças e namoros, e naturalmente o dono da casa alegra a vista deles

com figuras bonitas. Em casa de família é que não acho próprio. É o que

eu penso; mas eu penso muita coisa assim esquisita. Seja o que for, não

gosto dos quadros. Eu tenho uma Nossa Senhora da Conceição, minha

madrinha, muito bonita; mas é de escultura, não se pode pôr na parede,

nem eu quero. Está no meu oratório.

A idéia do oratório trouxe-me a da missa, lembrou-me que podia ser

tarde e quis dizê-lo. Penso que cheguei a abrir a boca, mas logo a fechei

para ouvir o que ela contava, com doçura, com graça, com tal moleza

que trazia preguiça à minha alma e fazia esquecer a missa e a igreja.

Falava das suas devoções de menina e moça. Em seguida referia umas

anedotas de baile, uns casos de passeio, reminiscências de Paquetá,

tudo de mistura, quase sem interrupção. Quando cansou do passado,

falou do presente, dos negócios da casa, das canseiras de família, que

lhe diziam ser muitas, antes de casar, mas não eram nada. Não me

contou, mas eu sabia que casara aos vinte e sete anos.

Já agora não trocava de lugar, como a princípio, e quase não saíra

da mesma atitude. Não tinha os grandes olhos compridos, e entrou a

olhar à toa para as paredes.

- Precisamos mudar o papel da sala, disse daí a pouco, como se

falasse consigo.

Concordei, para dizer alguma coisa, para sair da espécie de sono

magnético, ou o que quer que era que me tolhia a língua e os sentidos.

Queria e não queria acabar a conversação; fazia esforço para arredar os

olhos dela, e arredava-os por um sentimento de respeito; mas a idéia de

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Page 65: HISTÓRIAS DOS TRÊS MACHADOS

parecer que era aborrecimento, quando não era, levava-me os olhos

outra vez para Conceição. A conversa ia morrendo. Na rua, o silêncio era

completo.

Chegamos a ficar por algum tempo, - não posso dizer quanto, -

inteiramente calados. O rumor único e escasso, era um roer de

camundongo no gabinete, que me acordou daquela espécie de

sonolência; quis falar dele, mas não achei modo. Conceição parecia

estar devaneando. Subitamente, ouvi uma pancada na janela, do lado

de fora, e uma voz que bradava: "Missa do galo! missa do galo!"

- Aí está o companheiro, disse ela levantando-se. Tem graça; você é

que ficou de ir acordá-lo, ele é que vem acordar você. Vá, que hão de

ser horas; adeus.

- Já serão horas? perguntei.

- Naturalmente.

- Missa do galo! repetiram de fora, batendo.

-Vá, vá, não se faça esperar. A culpa foi minha. Adeus; até amanhã.

E com o mesmo balanço do corpo, Conceição enfiou pelo corredor

dentro, pisando mansinho. Saí à rua e achei o vizinho que esperava.

Guiamos dali para a igreja. Durante a missa, a figura de Conceição

interpôs-se mais de uma vez, entre mim e o padre; fique isto à conta dos

meus dezessete anos. Na manhã seguinte, ao almoço, falei da missa do

galo e da gente que estava na igreja sem excitar a curiosidade de

Conceição. Durante o dia, achei-a como sempre, natural, benigna, sem

nada que fizesse lembrar a conversação da véspera. Pelo Ano-Bom fui

para Mangaratiba. Quando tornei ao Rio de Janeiro, em março, o

escrivão tinha morrido de apoplexia. Conceição morava no Engenho

Novo, mas nem a visitei nem a encontrei. Ouvi mais tarde que casara

com o escrevente juramentado do marido.

 

    

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Page 66: HISTÓRIAS DOS TRÊS MACHADOS

O ESPELHO

Esboço de uma nova teoria da alma humana

Quatro ou cinco cavalheiros debatiam, uma noite, várias

questões de alta transcendência, sem que a disparidade dos votos

trouxesse a menor alteração aos espíritos. A casa ficava no morro de

Santa Teresa, a sala era pequena, alumiada a velas, cuja luz fundia-se

misteriosamente com o luar que vinha de fora. Entre a cidade, com as

suas agitações e aventuras, e o céu, em que as estrelas pestanejavam,

através de uma atmosfera límpida e sossegada, estavam os nossos

quatro ou cinco investigadores de coisas metafísicas, resolvendo

amigavelmente os mais árduos problemas do universo.

Por que quatro ou cinco? Rigorosamente eram quatro os que

falavam; mas, além deles, havia na sala um quinto personagem, calado,

pensando, cochilando, cuja espórtula no debate não passava de um ou

outro resmungo de aprovação. Esse homem tinha a mesma idade dos

companheiros, entre quarenta e cinqüenta anos, era provinciano,

capitalista, inteligente, não sem instrução, e, ao que parece, astuto e

cáustico. Não discutia nunca; e defendia-se da abstenção com um

paradoxo, dizendo que a discussão é a forma polida do instinto

batalhador, que jaz no homem, como uma herança bestial; e

acrescentava que os serafins e os querubins não controvertiam nada, e,

aliás, eram a perfeição espiritual e eterna. Como desse esta mesma

resposta naquela noite, contestou-lha um dos presentes, e desafiou-o a

demonstrar o que dizia, se era capaz. Jacobina (assim se chamava ele)

refletiu um instante, e respondeu:

- Pensando bem, talvez o senhor tenha razão.

Vai senão quando, no meio da noite, sucedeu que este

casmurro usou da palavra, e não dois ou três minutos, mas trinta ou

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Page 67: HISTÓRIAS DOS TRÊS MACHADOS

quarenta. A conversa, em seus meandros, veio a cair na natureza da

alma, ponto que dividiu radicalmente os quatro amigos. Cada cabeça,

cada sentença; não só o acordo, mas a mesma discussão tornou-se

difícil, senão impossível, pela multiplicidade das questões que se

deduziram do tronco principal e um pouco, talvez, pela inconsistência

dos pareceres. Um dos argumentadores pediu ao Jacobina alguma

opinião, - uma conjetura, ao menos.

- Nem conjetura, nem opinião, redargüiu ele; uma ou outra

pode dar lugar a dissentimento, e, como sabem, eu não discuto. Mas, se

querem ouvir-me calados, posso contar-lhes um caso de minha vida, em

que ressalta a mais clara demonstração acerca da matéria de que se

trata. Em primeiro lugar, não há uma só alma, há duas...

- Duas?

- Nada menos de duas almas. Cada criatura humana traz

duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha

de fora para entro... Espantem-se à vontade, podem ficar de boca

aberta, dar de ombros, tudo; não admito réplica. Se me replicarem,

acabo o charuto e vou dormir. A alma exterior pode ser um espírito, um

fluido, um homem, muitos homens, um objeto, uma operação. Há casos,

por exemplo, em que um simples botão de camisa é a alma exterior de

uma pessoa; - e assim também a polca, o voltarete, um livro, uma

máquina, um par de botas, uma cavatina, um tambor, etc. Está claro

que o ofício dessa segunda alma é transmitir a vida, como a primeira; as

duas completam o homem, que é, metafisicamente falando, uma

laranja. Quem perde uma das metades, perde naturalmente metade da

existência; e casos há, não raros, em que a perda da alma exterior

implica a da existência inteira. Shylock, por exemplo. A alma exterior

aquele judeu eram os seus ducados; perdê-los equivalia a morrer.

"Nunca mais verei o meu ouro, diz ele a Tubal; é um punhal que me

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Page 68: HISTÓRIAS DOS TRÊS MACHADOS

enterras no coração." Vejam bem esta frase; a perda dos ducados, alma

exterior, era a morte para ele. Agora, é preciso saber que a alma

exterior não é sempre a mesma...

- Não?

- Não, senhor; muda de natureza e de estado. Não aludo a

certas almas absorventes, como a pátria, com a qual disse o Camões

que morria, e o poder, que foi a alma exterior de César e de Cromwell.

São almas enérgicas e exclusivas; mas há outras, embora enérgicas, de

natureza mudável. Há cavalheiros, por exemplo, cuja alma exterior, nos

primeiros anos, foi um chocalho ou um cavalinho de pau, e mais tarde

uma provedoria de irmandade, suponhamos. Pela minha parte, conheço

uma senhora, - na verdade, gentilíssima, - que muda de alma exterior

cinco, seis vezes por ano. Durante a estação lírica é a ópera; cessando a

estação, a alma exterior substitui-se por outra: um concerto, um baile do

Cassino, a rua do Ouvidor, Petrópolis...

- Perdão; essa senhora quem é?

- Essa senhora é parenta do diabo, e tem o mesmo nome;

chama-se Legião... E assim outros mais casos. Eu mesmo tenho

experimentado dessas trocas. Não as relato, porque iria longe; restrinjo-

me ao episódio de que lhes falei. Um episódio dos meus vinte e cinco

anos...

Os quatro companheiros, ansiosos de ouvir o caso

prometido, esqueceram a controvérsia. Santa curiosidade! tu não és só

a alma da civilização, és também o pomo da concórdia, fruta divina, de

outro sabor que não aquele pomo da mitologia. A sala, até há pouco

ruidosa de física e metafísica, é agora um mar morto; todos os olhos

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estão no Jacobina, que conserta a ponta do charuto, recolhendo as

memórias. Eis aqui como ele começou a narração:

- Tinha vinte e cinco anos, era pobre, e acabava de ser

nomeado alferes da Guarda Nacional. Não imaginam o acontecimento

que isto foi em nossa casa. Minha mãe ficou tão orgulhosa! tão

contente! Chamava-me o seu alferes. Primos e tios, foi tudo uma alegria

sincera e pura. Na vila, note-se bem, houve alguns despeitados; choro e

ranger de dentes, como na Escritura; e o motivo não foi outro senão que

o posto tinha muitos candidatos e que esses perderam. Suponho

também que uma parte do desgosto foi inteiramente gratuita: nasceu da

simples distinção. Lembra-me de alguns rapazes, que se davam comigo,

e passaram a olhar-me de revés, durante algum tempo. Em

compensação, tive muitas pessoas que ficaram satisfeitas com a

nomeação; e a prova é que todo o fardamento me foi dado por amigos...

Vai então uma das minhas tias, D. Marcolina, viúva do Capitão Peçanha,

que morava a muitas léguas da vila, num sítio escuso e solitário, desejou

ver-me, e pediu que fosse ter com ela e levasse a farda. Fui,

acompanhado de um pajem, que daí a dias tornou à vila, porque a tia

Marcolina, apenas me pilhou no sítio, escreveu a minha mãe dizendo

que não me soltava antes de um mês, pelo menos. E abraçava-me!

Chamava-me também o seu alferes. Achava-me um rapagão bonito.

Como era um tanto patusca, chegou a confessar que tinha inveja da

moça que houvesse de ser minha mulher. Jurava que em toda a

província não havia outro que me pusesse o pé adiante. E sempre

alferes; era alferes para cá, alferes para lá, alferes a toda a hora. Eu

pedia-lhe que me chamasse Joãozinho, como dantes; e ela abanava a

cabeça, bradando que não, que era o "senhor alferes". Um cunhado

dela, irmão do finado Peçanha, que ali morava, não me chamava de

outra maneira. Era o "senhor alferes", não por gracejo, mas a sério, e à

vista dos escravos, que naturalmente foram pelo mesmo caminho. Na

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mesa tinha eu o melhor lugar, e era o primeiro servido. Não imaginam.

Se lhes disser que o entusiasmo da tia Marcolina chegou ao ponto de

mandar pôr no meu quarto um grande espelho, obra rica e magnífica,

que destoava do resto da casa, cuja mobília era modesta e simples... Era

um espelho que lhe dera a madrinha, e que esta herdara da mãe, que o

comprara a uma das fidalgas vindas em 1808 com a corte de D. João VI.

Não sei o que havia nisso de verdade; era a tradição. O espelho estava

naturalmente muito velho; mas via-se-lhe ainda o ouro, comido em parte

pelo tempo, uns delfins esculpidos nos ângulos superiores da moldura,

uns enfeites de madrepérola e outros caprichos do artista. Tudo velho,

mas bom...

- Espelho grande?

- Grande. E foi, como digo, uma enorme fineza, porque o

espelho estava na sala; era a melhor peça da casa. Mas não houve

forças que a demovessem do propósito; respondia que não fazia falta,

que era só por algumas semanas, e finalmente que o "senhor alferes"

merecia muito mais. O certo é que todas essas coisas, carinhos,

atenções, obséquios, fizeram em mim uma transformação, que o natural

sentimento da mocidade ajudou e completou. Imaginam, creio eu?

- Não.

- O alferes eliminou o homem. Durante alguns dias as duas

naturezas equilibraram-se; mas não tardou que a primitiva cedesse à

outra; ficou-me uma parte mínima de humanidade. Aconteceu então que

a alma exterior, que era dantes o sol, o ar, o campo, os olhos das moças,

mudou de natureza, e passou a ser a cortesia e os rapapés da casa, tudo

o que me falava do posto, nada do que me falava do homem. A única

parte do cidadão que ficou comigo foi aquela que entendia com o

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exercício da patente; a outra dispersou-se no ar e no passado. Custa-

lhes acreditar, não?

- Custa-me até entender, respondeu um dos ouvintes.

- Vai entender. Os fatos explicarão melhor os sentimentos:

os fatos são tudo. A melhor definição do amor não vale um beijo de

moça namorada; e, se bem me lembro, um filósofo antigo demonstrou o

movimento andando. Vamos aos fatos. Vamos ver como, ao tempo em

que a consciência do homem se obliterava, a do alferes tornava-se viva

e intensa. As dores humanas, as alegrias humanas, se eram só isso, mal

obtinham de mim uma compaixão apática ou um sorriso de favor. No fim

de três semanas, era outro, totalmente outro. Era exclusivamente

alferes. Ora, um dia recebeu a tia Marcolina uma notícia grave; uma de

suas filhas, casada com um lavrador residente dali a cinco léguas,

estava mal e à morte. Adeus, sobrinho! adeus, alferes! Era mãe

extremosa, armou logo uma viagem, pediu ao cunhado que fosse com

ela, e a mim que tomasse conta do sítio. Creio que, se não fosse a

aflição, disporia o contrário; deixaria o cunhado e iria comigo. Mas o

certo é que fiquei só, com os poucos escravos da casa. Confesso-lhes

que desde logo senti uma grande opressão, alguma coisa semelhante ao

efeito de quatro paredes de um cárcere, subitamente levantadas em

torno de mim. Era a alma exterior que se reduzia; estava agora limitada

a alguns espíritos boçais. O alferes continuava a dominar em mim,

embora a vida fosse menos intensa, e a consciência mais débil. Os

escravos punham uma nota de humildade nas suas cortesias, que de

certa maneira compensava a afeição dos parentes e a intimidade

doméstica interrompida. Notei mesmo, naquela noite, que eles

redobravam de respeito, de alegria, de protestos. Nhô alferes, de minuto

a minuto; nhô alferes é muito bonito; nhô alferes há de ser coronel; nhô

alferes há de casar com moça bonita, filha de general; um concerto de

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louvores e profecias, que me deixou extático. Ah ! pérfidos! mal podia

eu suspeitar a intenção secreta dos malvados.

- Matá-lo?

- Antes assim fosse.

- Coisa pior?

- Ouçam-me. Na manhã seguinte achei-me só. Os velhacos,

seduzidos por outros, ou de movimento próprio, tinham resolvido fugir

durante a noite; e assim fizeram. Achei-me só, sem mais ninguém, entre

quatro paredes, diante do terreiro deserto e da roça abandonada.

Nenhum fôlego humano. Corri a casa toda, a senzala, tudo; ninguém, um

molequinho que fosse. Galos e galinhas tão-somente, um par de mulas,

que filosofavam a vida, sacudindo as moscas, e três bois. Os mesmos

cães foram levados pelos escravos. Nenhum ente humano. Parece-lhes

que isto era melhor do que ter morrido? era pior. Não por medo; juro-

lhes que não tinha medo; era um pouco atrevidinho, tanto que não senti

nada, durante as primeiras horas. Fiquei triste por causa do dano

causado à tia Marcolina; fiquei também um pouco perplexo, não

sabendo se devia ir ter com ela, para lhe dar a triste notícia, ou ficar

tomando conta da casa. Adotei o segundo alvitre, para não desamparar

a casa, e porque, se a minha prima enferma estava mal, eu ia somente

aumentar a dor da mãe, sem remédio nenhum; finalmente, esperei que

o irmão do tio Peçanha voltasse naquele dia ou no outro, visto que tinha

saído havia já trinta e seis horas. Mas a manhã passou sem vestígio

dele; à tarde comecei a sentir a sensação como de pessoa que houvesse

perdido toda a ação nervosa, e não tivesse consciência da ação

muscular. O irmão do tio Peçanha não voltou nesse dia, nem no outro,

nem em toda aquela semana. Minha solidão tomou proporções enormes.

Nunca os dias foram mais compridos, nunca o sol abrasou a terra com

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uma obstinação mais cansativa. As horas batiam de século a século no

velho relógio da sala, cuja pêndula tic-tac, tic-tac, feria-me a alma

interior, como um piparote contínuo da eternidade. Quando, muitos anos

depois, li uma poesia americana, creio que de Longfellow, e topei este

famoso estribilho: Never, for ever! - For ever, never! confesso-lhes que

tive um calafrio: recordei-me daqueles dias medonhos. Era justamente

assim que fazia o relógio da tia Marcolina: - Never, for ever!- For ever,

never! Não eram golpes de pêndula, era um diálogo do abismo, um

cochicho do nada. E então de noite! Não que a noite fosse mais

silenciosa. O silêncio era o mesmo que de dia. Mas a noite era a sombra,

era a solidão ainda mais estreita, ou mais larga. Tic-tac, tic-tac.

Ninguém, nas salas, na varanda, nos corredores, no terreiro, ninguém

em parte nenhuma... Riem-se?

- Sim, parece que tinha um pouco de medo.

- Oh! fora bom se eu pudesse ter medo! Viveria. Mas o

característico daquela situação é que eu nem sequer podia ter medo,

isto é, o medo vulgarmente entendido. Tinha uma sensação inexplicável.

Era como um defunto andando, um sonâmbulo, um boneco mecânico.

Dormindo, era outra coisa. O sono dava-me alívio, não pela razão

comum de ser irmão da morte, mas por outra. Acho que posso explicar

assim esse fenômeno: - o sono, eliminando a necessidade de uma alma

exterior, deixava atuar a alma interior. Nos sonhos, fardava-me

orgulhosamente, no meio da família e dos amigos, que me elogiavam o

garbo, que me chamavam alferes; vinha um amigo de nossa casa, e

prometia-me o posto de tenente, outro o de capitão ou major; e tudo

isso fazia-me viver. Mas quando acordava, dia claro, esvaía-se com o

sono a consciência do meu ser novo e único -porque a alma interior

perdia a ação exclusiva, e ficava dependente da outra, que teimava em

não tornar... Não tornava. Eu saía fora, a um lado e outro, a ver se

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descobria algum sinal de regresso. Soeur Anne, soeur Anne, ne vois-tu

rien venir? Nada, coisa nenhuma; tal qual como na lenda francesa. Nada

mais do que a poeira da estrada e o capinzal dos morros. Voltava para

casa, nervoso, desesperado, estirava-me no canapé da sala. Tic-tac, tic-

tac. Levantava-me, passeava, tamborilava nos vidros das janelas,

assobiava. Em certa ocasião lembrei-me de escrever alguma coisa, um

artigo político, um romance, uma ode; não escolhi nada definitivamente;

sentei-me e tracei no papel algumas palavras e frases soltas, para

intercalar no estilo. Mas o estilo, como tia Marcolina, deixava-se estar.

Soeur Anne, soeur Anne... Coisa nenhuma. Quando muito via negrejar a

tinta e alvejar o papel.

- Mas não comia?

- Comia mal, frutas, farinha, conservas, algumas raízes

tostadas ao fogo, mas suportaria tudo alegremente, se não fora a

terrível situação moral em que me achava. Recitava versos, discursos,

trechos latinos, liras de Gonzaga, oitavas de Camões, décimas, uma

antologia em trinta volumes. As vezes fazia ginástica; outra dava

beliscões nas pernas; mas o efeito era só uma sensação física de dor ou

de cansaço, e mais nada. Tudo silêncio, um silêncio vasto, enorme,

infinito, apenas sublinhado pelo eterno tic-tac da pêndula. Tic-tac, tic-

tac...

- Na verdade, era de enlouquecer.

- Vão ouvir coisa pior. Convém dizer-lhes que, desde que

ficara só, não olhara uma só vez para o espelho. Não era abstenção

deliberada, não tinha motivo; era um impulso inconsciente, um receio de

achar-me um e dois, ao mesmo tempo, naquela casa solitária; e se tal

explicação é verdadeira, nada prova melhor a contradição humana,

porque no fim de oito dias deu-me na veneta de olhar para o espelho

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com o fim justamente de achar-me dois. Olhei e recuei. O próprio vidro

parecia conjurado com o resto do universo; não me estampou a figura

nítida e inteira, mas vaga, esfumada, difusa, sombra de sombra. A

realidade das leis físicas não permite negar que o espelho reproduziu-

me textualmente, com os mesmos contornos e feições; assim devia ter

sido. Mas tal não foi a minha sensação. Então tive medo; atribuí o

fenômeno à excitação nervosa em que andava; receei ficar mais tempo,

e enlouquecer. - Vou-me embora, disse comigo. E levantei o braço com

gesto de mau humor, e ao mesmo tempo de decisão, olhando para o

vidro; o gesto lá estava, mas disperso, esgaçado, mutilado... Entrei a

vestir-me, murmurando comigo, tossindo sem tosse, sacudindo a roupa

com estrépito, afligindo-me a frio com os botões, para dizer alguma

coisa. De quando em quando, olhava furtivamente para o espelho; a

imagem era a mesma difusão de linhas, a mesma decomposição de

contornos... Continuei a vestir-me. Subitamente por uma inspiração

inexplicável, por um impulso sem cálculo, lembrou-me... Se forem

capazes de adivinhar qual foi a minha idéia...

- Diga.

- Estava a olhar para o vidro, com uma persistência de

desesperado, contemplando as próprias feições derramadas e

inacabadas, uma nuvem de linhas soltas, informes, quando tive o

pensamento... Não, não são capazes de adivinhar.

- Mas, diga, diga.

- Lembrou-me vestir a farda de alferes. Vesti-a, aprontei-me

de todo; e, como estava defronte do espelho, levantei os olhos, e...não

lhes digo nada; o vidro reproduziu então a figura integral; nenhuma

linha de menos, nenhum contorno diverso; era eu mesmo, o alferes, que

achava, enfim, a alma exterior. Essa alma ausente com a dona do sítio,

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Page 76: HISTÓRIAS DOS TRÊS MACHADOS

dispersa e fugida com os escravos, ei-la recolhida no espelho. Imaginai

um homem que, pouco a pouco, emerge de um letargo, abre os olhos

sem ver, depois começa a ver, distingue as pessoas dos objetos, mas

não conhece individualmente uns nem outros; enfim, sabe que este é

Fulano, aquele é Sicrano; aqui está uma cadeira, ali um sofá. Tudo volta

ao que era antes do sono. Assim foi comigo. Olhava para o espelho, ia

de um lado para outro, recuava, gesticulava, sorria e o vidro exprimia

tudo. Não era mais um autômato, era um ente animado. Daí em diante,

fui outro. Cada dia, a uma certa hora, vestia-me de alferes, e sentava-

me diante do espelho, lendo olhando, meditando; no fim de duas, três

horas, despia-me outra vez. Com este regime pude atravessar mais seis

dias de solidão sem os sentir...

Quando os outros voltaram a si, o narrador tinha descido as

escadas.

A CARTOMANTE

Hamlet observa a Horácio que há mais cousas no céu e na

terra do que sonha a nossa filosofia. Era a mesma explicação que dava a

bela Rita ao moço Camilo, numa sexta-feira de Novembro de 1869,

quando este ria dela, por ter ido na véspera consultar uma cartomante;

a diferença é que o fazia por outras palavras.

— Ria, ria. Os homens são assim; não acreditam em nada.

Pois saiba que fui, e que ela adivinhou o motivo da consulta, antes

mesmo que eu lhe dissesse o que era. Apenas começou a botar as

cartas, disse-me: "A senhora gosta de uma pessoa..." Confessei que sim,

e então ela continuou a botar as cartas, combinou-as, e no fim declarou-

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Page 77: HISTÓRIAS DOS TRÊS MACHADOS

me que eu tinha medo de que você me esquecesse, mas que não era

verdade...

— Errou! Interrompeu Camilo, rindo.

— Não diga isso, Camilo. Se você soubesse como eu tenho

andado, por sua causa. Você sabe; já lhe disse. Não ria de mim, não

ria...

Camilo pegou-lhe nas mãos, e olhou para ela sério e fixo.

Jurou que lhe queria muito, que os seus sustos pareciam de criança; em

todo o caso, quando tivesse algum receio, a melhor cartomante era ele

mesmo. Depois, repreendeu-a; disse-lhe que era imprudente andar por

essas casas. Vilela podia sabê-lo, e depois...

— Qual saber! tive muita cautela, ao entrar na casa.

— Onde é a casa?

— Aqui perto, na rua da Guarda Velha; não passava ninguém

nessa ocasião. Descansa; eu não sou maluca.

Camilo riu outra vez:

— Tu crês deveras nessas coisas? perguntou-lhe.

Foi então que ela, sem saber que traduzia Hamlet em vulgar,

disse-lhe que havia muito cousa misteriosa e verdadeira neste mundo.

Se ele não acreditava, paciência; mas o certo é que a cartomante

adivinhara tudo. Que mais? A prova é que ela agora estava tranqüila e

satisfeita.

Cuido que ele ia falar, mas reprimiu-se, Não queria arrancar-

lhe as ilusões. Também ele, em criança, e ainda depois, foi

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Page 78: HISTÓRIAS DOS TRÊS MACHADOS

supersticioso, teve um arsenal inteiro de crendices, que a mãe lhe

incutiu e que aos vinte anos desapareceram. No dia em que deixou cair

toda essa vegetação parasita, e ficou só o tronco da religião, ele, como

tivesse recebido da mãe ambos os ensinos, envolveu-os na mesma

dúvida, e logo depois em uma só negação total. Camilo não acreditava

em nada. Por quê? Não poderia dizê-lo, não possuía um só argumento;

limitava-se a negar tudo. E digo mal, porque negar é ainda afirmar, e ele

não formulava a incredulidade; diante do mistério, contentou-se em

levantar os ombros, e foi andando.

Separaram-se contentes, ele ainda mais que ela. Rita estava

certa de ser amada; Camilo, não só o estava, mas via-a estremecer e

arriscar-se por ele, correr às cartomantes, e, por mais que a

repreendesse, não podia deixar de sentir-se lisonjeado. A casa do

encontro era na antiga rua dos Barbonos, onde morava uma

comprovinciana de Rita. Esta desceu pela rua das Mangueiras, na

direção de Botafogo, onde residia; Camilo desceu pela da Guarda velha,

olhando de passagem para a casa da cartomante.

Vilela, Camilo e Rita, três nomes, uma aventura, e nenhuma

explicação das origens. Vamos a ela. Os dois primeiros eram amigos de

infância. Vilela seguiu a carreira de magistrado. Camilo entrou no

funcionalismo, contra a vontade do pai, que queria vê-lo médico; mas o

pai morreu, e Camilo preferiu não ser nada, até que a mãe lhe arranjou

um emprego público. No princípio de 1869, voltou Vilela da província,

onde casara com uma dama formosa e tonta; abandonou a magistratura

e veio abrir banca de advogado. Camilo arranjou-lhe casa para os lados

de Botafogo, e foi a bordo recebê-lo.

— É o senhor? exclamou Rita, estendendo-lhe a mão. Não

imagina como meu marido é seu amigo; falava sempre do senhor.

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Page 79: HISTÓRIAS DOS TRÊS MACHADOS

Camilo e Vilela olharam-se com ternura. Eram amigos

deveras. Depois, Camilo confessou de si para si que a mulher do Vilela

não desmentia as cartas do marido. Realmente, era graciosa e viva nos

gestos, olhos cálidos, boca fina e interrogativa. Era um pouco mais velha

que ambos: contava trinta anos, Vilela vinte e nove e Camilo vente e

seis. Entretanto, o porte grave de Vilela fazia-o parecer mais velho que a

mulher, enquanto Camilo era um ingênuo na vida moral e prática.

Faltava-lhe tanto a ação do tempo, como os óculos de cristal, que a

natureza põe no berço de alguns para adiantar os anos. Nem

experiência, nem intuição.

Uniram-se os três. Convivência trouxe intimidade. Pouco

depois morreu a mãe de Camilo, e nesse desastre, que o foi, os dois

mostraram-se grandes amigos dele. Vilela cuidou do enterro, dos

sufrágios e do inventário; Rita tratou especialmente do coração, e

ninguém o faria melhor.

Como daí chegaram ao amor, não o soube ele nunca. A

verdade é que gostava de passar as horas ao lado dela; era a sua

enfermeira moral, quase uma irmã, mas principalmente era mulher e

bonita. Odor di femina: eis o que ele aspirava nela, e em volta dela, para

incorporá-lo em si próprio. Liam os mesmos livros, iam juntos a teatros e

passeios. Camilo ensinou-lhe as damas e o xadrez e jogavam às noites;

— ela mal, — ele, para lhe ser agradável, pouco menos mal. Até aí as

cousas. Agora a ação da pessoa, os olhos teimosos de Rita, que

procuravam muita vez os dele, que os consultavam antes de o fazer ao

marido, as mãos frias, as atitudes insólitas. Um dia, fazendo ele anos,

recebeu de Vilela uma rica bengala de presente, e de Rita apenas um

cartão com um vulgar cumprimento a lápis, e foi então que ele pôde ler

no próprio coração; não conseguia arrancar os olhos do bilhetinho.

Palavras vulgares; mas há vulgaridades sublimes, ou, pelo menos,

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deleitosas. A velha caleça de praça, em que pela primeira vez passeaste

com a mulher amada, fechadinhos ambos, vale o carro de Apolo. Assim

é o homem, assim são as cousas que o cercam.

Camilo quis sinceramente fugir, mas já não pôde. Rita como

uma serpente, foi-se acercando dele, envolveu-o todo, fez-lhe estalar os

ossos num espasmo, e pingou-lhe o veneno na boca. Ele ficou atordoado

e subjugado. Vexame, sustos, remorsos, desejos, tudo sentiu de mistura;

mas a batalha foi curta e a vitória delirante. Adeus, escrúpulos! Não

tardou que o sapato se acomodasse ao pé, e aí foram ambos, estrada

fora, braços dados, pisando folgadamente por cima de ervas e

pedregulhos, sem padecer nada mais que algumas saudades, quando

estavam ausentes um do outro. A confiança e estima de Vilela

continuavam a ser as mesmas.

Um dia, porém, recebeu Camilo uma carta anônima, que lhe

chamava imoral e pérfido, e dizia que a aventura era sabida de todos.

Camilo teve medo, e, para desviar as suspeitas, começou a rarear as

visitas à casa de Vilela. Este notou-lhe as ausências. Camilo respondeu

que o motivo era uma paixão frívola de rapaz. Candura gerou astúcia. As

ausências prolongaram-se, e as visitas cessaram inteiramente. Pode ser

que entrasse também nisso um pouco de amor-próprio, uma intenção de

diminuir os obséquios do marido, para tornar menos dura a aleivosia do

ato.

Foi por esse tempo que Rita, desconfiada e medrosa, correu

à cartomante para consultá-la sobre a verdadeira causa do

procedimento de Camilo. Vimos que a cartomante restituiu-lhe a

confiança, e que o rapaz repreendeu-a por ter feito o que fez. Correram

ainda algumas semanas. Camilo recebeu mais duas ou três cartas

anônimas, tão apaixonadas, que não podiam ser advertência da virtude,

mas despeito de algum pretendente; tal foi a opinião de Rita, que, por

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Page 81: HISTÓRIAS DOS TRÊS MACHADOS

outras palavras mal compostas, formulou este pensamento: — a virtude

é preguiçosa e avara, não gasta tempo nem papel; só o interesse é ativo

e pródigo.

Nem por isso Camilo ficou mais sossegado; temia que o

anônimo fosse ter com Vilela, e a catástrofe viria então sem remédio.

Rita concordou que era possível.

— Bem, disse ela; eu levo os sobrescritos para comparar a

letra com a das cartas que lá aparecerem; se alguma for igual, guardo-a

e rasgo-a...

Nenhuma apareceu; mas daí a algum tempo Vilela começou

a mostrar-se sombrio, falando pouco, como desconfiado. Rita deu-se

pressa em dizê-lo ao outro, e sobre isso deliberaram. A opinião dela é

que Camilo devia tornar à casa deles, tatear o marido, e pode ser até

que lhe ouvisse a confidência de algum negócio particular. Camilo

divergia; aparecer depois de tantos meses era confirmar a suspeita ou

denúncia. Mais valia acautelarem-se, sacrificando-se por algumas

semanas. Combinaram os meios de se corresponderem, em caso de

necessidade, e separaram-se com lágrimas.

No dia seguinte, estando na repartição, recebeu Camilo este

bilhete de Vilela: "Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem

demora." Era mais de meio-dia. Camilo saiu logo; na rua, advertiu que

teria sido mais natural chamá-lo ao escritório; por que em casa? Tudo

indicava matéria especial, e a letra, fosse realidade ou ilusão, afigurou-

se-lhe trêmula. Ele combinou todas essas cousas com a notícia da

véspera.

— Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora, —

repetia ele com os olhos no papel.

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Page 82: HISTÓRIAS DOS TRÊS MACHADOS

Imaginariamente, viu a ponta da orelha de um drama, Rita

subjugada e lacrimosa, Vilela indignado, pegando na pena e escrevendo

o bilhete, certo de que ele acudiria, e esperando-o para matá-lo. Camilo

estremeceu, tinha medo: depois sorriu amarelo, e em todo caso

repugnava-lhe a idéia de recuar, e foi andando. De caminho, lembrou-se

de ir a casa; podia achar algum recado de Rita, que lhe explicasse tudo.

Não achou nada, nem ninguém. Voltou à rua, e a idéia de estarem

descobertos parecia-lhe cada vez mais verossímil; era natural uma

denúncia anônima, até da própria pessoa que o ameaçara antes; podia

ser que Vilela conhecesse agora tudo. A mesma suspensão das suas

visitas, sem motivo aparente, apenas com um pretexto fútil, viria

confirmar o resto.

Camilo ia andando inquieto e nervoso. Não relia o bilhete,

mas as palavras estavam decoradas, diante dos olhos, fixas; ou então,

— o que era ainda peior, — eram-lhe murmuradas ao ouvido, com a

própria voz de Vilela. "Vem já, já à nossa casa; preciso falar-te sem

demora." Ditas, assim, pela voz do outro, tinham um tom de mistério e

ameaça. Vem, já, já, para quê? Era perto de uma hora da tarde. A

comoção crescia de minuto a minuto. Tanto imaginou o que se iria

passar, que chegou a crê-lo e vê-lo. Positivamente, tinha medo. Entrou a

cogitar em ir armado, considerando que, se nada houvesse, nada perdia,

e a precaução era útil. Logo depois rejeitava a idéa, vexado de si

mesmo, e seguia, picando o passo, na direção do largo da Carioca, para

entrar num tílburi. Chegou, entrou e mandou seguir a trote largo.

— Quanto antes, melhor, pensou ele; não posso estar

assim...

Mas o mesmo trote do cavalo veio agravar-lhe a comoção. O

tempo voava, e ele não tardaria a entestar com o perigo. Quase no fim

da rua da Guarda Velha, o tílburi teve de parar; a rua estava

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Page 83: HISTÓRIAS DOS TRÊS MACHADOS

atravancada com uma carroça, que caíra. Camilo, em si mesmo, estimou

o obstáculo, e esperou. No fim de cinco minutos, reparou que ao lado, à

esquerda, ao pé do tílburi, ficava a casa da cartomante, a quem Rita

consultara uma vez, e nunca ele desejou tanto crer na lição das cartas.

Olhou, viu as janelas fechadas, quando todas as outras estavam abertas

e pejadas de curiosos do incidente da rua. Dir-se-ia a morada do

indiferente Destino.

Camilo reclinou-se no tílburi, para não ver nada. A agitação

dele era grande, extraordinária, e do fundo das camadas morais

emergiam alguns fantasmas de outro tempo, as velhas crenças, as

superstições antigas. O cocheiro propôs-lhe voltar a primeira travessa, e

ir por outro caminho; ele respondeu que não, que esperasse. E inclinava-

se para fitar a casa... Depois fez um gesto incrédulo: era a idéia de ouvir

a cartomante, que lhe passava ao longe, muito longe, com vastas asas

cinzentas; desapareceu, reapareceu, e tornou a esvair-se no cérebro;

mas daí a pouco moveu outra vez as asas, mais perto, fazendo uns giros

concêntricos... Na rua, gritavam os homens, safando a carroça:

— Anda! agora! empurra! vá! vá!

Daí a pouco estaria removido o obstáculo. Camilo fechava os

olhos, pensava em outras cousas; mas a voz do marido sussurrava-lhe

às orelhas as palavras da carta: "Vem já, já..." E ele via as contorções do

drama e tremia. A casa olhava para ele. As pernas queriam descer e

entrar... Camilo achou-se diante de um longo véu opaco... pensou

rapidamente no inexplicável de tantas cousas. A voz da mãe repetia-lhe

uma porção de casos extraordinários; e a mesma frase do príncipe de

Dinamarca reboava-lhe dentro: "Há mais cousas no céu e na terra do

que sonha a filosofia..." Que perdia ele, se...?

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Page 84: HISTÓRIAS DOS TRÊS MACHADOS

Deu por si na calçada, ao pé da porta; disse ao cocheiro que

esperasse, e rápido enfiou pelo corredor, e subiu a escada. A luz era

pouca, os degraus comidos dos pés, o corrimão pegajoso; mas ele não

viu nem sentiu nada. Trepou e bateu. Não aparecendo ninguém, teve

idéia de descer; mas era tarde, a curiosidade fustigava-lhe o sangue, as

fontes latejavam-lhe; ele tornou a bater uma, duas, três pancadas. Veio

uma mulher; era a cartomante. Camilo disse que ia consultá-la, ela fê-lo

entrar. Dali subiram ao sótão, por uma escada ainda pior que a primeira

e mais escura. Em cima, havia uma salinha, mal alumiada por uma

janela, que dava para os telhados do fundo. Velhos trastes, paredes

sombrias, um ar de pobreza, que antes aumentava do que destruía o

prestígio.

A cartomante fê-lo sentar diante da mesa, e sentou-se do

lado oposto, com as costas para a janela, de maneira que a pouca luz de

fora batia em cheio no rosto de Camilo. Abriu uma gaveta e tirou um

baralho de cartas compridas e enxovalhadas. Enquanto as baralhava,

rapidamente, olhava para ele, não de rosto, mas por baixo dos olhos.

Era uma mulher de quarenta anos, italiana, morena e magra, com

grandes olhos sonsos e agudos. Voltou três cartas sobre a mesa, e disse-

lhe:

— Vejamos primeiro o que é que o traz aqui. O senhor tem

um grande susto...

Camilo, maravilhado, fez um gesto afirmativo.

— E quer saber, continuou ela, se lhe acontecerá alguma

coisa ou não...

— A mim e a ela, explicou vivamente ele.

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Page 85: HISTÓRIAS DOS TRÊS MACHADOS

A cartomante não sorriu; disse-lhe só que esperasse. Rápido

pegou outra vez as cartas e baralhou-as, com os longos dedos finos, de

unhas descuradas; baralhou-as bem, transpôs os maços, uma, duas, três

vezes; depois começou a estendê-las. Camilo tinha os olhos nela, curioso

e ansioso.

— As cartas dizem-me...

Camilo inclinou-se para beber uma a uma as palavras. Então

ela declarou-lhe que não tivesse medo de nada. Nada aconteceria nem a

um nem a outro; ele, o terceiro, ignorava tudo. Não obstante, era

indispensável mais cautela; ferviam invejas e despeitos. Falou-lhe do

amor que os ligava, da beleza de Rita... Camilo estava deslumbrado. A

cartomante acabou, recolheu as cartas e fechou-as na gaveta.

— A senhora restituiu-me a paz ao espírito, disse ele

estendendo a mão por cima da mesa e apertando a da cartomante.

Esta levantou-se, rindo.

— Vá, disse ela; vá, ragazzo innamorato...

E de pé, com o dedo indicador, tocou-lhe na testa. Camilo

estremeceu, como se fosse mão da própria sibila, e levantou-se

também. A cartomante foi à cômoda, sobre a qual estava um prato com

passas, tirou um cacho destas, começou a despencá-las e comê-las,

mostrando duas fileiras de dentes que desmentiam as unhas. Nessa

mesma ação comum, a mulher tinha um ar particular. Camilo, ansioso

por sair, não sabia como pagasse; ignorava o preço.

— Passas custam dinheiro, disse ele afinal, tirando a carteira.

Quantas quer mandar buscar?

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Page 86: HISTÓRIAS DOS TRÊS MACHADOS

— Pergunte ao seu coração, respondeu ela.

Camilo tirou uma nota de dez mil-réis, e deu-lha. Os olhos da

cartomante fuzilaram. O preço usual era dois mil-réis.

— Vejo bem que o senhor gosta muito dela... E faz bem; ela

gosta muito do senhor. Vá, vá tranqüilo. Olhe a escada, é escura; ponha

o chapéu...

A cartomante tinha já guardado a nota na algibeira, e descia

com ele, falando, com um leve sotaque. Camilo despediu-se dela

embaixo, e desceu a escada que levava à rua, enquanto a cartomante

alegre com a paga, tornava acima, cantarolando uma barcarola. Camilo

achou o tílburi esperando; a rua estava livre. Entrou e seguiu a trote

largo.

Tudo lhe parecia agora melhor, as outras cousas traziam

outro aspecto, o céu estava límpido e as caras joviais. Chegou a rir dos

seus receios, que chamou pueris; recordou os termos da carta de Vilela

e reconheceu que eram íntimos e familiares. Onde é que ele lhe

descobrira a ameaça? Advertiu também que eram urgentes, e que fizera

mal em demorar-se tanto; podia ser algum negócio grave e gravíssimo.

— Vamos, vamos depressa, repetia ele ao cocheiro.

E consigo, para explicar a demora ao amigo, engenhou

qualquer cousa; parece que formou também o plano de aproveitar o

incidente para tornar à antiga assiduidade... De volta com os planos,

reboavam-lhe na alma as palavras da cartomante. Em verdade, ela

adivinhara o objeto da consulta, o estado dele, a existência de um

terceiro; por que não adivinharia o resto? O presente que se ignora vale

o futuro. Era assim, lentas e contínuas, que as velhas crenças do rapaz

iam tornando ao de cima, e o mistério empolgava-o com as unhas de

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ferro. Às vezes queria rir, e ria de si mesmo, algo vexado; mas a mulher,

as cartas, as palavras secas e afirmativas, a exortação: — Vá, vá,

ragazzo innamorato; e no fim, ao longe, a barcarola da despedida, lenta

e graciosa, tais eram os elementos recentes, que formavam, com os

antigos, uma fé nova e vivaz.

A verdade é que o coração ia alegre e impaciente, pensando

nas horas felizes de outrora e nas que haviam de vir. Ao passar pela

Glória, Camilo olhou para o mar, estendeu os olhos para fora, até onde a

água e o céu dão um abraço infinito, e teve assim uma sensação do

futuro, longo, longo, interminável.

Daí a pouco chegou à casa de Vilela. Apeou-se, empurrou a

porta de ferro do jardim e entrou. A casa estava silenciosa. Subiu os seis

degraus de pedra, e mal teve tempo de bater, a porta abriu-se, e

apareceu-lhe Vilela.

— Desculpa, não pude vir mais cedo; que há?

Vilela não lhe respondeu; tinha as feições decompostas; fez-

lhe sinal, e foram para uma saleta interior. Entrando, Camilo não pôde

sufocar um grito de terror: — ao fundo sobre o canapé, estava Rita

morta e ensangüentada. Vilela pegou-o pela gola, e, com dois tiros de

revólver, estirou-o morto no chão.

O ENFERMEIRO

  PARECE-LHE ENTÃO que o que se deu comigo em 1860, pode

entrar numa página de livro? Vá que seja, com a condição única de que

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não há de divulgar nada antes da minha morte. Não esperará muito,

pode ser que oito dias, se não for menos; estou desenganado.

    Olhe, eu podia mesmo contar-lhe a minha vida inteira, em

que há outras cousas interessantes, mas para isso era preciso tempo,

ânimo e papel, e eu só tenho papel; o ânimo é frouxo, e o tempo

assemelha-se à lamparina de madrugada. Não tarda o sol do outro dia,

um sol dos diabos, impenetrável como a vida. Adeus, meu caro senhor,

leia isto e queira-me bem; perdoe-me o que lhe parecer mau, e não

maltrate muito a arruda, se lhe não cheira a rosas. Pediu-me um

documento humano, ei-lo aqui. Não me peça também o império do Grão-

Mogol, nem a fotografia dos Macabeus; peça, porém, os meus sapatos

de defunto e não os dou a ninguém mais.

    Já sabe que foi em 1860. No ano anterior, ali pelo mês de

agosto, tendo eu quarenta e dois anos, fiz-me teólogo, — quero dizer,

copiava os estudos de teologia de um padre de Niterói, antigo

companheiro de colégio, que assim me dava, delicadamente, casa,

cama e mesa. Naquele mês de agosto de 1859, recebeu ele uma carta

de um vigário de certa vila do interior, perguntando se conhecia pessoa

entendida, discreta e paciente, que quisesse ir servir de enfermeiro ao

coronel

Felisberto, mediante um bom ordenado. O padre falou-me,

aceitei com ambas as mãos, estava já enfarado de copiar citações

latinas e fórmulas eclesiásticas. Vim à Corte despedir-me de um irmão, e

segui para a vila.

    Chegando à vila, tive más notícias do coronel. Era homem

insuportável, estúrdio, exigente, ninguém o aturava, nem os próprios

amigos. Gastava mais enfermeiros que remédios. A dous deles quebrou

a cara. Respondi que não tinha medo de gente sã, menos ainda de

doentes; e depois de entender-me com o vigário, que me confirmou as

notícias recebidas, e me recomendou mansidão e caridade, segui para a

residência do coronel.

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Page 89: HISTÓRIAS DOS TRÊS MACHADOS

    Achei-o na varanda da casa estirado numa cadeira, bufando

muito. Não me recebeu mal. Começou por não dizer nada; pôs em mim

dous olhos de gato que observa; depois, uma espécie de riso maligno

alumiou-lhe as feições, que eram duras. Afinal, disse-me que nenhum

dos enfermeiros que tivera, prestava para nada, dormiam muito, eram

respondões e andavam ao faro das escravas; dous eram até gatunos!

— Você é gatuno?

— Não, senhor.

    Em seguida, perguntou-me pelo nome: disse-lho e ele fez um

gesto de espanto. Colombo? Não, senhor: Procópio José Gomes Valongo.

Valongo? achou que não era nome de gente, e propôs chamar-me tão-

somente Procópio, ao que respondi que estaria pelo que fosse de seu

agrado. Conto-lhe esta particularidade, não só porque me parece pintá-

lo bem, como porque a minha resposta deu de mim a melhor idéia ao

coronel. Ele mesmo o declarou ao vigário, acrescentando que eu era o

mais simpático dos enfermeiros que tivera. A verdade é que vivemos

uma lua-de-mel de sete dias.

    No oitavo dia, entrei na vida dos meus predecessores, uma

vida de cão, não dormir, não pensar em mais nada, recolher injúrias, e,

às vezes, rir delas, com um ar de resignação e conformidade; reparei

que era um modo de lhe fazer corte. Tudo impertinências de moléstia e

do temperamento. A moléstia era um rosário delas, padecia de

aneurisma, de reumatismo e de três ou quatro afecções menores. Tinha

perto de sessenta anos, e desde os cinco toda a gente lhe fazia a

vontade. Se fosse só rabugento, vá; mas ele era também mau,

deleitava-se com a dor e a humilhação dos outros. No fim de três meses

estava farto de o aturar; determinei vir embora; só esperei ocasião.

    Não tardou a ocasião. Um dia, como lhe não desse a tempo

uma fomentação, pegou da bengala e atirou-me dous ou três golpes.

Não era preciso mais; despedi-me imediatamente, e fui aprontar a mala.

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Page 90: HISTÓRIAS DOS TRÊS MACHADOS

Ele foi ter comigo, ao quarto, pediu-me que ficasse, que não valia a pena

zangar por uma rabugice de velho. Instou tanto que fiquei.

— Estou na dependura, Procópio, dizia-me ele à noite; não

posso viver muito tempo. Estou aqui, estou na cova. Você há de ir ao

meu enterro, Procópio; não o dispenso por nada. Há de ir, há de rezar ao

pé da minha sepultura. Se não for, acrescentou rindo, eu voltarei de

noite para lhe puxar as pernas. Você crê em almas de outro mundo,

Procópio?

— Qual o quê!

— E por que é que não há de crer, seu burro? redargüiu

vivamente, arregalando os olhos.

    Eram assim as pazes; imagine a guerra. Coibiu-se das

bengaladas; mas as injúrias ficaram as mesmas, se não piores. Eu, com

o tempo, fui calejando, e não dava mais por nada; era burro, camelo,

pedaço d’asno, idiota, moleirão, era tudo. Nem, ao menos, havia mais

gente que recolhesse uma parte desses nomes. Não tinha parentes;

tinha um sobrinho que morreu tísico, em fins de maio ou princípios de

julho, em Minas. Os amigos iam por lá às vezes aprová-lo, aplaudi-lo, e

nada mais; cinco, dez minutos de visita. Restava eu; era eu sozinho para

um dicionário inteiro. Mais de uma vez resolvi sair; mas, instado pelo

vigário, ia ficando.

    Não só as relações foram-se tornando melindrosas, mas eu

estava ansioso por tornar à Corte. Aos quarenta e dois anos não é que

havia de acostumar-me à reclusão constante, ao pé de um doente

bravio, no interior. Para avaliar o meu isolamento, basta saber que eu

nem lia os jornais; salvo alguma notícia mais importante que levavam ao

coronel, eu nada sabia do resto do mundo. Entendi, portanto, voltar para

a Corte, na primeira ocasião, ainda que tivesse de brigar com o vigário.

Bom é dizer (visto que faço uma confissão geral) que, nada gastando e

tendo guardado integralmente os ordenados, estava ansioso por vir

dissipá-los aqui.

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    Era provável que a ocasião aparecesse. O coronel estava

pior, fez testamento, descompondo o tabelião, quase tanto como a mim.

O trato era mais duro, os breves lapsos de sossego e brandura faziam-se

raros. Já por esse tempo tinha eu perdido a escassa dose de piedade que

me fazia esquecer os excessos do doente; trazia dentro de mim um

fermento de ódio e aversão. No princípio de agosto resolvi

definitivamente sair; o vigário e o médico, aceitando as razões, pediram-

me que ficasse algum tempo mais. Concedi-lhes um mês; no fim de um

mês viria embora, qualquer que fosse o estado do doente. O vigário

tratou de procurar-me substituto.

    Vai ver o que aconteceu. Na noite de vinte e quatro de

agosto, o coronel teve um acesso de raiva, atropelou-me, disse-me

muito nome cru, ameaçou-me de um tiro, e acabou atirando-me um

prato de mingau, que achou frio, o prato foi cair na parede onde se fez

em pedaços.

— Hás de pagá-lo, ladrão! bradou ele.

    Resmungou ainda muito tempo. Às onze horas passou pelo

sono. Enquanto ele dormia, saquei um livro do bolso, um velho romance

de d’Arlincourt, traduzido, que lá achei, e pus-me a lê-lo, no mesmo

quarto, a pequena distância da cama; tinha de acordá-lo à meia-noite

para lhe dar o remédio. Ou fosse de cansaço, ou do livro, antes de

chegar ao fim da segunda página adormeci também. Acordei aos gritos

do coronel, e levantei-me estremunhado. Ele, que parecia delirar,

continuou nos mesmos gritos, e acabou por lançar mão da moringa e

arremessá-la contra mim. Não tive tempo de desviar-me; a moringa

bateu-me na face esquerda, e tal foi a dor que não vi mais nada; atirei-

me ao doente, pus-lhe as mãos ao pescoço, lutamos, e esganei-o.

    Quando percebi que o doente expirava, recuei aterrado, e

dei um grito; mas ninguém me ouviu. Voltei à cama, agitei-o para

chamá-lo à vida, era tarde; arrebentara o aneurisma, e o coronel

morreu. Passei à sala contígua, e durante duas horas não ousei voltar ao

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Page 92: HISTÓRIAS DOS TRÊS MACHADOS

quarto. Não posso mesmo dizer tudo o que passei, durante esse tempo.

Era um atordoamento, um delírio vago e estúpido. Parecia-me que as

paredes tinham vultos; escutava umas vozes surdas. Os gritos da vítima,

antes da luta e durante a luta, continuavam a repercutir dentro de mim,

e o ar, para onde quer que me voltasse, aparecia recortado de

convulsões. Não creia que esteja fazendo imagens nem estilo; digo-lhe

que eu ouvia distintamente umas vozes que me bradavam: assassino!

assassino!

    Tudo o mais estava calado. O mesmo som do relógio, lento,

igual e seco, sublinhava o silêncio e a solidão. Colava a orelha à porta do

quarto na esperança de ouvir um gemido, uma palavra, uma injúria,

qualquer coisa que significasse a vida, e me restituísse a paz à

consciência. Estaria pronto a apanhar das mãos do coronel, dez, vinte,

cem vezes. Mas nada, nada; tudo calado. Voltava a andar à toa na sala,

sentava-me, punha as mãos na cabeça; arrependia-me de ter vindo. —

"Maldita a hora em que aceitei semelhante coisa!" exclamava. E

descompunha o padre de Niterói, o médico, o vigário, os que me

arranjaram um lugar, e os que me pediram para ficar mais algum tempo.

Agarrava-me à cumplicidade dos outros homens.

    Como o silêncio acabasse por aterrar-me, abri uma das

janelas, para escutar o som do vento, se ventasse. Não ventava. A noite

ia tranqüila, as estrelas fulguravam, com a indiferença de pessoas que

tiram o chapéu a um enterro que passa, e continuam a falar de outra

coisa. Encostei-me ali por algum tempo, fitando a noite, deixando-me ir

a uma recapitulação da vida, a ver se descansava da dor presente. Só

então posso dizer que pensei claramente no castigo. Achei-me com um

crime às costas e vi a punição certa. Aqui o temor complicou o remorso.

Senti que os cabelos me ficavam de pé. Minutos depois, vi três ou quatro

vultos de pessoas, no terreiro espiando, com um ar de emboscada;

recuei, os vultos esvaíram-se no ar; era uma alucinação.

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Page 93: HISTÓRIAS DOS TRÊS MACHADOS

    Antes do alvorecer curei a contusão da face. Só então ousei

voltar ao quarto. Recuei duas vezes, mas era preciso e entrei; ainda

assim, não cheguei logo à cama. Tremiam-me as pernas, o coração

batia-me; cheguei a pensar na fuga; mas era confessar o crime, e, ao

contrário, urgia fazer desaparecer os vestígios dele. Fui até a cama; vi o

cadáver, com os olhos arregalados e a boca aberta, como deixando

passar a eterna palavra dos séculos: "Caim, que fizeste de teu irmão?"

Vi no pescoço o sinal das minhas unhas; abotoei alto a camisa e cheguei

ao queixo a ponta do lençol. Em seguida, chamei um escravo, disse-lhe

que o coronel amanhecera morto; mandei recado ao vigário e ao

médico.

    A primeira idéia foi retirar-me logo cedo, a pretexto de ter

meu irmão doente, e, na verdade, recebera carta dele, alguns dias

antes, dizendo-me que se sentia mal. Mas adverti que a retirada

imediata poderia fazer despertar suspeitas, e fiquei. Eu mesmo

amortalhei o cadáver, com o auxílio de um preto velho e míope. Não saí

da sala mortuária; tinha medo de que descobrissem alguma cousa.

Queria ver no rosto dos outros se desconfiavam; mas não ousava fitar

ninguém. Tudo me dava impaciências: os passos de ladrão com que

entravam na sala, os cochichos, as cerimônias e as rezas do vigário.

Vindo a hora, fechei o caixão, com as mãos trêmulas, tão trêmulas que

uma pessoa, que reparou nelas, disse a outra com piedade:

— Coitado do Procópio! apesar do que padeceu, está muito

sentido.

    Pareceu-me ironia; estava ansioso por ver tudo acabado.

Saímos à rua. A passagem da meia escuridão da casa para a claridade

da rua deu-me grande abalo; receei que fosse então impossível ocultar o

crime. Meti os olhos no chão, e fui andando. Quando tudo acabou,

respirei. Estava em paz com os homens. Não o estava com a

consciência, e as primeiras noites foram naturalmente de desassossego

e aflição. Não é preciso dizer que vim logo para o Rio de Janeiro, nem

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Page 94: HISTÓRIAS DOS TRÊS MACHADOS

que vivi aqui aterrado, embora longe do crime; não ria, falava pouco,

mal comia, tinha alucinações, pesadelos...

— Deixa lá o outro que morreu, diziam-me. Não é caso para

tanta melancolia.

    E eu aproveitava a ilusão, fazendo muitos elogios ao morto,

chamando-lhe boa criatura, impertinente, é verdade, mas um coração

de ouro. E elogiando, convencia-me também, ao menos por alguns

instantes. Outro fenômeno interessante, e que talvez lhe possa

aproveitar, é que, não sendo religioso, mandei dizer uma missa pelo

eterno descanso do coronel, na igreja do Sacramento. Não fiz convites,

não disse nada a ninguém; fui ouvi-la, sozinho, e estive de joelhos todo o

tempo, persignando-me a miúdo. Dobrei a espórtula do padre, e distribuí

esmolas à porta, tudo por intenção do finado. Não queria embair os

homens; a prova é que fui só. Para completar este ponto, acrescentarei

que nunca aludia ao coronel, que não dissesse: "Deus lhe fale n’alma!" E

contava dele algumas anedotas alegres, rompantes engraçados...

    Sete dias depois de chegar ao Rio de Janeiro, recebi a carta

do vigário, que lhe mostrei, dizendo-me que fora achado o testamento

do coronel, e que eu era o herdeiro universal. Imagine o meu pasmo.

Pareceu-me que lia mal, fui a meu irmão, fui aos amigos; todos leram a

mesma cousa. Estava escrito; era eu o herdeiro universal do coronel.

Cheguei a supor que fosse uma cilada; mas adverti logo que havia

outros meios de capturar-me, se o crime estivesse descoberto. Demais,

eu conhecia a probidade do vigário, que não se prestaria a ser

instrumento. Reli a carta, cinco, dez, muitas vezes; lá estava a notícia.

— Quanto tinha ele? perguntava-me meu irmão.

— Não sei, mas era rico.

— Realmente, provou que era teu amigo.

— Era... Era...

    Assim por uma ironia da sorte, os bens do coronel vinham

parar às minhas mãos. Cogitei em recusar a herança. Parecia-me odioso

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Page 95: HISTÓRIAS DOS TRÊS MACHADOS

receber um vintém do tal espólio; era pior do que fazer-me esbirro

alugado. Pensei nisso três dias, e esbarrava sempre na consideração de

que a recusa podia fazer desconfiar alguma cousa. No fim dos três dias,

assentei num meio-termo; receberia a herança e dá-la-ia toda, aos

bocados e às escondidas. Não era só escrúpulo; era também o modo de

resgatar o crime por um ato de virtude; pareceu-me que ficava assim de

contas saldas.

    Preparei-me e segui para a vila. Em caminho, à proporção

que me ia aproximando, recordava o triste sucesso; as cercanias da vila

tinham um aspecto de tragédia, e a sombra do coronel parecia-me

surgir de cada lado. A imaginação ia reproduzindo as palavras, os

gestos, toda a noite horrenda do crime...

    Crime ou luta? Realmente, foi uma luta, em que eu, atacado,

defendi-me, e na defesa... Foi uma luta desgraçada, uma fatalidade.

Fixei-me nessa idéia. E balanceava os agravos, punha no ativo as

pancadas, as injúrias... Não era culpa do coronel, bem o sabia, era da

moléstia, que o tornava assim rabugento e até mau... Mas eu perdoava

tudo, tudo... O pior foi a fatalidade daquela noite... Considerei também

que o coronel não podia viver muito mais; estava por pouco; ele mesmo

o sentia e dizia. Viveria quanto? Duas semanas, ou uma; pode ser até

que menos. Já não era vida, era um molambo de vida, se isto mesmo se

podia chamar ao padecer contínuo do pobre homem... E quem sabe

mesmo se a luta e a morte não foram apenas coincidentes? Podia ser,

era até o mais provável; não foi outra cousa. Fixei-me também nessa

idéia...

    Perto da vila apertou-se-me o coração, e quis recuar; mas

dominei-me e fui. Receberam-me com parabéns. O vigário disse-me as

disposições do testamento, os legados pios, e de caminho ia louvando a

mansidão cristã e o zelo com que eu servira ao coronel, que, apesar de

áspero e duro, soube ser grato.

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Page 96: HISTÓRIAS DOS TRÊS MACHADOS

— Sem dúvida, dizia eu olhando para outra parte.

    Estava atordoado. Toda a gente me elogiava a dedicação e a

paciência. As primeiras necessidades do inventário detiveram-me algum

tempo na vila. Constituí advogado; as cousas correram placidamente.

Durante esse tempo, falava muita vez do coronel. Vinham contar-me

cousas dele, mas sem a moderação do padre; eu defendia-o, apontava

algumas virtudes, era austero...

— Qual austero! Já morreu, acabou; mas era o diabo.

    E referiam-me casos duros, ações perversas, algumas

extraordinárias. Quer que lhe diga? Eu, a princípio, ia ouvindo cheio de

curiosidade; depois, entrou-me no coração um singular prazer, que eu

sinceramente buscava expelir. E defendia o coronel, explicava-o,

atribuía alguma coisa às rivalidades locais; confessava, sim, que era um

pouco violento... Um pouco? Era uma cobra assanhada, interrompia-me

o barbeiro; e todos, o coletor, o boticário, o escrivão, todos diziam a

mesma coisa; e vinham outras anedotas, vinha toda a vida do defunto.

Os velhos lembravam-se das crueldades dele, em menino. E o prazer

íntimo, calado, insidioso, crescia dentro de mim, espécie de tênia moral,

que por mais que a arrancasse aos pedaços recompunha-se logo e ia

ficando.

    As obrigações do inventário distraíram-me; e por outro lado

a opinião da vila era tão contrária ao coronel, que a vista dos lugares foi

perdendo para mim a feição tenebrosa que a princípio achei neles.

Entrando na posse da herança, converti-a em títulos e dinheiro. Eram

então passados muitos meses, e a idéia de distribuí-la toda em esmolas

e donativos pios não me dominou como da primeira vez; achei mesmo

que era afetação. Restringi o plano primitivo: distribuí alguma cousa aos

pobres, dei à matriz da vila uns paramentos novos, fiz uma esmola à

Santa Casa da Misericórdia, etc.: ao todo trinta e dous contos. Mandei

também levantar um túmulo ao coronel, todo de mármore, obra de um

napolitano, que aqui esteve até 1866, e foi morrer, creio eu, no

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Page 97: HISTÓRIAS DOS TRÊS MACHADOS

Paraguai.

    Os anos foram andando, a memória tornou-se cinzenta e

desmaiada. Penso às vezes no coronel, mas sem os terrores dos

primeiros dias. Todos os médicos a quem contei as moléstias dele, foram

acordes em que a morte era certa, e só se admiravam de ter resistido

tanto tempo. Pode ser que eu, involuntariamente, exagerasse a

descrição que então lhes fiz; mas a verdade é que ele devia morrer,

ainda que não fosse aquela fatalidade...

    Adeus, meu caro senhor. Se achar que esses apontamentos

valem alguma coisa, pague-me também com um túmulo de mármore,

ao qual dará por epitáfio esta emenda que faço aqui ao divino sermão

da montanha: "Bem-aventurados os que possuem, porque eles serão

consolados."

A IGREJA DO DIABO 

I - DE UMA IDÉIA MIRÍFICA 

CONTA um velho manuscrito beneditino que o Diabo, em

certo dia, teve a idéia de fundar uma igreja.Embora os seus lucros

fossem contínuos e grandes, sentia-se humilhado com o papel avulso

que exercia desde séculos, sem organização, sem regras, sem cânones,

sem ritual, sem nada. Vivia, por assim dizer, dos remanescentes divinos,

dos descuidos e obséquios humanos. Nada fixo, nada regular. Por que

não teria ele a sua igreja? Uma igreja do Diabo era o meio eficaz de

combater as outras religiões, e destruí-las de uma vez.

- Vá, pois, uma igreja, concluiu ele. Escritura contra

Escritura, breviário contra breviário. Terei a minha missa, com vinho e

pão à farta, as minhas prédicas, bulas, novenas e todo o demais

aparelho eclesiástico. O meu credo será o núcleo universal dos espíritos,

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Page 98: HISTÓRIAS DOS TRÊS MACHADOS

a minha igreja uma tenda de Abraão. E depois, enquanto as outras

religiões se combatem e se dividem, a minha igreja será única; não

acharei diante de mim, nem Maomé, nem Lutero. Há muitos modos de

afirmar; há só um de negar tudo.

Dizendo isto, o Diabo sacudiu a cabeça e estendeu os

braços, com um gesto magnífico e varonil. Em seguida, lembrou-se de ir

ter com Deus para comunicar-lhe a idéia, e desafiá-lo; levantou os olhos,

acesos de ódio, ásperos de vingança, e disse consigo: - Vamos, é tempo.

E rápido, batendo as asas, com tal estrondo que abalou todas as

províncias do abismo, arrancou da sombra para o infinito azul.

 

II - ENTRE DEUS E O DIABO

 

DEUS recolhia um ancião, quando o Diabo chegou ao céu. Os

serafins que engrinaldavam o recém-chegado, detiveram-no logo, e o

Diabo deixou-se estar à entrada com os olhos no Senhor.

- Que me queres tu? perguntou este.

- Não venho pelo vosso servo Fausto, respondeu o Diabo

rindo, mas por todos os Faustos do século e dos séculos.

- Explica-te.

- Senhor, a explicação é fácil; mas permiti que vos diga:

recolhei primeiro esse bom velho; dai-lhe o melhor lugar, mandai que as

mais afinadas cítaras e alaúdes o recebam com os mais divinos coros...

- Sabes o que ele fez? perguntou o Senhor, com os olhos

cheios de doçura.

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Page 99: HISTÓRIAS DOS TRÊS MACHADOS

- Não, mas provavelmente é dos últimos que virão ter

convosco. Não tarda muito que o céu fique semelhante a uma casa

vazia, por causa do preço, que é alto. Vou edificar uma hospedaria

barata; em duas palavras, vou fundar uma igreja. Estou cansado da

minha desorganização, do meu reinado casual e adventício. É tempo de

obter a vitória final e completa. E então vim dizer-vos isto, com lealdade,

para que me não acuseis de dissimulação... Boa idéia, não vos parece?

- Vieste dizê-la, não legitimá-la, advertiu o Senhor.

- Tendes razão, acudiu o Diabo; mas o amor-próprio gosta de

ouvir o aplauso dos mestres. Verdade é que neste caso seria o aplauso

de um mestre vencido, e uma tal exigência... Senhor, desço à terra; vou

lançar a minha pedra fundamental.

- Vai.

- Quereis que venha anunciar-vos o remate da obra?

- Não é preciso; basta que me digas desde já por que motivo,

cansado há tanto da tua desorganização, só agora pensaste em fundar

uma igreja?

O Diabo sorriu com certo ar de escárnio e triunfo. Tinha

alguma idéia cruel no espírito, algum reparo picante no alforje de

memória, qualquer cousa que, nesse breve instante da eternidade, o

fazia crer superior ao próprio Deus. Mas recolheu o riso, e disse:

- Só agora concluí uma observação, começada desde alguns

séculos, e é que as virtudes, filhas do céu, são em grande número

comparáveis a rainhas, cujo manto de veludo rematasse em franjas de

algodão. Ora, eu proponho-me a puxá-las por essa franja, e trazê-las

todas para minha igreja; atrás delas virão as de seda pura...

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- Velho retórico! murmurou o Senhor.

- Olhai bem. Muitos corpos que ajoelham aos vossos pés, nos

templos do mundo, trazem as anquinhas da sala e da rua, os rostos

tingem-se do mesmo pó, os lenços cheiram aos mesmos cheiros, as

pupilas centelham de curiosidade e devoção entre o livro santo e o

bigode do pecado. Vede o ardor, - a indiferença, ao menos, - com que

esse cavalheiro põe em letras públicas os benefícios que liberalmente

espalha, - ou sejam roupas ou botas, ou moedas, ou quaisquer dessas

matérias necessárias à vida... Mas não quero parecer que me detenho

em coisas miúdas; não falo, por exemplo, da placidez com que este juiz

de irmandade, nas procissões, carrega piedosamente ao peito o vosso

amor e uma comenda... Vou a negócios mais altos...

Nisto os serafins agitaram as asas pesadas de fastio e sono.

Miguel e Gabriel fitaram no Senhor um olhar de súplica. Deus

interrompeu o Diabo.

- Tu és vulgar, que é o pior que pode acontecer a um espírito

da tua espécie, replicou-lhe o Senhor. Tudo o que dizes ou digas está

dito e redito pelos moralistas do mundo. É assunto gasto; e se não tens

força, nem originalidade para renovar um assunto gasto, melhor é que

te cales e te retires. Olha; todas as minhas legiões mostram no rosto os

sinais vivos do tédio que lhes dás. Esse mesmo ancião parece enjoado; e

sabes tu o que ele fez?

- Já vos disse que não.

- Depois de uma vida honesta, teve uma morte sublime.

Colhido em um naufrágio, ia salvar-se numa tábua; mas viu um casal de

noivos, na flor da vida, que se debatiam já com a morte; deu-lhes a

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tábua de salvação e mergulhou na eternidade. Nenhum público: a água

e o céu por cima. Onde achas aí a franja de algodão?

- Senhor, eu sou, como sabeis, o espírito que nega.

- Negas esta morte?

- Nego tudo. A misantropia pode tomar aspecto de caridade;

deixar a vida aos outros, para um misantropo, é realmente aborrecê-

los...

- Retórico e subtil! exclamou o Senhor. Vai; vai, funda a tua

igreja; chama todas as virtudes, recolhe todas as franjas, convoca todos

os homens... Mas, vai! vai!

Debalde o Diabo tentou proferir alguma coisa mais. Deus

impusera-lhe silêncio; os serafins, a um sinal divino, encheram o céu

com as harmonias de seus cânticos. O Diabo sentiu, de repente, que se

achava no ar; dobrou as asas, e, como um raio, caiu na terra.

 

III - A BOA NOVA AOS HOMENS

 

UMA VEZ na terra, o Diabo não perdeu um minuto. Deu-se

pressa em enfiar a cogula beneditina, como hábito de boa fama, e

entrou a espalhar uma doutrina nova e extraordinária, com uma voz que

reboava nas entranhas do século. Ele prometia aos seus discípulos e

fiéis as delícias da terra, todas as glórias, os deleites mais íntimos.

Confessava que era o Diabo; mas confessava-o para retificar a noção

que os homens tinham dele e desmentir as histórias que a seu respeito

contavam as velhas beatas.

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- Sim, sou o Diabo, repetia ele; não o Diabo das noites

sulfúreas, dos contos soníferos, terror das crianças, mas o Diabo

verdadeiro e único, o próprio gênio da natureza, a que se deu aquele

nome para arredá-lo do coração dos homens. Vede-me gentil a airoso.

Sou o vosso verdadeiro pai. Vamos lá: tomai daquele nome, inventado

para meu desdouro, fazei dele um troféu e um lábaro, e eu vos darei

tudo, tudo, tudo, tudo, tudo, tudo...

Era assim que falava, a princípio, para excitar o entusiasmo,

espertar os indiferentes, congregar, em suma, as multidões ao pé de si.

E elas vieram; e logo que vieram, o Diabo passou a definir a doutrina. A

doutrina era a que podia ser na boca de um espírito de negação. Isso

quanto à substância, porque, acerca da forma, era umas vezes subtil,

outras cínica e deslavada.

Clamava ele que as virtudes aceitas deviam ser substituídas

por outras, que eram as naturais e legítimas. A soberba, a luxúria, a

preguiça foram reabilitadas, e assim também a avareza, que declarou

não ser mais do que a mãe da economia, com a diferença que a mãe era

robusta, e a filha uma esgalgada. A ira tinha a melhor defesa na

existência de Homero; sem o furor de Aquiles, não haveria a Ilíada:

"Musa, canta a cólera de Aquiles, filho de Peleu"... O mesmo disse da

gula, que produziu as melhores páginas de Rabelais, e muitos bons

versos do Hissope; virtude tão superior, que ninguém se lembra das

batalhas de Luculo, mas das suas ceias; foi a gula que realmente o fez

imortal. Mas, ainda pondo de lado essas razões de ordem literária ou

histórica, para só mostrar o valor intrínseco daquela virtude, quem

negaria que era muito melhor sentir na boca e no ventre os

bons manjares, em grande cópia, do que os maus bocados, ou a saliva

do jejum? Pela sua parte o Diabo prometia substituir a vinha do Senhor,

expressão metafórica, pela vinha do Diabo, locução direta e verdadeira,

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pois não faltaria nunca aos seus com o fruto das mais belas cepas do

mundo. Quanto à inveja, pregou friamente que era a virtude principal,

origem de prosperidades infinitas; virtude preciosa, que chegava a

suprir todas as outras, e ao próprio talento.

As turbas corriam atrás dele entusiasmadas. O Diabo incutia-

lhes, a grandes golpes de eloqüência, toda a nova ordem de cousas,

trocando a noção delas, fazendo amar as perversas e detestar as sãs.

Nada mais curioso, por exemplo, do que a definição que ele

dava da fraude. Chamava-lhe o braço esquerdo do homem; o braço

direito era a força; e concluía: muitos homens são canhotos, eis tudo.

Ora, ele não exigia que todos fossem canhotos; não era exclusivista.

Que uns fossem canhotos, outros destros; aceitava a todos, menos os

que não fossem nada. A demonstração, porém, mais rigorosa e

profunda, foi a da venalidade. Um casuísta do tempo chegou a confessar

que era um monumento de lógica. A venalidade, disse o Diabo, era o

exercício de um direito superior a todos os direitos. Se tu podes vender a

tua casa, o teu boi, o teu sapato, o teu chapéu, cousas que são tuas por

uma razão jurídica e legal, mas que, em todo caso, estão fora de ti,

como é que não podes vender a tua opinião, o teu voto, a tua palavra, a

tua fé, cousas que são mais do que tuas, porque são a tua própria

consciência, isto é, tu mesmo? Negá-lo é cair no absurdo e no

contraditório. Pois não há mulheres que vendem os cabelos? não pode

um homem vender uma parte do seu sangue para transfundi-lo a outro

homem anêmico? e o sangue e os cabelos, partes físicas, terão um

privilégio que se nega ao caráter, à porção moral do homem?

Demonstrando assim o princípio, o Diabo não se demorou em expor as

vantagens de ordem temporal ou pecuniária; depois, mostrou ainda que,

à vista do preconceito social, conviria dissimular o exercício de um

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direito tão legítimo, o que era exercer ao mesmo tempo a venalidade e a

hipocrisia, isto é, merecer duplicadamente.

E descia, e subia, examinava tudo, retificava tudo. Está claro

que combateu o perdão das injúrias e outras máximas de brandura e

cordialidade. Não proibiu formalmente a calúnia gratuita, mas induziu a

exercê-la mediante retribuição, ou pecuniária, ou de outra espécie; nos

casos, porém, em que ela fosse uma expansão imperiosa da força

imaginativa, e nada mais, proibia receber nenhum salário, pois equivalia

a fazer pagar a transpiração. Todas as formas de respeito foram

condenadas por ele, como elementos possíveis de um certo decoro

social e pessoal; salva, todavia, a única exceção do

interesse. Mas essa mesma exceção foi logo eliminada, pela

consideração de que o interesse, convertendo o respeito em simples

adulação, era este o sentimento aplicado e não aquele.

Para rematar a obra, entendeu o Diabo que lhe cumpria

cortar por toda a solidariedade humana. Com efeito, o amor do próximo

era um obstáculo grave à nova instituição. Ele mostrou que essa regra

era uma simples invenção de parasitas e negociantes insolváveis; não se

devia dar ao próximo senão indiferença; em alguns casos, ódio ou

desprezo. Chegou mesmo à demonstração de que a noção de próximo

era errada, e citava esta frase de um padre de Nápoles, aquele fino e

letrado Galiani, que escrevia a uma das marquesas do antigo regímen:

"Leve a breca o próximo! Não há próximo!" A única hipótese em que ele

permitia amar ao próximo era quando se tratasse de amar as damas

alheias, porque essa espécie de amor tinha a particularidade de não ser

outra cousa mais do que o amor do indivíduo a si mesmo. E como alguns

discípulos achassem que uma tal explicação, por metafísica, escapava à

compreensão das turbas, o Diabo recorreu a um apólogo: - Cem pessoas

tomam ações de um banco, para as operações comuns; mas cada

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acionista não cuida realmente senão nos seus dividendos: é o que

acontece aos adúlteros. Este apólogo foi incluído no livro da sabedoria.

 

IV - FRANJAS E FRANJAS

 

A PREVISÃO do Diabo verificou-se. Todas as virtudes cuja

capa de veludo acabava em franja de algodão, uma vez puxadas pela

franja, deitavam a capa às urtigas e vinham alistar-se na igreja nova.

Atrás foram chegando as outras, e o tempo abençoou a instituição. A

igreja fundara-se; a doutrina propagava-se; não havia uma região do

globo que não a conhecesse, uma língua que não a traduzisse, uma raça

que não a amasse. O Diabo alçou brados de triunfo.

Um dia, porém, longos anos depois notou o Diabo que

muitos dos seus fiéis, às escondidas, praticavam as antigas virtudes.

Não as praticavam todas, nem integralmente, mas algumas, por partes,

e, como digo, às ocultas. Certos glutões recolhiam-se a comer

frugalmente três ou quatro vezes por ano, justamente em dias de

preceito católico; muitos avaros davam esmolas, à noite, ou nas ruas

mal povoadas; vários dilapidadores do erário restituíam-lhe pequenas

quantias; os fraudulentos falavam, uma ou outra vez, com o coração nas

mãos, mas com o mesmo rosto dissimulado, para fazer crer que

estavam embaçando os outros.

A descoberta assombrou o Diabo. Meteu-se a conhecer mais

diretamente o mal, e viu que lavrava muito. Alguns casos eram até

incompreensíveis, como o de um droguista do Levante, que envenenara

longamente uma geração inteira, e, com o produto das drogas, socorria

os filhos das vítimas. No Cairo achou um perfeito ladrão de camelos, que

tapava a cara para ir às mesquitas. O Diabo deu com ele à entrada de

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uma, lançou-lhe em rosto o procedimento; ele negou, dizendo que ia ali

roubar o camelo de um drogman; roubou-o, com efeito, à vista do Diabo

e foi dá-lo de presente a um muezim, que rezou por ele a Alá. O

manuscrito beneditino cita muitas outras descobertas extraordinárias,

entre elas esta, que desorientou completamente o Diabo. Um dos seus

melhores apóstolos era um calabrês, varão de cinqüenta anos, insigne

falsificador de documentos, que possuía uma bela casa na campanha

romana, telas, estátuas, biblioteca, etc. Era a fraude em pessoa;

chegava a meter-se na cama para não confessar que estava são. Pois

esse homem, não só não furtava ao jogo, como ainda dava gratificações

aos criados. Tendo angariado a amizade de um cônego, ia todas as

semanas confessar-se com ele, numa capela solitária; e, conquanto não

lhe desvendasse nenhuma das suas ações secretas, benzia-se duas

vezes, ao ajoelhar-se, e ao levantar-se. O Diabo mal pôde crer tamanha

aleivosia. Mas não havia duvidar; o caso era verdadeiro.

Não se deteve um instante. O pasmo não lhe deu tempo de

refletir, comparar e concluir do espetáculo presente alguma cousa

análoga ao passado. Voou de novo ao céu, trêmulo de raiva, ansioso de

conhecer a causa secreta de tão singular fenômeno. Deus ouviu-o com

infinita complacência; não o interrompeu, não o repreendeu, não

triunfou, sequer, daquela agonia satânica.

Pôs os olhos nele, e disse:

- Que queres tu, meu pobre Diabo? As capas de algodão têm

agora franjas de seda, como as de veludo tiveram franjas de algodão.

Que queres tu? É a eterna contradição humana.

MACHADO DE ASSIS

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Joaquim Maria Machado de Assis (Rio de Janeiro, 21 de junho de 1839 — Rio de Janeiro, 29 de setembro de 1908) foi um escritor brasileiro, considerado um dos mais importantes nomes da literatura desse país e identificado, pelo crítico Harold Bloom, como o maior escritor negro de todos os tempos.

De sua vasta obra, que inclui ainda poesias, peças de teatro e crítica literária, destacam-se o romance e o conto. É considerado um dos criadores da crônica no país, além de ser importante tradutor, vertendo para o português obras como Os Trabalhadores do Mar, de Victor Hugo e o poema O Corvo, de Edgar Allan Poe. Foi também um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras e seu primeiro presidente, também chamada de Casa de Machado de Assis.

Livros de Contos:

Contos Fluminenses, 1870

Histórias da Meia-Noite, 1873

Papéis Avulsos, 1882

Histórias sem Data, 1884

Várias Histórias, 1896

Páginas Recolhidas, 1899

Relíquias da Casa Velha, 1906

Extraído da “Wikipédia: a enciclopédia livre” http://pt.wikipedia.org/wiki/Machado_de_assis

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