historiando curral velho

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Curral Velho(Acara/CE)Alexandre Oliveira Gomes Joo Paulo Vieira Neto

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Fortaleza/CE Dezembro de 2010

Historiando Curral Velho (Acara/CE) Relatrio de Pesquisa

Autoria Alexandre Oliveira Gomes Joo Paulo Vieira Neto

Projeto Grfico e Editorao Eletrnica Alessandra Guerra e Fernando Sousa

Fotos da Capa Aline Baima, Arquivo Instituto Terramar e Leonardo Melgarejo

Impresso Capa: Expresso Grfica Miolo: Eurocpia Grfica Rpida

Este material foi produzido pelo Instituto Terramar e pela Rede Cearense de Turismo Comunitrio (Rede Tucum) e corresponde a uma ao do projeto Turismo Comunitrio: afirmando identidades e construindo sustentabilidade, iniciativa aprovada em 2008 no edital do Ministrio do Turismo de Apoio a Iniciativas de Turismo de Base Comunitria.

Apoio

O contedo dessa publicao pode ser reproduzido, total ou parcialmente, desde que citada a fonte.

Sumrio

Apresentao 1. Patrimnio Ambiental 2. Manifestaes Culturais 3. Histrias e Lendas 4. Lugares de Memria 5. Saberes e Modos de Fazer 6. Msica e Literatura de Cordel 7. Guardies da Memria 8. Sobre os Autores 9. Fotografias

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Apresentaoste relatrio fruto de uma parceria realizada entre o Projeto Historiando e a Rede Cearense de Turismo Comunitrio Rede Tucum, para a estruturao de espaos de memria e o desenvolvimento de processos museolgicos e de educao histrica em comunidades litorneas que participam desta proposta de desenvolvimento sustentvel atravs de um turismo de base local. O Projeto Historiando surgiu em 2002, a partir da iniciativa de profissionais das reas de Histria e Patrimnio comprometidos com a educao enquanto ferramenta de transformao social; com o objetivo de pesquisar e contar a histria de comunidades a partir da perspectiva de seus moradores, utilizando metodologias que estimulam a autonomia, buscando extrapolar os contedos escolares e experimentando maneiras diferenciadas de vivenciar o processo de ensino-aprendizagem atravs da educao para o patrimnio cultural, no sentido de fortalecer a organizao local a partir da apropriao da memria enquanto instrumento de luta e de inserir a importncia da discusso sobre a construo social da memria na tica das lutas dos movimentos sociais. Como a memria se expressa em nossas comunidades? O que o nosso patrimnio? Qual a nossa histria? Como se escreve a histria? Quem escreve a histria? Quem escolhe o que importante ser lembrado? Aes como esta possibilitam a redescoberta de nossa comunidade, de nossa rua, de nosso meio ambiente, de nossa famlia, de ns mesmos: do que devemos cuidar e preservar no lugar em que nascemos e vivemos os dias mais felizes de nossas vidas. Quem, melhor que a comunidade, para escrever a sua histria? Durante o processo de pesquisa, realizado na comunidade de Curral Velho, no municpio de Acara, no segundo semestre de 2009, identificamos coletivamente o patrimnio cultural local e os seus significados, atravs da organizao de aes educativas que dialogam com a memria local, tanto no sentido de buscar registros sobre a histria como tambm constru-los. A metodologia utilizada incentivou a[1] Sobre o Projeto Historiando, acesse: http://www.iteia.org.br/projeto-historiando-historia-memori a-e-antropologia-no-ceara1 [2] Para saber mais sobre a Rede Tucum, acesse www.tucum.org.br

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participao e o fazer coletivo. Os ministrantes atuaram enquanto facilitadores da ao educativa, e os grupos de pesquisa foram organizados a partir das diversas oficinas de pesquisa histrica e das afinidades temticas e pessoais. Dentre estas oficinas, destacamos: a de oralidade, na qual se mapeia e entrevista os guardies da memria local; a dos objetos, que propicia a formao e a identificao de acervos; a dos lugares de memria, que realiza um inventrio da memria presente em importantes locais para a histria local. A oficina de pintura (mural e tecido), ministrada pelo artista plstico e historiador Naigleison Santiago, so momentos de expresso da histria, como tambm este relatrio e a exposio, feitas a partir de toda a pesquisa realizada e dos materiais construdos durante o processo de sua realizao. Os pesquisadores, jovens e adultos de Curral Velho dividiram-se em cinco grupos temticos, que foram: patrimnio ambiental, manifestaes culturais, histrias e lendas, lugares de memria e guardies da memria. Tais grupos foram escolhidos durante a pesquisa, entre outros possveis, e partem de uma concepo antropolgica e plural do conceito de cultura, patrimnio e memria. Esta iniciativa, se continuada e potencializada, pode originar um espao de memria comunitrio, pois forma um acervo de cultura material, se constitui enquanto um mapeamento do patrimnio local e inicia uma capacitao de jovens para o trabalho com o patrimnio cultural, enquanto vetor de desenvolvimento sociocultural. Agradecemos especialmente comunidade do Curral Velho, por nos proporcionar um conhecimento de sua histria. Este relatrio o resultado de uma seleo do material produzido durante o curso, uma leitura possvel da histria local, contada pelos prprios moradores. Junto a uma exposio organizada sobre e para a comunidade, que ser inaugurada no Centro Comunitrio Encante do Mangue, so as aes que finalizam o curso Historiando Curral Velho. Boa leitura! Alexandre Oliveira Gomes e Joo Paulo Vieira Neto

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1. Patrimnio Ambientalnatureza tambm um patrimnio, pois o modo de vida da comunidade est intimamente relacionado com os ecossistemas naturais, dos quais retiram seu sustento. Sem a preservao do patrimnio natural, a sobrevivncia dos moradores est ameaada. O patrimnio ambiental so espaos naturais que recebem significados especiais, a partir da relao com ele estabelecida pela populao local. So os manguezais, as dunas, a praia, as gamboas e o apicum. Durante o curso Historiando Curral Velho (Acara/CE) pesquisamos sobre cada um destes ambientes e sua importncia para o modo de viver comunitrio. Conversamos com os mais antigos, pesquisando sobre as modificaes dos ecossistemas e os registramos atravs de fotografias, aprendendo o quanto o patrimnio ambiental ou natural importante para a sobrevivncia fsica e cultural desta comunidade.

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ManguezaisNo encontro do rio com o mar, floresce o manguezal. Fruto da mistura das guas doces dos rios e das guas do mar, este ecossistema costeiro apresenta ampla distribuio no planeta, ocorrendo nas zonas tropicais e subtropicais, onde ocupam regies tipicamente inundadas pelas mars, tais como esturios, lagoas costeiras, baas e deltas. Caracterizam-se por uma vegetao tpica, chamada mangue, palavra de origem guarani que significa rvore retorcida. Assim, quando falamos de manguezal nos referimos ao ecossistema, ou seja, ao conjunto de todos os seres vivos, da fauna e da flora, em relao com o meio natural. Quando falamos em mangue, estamos nos referindo somente vegetao que caracterstica desse ecossistema. Este ecossistema de grande importncia para a comunidade, pois fornece recursos e produtos importantes para a economia local, que garantem a segurana alimentar, como mel, madeira, mariscos, crustceos como a maria-farinha e outros. Alm disso, so fontes de lazer e recreao para toda a comunidade. 06

O manguezal muito importante para o nosso planeta, pois deixa o ambiente mais saudvel dada a sua capacidade de filtrar as impurezas do ar e das guas, contribuindo, assim, para diminuir os efeitos das mudanas climticas. Com a devastao dos manguezais, o clima ficar muito quente e a comunidade, que aqui mora, sofrer bastante. Com o passar do tempo os moradores teriam que abandonar suas casas e irem embora porque a mar avanaria.

GamboaGamboa uma juno de gua salgada que corre entre o manguezal, abrigando muitos caminhos onde se reproduzem e vivem bzios, ostras, sururus, caranguejos, siris, peixes, dentre outros. nela que os peixes se defendem dos predadores. de extrema importncia para a vida marinha, pois considerada a maternidade do mar. A comunidade costuma se reunir aos domingos para se divertir nas gamboas, onde pescam, tomam banho, comem ostra, peixe assado, piro de siri, tudo pescado na hora. Uma vez aterrada ou poluda, a vida marinha que habita nela morreria e causaria grande impacto ambiental e social. Por falar em impacto ambiental e social, um dos principais problemas enfrentados pela comunidade foi a carcinicultura. Esta atividade trata da criao de camaro em viveiros escavados nos manguezais, portanto, ela precisa de grandes reas de manguezal e gua. Com a sua vinda para c, houve vrios problemas: ocupao de terras; diviso da comunidade; violaes aos direitos humanos, havendo casos de intimidao fsica e psicolgica dirigida s pessoas que resistiam a esta atividade; devastao da vegetao de mangue, de reas de carnaubais e mata ciliar, provocando a desestruturao da paisagem; desestruturao das funes ecolgicas do manguezal; comprometimento das atividades comunitrias, por conta da salinizao do solo; destruio das espcies que dependem desse ecossistema para completar seu ciclo de vida e que so importantes para a nossa soberania alimentar; contaminao das guas; etc.

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DunasAs dunas, tambm conhecidas por morros, so montes de areia bem fina e branca, grandes ou pequenos. Segundo os pescadores da comunidade, elas servem para o mar no avanar, uma espcie de proteo natural. A vegetao dunar se constitui de mangue, pio, salsa, ameixa, imburana, entre outras. Abriga algumas vidas animais, como pssaros, cobras, jumentos, cabra, gado, etc.

IlhasAs ilhas so pequenas pores de terra cercadas por gua salgada, formadas quando a mar sobe. Num passado recente, abrigou famlias que criavam animais domsticos, como galinhas e cabras. Tinham suas pequenas plantaes de feijo, batata, milho, mandioca, etc. Atualmente, moram famlias em apenas duas ilhas, a ilha da Dona Polnia e a ilha da Praia de Arpoeira. Em algumas ilhas desabitadas os animais pastam. Apicum uma rea nos arredores do manguezal, que tambm conhecido por salgado. de grande importncia para o equilbrio e a manuteno da biodiversidade da natureza. Destru-los anunciar a morte do ecossistema manguezal, debilitando as condies de vida de mais de 65% das espcies de peixe e demais organismos, que necessitam dos esturios para nascer, crescer e reproduzir-se. Abriga vidas como o Chi, que tem como uma das funes 'arar' a terra do salgado para os mangues se desenvolverem.

Riacho ou BarrancosSo correntes de gua doce. Em poca de chuva, esses locais ficam maravilhosos para o banho e para a diverso da crianada. Na poca em que s se encontrava gua nas cacimbas, toda a comunidade utilizava os riachos para lavar roupas, tomar banho, dar gua para os animais. Ainda hoje, 08

mesmo com as casas tendo gua encanada, os riachos, ainda, so utilizados e frequentados.

Praia de ArpoeirasAntes de se tornar Praia de Arpoeiras, esse lugar era habitado por muitas famlias que l moravam e que aos poucos foram saindo por conta dos fortes ventos e da falta de gua de boa qualidade. Vindos dos currais de pesca, os pescadores chegavam com os peixes, faziam pequenas cabanas, levavam bebida e os assavam. Quando chegava algum, vendiam bebidas e peixe assado. E foi assim que tudo comeou. O Prefeito Manuel Duca da Silveira Neto, vendo todo este movimento, teve a iniciativa de abrir uma estrada para dar acesso aos banhistas. Os primeiros barraqueiros foram: Jos Alves, Odeon, Aristeu e Raimundo Amlia. Hoje um ponto de lazer de toda a sociedade acarauense e das cidades vizinhas. O principal prato vendido na praia o baio de dois com peixe frito. Tem gua rasa, possibilitando s crianas tomarem banho e os pais ficarem despreocupados. , tambm, conhecida como a maior praia seca do mundo. A gua vem, quando a mar enche e depois volta, deixando a rea totalmente seca, com os currais vista, por vrios quilmetros, horizonte adentro.

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2. Manifestaes Culturaisurral Velho um lugar riqussimo em manifestaes culturais. Durante a pesquisa, realizamos um mapeamento das expresses culturais, hoje existentes na comunidade e as que ainda resistem nas lembranas dos mais antigos. Entre as mais lembradas por nossos guardies da memria, destacamos o Reisado e o Drama. As expresses, hoje, mais presentes em Curral Velho so as novenas, as coroaes e a prtica do futebol, que rene toda a comunidade e at mesmo outras, que vm jogar no campo da comunidade. Estas manifestaes constituem formas culturais de diverso para a comunidade, ontem e hoje.

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ReisadoSegundo o relato do senhor Afonso Bernardo da Silva, o grupo de Reisado era composto por seis pessoas. Os personagens eram o cabea de fogo (cabur), o caador, o bode, a burra, o jumento e o boi. Uma apresentao durava cerca de oito horas, indo das vinte e uma s seis horas da manh. Essas apresentaes aconteciam nas casas das pessoas da comunidade.

DramaO Drama uma espcie de dramatizao encenada por mulheres que ficavam atrs de uma cortina, vestidas de saia estilo baiana, com um leno amarrado na cabea e uma cesta no brao, oferecendo flores. Esta manifestao cultural, muito praticada pelos nossos mais antigos, chegou na comunidade atravs de um circo que tinha em Acara. Era uma das principais diverses da comunidade, que lotava as casas onde acontecia o show. A dona Librada, uma das mulheres que danavam o drama antigamente, nos falou que oferecia flores para o seu Antnio, cantando a seguinte msica:

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Senhor Antnio No v se arrepender Compre essa rosa Que a Librada vai vender. Quando ela acabava de cantar a msica, pegava uma faixa e colocava no ombro do seu Antnio, que retribua dando dinheiro pra ela. Segundo Dona Eulina, ela aprendeu a danar drama com dona Rosa. Ela nos contou que mulheres como Dona Eulina, Rosa, Mariz, entre outras, eram famosas e danavam em vrios lugares, como nas localidades de Cruz e Almofala. Tinham uma agenda cheia. Falou-nos, ainda, que adorava quando iam a outros lugares, porque chamavam a ateno dos rapazes por onde passavam, que saudade daquele tempo...

NovenasAs novenas so celebraes religiosas muito praticadas na comunidade. A primeira novena que aconteceu na comunidade foi na casa do seu Raimundo Mariano, onde as pessoas se reuniam para uma pequena celebrao. Tambm aconteciam as festas de Santo Antnio, So Pedro, So Joo e So Sebastio, que naquela poca atraiam muita gente para ouvir as novenas.

QuadrilhasIniciaram-se em 2003, organizadas pela comunidade. A Crizeuda era responsvel por ensinar para os jovens e a Lcia Helena para as crianas. Os ensaios eram no perodo da tarde para as crianas e no turno da noite para os jovens. As quadrilhas acontecem no ms de junho, no perodo das frias escolares. No dia da apresentao, h encenao do casamento, dana da quadrilha e logo aps uma seresta que entra noite adentro. Hoje, j no existe mais a quadrilha de crianas, s a de jovens, que para no deixar a tradio morrer, se responsabilizam pelos ensaios, pelas roupas e tudo o que for necessrio para esta manifestao acontecer. S que no se ensaia mais aqui, como de costume, e nem se dana aqui, como antigamente. A quadrilha, que comeou sem nome, hoje se chama Brisa do Mar, e se apresenta em um festival de quadrilhas que o governo municipal de Acara organiza. 11

3. Histrias e Lendashistria recente do Curral Velho est marcada por uma intensa luta pela posse da terra e contra a especulao oriunda do estabelecimento da atividade comercial da carcinicultura, que a criao de camaro em cativeiro, nos manguezais do entorno da comunidade. Esta luta demonstra a resistncia e a luta do povo do Curral Velho, que se materializa no processo de organizao comunitria. Atravs do depoimento dos mais antigos de Curral Velho, reunimos as principais histrias da comunidade, que mostram um pouco desta mobilizao, das quais destacamos a histria da derrubada das cercas e do desate. As lendas so um conjunto de narrativas, geralmente compartilhadas beira das fogueiras, comendo peixe assado com 'grolado'. Estas estrias nos so contadas por pessoas mais antigas, que as presenciaram e/ou ouviram dos mais velhos, geralmente passadas de uma gerao a outra, atravs da oralidade. Ouvimos os relatos de pessoas que participaram diretamente das lutas que ocorreram na regio e que hoje fazem parte da nossa histria. Conversamos tambm com pessoas que afirmam terem visto coisas assustadoras e arrepiantes nas noites de lua-cheia em Curral Velho. Coisas essas que viraram personagens das lendas mais intrigantes da comunidade.

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HistriasA histria das derrubadas de cercas e do Desate A carcinicultura estava invadindo Curral Velho. Os carcinicultores estavam construindo cercas onde no deviam, ameaando o precioso Curral Velho e proibindo, at mesmo, a passagem dos moradores por lugares onde foram criados e criam os filhos. Apesar de algumas pessoas terem aceitado esta agresso, a 12

comunidade, em sua maioria, no queria perder Curral Velho to facilmente para os carcinicultores de fora, que vieram de longe. Decidiram, ento, se organizar para resistir. Com machados e faces derrubaram as cercas construdas. Os carcinicultores no desistiram de construir seus viveiros e a comunidade de Curral Velho no desistia de lutar por seus direitos. Certo dia, para ser mais exato, no dia 07 de setembro de 2004, um grupo de moradores da comunidade, entre eles crianas e adolescentes, estavam extraindo recursos dos manguezais para a sua sobrevivncia e foram surpreendidos por balas de chumbo lanadas por seguranas da fazenda de camaro. Por conta desse acontecimento, senos reuniram com outras comunidades e entidades solidrias e no dia 09 de outubro de 2004, realizaram um protesto que ficou conhecido como Desate. Eram mulheres, velhos, homens, crianas e adolescentes lutando para preservar o mais importante patrimnio ambiental de Curral Velho o manguezal e para denunciar as violncias que a comunidade estava sofrendo com a carcinicultura. Mentinha, uma poetiza da comunidade assim retratou esse acontecimento: A Histria do Desate Aconteceu em Curral Velho No dia sete de setembro Foi algo muito triste Acho que ainda me lembro Houve tiros e torturas Em adultos e adolescentes Dados por policiais Que se achavam inteligentes Precisamos de ajuda! Gritou a comunidade Outras pessoas ouviram E vieram com vontade Brancos, negros e ndios Todos rumo ao resgate De uma liberdade perdida Formamos um grande DESATE O que era isso? Ningum sabia Destruir os agressores Era o que a gente queria... De nossa luta no desistimos Fomos em frente sem fraquejar E nossos direitos, com certeza A gente iria conquistar... 13

A luta foi grande, e ainda ... Contra a carcinicultura Que trouxe desgraas Isso pra gente foi uma tortura Vencemos a luta Com muita garra Em um grande DESATE Que no se desamarrava Mobilizao e organizao

popular O DESATE tem esse conceito Ajuda a acabar Com a explorao e o desrespeito E foi isso que aconteceu Dessa histria ainda vou lembrar Aquela foi uma grande luta Que foi vencida pelos povos do mar...

LendasA Lenda da Botija Antigamente, os tempos eram difceis, ganhava-se pouco dinheiro, e esse pouco as pessoas juntavam para quando precisassem. Mas havia um problema, onde guardar o dinheiro? Resolveram ento, enterr-lo em qualquer lugar do cho. Conta lenda que, com um certo tempo esse dinheiro, que provavelmente era guardado em uma botija, virava ouro, ouro puro, e a botija tambm. Quando era noite de lua cheia, podia avistar-se de longe, um foguinho flutuando bem prximo do cho, era um fogo clarinho, azulado. Quem fosse at esse fogo e cavasse no local, encontraria uma botija de ouro e ficaria muito rico. Muitos contam que j viram o foguinho azul claro, mas ou no queriam ficar ricos ou estavam com medo de ir at o intrigante foguinho.

A Lenda do Assobiador O povo conta que essa lenda surgiu por causa de Caim e Abel... 14

Ao matar Abel, que era um jovem rapaz, Caim, seu irmo, teve que carregar um grande peso em suas costas, como castigo por t-lo assassinado. Acontece que Caim, quando pra pra descansar do peso que carrega, emite um assobio forte e arrepiante que pode ser ouvido de muito longe. A meia noite se algum passar e ouvir este assobio e imit-lo, o assobiador o persegue e comea a dar chicotadas nas costas daquele que imitar o assobio de Caim. Por isso surgiu essa lenda, e fica a advertncia, no imite um assobio solitrio meia noite, do contrrio voc ser perseguido e chicoteado.

A Lenda do Fogo da Velha Essa lenda surgiu porque... H muito tempo um dono de salina da regio, em uma noite, ia em alta velocidade em seu carro e sem querer acabou atropelando uma pobre velhinha. Desde o ocorrido, comeou a aparecer no local do acidente o reflexo de um carro, que era provavelmente o que tinha atropelado a velha. Quando as pessoas viam este reflexo de longe, exclamavam assustadas e admiradas: - Olha o fogo da velha! Diziam que s aparecia noite e que s se podia ver um claro, como se fossem faris de um carro, no se ouvia barulho de carro, nem nada... S viam o suposto fogo da velha.

A Lenda do Lobisomem Conta-se que o stimo filho de um casal j nascia predestinado a ser um lobisomem. Com esta afirmao, surgem vrias descries de como um lobisomem. Aqui em Curral Velho, dizem que os 15

lobisomens costumam correr com os cotovelos, da o homem que tiver os cotovelos grossos e com calos com certeza um lobisomem. Para virar lobisomem um homem vai a um campo aberto, perto de onde ficam os animais, tira suas roupas, e comea a rolar pelo cho. Da surge plos, suas orelhas e unhas crescem e pronto, sai por a procura de presa, de preferncia galinhas. Geralmente os homens que viram lobisomens so magros, plidos, peludos e parecem fracos. Mas quando viram lobisomens possuem uma grande fora. Isso pode acontecer raramente durante o dia. Nas noites de lua cheia bem mais provvel de se encontrar um lobisomem.

A Lenda do Caixo Nas noites de lua cheia costumava aparecer nas ruas da comunidade um enorme e misterioso caixo preto. Muitos moradores de Curral Velho j o viram. Dizem que vo andando tranquilamente quando de repente, do nada, o caixo aparece. Se estiver mais de uma pessoa no local da apario, apenas uma consegue v-lo. As outras pessoas passam por cima e no enxergam. Quem v logo se assusta e procura desviar imediatamente do caixo. Dizem que se clarear com a lanterna, no d para ver o caixo. Por termos vrios relatos de sua apario a Lenda do Caixo um dos grandes mistrios do Curral Velho.

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4. Lugares de Memrias lugares de memria so locais importantes para a histria da comunidade do Curral Velho. Esta equipe realizou um inventrio da memria presente em locais importantes para a histria local, pesquisando e registrando as histrias, como o Centro de Educao Ambiental e Turismo Comunitrio Encante do Mangue, a igreja, a Gamboa do Paraso, entre outros. Ouvimos os moradores mais antigos, escrevemos as histrias de cada lugar e os registramos atravs de fotos, para que assim todos pudessem conhecer os lugares que contam a histria da comunidade.

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Cemitrio do CidrocaUm grupo de pescadores da comunidade saiu para pescar e encontrou um corpo flutuando no mar e o levaram para o porto. L chegando os moradores no o reconheceram e nem sabiam de onde era. Resolveram dar-lhe o nome de Cidroca e o enterraram numa ilha. A partir de ento os moradores da comunidade transformaram a ilha num cemitrio que, por conta desta histria, ficou conhecido por Cemitrio do Cidroca. Isso aconteceu h mais de vinte e cinco anos atrs. A criao do Cemitrio do Cidroca beneficiou toda comunidade, pois naquela poca no havia carros para levar os finados at o cemitrio e o mais prximo localizava-se em Acara, um percurso muito longo e cansativo, cerca de sete a oito quilmetros de distncia. Neste tempo, os finados eram levados numa rede, suspensa por uma vara de madeira, carregada por vrios homens a p, at o cemitrio de Acara. Com o avano da mar, as casas da comunidade recuaram para o local onde hoje est a comunidade. O cemitrio no est sendo mais utilizado, mas um importante lugar de memria, pois ainda h vrios parentes e amigos de toda a comunidade l enterrados. 17

Centro de Educao Ambiental e Turismo Comunitrio Encante do MangueOs carcinicultores queriam construir grandes tanques para criar camares em cativeiro. Com essas construes, os empresrios iam impedir a passagem de pescadores, tanto para o porto de Imburana quanto para as gamboas e manguezais que so as maiores riquezas da comunidade. O objetivo dos carcinicultores era destruir todas as vilas de casas para que em seus lugares fossem construdos viveiros para criao de camaro. Diante disso, a comunidade decidiu se mobilizar e mostrar para estes empresrios que na comunidade de Curral Velho existe uma grande resistncia contra a carcinicultura, que uma atividade destruidora e poluidora do ecossistema manguezal. Decidiram, ento, ocupar o territrio antes dos carcinicultores. Tiveram, ento, idia de construir um espao onde pudessem se reunir, se encontrar e desenvolver projetos que levassem em considerao os modos de vida e a convivncia com o manguezal, sem destru-lo e ao mesmo tempo demarcasse o territrio tradicional da comunidade, que um espao livre e preservado. Desta idia surgiu o Centro de Educao Ambiental e Turismo Comunitrio Encante do Mangue, construdo no dia 07 de setembro de 2007 com o objetivo de proteger toda a rea de apicum e manguezais, bem como garantir a sobrevivncia e a liberdade do povo da comunidade. Com a mobilizao comunitria e a construo do Centro conseguiram impedir a destruio das casas e da fonte de vida da comunidade: o manguezal. Hoje, o lugar tem diversas funes e simboliza a fora da organizao comunitria, nos servindo como local para realizao de diversas atividades, como reunies, noites culturais, capacitaes diversas, aulas de preservao ambiental, audincias pblicas; alm de atividades ligadas ao turismo comunitrio, a exemplo da hospedagem de visitantes e da oferta de refeies.

Gamboa do ParasoAntigamente, a Gamboa do Paraso era um lugar de lazer, nos finais de 18

semana e feriados as pessoas se juntavam l para se divertir. Com muita alegria tomavam banho e desfrutavam das belezas, das riquezas naturais e dos produtos alimentares que existiam l, como: peixe, ostra, siri, caranguejo, Maria-farinha (aratum), bzio, entre outros mariscos. por isso que ela recebeu o nome de Gamboa do Paraso, justamente por todas as suas diversas belezas e riquezas. Isso deixava os moradores muito felizes, porque podiam percorrer toda aquela rea sem correr nenhum risco de vida. A gua no era poluda. Hoje, com o avano das mars e as transformaes no mangue, a Gamboa do Paraso virou uma boa lembrana daquilo que existiu. Hoje no resta mais nada, s o deserto.

Igreja Nossa Senhora dos NavegantesAntes da construo da igreja a comunidade fazia suas celebraes num prdio escolar. Foi ento que surgiu a idia de construir uma capela para que todos se reunirem e realizarem suas celebraes e oraes. Coletivamente decidiram colocar o nome da igreja de Nossa Senhora dos Navegantes, em homenagem a padroeira dos pescadores. A Igreja Nossa Senhora dos Navegantes foi construda em junho de 2002. Desde ento os moradores se renem constantemente no lugar, em atividades de celebrao, grupo de orao, grupo de intercesso, tero dos homens e grupo de jovens. De vez enquanto os padres celebram as missas.

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5. Saberes e Modos de Fazers saberes e modos de fazer da comunidade so os conhecimentos tradicionais que os moradores possuem para a construo de produtos e objetos, feitos de forma artesanal. A equipe responsvel pela temtica realizou um mapeamento destes saberes presentes no Curral Velho. Dentre os modos de fazer mapeados, destacamos: as tcnicas para a construo dos currais de pesca e das casas de taipa, a arte de pescar, o artesanato em palha e renda, a culinria (comidas como grolado e piro de peixe), o ofcio das marisqueiras e dos pescadores, os saberes necessrios para preparao da farinhada e o modo de fazer o mocoror, bebida tradicional de Curral Velho os dois ltimos heranas do modo de vida e da cultura dos povos indgenas. Esta pesquisa sobre os saberes e os modos de fazer aconteceu atravs da busca de depoimentos, fotografias e registros. Sabemos que todos esses conhecimentos vm sendo passados de gerao a gerao, mas alguns deles aos poucos esto se perdendo. Ento, o trabalho do grupo que participou do curso Historiando Curral Velho vai ficar na memria, registrando para as geraes futuras de Curral Velho os saberes hoje presentes na comunidade.

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ManzuO manzu outro tipo de armadilha para pescar muito usada para pegar o peixe e a lagosta. Eles so feitos com madeiras finas e arame. So colocados no mar, em lugares determinados. A despesca, que o recolhimento dos peixes capturados, feita de trs em trs dias, em mdia. Jos Expedito disse que ainda se usa muito essa atividade de pesca em Curral Velho .

Casa de TaipaA casa de taipa um tipo de moradia muito conhecida nas pequenas comunidades no interior do Cear. Elas so construdas com forquilhas, 20

varas, palhas e barro (argila). Manoel Graas um dos construtores mais solicitados pelas pessoas que querem construir casas. Ele nos informou que a casa de taipa tem que ser toda medida de acordo com o gosto do dono. Diz tambm que essa atividade hoje no muito exercida porque as pessoas esto derrubando as casas de taipa, substituindo-as por casas de tijolos. Aos poucos essas moradias esto se acabando.

Artesanato de palha de CarnabaO artesanato em palha era uma das atividades mais praticadas pelas mulheres de antigamente no Curral Velho. Elas pegavam o olho da palha verde e colocavam expostos ao sol para secar. Depois de secas, eram feitas tranas para produzir bolsas, chapus, esteiras, urus, sacas e etc. Dona Mundeca era uma das mulheres que praticavam essa atividade como forma de ganhar dinheiro. Ela diz que esse trabalho hoje est sendo bem menos praticado por causa das derrubadas das carnaubeiras (para a construo de viveiros de camaro) e das cercas colocadas pelos carcinicultores. Entretanto este trabalho resiste, ainda sendo praticado por algumas pessoas da comunidade.

Renda de BilrosA renda de bilros um tipo de artesanato muito praticado em Curral velho e em toda a regio. feito sob uma almofada, onde se constri a renda. As rendeiras usam papelo (que funciona como uma espcie de frma para a produo da renda), linha, espinhos e bilros. Dona Margarida uma das rendeiras da comunidade, ela diz que antigamente a renda era um dos principais meios de sobrevivncia do Curral Velho, porque o dinheiro era usado para os gastos domsticos familiares. Hoje esta atividade est sendo menos praticada porque se leva muito tempo para se produzir uma pea de renda, e nem sempre o que ganha com a venda cobre os custos do trabalho; por isso as pessoas preferem fazer outras atividades.

GroladosO grolado um tipo de comida muito apreciada em Curral Velho. Ele uma espcie de farofa de tapioca usada para comer com peixe nas noites ao 21

redor das fogueiras. feito utilizando coco ralado, goma de mandioca, sal e gua. Para seu preparo se mistura os ingredientes e vai molhando com gua aos poucos. No pode deixar a mistura ficar muito molhada. Depois pe a assadeira para esquentar por dois minutos e em seguida coloca-se a goma, misturando e mexendo por cerca de um minuto. E o grolado est pronto para comer.

Piro de PeixeO piro de peixe outro tipo de comida muito conhecida em Curral Velho. Antigamente, as famlias formavam um crculo e colocavam o caldo do peixe em cada prato, seguido da farinha. Com a juno dos dois, se formava o piro e as pessoas iam saborear aquele prato delicioso. Para seu preparo o peixe levado ao fogo com verduras, gua e sal e quando estiver fervendo, est pronto para fazer o piro.

Sopa de BziosA sopa de bzios tambm um dos pratos mais comuns em Curral Velho, a partir da coleta de bzios nas areias da praia e prximo ao mangue, atividade que garante a alimentao das famlias que retiram este sustento da natureza. As cozinheiras sempre fazem esse prato para os visitantes, sendo sempre aprovado. Para sua preparao os ingredientes usados so: bzio, leite de coco, verduras, sal, arroz e azeite. Ferve-se o bzio por trs minutos, para tirar seu amargo. Depois coloca-se em uma panela todos os ingredientes e leva-se ao fogo para cozinhar por 30 minutos e bzio est pronto. O arroz que acompanha este prato cozido parte.

Rede de PescaA rede uma das principais formas de se pescar no Curral Velho, sendo usada tanto em alto mar como em guas rasas. Elas so abertas e colocadas em fileiras. Depois de algumas horas, os pescadores comeam a puxar as redes para recolher os peixes que ficaram presos nela. Existem muitas pessoas que constroem redes de pesca na comunidade. Para fazer a rede, esticam-se duas linhas com bias (a espessura varia de acordo com o tipo de 22

pescaria realizada pelo dono). Se pega a 'panagem' com uma agulha com nilion e comea a entrelaar a rede. Depois de entrelaadas elas so chumbadas e levadas ao mar.

Curral de Peixe justamente este tipo de armadilha de pesca que d o nome de nossa comunidade, sendo muito usada pelos pescadores para pegar o peixe. Ele construdo com madeira alta, nilon e arame torcido. Joo Honrio, que construiu curral de peixe por muitos anos, nos informou que os currais eram uma forma de se ganhar dinheiro, porque antigamente existia uma fartura muito grande de peixes. Hoje essa atividade ainda praticada na comunidade, ainda que no se tenha mais tanta fartura de pescado. O nome curral, que deu origem a nossa comunidade (Curral Velho), vem sendo substitudo pelo nome Gamboa, por algumas pessoas, que no possuem conhecimento de seu valor histrico. Gamboa um tipo de curral menor, colocado em guas mais rasas. As partes do curral so:

Espia: fila de paus fincadas, traadas com cip e varas. Sala Grande: formato de um cercado grande. Salinha: cercado menor que a sala grande. Chiqueirinho Grande: outro tipo de cercado. Chiqueirinho Falso: o menor cercado do curral, onde fica a maioria dos peixes que ficam no curral.

FarinhadaA farinhada uma atividade, ainda hoje, muito conhecida e praticada em nossa comunidade. As famlias se renem na casa de farinha. l que se produz a farinha de mandioca e seus derivados, como a tapioca, a goma, o beiju, o leno e a borra. Inicia-se o processo com a arranca da mandioca nas capoeiras ou roados. Depois de colhida ela transportada em caoas, no lombo de animais, at o local onde ser feita a sua raspagem. Depois de raspada a mandioca colocada no serrador para ser moda e inicia-se o processo de 23

escoao, na qual a massa colocada dentro de uma giranda espcie de peneira que separa o lquido da massa. O lquido colocado dentro de um grande tanque para dar origem a goma e a borra. J a massa colocada numa prensa para secar. Depois de prensada, a massa peneirada e levada a uma grande fornalha, mais conhecida por forno, para ser mexida pelo forneiro at dar o ponto, em outras palavras, transforma-se em farinha. A goma, depois de apurada, lavada junto com a borra. Elas so levadas ao sol para secar. Depois de seca peneirada e levada ao forno para se produzir a tapioca e o beiju. O restante torrado para o consumo ou comercializao.

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6. Msica e Literatura de CordelMsicas

Filhos daquiO litoral ainda ontem era tranquilo O manguezal era lindo de se ver Dentro do mangue existiam muitas gamboas Onde meu pai pescava pra gente comer L no salgado onde hoje viveiro Havia ilhas com grandes carnaubais Onde mulheres acordavam bem cedinho Pra tirar palha e espinho pra fazer artesanato E hoje vejo quase tudo desmatado O mangue amarelado grande a destruio Sinceramente hoje eu choro de tristeza De ver tantos forasteiros destruindo a regio Somos filhos daqui, Se no tomarem providncias no temos pra onde ir Com a ajuda de Deus Todos esses forasteiros Vamos retirar daqui.

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Um pouco de nossa histriaVamos contar um pouco de nossa histria Que iniciou em noventa e nove A nossa luta se iniciou assim Contra carcinicultura Trazendo tudo o que de ruim E o nosso povo que queriam expulsar Resolveram entrar na luta Para essa rea preservar Com unio o povo se mobilizou Com faco, machado e foice O povo se preparou Cortaram arame, Estacas tocaram fogo E o empresrio dizia: Esse povo est louco! E foi assim que conseguimos barrar A tal carcinicultura Aqui do nosso lugar E foi assim que conseguimos evitar Que cortassem todo mangue Aqui do nosso lugar.

Literatura de CordelDurante a coleta de objetos descobrimos que o senhor Manuel Honrio possua uma coleo de folhetos de literatura de cordel, junto aos outros objetos que vinha juntando e cuidando h um bom tempo. Os mais antigos cordis datam da dcada de 1950, de ttulos, autores e editores clssicos. Entre os ttulos, histrias como As proezas de Joo Grilo (Joo Martins de Athayde); A histria completa da donzela Teodora e Branca de neve e o soldado guerreiro (Leandro Gomes de Barros); Uma queixa de Satans a Cristo (Jos Faustino); A propaganda do matuto com um balaio de maxixe 26

(Jos Pacheco); Histria de D. Genevra (Jos Bernardo da Silva). A existncia desta coleo em Curral Velho demonstra a grande circularidade que estes folhetos tiveram no interior do Cear e, aliadas aos vrios depoimentos dos guardies da memria, do-nos indcios para imaginar as prticas de leitura e contao de estrias que embalavam as noites de lua cheia ao redor das fogueiras no Curral Velho de antigamente. Alm desta coleo j existente, tomamos conhecimento que a literatura de cordel tambm praticada no Curral Velho dos dias atuais. Foi assim que publicamos dois ttulos: As dramistas do Curral Velho, de Maria do Livramento (Mentinha), e Histria de Curral Velho, de Jos dson, lanados durante a programao de abertura da exposio Historiando Curral Velho, realizada no dia 13 de dezembro de 2009, no Centro de Educao Ambiental e Turismo Comunitrio Encante do Mangue. Na produo literria mais recente, a pescadora Maria do Livramento Santos, que mais conhecida como Mentinha, fez vrios cordis que contam mais um pouco da histria do lugar e da luta da comunidade. So outros versos que poetizam a existncia e os modos de viver e lutar do povo de Curral Velho. (Maria do Livramento Santos Mentinha) Curral Velho o meu lugar No havia privatizao Onde nasci e me criei Ningum no tinha pressa Onde tantas vezes na areia branca Para procurar alimentao De cozinha eu brinquei Recebamos nosso irmo Meus pais me contavam histrias Que vinha da cidade ou do serto Por elas me apaixonei Curral Velho pequeno Eles contavam que Curral Velho Mas impressionante Era bem apreciado Sua estrutura bem simples Onde havia tantas farturas De quase quatro mil habitantes Da agricultura e do pescado Existe seus altos e baixos Eram as nicas sobrevivncias Mas perseverante Mas vivamos sossegados Nessa poca no existia Todos tinham liberdade Nenhuma empresa por sinal 27

Curral Velho Antes e Hoje

S havia duas salinas Onde se fazia sal Ela nunca nos prejudicou E nem tampouco nos fez mal Havia manguezais Verdes e produtivos Ilhas e Gamboas Com produtos bem sadios Com a criao de camaro Poluram nossos rios Ainda temos a nossa praia Uma das mais ricas da regio Um porto de muita freqncia Com vrias embarcaes Hoje se encontra sem nada Por causa da criao de camaro Enfrentou muitos perigos A nossa comunidade No do nosso povo no Pois no havia necessidade Foram dspotas gananciosos, idiotas, irresponsveis. Fomos bastante ameaados No sabamos o que fazer S andvamos angustiados No tnhamos prazer de viver Mas nunca se acovardamos Enfrentamos a luta pra valer Foram noites mal dormidas Lgrimas que eu nunca chorei Palavra que vinham na boca Que eu nunca pronunciei Coragem que no existia Mas na luta eu encontrei Tive medo de enfrentar a luta Em defesa do manguezal 28

Mas se eu fosse deixar para l Isso ia me fazer mal Foi encarando os perigos Que adquirimos o centro De educao ambiental Eu nunca me conformei Com essa situao Ainda fico inquieta Ao ver a destruio Quase tudo foi tomado Pela criao de camaro No gosto de me agarrar Nos momentos mal vividos Desde o ano de noventa e nove At o ano de dois mil e cinco Quando lembro do que passamos Mais angustiada me sinto O bom nessa histria De tudo que aconteceu Foram as fortes emoes Mas ningum matou nem morreu Desde o comeo da luta O Senhor nos protegeu. Em nome da associao De marisqueiras e pescadores Eu quero parabenizar Todos nossos assessores Que nos deram toda assistncia foram bons educadores Estou falando do CAT Terramar e CPP E da boa participao Da famosa UFC E aos demais companheiros Queremos agradecer.

(Maria do Livramento Santos Mentinha) Ostras marinhas bem conheo, Produtos valorizados Que sabe o que ostras Entende de pescados Elas nascem nas razes, Dos mangues preservados. Conheo esse produto Como palma da minha mo Me alimento bastante dela, Protege at pulmo Coma bem ostras marinhas Alimente-se meu irmo! Quem no conhece as ostras Procura conhecer Veja quanto vale a pena Este marisco permanecer Nos manguezais ou cultivos Para alimentar voc Conheo companheiros Com a chuteira pendurada Uma feita convidei Para uma boa mariscada L eles deram de cara Com as famosas ostras assadas Cozida tambm boa Com limo cachaa e sal Encoraja voc Levanta o seu astral S porque so geradas Pela fora natural O p de suas cascas Cura at enfermidades Alguns as utilizam Fazendo artesanatos Outros por no conhecer Jogam produto no mato O caldo dela serve Para curar tuberculose Tem pessoas que no acreditam Do que elas so capazes Seu sabor diferente Dos produtos artificiais Seu fil vale a pena Voc saborear Quanto mais voc come Mais sade ele d Fortalece seu potencial Quem for solteiro quer casar Ostra coisa boa Acredite meu irmo Ajuda voc na sade Faz bem ao corao Quem sabe elas fazem Voc fabricar cristo Ostras, amecha, sarnabi E outros demais mariscos Quem criar em cativeiro Voc tambm corre o risco No utilize produtos qumicos E fique distante do lixo Tenho certeza companheiro Que voc no se d mal Queira conhecer melhor 29

Ostras

O que h no manguezal Seus produtos tem protenas Pois eles so naturais s vezes a medicina Do coitado no tem d No cura a doena dele Pobre sofre que s Fica logo no fundo da rede Pensando no pior Quero dizer amigos Que tem algo bem melhor Estou falando de ostras marinhas Gostosa como ela s Experimente esse produto Voc dana at forr Quem come ostra no enjoa Pois no tem como enjoar A bicha gostosa Venha dela experimentar Conhea ostras marinhas Do meu querido Cear Ostras tambm faz sucesso Voc pode acreditar At porque um produto Que tem proteo do mar

Vamos preservar essa espcie Pois o homem quer acabar Aos criadores de ostras Quero mandar meu recado Vamos juntos preservar o mangue No deixando virar roado Por causa da carcinicultura Nossos produtos esto acabados Espcies como ostras Sarnanbi e sururu Essas ainda existem Difcil pra xuxu Lutamos fortemente Cear, Bahia e Rio Grande do Sul Se voc quiser saber Do que as ostras so capazes Conhea Curral Velho Eu te ensino muito mais Mostramos os esturios dos nossos manguezais Aqui termino esse poema Pedindo carecidamente Vamos preservar a zona costeira Pois tambm meio ambiente Se no tem mais ostras Para alimentar nossa gente.

(Maria do Livramento Santos Mentinha) Colegas pescadoras Do nosso Brasil amado Voc que pesca mariscos No vamos desanimar Vamos estar sempre de olho Nesses produtos do mar Sabes porque amiguinhas Que falo dessa maneira que o problema serssimo E no de brincadeira Vamos preservar nossos produtos Pois somos ns as marisqueiras

Poema das Pescadoras

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Nas noites enluaradas H no meio das Gamboas Mulheres experientes pegam Logo sua canoa Lanam sua redinha Eta que mulher garoa Mulheres inteligentes Que se oponham na guerra Essas defendem os mariscos E os animais da terra Elas no perdem por esperar A vitria dessa guerra. Eu lembro muitas vezes Eu saio pra pescar O sururu, o aratum E o caranguejo u A ostra nem se fala Essa boa pra dan No esturio manguezal Existem espcies fascinantes Conheo todas de perto No esqueo um s instante Fico triste de saber Que o homem destri a cada instante Os mariscos no se encontram A pelas caladas Eles nascem da lama negra Recebe acesso da gua salgada Gerado da natureza Que Deus d e nunca se acaba Se algum dia os ecossistemas Forem destrudos por inteiro Da quero ver o homem

Comer bem e respirar dinheiro Depois sua vida tambm Entrar em desespero No caminho de mangues verdes Onde meus ps iam passando At hoje no passam mais Porque esto me vigiando to triste para mim Que fico quase chorando Os mariscos tem que viver Em lugar bem preservado Onde s passa a mar E no seja contaminado Onde no passa nem o cheiro Do tal camaro clonado Aos navegantes da vida Que encaram a verdade Sem os peixes em extino Com todos na liberdade Mantendo os ecossistemas Sem nenhuma perversidade Por culpa do tal homem No podemos mais pescar Nem nos rios de gua doce Tambm dentro do mar No existe mais nada O que vamos fazer l? Espero terem gostado Desse pequeno poema Em homenagem as pescadoras Acho que valeu a pena Seria bem que ns nos encontrssemos Na Praia de Iracema. 31

(Maria do Livramento Santos Mentinha) Aos seis anos de idade Conheci os manguezais Seu verde maravilhoso Produtivo por demais Deixei rastros de lama E no esqueo jamais Deixando rastros de lama Eu pegava o caranguejo Gritava pela colega Cad tu que no te vejo Ela respondia bem pertinho Tambm peguei caranguejo Pescvamos seus produtos Na maior satisfao As reas verdes manguezais Nos chamavam a ateno Hoje esto sofrendo Com a tal devastao H cinco anos atrs Eu defendo os manguezais Conheo sua importncia Isso tudo me atrai Deixei rastros na lama Andando nos manguezais Sou f dos manguezais E de tudo que nele h Conheo sua beleza Por ele vou lutar Deixando rastros na lama Nos manguezais do Cear A praia que no tem mangue No tem animao 32 No produz e no tem nada Causa at furaco Bom quando tem mangue Fazendo sua proteo As quatro espcies de manguezais So todas impressionantes Com caule, sombras e frutos Seus esturios excelentes Deixando rastros de lama Defendendo nesse ambiente Em todo o litoral Onde existem os manguezais Pescadores e suas crianas Todos vivem a vontade Por saberem que sua proteo uma cultura de verdade Os bosques de manguezais So feitos por natureza Seus produtos so valiosos Isso digo com firmeza Deixei rastro de lama Contemplando sua beleza Por causa da queimao Que houve nos manguezais At Gamboas subterram E no enchem jamais Sumiram at os peixinhos Que davam nos currais Rastros na lama eu sempre deixo Quando no mangue vou entrar Ligeiramente eu me lembro

Rastros na Lama do Manguezal

Qual espcie eu vou pescar Ser que ostra, sururu Ou caranguejo u? S que essas espcies Muitas delas se acabaram Sofreram grandes ameaas De fogo e maquinrio Ento os bichinhos sumiram Do seu lindo esturio O manguezal uma rvore Muito bela e cheirosa Mas instalou-se dentro dele Uma atividade escandalosa Estou falando da carcinicultura Essa coisa ridcula e sebosa Ainda sinto falta Dos meus rastros de lama Aquela coisa negra Que muitos a difamam Essa tambm foi revirada Pelos que no a amam Tudo isso faz parte Do ecossistema manguezal Essa floresta maravilhosa Que vive no litoral Mas tudo est se acabando

Por causa do capital Muitos Estados se manifestaram Na luta pelo manguezal Mas com licena do Cear Esse sim deu de pau Em cima dos carcinicultores Que invadiu seu litoral O Brasil tem muito a aprender Sobre o valor desse ecossistema Se para o governo no vale nada Pra nos pescadores vale a pena Espero que SEMACE e IBAMA No licencie mais e aprenda Eu nunca vou me calar Diante da injustia Pode ir para l, pode vir para c Pois eu no tenho preguia Se a coisa no se ajeitar Em nosso pas no tem justia Para defender os manguezais No importa onde estou Ou que seja no Brasil Ou at mesmo no exterior Defendo do mesmo jeito Pois por ele tenho amor.

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7. Guardies da Memriaurante nossa pesquisa realizamos um mapeamento dos mais antigos moradores do Curral Velho. Divididos em duplas, coletamos os depoimentos sobre suas vidas e os registramos. Seguem os relatos de histrias de vida destes guardies da memria local, pessoas importantes para a construo e preservao da histria, da memria e do patrimnio cultural da comunidade.

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Assis HonrioMeu nome Francisco de Assis Honrio, nasci no dia 20 de maro de 1934, em Curral Velho. Na minha famlia eu conto dezoito pessoas comigo. Pesquei durante toda a minha vida, mas tambm exerci outras atividades como carpintaria e agricultura, que aprendi com meu pai, indo trabalhar com ele. A pesca e a agricultura eram as nossas fontes de renda, antigamente. O Curral Velho de hoje mudou muito. Antes a gua era de poos e cacimbas e hoje j temos gua encanada. As casas eram iluminadas a luz da lamparina e agora utilizamos energia eltrica. Mudaram os transportes, mudou tudo... Antigamente eu gostava muito do jogo de futebol que acontecia no campo durante as tardes, at quase escurecer. Outra diverso eram as festas que aconteciam todos os sbados, em lugares variados. Tinha festa no salo do finado Joo Rocha, no Curral Velho de Baixo, no prdio da escola, outras aconteciam nas casas de pessoas da comunidade. Neste tempo as festas tinham de tudo: dramas, sanfoneiros... Lembro que eu dancei muito... As primeiras escolas funcionavam nas casas de pessoas da comunidade, como na do finado Sales. As primeiras professoras que eu lembro foram a Dona Mariquinha, a Maria Amlia, a Dona Nica. Mas a minha primeira professora foi Dona Diomar. Eu eduquei meus filhos levando eles para trabalhar comigo. De toda a nossa histria, uma que mais me marcou foi a construo do 34

Centro Comunitrio. Foi uma novidade boa que antes no tinha e trouxe muitas pessoas que hoje ajudam a comunidade. O que mais me orgulha em Curral Velho ter vencido a luta conta os carcinicultores. Antigamente se contavam muitas histrias, como a historia de Lampio, de Cames, de princesas, tantas que nem lembro. A pescaria de antes era melhor porque tinham mais peixes, eram 'canoadas' de peixes, hoje tem pouco. Ns devemos preservar a arte de pescar porque isso a nossa cultura, a nossa maneira de sobreviver.

Manuel HonrioMeu nome Manuel Honrio do Carmo, nasci em Curral Velho no dia 13 de novembro de 1945. Minha famlia composta de 13 pessoas. Pai, me e 11 irmos, sendo dois adotivos. Sempre trabalhei na agricultura plantando, batata, feijo, milho, coco, macaxeira; e na criao de animais, criando cabra, porco, galinha, gado. Aprendi estas atividades sendo incentivado pelos meus pais. O Curral Velho de antigamente tinha poucas casas, no era muito povoado. Desse tempo j foi quase tudo transformado. Os meios de transporte eram o cavalo e muitos andavam a p, hoje tem carros, motos, bicicletas. Antes a gua era de cacimbas e corrente; hoje gua encanada, que chegou atravs do projeto So Jos. A nica forma de comunicao que ns tnhamos eram as cartas. Nossas moradias eram casas de barro e palha. As pessoas cuidavam da sade curando suas doenas com remdios caseiros (remdios do mato). Em nossas festas havia sanfona, drama e cantoria. As festas aconteciam em Imburana (festa de dana, coroao), na casa da finada Mariazinha (festa religiosa, novena do ms de maio, corao), no Salo do Joo Roela (festa junina e Carnaval), nas residncias, de preferncia nas que tinham sala grande (o Drama). Nossas fontes de renda eram a pesca, principalmente quando dava uma boa safra de sardinha, venda de artesanato, renda de bico, farinhada (agricultura), salinas. Na nossa forma de pescar de hoje, quase nada mudou, ainda pescam de tarrafa, gerer, linha e rede. 35

Quando eu era criana a gente estudava, trabalhava na roa (ajudando nossos pais) e brincava a noitinha. As primeiras escolas funcionavam nas casas dos professores. Os primeiros professores foram Dada, Joo Luiz, Maria Augusta, Mariquinha Monteiro, Dona Dica. Como no havia igreja, as pessoas se reuniam nas casas dos moradores para realizarem novenas e missas. Entre os fatos que mais me marcaram est a Ponte da Imburana, trazida por meio do Sr. Manoel Thiago por causa da seca, para dar emprego ao povo; e a construo da 'sede', o Centro de Educao Ambiental e Turismo Comunitrio Encante do Mangue, com o objetivo de combater a carcinicultura. Hoje sinto saudades dos meus pais e irmos. Das fogueiras compridas e enfeitadas de fita. Dos homens de camisa de chita, danando o So Joo da roa. Eu guardo os objetos antigos porque no gosto de v-los destrudos. Acredito que eles tm um grande valor, pois quando a gente v os objetos se lembra de coisas acontecidas em outros tempos, de pessoas queridas como nossos pais, tios e amigos que hoje no se encontram mais em nosso meio. Por meio desses objetos acabo mostrando como o povo vivia antigamente. No gosto muito de mostrar o que guardo, porque o povo fica me chateando e mangando desse meu costume de colecionar coisas antigas. Eu gostaria de deixar esses objetos para algum que d continuidade a essa histria. Eu morrendo, quem ficar que deve tomar conta.

Dona EulinaMeu nome Eulina Maria da Silva, nasci no dia 8 de outubro de 1923, tenho 89 anos, moro em Curral Velho com minha famlia, composta por dez pessoas. Antigamente, eu trabalhava fazendo dramas e 'torceira' de palha. Aprendi a fazer drama com 13 anos de idade, com a minha me, Dona Altina. Ns amos de jumento ou de cavalo para fazer o drama. Lembro que o drama foi trazido para o Curral Velho atravs da Maria Ofila, de Acara. Na poca de comemorar os santos as pessoas faziam fogueira e ficavam ao redor dela assando peixe, carne e jerimum. A gente se animava com as novenas, os dramas e os reisados.

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Quando criana, ns brincvamos com bonecas feitas de sabugo de milho, de esconde-esconde, de caiu-no-poo, de camaleo etc. Nossa gua era de cacimba e a luz de lamparina. Quando algum adoecia era levado deitado numa rede para o hospital na cidade do Acara. Para nos comunicarmos, s indo at a casa da pessoa para dar o recado. Neste tempo, Curral Velho era muito bom, pois havia muita fartura de peixe, siri e de vrias outras coisas. O Curral Velho era muito animado, todas as pessoas comemoravam as festas com tranqilidade e sem brigas.

Dona LibradaMeu nome Librada Miranda Honrio, nasci em 14 de junho de 1939 em Curral Velho. Minha famlia, que era composta de doze pessoas, hoje s possui trs. Eu era artes, dramista e rezadeira. Aprendi a rezar com um homem de 90 anos. Antigamente, eu vendia renda em Fortaleza. No existia nada no Curral Velho 'de primeiro'. No tinha luz, gua encanada, mdico ou telefone. Para o Acara, o transporte era a p. Sempre se viveu em nossa comunidade da pesca, do artesanato e da agricultura. Divertamos-nos atravs de festas, dramas, bazar e reisado. As festas aconteciam no salo e na Imburana, que era a coroao. A comunidade foi sempre muito catlica. Entre os fatos que mais marcaram nossa comunidade, destaco a construo do Centro comunitrio, as brigas contra a carcinicultura e a Igreja. Antigamente, contavam-se muitas histrias de Trancoso e me lembro bem da histria do Saci-Perer, que aparecia no mangue para muita gente.

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Miguel BarbosaMeu nome Jos Miguel Barbosa e nasci em 26 de agosto de 1948. No nasci no Curral Velho, mas cheguei aqui h muito tempo, em 1962, em busca de melhores condies de vida. No Curral Velho de antigamente existiam poucas casas, era quase um deserto de gente, havia muito mato. O transporte era feito apenas no lombo de animais, tirvamos gua da cacimba, a luz vinha da lamparina, a comunicao era atravs de carta e a moradia de palha e taipa. Antigamente, ns nos divertamos atravs das novenas, do reisado, das quermesses, do Cassimiro, que era uma espcie de boneco etc. Quando eu era criana ouvia muitas histrias de lobisomem, bruxa, saci, mula-sem-cabea, contadas ao redor da fogueira pelos mais velhos. Sempre vivi de agricultura. Nossas fontes de renda sempre foram agricultura e pesca, mas antigamente tambm tinham as salinas. A pesca antiga era feita apenas nos currais de pesca. Eu tambm fao colorau, que aprendi olhando os outros fazerem. Primeiro se pega o urucum e tira todas as sementes. Coloca leo e farinha e se pisa no pilo. Depois coloca para secar e pe na embalagem para comercializao ou para o consumo prprio. A maior parte da comunidade era catlica e praticavam sua religio em casa mesmo, pois no havia igrejas ou templos religiosos. A luta contra os carcinicultores marcou muito a nossa histria, porque eles queriam destruir o mangue, de onde muitas pessoas tiram o seu sustento.

Afonso BernandoMeu nome Afonso Bernardo da Silva, nasci em Curral Velho no dia 15 de setembro de 1929 e minha famlia era composta por 8 pessoas. Sempre fui pescador e agricultor, mas, alm disso, eu colocava reisado, o que aprendi a fazer sozinho, observando os grupos que aqui passavam. As casas eram distantes uma das outras. Curral Velho mudou muito, os meios de transporte eram os animais e quem no tinha animais tinha que ir a 38

p. A gua era tirada de cacimbas, hoje a gua de boa qualidade. A iluminao era atravs de lamparina ou lampio, hoje temos energia. A sade era muito difcil porque as pessoas tinham que se deslocar at a cidade de Acara. Os meios de comunicao eram o rdio e a carta. Hoje, com os avanos as coisas se modificaram, sempre para melhor. A casas eram de palha e taipa, hoje a maioria de tijolos. A diverso era no Reisado, na cantoria, no drama, no samba e no futebol. Tinham muitas festas, que aconteciam nas casas das pessoas, festas religiosas (novena e as demais citadas). As atividades principais eram a pesca, a agricultura, mas tambm se fazia muito artesanato de palha da carnaba. Se antes as pessoas pegavam o peixe atravs de currais de vara, hoje utilizam arame e nilon. Os alunos aprendiam atravs de cartilhas do ABC e quem no soubesse a lio apanhava com um bolo. As escolas eram nas casas e as professoras antigas eram Maria Amlia, Mariquinha e Ducu. Praticava-se a religio catlica, mas somente nas casas das pessoas. As coisas que mais me lembro so as safras boas dos peixes de antigamente e os protestos em defesa dos manguezais. Das lendas da comunidade, falava-se muito do lobisomem e do fogo da velha. J botei muito reisado. Comecei a participar por curiosidade e para provar que eu tinha capacidade. O grupo de reisado era composto por seis pessoas. Os personagens do nosso reisado eram o cabea de fogo (cabur), o caador, o bode, a burra, o jumento e o boi. Uma apresentao durava cerca de oito horas, indo das 21 s 6:00hs da manh. Aconteciam as apresentaes nas casas das pessoas. Hoje, s vezes vejo o reisado na televiso e me d uma vontade de praticar novamente.

Raimunda Maria da SilvaMeu nome Raimunda Maria da Silva, tenho 76 anos, e nasci aqui mesmo no Curral Velho no dia 06 de janeiro de 1933. Trabalhei muitos anos da minha vida produzindo artesanato feito de palha de carnaba. Eu fazia chapus, bolsas, esteiras dentre outros produtos. 39

Mas com a chegada das fazendas de camaro os terrenos foram cercados e conseguir palhas para trabalhar ficou muito difcil. Antes no tinha cerca na comunidade e a gente podia andar a vontade e desfrutar de tudo o que a natureza nos ofertava. As principais fontes de renda da comunidade eram os roados, os currais de pesca, a salina e as farinhadas. No Curral Velho muitas coisas mudaram, aqui era muito pobre, no existia nada de estrutura. No existia telefone, gua encanada, luz e nem transporte. Se quisssemos ir at o Acara tnhamos que ir de p. Mas do que eu tenho mais saudade desse tempo da fartura dos alimentos, pois quando o assunto era comida, nada faltava... Era muita farinha, peixe e feijo. Aqui tambm era muito animado, o forr era muito diferente e nem se compara com o de hoje. Vinha tocador de fora para as festas que aconteciam no Curral Velho. Tinha, tambm, o reisado e o drama que eram muito divertidos. As festas aconteciam no salo e as coroaes na Imburana.

Raimunda JliaMeu nome Raimunda Jlia, nasci aqui mesmo no Curral Velho no dia 25 de agosto de 1926. Sempre trabalhei ajudando minha me em casa, nos afazeres domsticos. A vida aqui no Curral Velho est muito diferente. Antigamente existiam poucas casas e eram todas distantes umas das outras. O meio de transporte mais utilizado eram os animais e a maioria das pessoas andava a p para todo lado. Naquela poca, quem tinha um cavalo era como se tivesse uma moto nos dias de hoje. A gua utilizada nas casas era retirada de cacimbas e levada no lombo de animais. Quando as pessoas tinham alguma doena grave eram levadas para serem tratadas em Acara, pois no havia postos de sade nas proximidades. No havia energia eltrica e a iluminao era por meio da lamparina a gs. Quem no tinha dinheiro para comprar o gs esquentava a gordura da sardinha para fazer o combustvel. Hoje tudo isso melhorou. A forma de ensino era o chamado Mobral. As professoras ensinavam em 40

suas prprias casas e os alunos usavam canetas que no tinham tinta. Era preciso colocar a caneta dentro de um frasco com tinta para molhar a ponta para poder escrever. As primeiras professoras foram Ducu, Amlia e Dona Dica. O Curral Velho era a terra da fartura. Na grande safra era tanto peixe que s vezes tnhamos que jogar fora, pois as mulheres no davam conta de tratar. Os currais, que antes eram feitos de varas e cip, ficavam carregados de tanto peixe que dava. Hoje j no temos tanta pescaria e os currais so feitos de arames e nilon. O que eu tenho mais saudades daquele tempo antigo dos meus familiares e das diverses como o reisado, as cantorias, os dramas e o futebol. Algumas festas aconteciam na bodega do Senhor Crispim e vinha gente de tudo que era lugar...

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8. Sobre os autoresAlexandre Oliveira GomesPossui graduao em Histria pela Universidade Federal do Cear (UFC). Atualmente Mestrando do Programa de Ps-Graduao em Antropologia da Universidade Federal de Pernambuco (PPGA/UFPE), no qual desenvolve pesquisa sobre etnicidade, museus indgenas e colees etnogrficas no Cear. Esteve vinculado ao Museu do Cear entre 2001 e 2010, inicialmente como bolsista e posteriormente como pesquisador, gestor e tcnico do Sistema Estadual de Museus do Cear (SEM-CE). Tem experincia na rea de Histria e Patrimnio Cultural, com nfase em Histria e Antropologia indgena, atuando principalmente nos seguintes temas: histria e antropologia indgena no Cear, memria social, etnicidade, museus indgenas e comunitrios, polticas culturais, gesto museolgica, patrimnio e organizao/movimentos sociais.

Joo Paulo Vieira NetoPossui graduao em Histria pela Universidade Federal do Cear (UFC). Atualmente Mestrando em Patrimnio Cultural pelo Programa de Especializao em Patrimnio (PEP/IPHAN). Assessor do Instituto da Memria do Povo Cearense (IMOPEC) e atua nos seguintes temas: histria, patrimnio, cultura, memria, museus comunitrios, educao patrimonial, grupos tnicos e museologia.

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9. Fotografias

Foto: Arquivo Instituto Terramar

Foto: Arquivo Instituto Terramar

Foto: Camila Garcia

Foto: Arquivo Instituto Terramar

Foto: Arquivo Instituto Terramar

Foto: Camila Garcia

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