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    Este artigo ampliado foi feito em 2009 sob o âmbito de uma discussão informal comos (as) discentes (e militantes) do curso de História para os movimentos sociais docampo da UFPB, turma “Fidel Castro”. Trata-se de uma versão não publicada, por-tanto não citar. Comentários e críticas são bem-vindos.

    istória antiga e marxismo: considerações em tornode classe e luta de classes na Grécia antiga.Félix Jácome Neto ([email protected])

    Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos da Universidade de Coimbra

    Este texto busca tecer alguns comentários sobre a economia e a luta de classes na Gréciaclássica a partir de algumas hipóteses lançadas por Marx e Engels. O texto está dividido emtrês momentos: no primeiro tópico são recuperadas importantes orientações teórico-metodólogicas para o historiador da antiguidade advindas das reflexões de Marx e Engels emtorno das sociedades pré-capitalistas, com a preocupação de melhor relacionar marxismo eHistória antiga. No segundo tópico apresentamos algumas diferenças econômicas entre omodo de produção capitalista e a Grécia antiga, enquanto modo de produção pré-capitalista,que serão úteis para o debate central do texto. O terceiro tópico, dividido em três sub-tópicos,introduz a problemática acerca da configuração da luta de classes na Grécia, especialmenteem Atenas dos séculos V e IV a.C. Há, ainda, um anexo que contém algumas fontes primá-

    rias, quase todas da Grécia do período clássico, que ilustram certos pontos discutidos nodecorrer do texto e que devem ser lidas tão logo for solicitado no decorrer do artigo. A esco-lha das fontes é apenas ilustrativa já que o objetivo principal neste trabalho não é fazer umexame exaustivo das fontes, mas sim apresentar a problemática em torno de classe e luta declasse na Grécia antiga.

    1) Marx/Engels e as sociedades pré-capitalistas

    No Anti-Dühring, Engels, antes de rebater as afirmações de Dühring de que a proprieda-de privada era fruto de um ato de violência, sente a necessidade de lembrar que acerca de umestudo comparativo entre as sociedades pré-capitalistas e o capitalismo era Marx a grandereferência:

    Para levar até o fim esta crítica da economia burguesa, não era suficiente conhecer aforma capitalista de produção, de troca e de repartição. As formas que as precede-ram, ou que existem ainda ao lado delas nos países menos evoluídos, devem igual-mente ser estudadas, pelo menos nos seus traços essenciais, e servir de ponto decomparação. Um estudo e uma comparação deste tipo não foram feitos no conjuntoaté aqui senão por Marx, logo é às suas pesquisas que nós devemos portanto quaseexclusivamente isto que foi estabelecido até aqui sobre a economia teórica de antesda era burguesa. (Engels, 1968, p.183)

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    Interessante nesta passagem é também a sugestão de Engels de que foram necessários osestudos de Marx acerca das sociedades pré-capitalistas para completar a própria análise da

    sociedade capitalista. A leitura dos textos de Marx, a nosso ver, confirma esta afirmação deEngels. Marx estava preocupado em estabelecer uma crítica à economia política clássica e aofazer isto, erigir uma teorização sobre a economia política do modo de produção contemporâ-neo, modo-de-produção este assentado sobre a predominância do capital. Para isso, era fun-damental compreender a especificidade do capitalismo enquanto modo de produção, tarefaque só se completa quando se é capaz de diferenciar o capitalismo de outros modos de produ-ção e quando se consegue explicar o próprio nascimento do capitalismo do seio de outro

    modo de produção. Sobre isso é melhor deixarmos o próprio Marx expor qual foi seu intentoem abordar as sociedades pré-capitalistas:

    O que mais nos importa é que nosso método ponha em evidência os aspectos em queé preciso introduzir os fatos históricos e nos quais a economia burguesa [isto é, aeconomia sob a égide do capital], através do modo puramente histórico do seu pro-cesso de produção, se relaciona com os modos de produção anteriores (Marx, 1972b, p.332).

    Esse estudo das sociedades antigas não podia ser, para Marx, uma mera derivação deteorias gerais contemporâneas, sejam elas econômicas ou históricas. Ora, uma das batalhascentrais da vida intelectual de Marx e Engels foi justamente desmistificar a pretensa validade para qualquer época das conclusões e teorizações da economia política burguesa. Como notaMarx (1972b) os economistas burgueses “consideram o capital como uma forma de produçãoeterna e natural (e não histórica)”(p.332). O interesse da burguesia de naturalizar a economiacapitalista para toda a história da humanidade conduz a preocupação de Marx e Engels emhistoricizar o capitalismo, fazendo, nas palavras de Engels (1968), da economia política uma“ciência histórica” (p.180).

    Marx, em uma carta de novembro de 1877 endereçada a Mikhailovski, alerta sobre umuso pouco feliz que um estudioso poderia fazer de suas conclusões sobre o desenvolvimentohistórico da Europa ocidental:

    É-lhe preciso metamorfosear meu esquema histórico da gênese do capitalismo naEuropa ocidental em uma teoria histórico-filosófica da marcha geral, fatalmenteimposta a todos os povos, quaisquer que sejam as circunstâncias históricas em quese encontram (...) Mas eu lhe peço perdão. Isso me faz, ao mesmo tempo, muita hon-ra e muita vergonha. Peguemos um exemplo.

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    O exemplo que Marx discute diz respeito a uma parcela significativa de plebeus roma-nos que em uma certa altura do Império Romano perderam as terras que possuíam e, portanto, perderam os meios de produção e subsistência. Este fenômeno, todavia, não desencadeou a

    viragem do modo de produção escravista para o capitalismo, como veria a acontecer quando parcelas de camponeses na transição do feudalismo para o capitalismo perderam suas terras eforam para os centros urbamos vender sua força de trabalho para as nascentes fábricas. Moralda história: fenômenos históricos semelhantes, mesmo que advindos da infra-estrutura eco-nômica, não necessariamente geram transformações iguais, pelo óbvio motivo de que sãosociedades distintas, que reagem de forma diferente a impulsos sociais semelhantes.

    O objetivo de Marx é, portanto, mostrar que “o capitalismo é um produto da história, que

    foi precedido de outras formações econômicas e que está destinado a ceder eventualmente olugar a um outro sistema” (Meillassoux, 1977, p.319). Sendo assim, estas outras formaçõeseconômicas, salvo em algumas passagens, não são estudadas de maneira isolada. QuandoMarx e Engels falam sobre o mundo antigo é quase sempre para tornar mais claro suas expli-cações da sociedade contemporânea: é um método comparativo que ilumina tanto o presentequanto o passado.

    Há três trabalhos em que as observações dos fundadores do marxismo sobre o mundo

    antigo1

    são mais extensas e argumentadas. Trata-se de “A origem da propriedade privada, doEstado e da família” de 1884, autoria de Engels com a utilização de anotações Marx; a tese dedoutoramento do jovem Marx “A diferença entre as filosofias da natureza em Demócrito eEpicuro” (1840-41, publicada em 1927) e alguns capítulos do Grundisse (anotações pessoaisde Marx escritas entre 1857 e 1861 e publicadas apenas entre 1939 e 1941) que ficaramconhecidos como “Formações Econômicas Pré-Capitalistas”. O texto de Engels, bastanteinfluenciado pelos estudos de Lewis Morgan (1818-1881), estabelece um nexo bastante útil

    entre o surgimento do Estado, das classes sociais e do patriarcalismo do seio das sociedades“primitivas”. A tese de doutorado de Marx pode ser visto como um primeiro esboço do mate-rialismo enquanto filosofia – embora em linguagem claramente hegeliana- através da valori-zação da reflexão sobre a física e os átomos de Epicuro - filófoso grego do período helenísti-co. As “Formações Economicas Pré-Capitalistas”, por sua vez, discutem algumas formas de posse da terra em sociedades pré-capitalistas, como a propriedade tribal, a propriedade comu-nal de onde surge a propriedade privada que, de início, era uma forma anormal subordinada à

    1 Quando eu falar em mundo antigo, entenda-se as civilizações já detentoras de classe social e formas de Estado, tais comoGrécia, Roma e Egito antigo. Quando eu falar em mundo clássico, entenda-se apenas Grécia e Roma.

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    propriedade comunal mas que com o tempo tende a dissolver as próprias propriedades comu-nais em propriedades individuais.

    No Capital , há diversas observações de Marx sobre o mundo pré-capitalista, especial-

    mente Grécia, Roma e a Europa feudal. Por exemplo, na seção I do primeiro volume doCapi-tal , dedicada à mercadoria e ao dinheiro, quando Marx faz um histórico da forma mercadoriae da forma dinheiro e apresenta-nos suas gêneses com destaque para a função do “dinheiro”eda “mercadoria” em certas sociedades pré-capitalistas. Um dos objetivos para Marx procederdesta forma é sua tentativa de desnaturalizar o dinheiro e a mercadoria, mostrando que estestêm um certo desenvolvimento histórico e que a forma capital não é um dado natural e ineren-te a qualquer sociedade e em qualquer tempo, como supunha a economia política burguesa.

    Nesse sentido, a comparação com outras épocas históricas torna-se fundamental, complemen-ta a definição do dinheiro e da mercadoria.

    O prefácio à “Contribuição a Critica da Economia Politica” de 1859 contém o já tãodebatido “resumo” que Marx dá dos seus estudos até aquela data. Aí está a famosa frasesegundo a qual “a grande traços, os modos de produção asiáticos, antigos, feudal e burguêsmoderno podem ser qualificados de épocas progressivas da formação social econômica”(Marx,1972a p.5). Sobre esse passo, gostaria de tecer três comentários.

    Em primeiro lugar, é preciso reconhecer que este resumo de Marx é esquemático de umaforma que Marx não costumava ser. Mesmo em se tratando de um prefácio, as teses são ditasde forma excessivamente curta e direta. O grande problema é que este “resumo” apresentauma teorização sobre as transformações de uma formação social para outra em termos quaseexclusivamente estruturais por via de um eclipse da participação do sujeito nos processos detransformação social. Como observa Ste.Croix (1988) Marx “escreve às vezes como se oshomens estivessem governados por umas necessidades históricas situadas fora de seu contro-

    le”(p.42). Tais expressões são pouco siginicativas na obra de Marx e derivam, segundoSte.Croix (1988), “de uma concepção dos acontecimentos históricos em que se toma momen-taneamente como certeza um alto grau de probabilidade” (p.42). O mais comum em Marx eem Engels é o acento no papel ativo dos homens no processo histórico e isso vem a tona des-de os escritos de juventude de Marx e Engels, nos quais observamos uma crítica da concepçãode um agente fora da história que ditaria os feitos dos homens aos moldes hegelianos. Veja-mos um exemplo retirado do livro de Marx e Engels “A Sagrada Família” de 1845:

    A história não faz nada, “não possui uma riqueza imensa”, “não trava combates”! Éo homem, o homem real e vivo que faz tudo isso e realiza combates. Estamos segu-ros que não é a história que se serve dos homens como um meio para realizar seus próprios fins, como se fora uma personagem à parte” (Marx, 1971, p.111-12).

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    Essa autonomia da ação dos homens é, no entanto, limitada pelas condições objetivascom as quais lidam os homens e as mulheres. A resposta, portanto, sobre quem comanda o

    processo histórico e a sucessão das civilizações em Marx é-nos dada por uma dupla metodo-logia: de um lado, é preciso relacionar o autor no contexto de debates a que estava inserido,neste caso são as críticas às concepções idealistas da história que faziam os homens reféns de processos históricos que não participavam significativamente, de outro lado é necessárioabordar o pensamento do autor em questão no conjunto de sua obra e não apenas em passa-gens isoladas. Nesse sentido obras inteiras como o “18 Brumário de Luís Bonaparte” (escritoentre 1851 e 1852) evidenciam a construção da história pelos homens e o correlato espaço

    para o não determinado no devir histórico.Em segundo lugar, Marx fala em épocas progressivas do desenvolvimento histórico das

    formações sociais. Definitivamente, Marx não era simpático a uma visão abstrata do progres-so típica do Iluminismo, basta ver o tratamento que Marx dá ao direito burguês – exemplo de progresso para a burguesia- no texto “ A Questão Judaica ” de 1843. A tese de Marx e deEngels, talvez mais de Engels, era que o desenvolvimento das forças produtivas e das con-quistas civilizacionais na história da humanidade só foram possíveis quando destacou-se, na

    sociedade, uma classe dominante que apropriou-se do excedente produzido pelos trabalhado-res produtivos. Com este excedente e com o ócio típico de uma classe que não precisa viverdo trabalho, as classes dominantes de várias formações sociais puderam protagonizar o desen-volvimento das forças produtivas e o florescer de conquistas civilizacionais, sejam nas artes,nas ciências ou nas ideias. O progresso assim, tem um sentido irônico, na medida em que sóse realiza a partir da exploração dos trabalhadores produtivos.

    Terceira observação, mesmo que consideremos um teor evolucionista na ideia da suces-

    são dos modos de produção no Marx de 1859, essa passagem não quer dizer, como observaSofri (1974), que “a história de todos os povos passe necessariamente através de quatro fases(quatro e não mais ou menos) cada uma da qual saindo e se desenvolvendo do interior da pre-cedente”(p.52). Já vimos, na carta a Mikhailovski, o quanto Marx era averso a teorias abstra-tas e supra-históricas que definem de antemão o conteúdo e a transformação de uma épocahistórica.

    Para concluir este tópico, gostaria de lembrar que em 2005, o volume 20 da revista “His-tory in dispute”[História em disputa] foi dedicado à Antiguidade clássica através de temas queeram objetos de uma exposição a favor e outra contra por parte de especialistas. Um dos

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    temas era “The Marxist Approach: does Marxism remain a valid historical approach to theancient world?” [A abordagem marxista faz o marxismo permanecer uma abordagem históricaválida para o mundo antigo?]. A favor da validade do método marxista para a antiguidade

    dissertou Peter W.Rose da Universidade de Miami, enquanto Charles Platter da Universidadede Georgia dos Estados Unidos defendeu a resposta contrária.

    A meu ver, este debate é um exemplo de como não se deve discutir esta questão. O textode Peter Rose faz um bom levantamento da concepção marxiana da história, mas não mostraexemplos de como a explicação marxista contribui para elucidar aspectos do mundo antigo,antes contenta-se em enfatizar os êxitos do livro de Geoffrey de Ste.Croix (1988) que estuda omundo grego através do materialismo histórico.

    Não há dúvidas da capacidade do helenista Peter W. Rose articular teorias modernas,como o marxismo, e as fontes do mundo antigo2, mas ele optou por não fazer isto neste deba-te. Diante do contexto intelectual no mais das vezes hostil ao marxismo não é mais possívelresponder afirmativamente à questão levantada pela revista “History in debate” simplesmentecom uma demonstração do que é a teoria da história marxista, com o uso de algumas citaçõesde Marx e Engels, como se isso por si só provasse a validade do marxismo para os estudos domundo antigo. Como diz Maurice Godelier (1973):

    ...não basta constituir, nem receitar, um dicionário preciso de noções marxistas deforça produtiva, relação de produção, modo de produção, etc., para produzir umconhecimento científico daquele ou deste modo de produção” (p.48).

    Quanto ao ceticismo de Charles Platter em relação à validade do marxismo para a Histó-ria antiga...é difícil travar algum debate com alguém que reduz a análise marxista a uma“visão totalizante de um progresso inexorável” (p.36). Contudo, é digno de nota a tese centralsobre qual se apóia a resposta negativa de Platter, por ser um artíficio um tanto novo paradesqualificar a abordagem marxista da história clássica: simplesmente, diz Platter, o mundogreco-romano não nos legou fontes suficientes para que seja possível uma abordagem holísti-ca como a que o marxismo se prõpoe. Como as fontes históricas deixadas por gregos e roma-nos são poucas e fragmentadas – e essa é a segunda e última tese levantada por Platter contraa abordagem marxista do mundo antigo- embora imbuídas de uma visão aristocrática de for-ma geral, elas apenas permitem visões igualmente fragmentadas sobre a história, tal qual nosfornecem os estudos feministas e culturais contemporâneos. Imaginemos agora se todos for-mos fiéis ao raciocínio de Platter: o marxismo não seria válido para nenhuma época a não ser

    2 Basta ver o recente artigo de Peter Rose no compêndio sobre História Arcaica da Grécia organizado por Raauflaub e VanWees (2009) intitulado “class” [classes] onde Rose realiza uma feliz síntese da luta de classes no período arcaico demostran-do que as categorias marxistas são válidas para lidar com as fontes do período arcaico da Grécia.

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    para a história recente, única que não possuíria fontes escassas e fragmentadas. Algo talvez politicamente cômodo para o senhor Platter, porém cientificamente pobre, porque renuncia atornar o que é fragmentado mais intelígivel através do enquadramento das fontes fragmentá-

    rias com uma visão de conjunto daquilo que se sabe sobre o mundo clássico3 e sobre outrascivilizações.

    2) Algumas diferenças entre economia capitalista e a Grécia antiga enquanto eco-nomia pré-capitalista

    No Grundisse , na primeira seção do volume um doCapital (forma dinheiro e formamercadoria) e no capitulo XXIV doCapital (sobre a “acumulação originária de capital”)

    temos algumas pistas fundamentais sobre as diferenças entre a economia capitalista e as eco-nomias pré-capitalistas. NoGrundisse (1972b, p.334-37) por exemplo, Marx estabelece três pressupostos que devem estar juntos para serem condições necessárias do advento do modo de produção capitalista:

    a) Deve existir um conjunto amplo de trabalhadores separados das condições detrabalho e dos meios de subsistência.

    b) Deve existir entre as classes uma livre relação de troca-circulação monetária- baseada no valor, e não sobre uma relação de domínio e servidão; em outras palavras, é preciso que exista uma mediação entre os dois extremos. A produção não proporcionadiretamente os meios de subsistência aos produtores, sendo a troca o elemento interme-diário entre eles: como não é possível apoderar-se diretamente do trabalho do outro, é preciso comprar a força de trabalho do operário no processo de troca-circulação.

    c) A relação explorador-explorado deve assumir a forma-valor e ter por fim aautovalorização e o dinheiro (transformado em capital), e não o gozo imediato nem acriação de valores de uso.

    Essas são, portanto, condições necessárias para o estabelecimento do trabalho assalaria-do e do capital como relações sociais hegemônicas. Mas, o que elas nos dizem sobre a eco-nomia pré-capitalista e sobre a Grécia, em particular?

    3 Ste.Croix (1988), cuja própria obra funciona como um contra-argumento para tese de Platter, nota como são fragmentadasas fontes para o estudo dos séculos V e IV a.c, o que dificulta as generalizações, mas não as impede. Contudo “a excessivasimplificação constitui também um perigo omnipresente” (p.335-6).

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    Em “a” está contida a ideia de que os capitalistas se formaram enquanto classe social aoconcentrarem os meios de produção de outras classes e grupos sociais durante o processo deacumulação originária ou primitiva do capital. Esse processo liberou uma grande mão-de-obra

    despojada de meios de trabalho que ingressou nas nascentes fábricas das cidades como mão-de-obra assalariada. Antes do capitalismo, e nisso o servo medieval é um exemplo, as classesexploradas mantinham, em um certo nível, o controle, nem que fosse parcial e dependente,dos meios de produção4. Na Grécia, homens livres como artesãos ou camponeses geralmentetinham acesso aos meios de produção, embora quando ficavam muito empobrecidos ficavamvulneráveis à expropriação de suas terras por “grandes” proprietários, criando um contigentede produtores com pouca ou nenhuma terra, que com alguma frequência externavam suas

    insatisfações5.A afirmação “b” acrescenta-nos uma informação preciosa: a relação de exploração deixa

    de ser baseada no “trabalho forçado direto”, que Marx considerava como a forma dominanteno mundo antigo, para ser mediada pela troca e, dirá Marx noCapital , pelo capital6. As impli-cações disto foram fielmente sintetizadas por Wood (sem data) em um artigo contido novolume 20 da Montlhy Review :

    Devido ao fato de que os produtores diretos numa sociedade capitalista plenamente

    desenvolvida se encontram na situação de expropriados, e devido também ao fato deque o único modo de terem acesso aos meios de produção, para atenderem aosrequisitos da sua própria reprodução, e até mesmo para proverem os meios do seu próprio trabalho, é a venda da sua força de trabalho em troca de um salário, os capi-talistas podem se apropriar da mais-valia produzida pelos trabalhadores sem neces-sidade de recorrer à coerção direta (p.6).

    Assim, a exploração no capitalismo é mediada pela necessidade de auto-valorização docapital através do mercado, que transforma, de forma inédita na história da humanidade,

    4 Como está presente na definição de classe de Ste Croix (ver mais à frente, página 16), o pertencimento a uma classe de umindíviduo vai ser definido pelo grau em que este indíviduo controla e usufrui das condições de produção da vida material. No pré-capitalismo, o escravo é uma exceção enquanto uma classe completamente desprovida de meio de produção, nisso asse-melha-se ao trabalhador assalariado que forma o capitalismo. Dentro das sociedades pré-capitalistas, o mais comum é que asclasses dominadas possuam posse da terra (principal meio de produção nestas sociedades) mesmo que não sejam donas juri-dicamente da terra ou mesmo que a terra seja uma propriedade da comunidade ou do Estado. O controle sobre os meios de produção, assim, reveste vários níveis, e, via de regra, tanto mais frágil será a posição social e jurídica de uma classe quantomais frágil for seu acesso aos meios de produção.5 Ver no anexo item B3.6 “A riqueza se opõe ao trabalho forçado direto não enquanto capital, mas como uma relação de domínio” (Marx,Grundisse ,citado por de Ste.Croix p.587). Note que, além desta exploração direta mediante “os pagamentos ou os serviços prestados porum indivíduo a outro” (Ste Croix 1988,p. 244), seja senhor e escravo; senhor e colono; senhor e servo por dívidas, senhor etrabalhadores rurais por diária, existem as modalidades de exploração indireta e coletiva, como chama Ste Croix (1988) no“caso dos impostos, as levas militares, os trabalhos forçados e outras prestações que se imponham unicamente ou de maneiradesproporcionada a uma determinada classe (ou classes) por parte de um Estado dominado por uma classe superior” (p. 61).Exemplo disso no mundo clássico são as taxas cobradas pelo Estado aos cidadãos pobres, principalmente em Roma; exemplono pré-capitalismo são ainda as prestações de trabalho em geral dos pequenos camponeses para trabalhos públicos no Egitoantigo ou os trabalhos compulsórios no Império Inca.

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    mesmo o alimento, reduto mais íntimo da sobrevivência humana, em uma mercadoria (Wood,sem data, p.6.) e, como tal, separada das pessoas que, agora, precisam buscar o alimento nomercado, contribuindo para nutrir o capital.

    A terceira observação de Marx diz respeito ao fato de que a produção e a circulação demercadorias no capitalismo dá-se num nível qualitativamente diferente em relação ao mundoantigo. A transformação de dinheiro em capital através da fórmula Dinheiro – Mercadoria-Dinheiro é própria de um modo de produção em que o dinheiro transforma-se no equivalentegeral e espelha o valor de cada mercadoria dentro de um mercado amplamente monetarizado. No mundo antigo, o processo de troca de mercadorias, infinitamente mais limitado, opera, namaioria das vezes, pela fórmula Mercadoria-Dinheiro-Mercadoria, onde o dinheiro tem a fun-

    ção de mero intermediário entre mercadorias de diferentes valores de uso7.Por fim, é preciso ressaltar que nem todo produto do trabalho humano é uma mercado-

    ria. Nossa sociedade monetarizada e mercantilizada é que obriga-nos a perder contato violen-tamente com o valor-de-uso do produto do nosso trabalho8. No mundo antigo, a dimensão dovalor-de-uso da mercadoria muitas vezes sobressai sobre a dimensão do valor-de-troca.9.

    3.Observações sobre classe e luta de classes na Grécia antiga

    3.1 Introdução à problemática do uso do conceito de classe e luta de classes para o mun-

    do antigo

    Sobre a questão do uso do conceito de classe social para o mudo pré-capitalista, há umdebate central. Trata-se da necessidade ou não de existir consciência de classe para que se possa falar em classe social. Esta polêmica certamente remonta a caracterização do campesi-nato francês de 1851 na sétima parte do “18 Brumário de Luis Bonaparte”, onde segundoMarx (1978):

    Na medida em que milhões de famílias camponesas vivem em condiçõeseconômicas que as separam umas das outras, e opõem o seu modo de vida,os seus interesses e sua cultura aos das outras classes da sociedade, estesmilhões constituem uma classe. Mas na medida em que existe entre os pequenos camponeses apenas uma ligação local e em que a similitude deseus interesses não cria entre eles comunidade alguma, ligação nacionalalguma, nem organização política, nessa exata medida não constituem umaclasse (p.397).

    7 Sobre isso conferir o capítulo IV, volume I , “Transformação do dinheito em Capital” do Capital de Marx.8 “Ao desaparecer o caráter útil dos produtos do trabalho, desaparece o caráter útil dos trabalhos neles representados, e desa- parecem também, portanto, as diferentes formas concretas desses trabalhos, que deixam de diferenciar-se um do outro parareduzir-se em sua totalidade a igual trabalho humano, a trabalho humano abstrato” (Marx 1996,p.168.).9 Veja a observacao de Aristoteles no item A3 do anexo, onde Aristóteles percebe a dupla dimensão da mercadoria, enquantovalor-de-uso, tem características próprias que satisfazem certa utilidade para quem as possui, enquanto valor-de-troca, podeser intercambiado através do dinheiro por outra mercadoria, que vai destinar outro valor-de-uso pra quem comprar.

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    Os camponeses, então, formam uma classe na medida em que situam-se em um mes-mo plano nas relações sociais de produção, contudo não formam uma classe no sentido emque não construem uma solidariedade e uma consciência do seu lugar no processo produtivo e

    de seus antagonismos com outras classes. O que implica dizer que uma classe em sentido ple-no juntaria a dimensão do condicionante econômico – base das relações sociais de produção-com a criação de solidariedade, interesses em comum e, por fim, consciência de classe.

    Dessa forma, há duas maneiras de pensar esta questão no marxismo: de um lado, há osautores que pensam que classe e consciência de classe são indissociáveis e, portanto, classe sóexiste quando as pessoas reconhecem que fazem parte de uma classe e engendram luta declasses para defender seus interesses, portanto apenas consideram a segunda parte da citação

    de Marx sobre os camponeses, de outro lado, há autores que distinguem entre a existência daclasse como fator objetivo (classe em si) e a criação de interesses e consciência de classe(classe para si). Assim, para os últimos, uma classe existe independentemente de que estaclasse tenha consciência de seus interesses em comum, como está na primeira parte da citaçãode Marx. Ainda para estes marxistas, classe social torna-se em sentido pleno apenas quando aclasse adquire também consciência de classe.

    Durante o século XX este debate foi bastante acirrado porque dele dependia, em um cer-

    to sentido, a própria legimitação da forma-Partido. Assim, o Partido seria fundamental parainterpretar os acontecimentos históricos-políticos através do materialismo histórico e orientara classe trabalhadora acerca de seus posicionamentos enquanto classe social, a partir da cons-tatação de qual eram as atitudes da classe proletária que se adequavam a uma correta cons-ciência de classe.

    Lenin, em “O que Fazer ” de 1903 já alertava para o fato de que deixar a classe traba-lhadora por “conta própria” era cair em voluntarismo e rebaixamento programático. O papel

    do Partido seria justamente elevar a consciência de classe do proletariado para o nível políticoatráves do confronto com a burguesia.Lukács, em “ História e Consciencia de Classe ” de 1923, tornava mais clara a disjuntiva

    existente entre a percepção que uma classe tinha de sua própria situação, que poderia ser pou-co reveladora da sua própria situação e, portanto, não levar a conflitos significativos, e seusdesafios históricos enquanto classe, que necessitava uma teorização acerca de qual seria a sua“verdadeira consciência de classe” (a consciência de classe adjudicada ou imputada).

    Esse otimismo com a função do Partido de adjudicar a consciência de classe aos proletá-rios é abalado com as notícias veiculadas por Khrushchev em fevereiro de 1956 a respeito dos

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    assassinatos e exílios de militantes cometidos durante o governo de Stalin (até então o grandeherói do Partido central), fato que, aliado à invasão da URSS à Hungria em novembro destemesmo ano, gerou uma profunda crise no seio dos partidos comunistas da Europa Ocidental e

    da America Latina na década de 50.Assim, no partido comunista britânico, Edward P. Thompson, dentre outros, deixou o

    partido logo após a invasão soviética à Hungria. Thompson trouxe alguns outros caminhosteórico-metodologicos para a definição e o emprego de classe e consciência de classe dentrodo marxismo, um dos quais é fundamental para o debate deste artigo. Trata-se do destaque deThompson em tratar classe social como uma categora eminentemente histórica, que é deverasútil para alertar o historiador de outras épocas ou sociedades não capitalistas que não adianta

    repetir o conteúdo das classes e da luta de classes contemporânea: é indispensável proceder auma análise da época histórica estudada e especificar a conformação das classes e os meca-nismos de resistência e revolta que utilizam as classes exploradas. Esse trabalho, segundoThompson (1984), pode ter dois caminhos metodológicos, dependendo das evidências históri-cas que o historiador tem em mãos: de um lado, é possível a) “referir-se a um conteúdo histó-rico real correspondente e empiricamente observável” (p.36), por outro lado, é possível usar oconceito de classe como b) “categoria heurística ou analítica para organizar a evidência histó-

    rica, com uma correspondência [entre interpretação do pesquisador e realidade empírica] mui-to menos direta” (p.36). Para reforçar essa segunda alternativa Thompson cita em nota, namesma página, Eric Hobsbawn, em seu artigoClass Consciousness in History [Consciênciade classe na História ]. Na verdade, Hobsbawn não faz senão parafrasear Lukács (1970), queno capítulo intitulado “Consciência de classe” do livro “ História e Consciência de Classe ”debate este tema a partir do método marxiano de diferenciar as sociedades pré-capitalistas dascapitalistas e afirma:

    A relação entre a consciência de classe e a história é por conseguinte muito diferentenos tempos pré-capitalistas e na época capitalista. Porque, nos tempos pré-capitalistas, as classes não podiam ser desprendidas da realidade histórica imediata,senão por intermédio da interpretação da história dada pelo materialismo histórico,enquanto agora as classes são essa realidade imediata, histórica por si mesma10” (p.88).

    10 São essas similitudes e aproximações entre Thompson e Lukács que tornam difíceis leituras que dicotomizam de formarígida duas abordagens sobre classe dentro do marxismo: uma estática, estrutural, economicista, vinda de Lenin, Stalin eLukács, outra dinâmica, historicizante, não reducionista, culturalista, vinda da História Social inglesa e principalmente deEdward Thompson. Para um exemplo deste tipo de dicotomização, com a qual não concordo, veja-se Mondaini (2005, p.25-54) que, curiosamente, não faz menção ao segundo uso de classe que prõpoe Thompson (1984) que, conforme vimos, é luc-kasiano, embora Mondaini cita este mesmo artigo de Thompson. No entanto, Thompson (1984) distancia-se de Lukács e,diria eu, de Marx, ao afirmar que “a classe a a consciência de classe são sempre as últimas, não as primeiras, fases do proces-so real histórico”(p.37) ou ainda dizer que luta de classes é um conceito prévio à própria classe (p.37). Consciência de classecomo ponta final de um processo está correto, mas afirmar que isso acontece também com a classe é negligenciar o condicio-nante econômico, derivado do fato da exploração nos dizeres de Ste Croix (1988) das classes sociais, que faz com que exista

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    As pessoas das sociedades pré-capitalistas, sustenta Lukács, viam, geralmente, as desi-gualdades entre elas em termos jurídicos, de status pessoal ou status religioso, o que demons-tra que o fundamento econômico- e de classe- da desigualdade era em grande medida incons-

    ciente para estas pessoas, porque “a forma da divisão em estados11 dissimula a interdependên-cia entre a existência econômica do estado – existência real, ainda que inconsciente- e a tota-lidade econômica da sociedade” (Lukács 1970, p.88). No capitalismo, por outro lado, como ostrabalhadores perderam qualquer contato com as condições de produção, sendo obrigados avender sua força de trabalho para conseguir dinheiro para garantir sua sobrevivência, esta posição de classe trouxe, então, a razão ou o potencial para que os trabalhadores dos séculosXVIII e XIX percebessem que a exploração do seu trabalho tinha um motivante essencial-

    mente econômico e não jurídico ou religioso e que a desigualdade social que alienava o pró- prio trabalhador do produto do seu trabalho partia de uma questão econômica12. É por issoque apenas a partir do século XIX os trabalhadores criaram sindicatos ou partidos políticos.Só aí que surgiu também a primeira interpretação sistemática da história a partir dos explora-dos e não das elites, isto é, o materialismo histórico13.

    Vejamos como esta questão se põe para o caso da Grécia antiga.Se as observações metodológicas baseadas nas distinções entre antes e durante o capita-

    lismo vindas de Thompson e Lukács são importantes e válidas, de forma geral, para o con- junto das sociedades pré-capitalistas que possuam exploração entre classes, elas precisam, ameu ver, serem matizadas para o caso da Grécia.

    Diferentemente de outras sociedades antigas, os gregos percebiam claramente que aslutas dentro das cidades entre facções ou grupos eram em parte causadas pelo fato de unsserem ricos e muito serem pobres. Essa constatação era tão generalizada que os gregos pos-suíam diversas palavras para denominar “ricos” (euporoi, plousioi, kalos kai agathos ...) e

    “pobres” ( plethos. aporoi, penetes ...). Para tornar o argumento mais preciso, temos que ter emclasse social, e isso é derivado da pesquisa histórica, mesmo que em um sentido limitado e parcial. Talvez Thompson estejaaqui falando de classe no sentido pleno, como dá a entender a nota que faz para endossar este seu argumento e que se baseiaem Hobsbawn. Classe no sentido pleno, de fato, só existe quando há classe e consciência de classe juntos, e isso não é ocomeço, mas sim o final de um processo de experiências econômicas, culturais e simbólicas dentro da classe e de conflitoscom outras classes, como ademais comprovam os estudos de Thompson sobre a formação da classe operária inglesa.11 Nestas citações de Lukács, estado não é a entidade política institucionalizada, mas sim é uma forma de classificar as pes-soas de uma sociedade segundo critérios geralmente jurídicos.12 Daí que a exploração econômica que sofre o trabalhador no capitalismo aparece para ele como uma coeção econômica,enquanto no pré-capitalismo os aspectos religiosos, jurídicos, bem como a coerção direta fucionavam como motivantes para aextração do sobretrabalho. Esses motivantes eram tipos de coerções “extra-econômicas”.13 Se no pré-capitalismo “a consciência de estado, como fator histórico real, encobre a consciência de classe, impede queesta última possa sequer manifestar-se” (Lukács 1970, p.88), no capitalismo, o dilaceramento dos privilégios jurídicos

    ou religiosos – e da consciência de estado- da antiga nobreza, operado essencialmente pela burguesia, é fundamental para o desenvolvimento da consciência da classe trabalhadora do século XIX.

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    conta duas coisas: primeiro, a noção de que alguém é rico ou pobre carregava em si, via deregra, certos atributos morais. Kalos kai agathos, por exemplo, significa literalmente “belo e bom”; segundo, o reconhecimento dos gregos que a sociedade era dividida entre ricos e

    pobres excluía escravos, mulheres e, em geral, estrangeiros. Quando Aristóteles ou Platãofalam em ricos e pobres eles estão se referindo sobretudo aos cidadãos masculinos, porque, pensam, apenas entre estes é que há desigualdade material (de acesso à propriedade incluso)que justifica o uso de rico ou pobre14. Isso é possível porque o estatuto (estado/ordem) jurídi-co e político mediava a teorização dos gregos sobre a desigualdade econômica dos indivíduos.Ora, via de regra, apenas os cidadãos masculinos poderiam ter propriedade da terra (principalforma de propriedade nessa sociedade), e isso quer dizer que ter muita ou pouca propriedade,

    ser rico ou pobre, só faz sentido dentro do corpo de cidadãos, segundo a mentalidade políticaoriunda das fontes gregas.

    A estratificação por estado no caso da Grécia aparece logo a seguir da famosa frase, con-tida no Manifesto Comunista , de que a “História da humanidade [baseada em classes] temsido até aqui a história da luta de classes”, quando os fundadores do marxismo exemplificamas classes antagônicas e delimitam a luta de classes no mundo clássico: homens livresversus escravos. Ora, como observa Ste Croix (1988, p. 86) a contraposição entre livre e não livre

    (escravo) é de natureza jurídica, portanto, do terreno do estado e não da classe. No Capital , Marx refaz este pormenor em uma nota no final do capítulo I volume I, que

    interessa de sobremaneira para nosso debate porque articula mediação jurídico-política (esta-do) e base econômica no caso do mundo clássico. Além disso esta sempre foi uma das passa-gens mais discutidas de Marx porque desafia as interpretações acerca da relação entre base(infra-estrutura) e superestrutura. Assim fala Marx (1996):

    Aproveito essa oportunidade para refutar, de forma breve, uma objeção que me foi

    feita, quando do aparecimento de meu escrito Zur Kritik der Pol. Oekonomie [Con-tribuição à Crítica da Economia Política ],1859, por um jornal teuto-americano. Estedizia, minha opinião, que determinado sistema de produção e as relações de produ-ção a ele correspondentes, de cada vez, em suma, “a estrutura econômica da socie-dade seria a base real sobre a qual levanta-se uma superestrutura jurídica e política eà qual corresponderiam determinadas formas sociais de consciência”, que “o modode produção da vida material condicionaria o processo da vida social, política e inte-lectual em geral” — tudo isso estaria até mesmo certo para o mundo atual, domina-do pelos interesses materiais, mas não para a Idade Média, dominada pelo catolicis-mo, nem para Atenas e Roma, onde dominava a política. Em primeiro lugar, é estra-nhável que alguém prefira supor que esses lugares-comuns arquiconhecidos sobre aIdade Média e o mundo antigo sejam ignorados por alguma pessoa. Deve ser claroque a Idade Média não podia viver do catolicismo nem o mundo antigo da política.

    A forma e o modo como eles ganhavam a vida explicam, ao contrário, por que lá a

    14 Ver anexo itens B1 e B2.

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    política, aqui o catolicismo, desempenhava o papel principal. De resto basta poucoconhecimento, por exemplo, da história republicana de Roma, para saber que a his-tória da propriedade fundiária constitui sua história secreta (p.206).

    O que Marx enfatiza é o mesmo que Lukács, ou seja, a configuração política da socieda-de grega e romana articula-se com instâncias mais profundas que são responsáveis, em últimaanálise, pelo próprio papel importante que a política assume no mundo clássico, a ponto de ser pela mediação política que os indivíduos são classificados social e economicamente, segundoa ótica dos gregos.

    Essa citação – e as interpretações divergentes que gerou dentro e fora do marxismo-encheriam uma biblioteca. Contudo, para nosso interesse, espero que uma lição deixada nessa passagem fique clara: estudar a sociedade grega sem ter como questão mais importante “aforma e o modo como eles ganhavam a vida” que “explica, ao contrário, por que lá a política,aqui o catolicismo, desempenhava o papel principal”é renunciar a compreender com a pro-fundidade devida a sociedade grega15.

    Sendo assim, precisamos levar em consideração os dois critérios metodológicos expos-tos por Edward P.Thompson, visto que tanto é possível uma relação mais direta entre o histo-riador e a fonte por esta falar mais diretamente de classe social, na medida em que pelo menos

    ao nível dos cidadãos os gregos percebiam que a posse de propriedade e de recursos materiaisera fundamentais para classificar as pessoas dentro da cidade-estado, como é possível umarelação mais indireta e mais abstrata entre o historiador e a fonte, quando esta não fala senãoobliquamente sobre classe social, daí a necessidade de um maior esforço do historiador paraanalisar e ir além do que as fontes dizem, principalmente no que diz respeito às classes e gru- pos sociais fora do corpo dos cidadãos, como os escravos e as mulheres.

    3.2 A análise de classe e luta de classes do mundo grego por Geoffrey de Ste.Croix

    De início, citemos um dos princípios metodológicos fundamentais do materialismo his-tórico, que sintetiza uma enorme contribuição de Marx e Engels ao trabalho histórico:

    A forma econômica específica em que se exprime o sobretrabalho sem pagá-lo aseus produtores diretos determina a relação existente entre os que dominam e os quesão submetidos (...) A relação direta dos proprietários das condições de produçãocom respeito aos produtores imediatos (...) é o que sempre revela o segredo maisíntimo, o fundamento oculto da estrutura social inteira e portanto também da forma política das relações de soberania e dependência, dito em poucas palavras, a forma

    15 No mesmo tom diz Ciro Flamarion Cardoso (1982) acerca da renúncia em usar o conceito de classe: “renunciar empreen-der esta tarefa, é condenar a deixar escapar os aspectos mais importantes do objeto de estudo” (p. 108). Na verdade, é renun-ciar a aproximar-se do “segredo” de toda formação social posterior ao surgimento das classes, como diz Marx na citação queabre o tópico 3.2.

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    podiam ser homens e mulheres livres (maior parte camponeses) e não escravos. Contudo,insiste convincentemente Ste. Croix, a maior parte do excedente de trabalho que era extraído pela classe dominante vinha através do trabalho dos escravos e não dos camponeses, uma vez

    que a produção dos camponeses gerava pouco excedente e ademais esta produção no mais dasvezes era consumida em pouco tempo. O escravo, no mundo grego, era propriedade do donode terras ou de escravo, e como tal, a classe dominante conseguia extrair quase que a totalida-de do excedente produzido pelo escravo. Dessa forma, “o modo de produção se diz escravistaquando domina a relação de produção escravista no seio de combinações [de formas diferen-tes de relações de produção] que podem ser muito diferentes segundo os lugares e as épocas”(Annequin, 1985, p.236)19.

    É, então, a partir do estudo do “segredo íntimo” de uma formação sócio-econômicaque Ste Croix define as classes sociais:

    Uma classe (fundamentalmente uma relação) é a expressão social coletiva do fato daexploração, a maneira em que se encarna a exploração em uma estrutura social (...)Uma classe (uma classe em particular) é um grupo de pessoas de uma comunidadeque se identifica por sua posição no sistema global de produção social, definidaantes de tudo com respeito a suas relações (basicamente segundo o grau de posse oucontrole que tenham delas) com as condições de produção (isto é, os meios e o tra- balho de produção) e com outras classes (p.60).

    Mais a frente completa sua definição:Os indivíduos que conformam uma determinada classe podem ser total ou parcial-mente conscientes o não de sua própria identidade e de seus interesses comuns comoclasse, e podem sentir ou não um antagonismo com respeito aos membros de outrasclasses enquanto tais (p.61).

    Sobre luta de classes:Utilizo o termo luta de classes para a relação fundamental existente entre as classes(e seus respectivos componentes individualmente considerados), que implica fun-damentalmente exploração ou resistência a ela. Não supõe necessariamente umaação coletiva por parte de uma classe como tal, e pode incluir ou não uma atividadeno plano político, se bem que dita luta política resulta cada vez mais provável namedida em que se agrava a tensão da luta de classes (p.61).

    Classe é, assim, a “expressão social do fato da exploração”, isso significa dizer que asclasses fundamentais de uma certa sociedade estão implicadas na própria exploração econô-mica. De sua definição de classe, âncorada no fato da exploração, emergem, então, senhoresde terra e de escravos (suficientemente ricos para não precisarem trabalhar para viver) e

    19 Além do que foi argumento, vale ressaltar que o trabalho camponês como base da economia existiu, e ainda existe emcertas regiões, durante centenas de anos através dos mais variados modos-de-produção. O termo economia ou mesmo modode produção camponês não contribui muito para especificar a sociedade greco-romana. Uma abordagem que leva em conta o“segredo” de uma sociedade tal qual Marx nos fala precisa destacar o papel do escravo na economia clássica.

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    escravos, visto que são estas classes que estão, de forma mais veemente, envolvidas na explo-ração.

    Se é assim em relação a delimitação da classe, e quanto à luta de classes? Ste Croix

    afirma que a luta de classes é uma relação fundamental entre as classes de exploração ouresistência a esta exploração. Ste Croix tem noção de que o termo “luta de classes” é semanti-camente amplo e que pode designar desde conflitos individualizados de pouca dimensão atéconflitos com dimensão coletiva no plano político fruto de consciência de classe. Por isso, elediz que não é necessário luta no plano político para que se possa falar em luta de classes.

    Na segunda parte de seu livro, Ste Croix20 trabalha fontes sobre a luta senhores de ter-ras/escravos e escravos, mas também sua análise de classe cede espaço para outro confronto:

    pequenos ou não proprietários (boa parte camponeses)versus senhores de terra-escravosricos. Esta era uma forma de luta de classes dentro do corpo de cidadãos, que poderiam -quando do sexo masculino - participar da vida política em Atenas clássica21.

    Dessa forma, nos dois principais capítulos sobre a História da Grécia (época arcaica eclássica) contidos na segunda parte,“A luta de classes no plano político dentro da História daGrécia” (capítulo 5) e “A luta de classes no plano ideológico” (capítulo7), a luta de classestende a ser luta no plano político, sendo mostrada e discutida a partir de casos de conflitos no

    plano coletivo e político, envolvendo, geralmente, camponeses pequenos proprietários e pro- prietários de terras ricos. Assim, explana Ste.Croix (1988):

    Parece que a demanda dos revolucionários gregos centrou-se em duas reinvidica-ções: a distribuição das terras e a cancelamento das dívidas. Estes dois slogans,caracteristicos de um campesinato empobrecido, surgiram em Atenas no começo doséculo VI, no tempo de Sólon (p.350).

    O que aconteceu com a luta entre as classes definidas pelo fato da exploração, tal qualestá teorizada na exposição da primeira parte do livro? Ela aparece principalmente no capítulo7 (“A luta de classes no plano ideológico”) na ocasião em que Ste. Croix discute as ideologiase propagandas da classe dominante para justificar e manter a escravidão, e ainda quando o

    20 O livro de Ste Croix (1988) é dividido em duas partes: na primeira há uma exposição e definição dos conceitos e categoriasmarxistas que serão utilizados no estudo acerca da luta de classes na Grécia. Na segunda parte, os conceitos são articulados para mostrar como funcionava, na prática, a luta de classes na História da Grécia através dos estudos das fontes primárias.21 No caso de Atenas do período clássico é preciso ter a noção de que os cidadãos masculinos que estavam aptos a participarda vida política possivelmente representavam apenas cerca de 10 a 15% da população total de Atenas do século V a.C. Cida-dãos mais familiares (incluindo as mulheres atenienses livres) representavam entre 50 e 60% da população, enquanto metecos(estrangeiros) 8 a 15% e escravos 25 a 35 % da população total. Os escravos estavam espalhados em várias atividades eco-nômicas: agricultura, mineração, atividades comerciais, serviços administrativos, dentre outras, o que faz com que a quanti-dade total de escravos que trabalhavam na agricultura possa ser próxima ou comparável a quantidade de camponeses-cidadãos. Esses dados foram retirados do levantamento apresentado por Ferreira (1989).

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    historiador em questão disserta sobre as fábulas de Esopo e de Fedro, oriundas de ex-escravose que mostram algo da insatisfação dos escravos com sua condição sócio-econômica.

    No entanto, é preciso admitir, então, que os termos estão desproporcionais: na parte teó-

    rica Ste Croix afirma que o grosso da extração de excedente advinha do escravo e não docamponês, e por isso é preferível o termo modo de produção escravista do que modo de pro-dução camponês, e por isso também as classes principais eram senhores e escravos. Nasegunda parte do seu estudo, contudo, quando as fontes primárias são interpretadas através daluta de classes, parte considerável dos conflitos discutidos a partir das fontes gregas são cam- poneses contra senhores.

    Sobre isso, gostaria de fazer alguns comentários.

    A luta de classes entre ricos (senhores de terra) e pobres (camponeses) em torno dedemandas de distribuição de terras e de cancelamento de dídivas é percebida pelos própriosgregos22. O debate central que Geoffrey de Ste.Croix trava no seu livro é demonstrar que esteconflito que os antigos viam claramente relacionava-se com outro mais profundo porque maisintimamente ligado ao fato da exploração. Este último conflito era mais escondido (e por issomenos vísivel nas fontes gregas, logo para nós também) porque um dos lados da luta (escra-vos) estavam em uma posição extremamente desfavorável para manifestar sua resistência

    (quando as tiveram, é claro). Como lembra Annequin (1985) a escravidão promove a “separa-ção de um ser social de seu meio, sua metamorfose em mercadoria, sua alienação em simplesforça de trabalho, denuncia sua fraqueza e o torna historicamente frágil” (p.210). Além disso,os escravos em Atenas eram, em boa medida, estrangeiros, sequer falavam a mesma língua,estavam totalmente destituídos da vida política e, portanto, não possuíam meios para se mani-festarem politicamente. Em uma situação como essa, o historiador precisa ser sensível a dife-rentes formas de resistências – baseadas em graus variados de consciência do fato da explora-

    ção- por parte da classe explorada, como a recusa por parte do escravo de trabalhar, formas desabotar as tarefas impostas pelo patrão, fugas individuais e, mais significativamente, fugascoletivas. Por outro lado, o historiador precisa também saber ler as fontes oriundas da classedominante que denotam receio ou medo de revolta ou de fuga de escravos, pois isso demons-tra que se existe a preocupação era porque essas resistências tinham lugar com alguma fre-quência23.

    22 Ver itens B1, B2, B4 e B5 no anexo.23

    Assim, revoltas como a de Spartacus entre 73 e 71 a.c, embora não conseguissem ter êxito quanto a proposição de uma projeto político amplo que vislumbrasse uma outra sociedade (questão que faz pouco sentido tendo em conta a época históri-ca em que ocorreu a revolta), serviam para mostrar para a classe dominante que a classe explorada estava insatisfeita com ofato da exploração e que talvez fosse melhor para a classe dominante explorar outras classes e setores sociais afim de sentir-

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    Relacionado a isso, é preciso ter em mente também que, por controlar a extração deexcedente, viver graças a isso e necessitar organizar a continuação dessa exploração, e ainda por poder expressar-se literária e politicamente, a classe dominante nas sociedades pré-

    capitalistas desenvolve um “nível” de consciência de seus interesses bem maior do que setoresexplorados e fragilizados da sociedade. Assim, por dentro da ideologia da classe dominante,que organiza o conjunto de ideias de uma sociedade ao seu modo, é possível chegarmos mais perto dos conflitos e da luta de classes, desde que não partilhemos a ideologia, os preconceitose as ilusões que existam porventura nas fontes históricas oriundas das classes dominantes.

    Assim, o que Ste. Croix quer deixar claro é que o fato dos escravos terem sido histori-camente frágeis não altera o fato de que era sobre eles que se retirava o grosso do sobretraba-

    lho que matinha a riqueza de uma classe dominante afastada do trabalho e, nesse preciso sen-tido, os escravos formam uma classe em si. Com isso, Ste Croix está posicionando-se contra avertente marxista que só aceita falar em classe quando há consciência de classe, contra osmarxistas que negam categoricamente que os escravos constituíam uma classe social, e aindade encontro aos estudiosos que vêm em outras classes (como os camponeses livres) a partecentral da configuração de classes na Grécia.

    É em meio a estes debates que Ste Croix enfatiza a definição de classe advinda da forma

    principal de exploração do mundo greco-romano e, de fato, reflete de forma insuficiente sobrea luta de classes entre senhor e camponeses na parte teórica de seu livro.

    É preciso lembrar, para fazer uma analogia com o trabalho precarizado atual, por colhercana o dia inteiro na última cana que você colher não vai vir junto uma coisa chamada “cons-ciência” que vai fazer você refletir sobre como você está sendo explorado neste trabalho. Arazão para uma possível resistência e luta de classes já está dada, a exploração em si, mas pordiversos motivos esta razão pode não tornar-se consciente e operativa para um indivíduo ou

    para toda uma classe24

    . Sendo assim, posição de classe não gera necessariamente (ou automa-ticamente) interesse de classe.

    se mais segura. Vemos, portanto, que a luta de classes, ainda que indiretamente, força a classe dominante a buscar reforçar(até onde for possível) ou desistir de explorar uma classe específica. Ver o tópico sobre a luta de classes entre escravos xsenhores no anexo. 24 Sobre esta questão eu penso, portanto, que alguém que sofre exploração não necessariamente está envolvido em luta declasses. Como nota Alex Callinicos (2004, p.54) exploração por si só não é luta de classes, onde segue que se faz necessárioalgum nível de resistência por parte dos explorados para que se possa falar em “luta” ou “conflito” de classe. A exploraçãooferece o potencial ou a razão para a luta de classes, mas não é ela mesma luta de classes. Esta relação entre exploração e lutade classes é, no entanto, polêmica no seio do marxismo: uma opinião diferente, e bem fundamentada, é dada por TonyAndréani (1989): “O processo de produção nao é, na sociedade de classes, um ‘sistema de exploração’ que gera uma luta declasses. A relação de produção fundamental –a extorção do sobretrabalho- éela mesma uma luta de classes” (p.118)( itálicodo autor ).

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    Essas observações precisam ser levadas em consideração na hora de analisar a relaçãoentre classe, luta de classe e consciência de classe. Sendo assim, uma coisa é a centralidade deuma classe devido à sua inserção no mecanismo de extração do excedente, razão de ser da

    classe dominante que assegura a manutenção de um modo de produção baseado em classes,no caso em estudo: proletariado para o mundo contemporâneo de Karl Marx e escravos para omundo clássico. Outra coisa é o protagonismo político que possuem a curto ou médio prazooutras classes ou grupos sociais25.

    A tese de Karl Marx, derivada de estudos empíricos sobre vários modos-de-produção, éque, em última instância e a médio-longo prazo, um modo de produção só acaba quando fin-da-se a forma específica de extração de sobretrabalho que mantinha a sociedade funcionando

    de certo jeito. É por isso que há uma relação íntima entre uma correta identificação da classe pelo fato da exploração e a revolução. Não é à toa que no processo de queda do modo de pro-dução escravista –Império Romano tardio- a questão do abastecimento da mão-de-obra escra-va e a própria participação mais ativa dos escravos, mesmo que sem constituir interesses declasse senão de forma esporádica, passaram para primeiro plano, e não é à toa também que

    ...a insistência de Marx sobre a auto-extinção do proletariado-definida como extinto-ra, ao mesmo tempo, das condições de desumanização – não poder ser alcançadasem a ação consciente da classe que “pode e tem de se libertar” (Mészáros 2008, p.63).

    Assim, os interesses objetivos26 de uma classe podem não ser percebidos por ela, ou podem ser entendidos mas mesmo assim não engendrar luta de classe. Já vimos alguns dosmotivos deste fenômeno que dizem respeito aos escravos, quando falamos de seu ser socialcomo historicamente frágil. Se a luta de classes entre escravos e senhores fica a segundo pla-no durante boa parte do mundo clássico, é por conta que os camponeses-cidadãos tinham maiscondições de desenvolver uma consciência mais próxima de seus interesses objetivos e exter-nalizar suas demandas politicamente.

    Jean-Pierre Vernant, em um artigo originalmente publicado em Eirene 4 (1965) com otítulo “ Remarques sur la lutte de classe dans la Grece ancienne ” [Observações sobre a lutade classes na Grécia antiga ],27 disserta sobre nosso debate. Seu texto fornece-nos um apro-fundado debate das categorias marxistas e faz um esforço para tentar historicizar tais catego-

    25 Sobre isto, o artigo “consciência de classe necessária e consciência de classe contigente” contido em Mészáros (2008) éuma leitura indispensável. Ver também Lessa (2005).26 “Um interesse objetivo significa, entre outras coisas, um curso de ação que, na verdade, é do meu interesse mas que, nomomento, não reconheço como tal” (Eagleton 1997, p.190).27 Publicado no Brasil como VERNANT, Jean Pierre. A luta de classes. In: Mito e Sociedade na Grécia Antiga. Rio de Janei-ro: José Olympio, 1992.

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    rias de acordo com a história grega. Assim, Vernant (2007) faz uma distinção entre contradi-ção fundamental (escravosversus proprietários de escravos) e contradição principal ou domi-nante (pequenos proprietários ou não proprietáriosversus proprietários ricos). A contradição

    principal ou dominante correspondia à luta de classes no plano político e dentro do âmbito da pólis pelos cidadãos ricos e pobres. A contradição fundamental, por seu turno, residia “aonível das forças produtivas nas quais os escravos constituíam precisamente o essencial nocontexto técnico-econômico da Grécia antiga” (p.633), mas, precisa o autor:

    (…) esta oposição nunca tomou a forma de uma luta planejada operando ao níveldas estruturas sociais e políticas. Ela se exprimiu por condutas individuais de revol-ta; às vezes, quando as circunstâncias exteriores e as vicissitudes da guerra os permi-tiam, por fugas coletivas (p.633).

    Para finalizar este tópico, gostaria de voltar para Geoffrey de Ste Croix. Ele poderia, defato, ter dado mais atenção, na parte teórica do seu livro, a este tipo de debate de forma a dei-xar mais claro as diferenças e as inter-relações entre as lutas de classes no plano político eaquela derivada do fato da exploração.

    A distinção de Jean Pierre Vernant, na verdade estabelecida por Charles Parrain, entrecontradição fundamental e contradição política, a meu ver deveras útil, é comentada telegrafi-camente por Ste Croix com os dizeres: “a distinção entre ‘condição fundamental’ e ‘contradi-ção principal (ou dominante)’ é uma maneira de falar e não expressa nenhuma ideia útil”.(p.83) Assim, Ste.Croix não deu a devida importância ao próprio aviso de Vernant (2007) deque “atrás desta questão de vocabulário há um problema de fundo e, eu creio, um problemafundamental” (p.620).

    Convém notar que a própria predominância da ênfase em conflitos políticos nos quaisestavam envolvidos outras classes que não o escravo é sinal de que apenas o conceito de clas-se não é suficiente para dar conta da realidade dos conflitos sociais, embora seja indispensá-vel. Como o mesmo Ste.Croix reconhece e faz uso, é preciso sempre ter em mente categoriascomo status ou ordem jurídica que no mundo clássico separavam os homens e mulheres entrelivres e não-livres. É um desafio também incorporar o debate sobre gênero e a situação damulher, como Ste Croix fez em um tópico de sua parte teórica. Não é mais sustentável, cienti-fica e moralmente, o termo classe como O Conceito que dá conta de tudo, como se fosse ummonolito (Rabinowitz 1998, p.58) não atravessado por outras formas de conflito como o degênero.

    3.3 Algumas interpretações que rechaçam o uso de classes e luta de classe e alternativasao uso de classe social.

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    Pierre Vidal-Naquet em um artigo surgido em 1968 com o título “ Les esclaves grecsétaient-ils une classe ?”[Os escravos gregos eram uma classe ?]28 nega que os escravos gregosconstituíssem uma classe social. Para isso, ele divide sua exposição em dois passos: primeiro,

    define o que é classe social e depois olha para o mundo grego e percebe que os escravos nãose encaixam nesta definição. O problema com a metodologia de Vidal-Naquet é que o histo-riador francês tem em mente uma definição de classe (que ele pensa ser a de Marx) onde clas-se apenas existe quando há também consciência de classe (classe no sentido pleno) e quandohá programas políticos manifestos. Ora, óbvio que diante de uma metodologia tão rígida osescravos não formam uma classe social.

    Em um texto mais recente, realizado juntamente com Michel Austin, Vidal-Naquet

    (1986)29 mantém a postura de negar que os escravos constituam uma classe. Ele tem em men-te, todavia, um conceito de classe excessivamente contemporâneo, porque só aceita falar emclasse se tiver consciência de classe agregada. Munido do seu30 conceito de classe anacrônicoem relação ao mundo grego, Vidal-Naquet vai mais além ao insistir que a luta de classes naGrécia não se refere às condições de trabalho. Vidal-Naquet diz categoricamente:

    Há de sublinhar de maneira muito marcada que, diferente do mundo moderno, asreinvidicações econômicas [oriundas da luta de classes na Grécia] não se referiramnunca as condições de trabalho nem aos salários, porque, como temos visto, nãoexistia uma classe operária nem um mercado de trabalho (p.40).

    Na mesma página, Vidal-Naquet afirma que “as demandas revolucionárias foram, desdea época arcaica, a supressão das dívidas e a distribuição das terras” (p.40). Ora, primeiro, nãosei qual a utilidade de ficar insistindo, como fez Vidal-Naquet, no fato dos gregos não teremclasse operária, dos escravos na Grécia não possuírem programa político abolicionista nemalmejarem “uma sociedade sem classes” (Vidal-Naquet 1986, p.38), como se alguém tivessedito algum dia que os escravos gregos eram operários envoltos em uma clara consciência declasse lutando por uma sociedade sem classes. Para mim, esse raciocínio eminentemente ana-crônico, mas que convence os mais desavisados, por conta que é um raciocínio semelhante ànossa maneira contemporânea de pensar, serve sobretudo para tentar deslegitimar a aplicaçãoao mundo grego do conceito marxista de classes sociais. Segundo, dizer que nos conflitossociais da Grécia as reinvidicações nunca incidiram sobre as condições de trabalho é errado.Contento-me, para não me alongar, em usar as próprias palavras de Vidal-Naquet (1986)28 Disponível no Brasil : VIDAL-NAQUET, Pierre. Os escravos gregos constituíam uma classe? In: VERNANT, Jean Pierre& VIDAL-NAQUET, Pierre.Trabalho e Escravidão na Grécia Antiga. Campinas: Papirus, 1989. Note que o artigo em ques-tão é de autoria apenas de Vidal-Naquet.29 Disponível em Português como AUSTIN, Michel & VIDAL-NAQUET, Pierre. Economia e Sociedade na Grécia Antiga.Lisboa. Edições 70, 1987.30 Para mim, Vidal-Naquet traz o conceito de classe que ele pensa ser o de Marx para desqualificá-lo e “provar” pelas pró- prias ideias de Marx que classe é um conceito contemporâneo que não se encaixa no mundo grego.

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    quando ele fala das demandas revolucionárias. As duas bandeiras, supressão das dívidas e adistribuição das terras, têm como pano de fundo justamente as condições de trabalho, já quese o camponês ou o pequeno proprietário tiver excessivamente endividado ou se perder o

    acesso à terra (tornando-se sem terra) isso vai implicar em uma pauperização e possivelmenteeste trabalhador terá que trabalhar na terra de alguém, seja como arrendatário ou como servo(no caso de Atenas antes da reforma de Sólon e talvez de outras cidades-estados gregas). Issonão é sobre condição de trabalho? Enquanto Vidal-Naquet permanece com seu pensamentoanacrônico, preocupando-se com reinvidicações em relação a salário – como se a Grécia anti-ga fosse a sua França da década de 80, deixa de perceber o substrato econômico das bandeiras políticas dos pobres na Grécia antiga.

    Gostaria, agora, de falar algo sobre as alternativas ao conceito de classe e luta de classeusados por alguns historiadores da antiguidade. Assim, Vidal-Naquet (1986, p.39) fala emconflitos entre proprietários e não proprietários (embora ele pensa que isso não tenha a vercom o lugar que os grupos ocupam nas relações de produção...), mas fala também, nos confli-tos (ou luta de classe?) entre homens e mulheres, jovens e velho. Se homens x mulheres, jovens x velhos podem ser vistos como conflitos, é muita ingenuidade achar que a análisedestes conflitos substituiria a análise de luta de classes na antiguidade, como parece sugerir

    Vidal-Naquet (1986, p. 41-42).Já Ober (1989) prefere discutir a história social da Grécia em termos de massa e elite.

    Em que pese a interessante tentativa do autor em abordar teoricamente o termo elite- levandoem consideração tantos estudiosos que falam em elite e o leitor não sabe do que se trata-, estetermo é, como sustenta Ste Croix (1983, p.109), demasiado vago31. Sobre o fundo teórico douso do conceito sociológico de elite, no caso de Ober mais vinculado com a teoria de WrightMills, é frequente a aceitação implícita por parte dos pesquisadores da elite como um grupo

    de pessoas com capacidades especiais e que, por isso, devem mesmo ser mais letradas, mais poderosas ou mais ricas. Como estudos acerca de elite muitas vezes têm caráter meramentedescritivo, embora não seja o caso do livro de Ober, o que ocorre no fim das contas é uma postura nada sociológica de enaltecer e aceitar como algo dado a dominação protagonizada por essa elite.

    31 Para escapar das dificuldades conceituais, muitos historiadores, não só da antiguidade, usam o termo grupo social comoelemento chave de análise. Termo, em minha opinião, ainda mais vago que elite. Na verdade, só conheço uma teorização útile interessante sobre grupo social: um grupo que supera, devido a uma práxis adversa em comum, a serialidade de indivíduosque estão juntos e que não desenvolvem nenhuma identidade significativa entre si, a que foi feita por Jean-Paul Sartre (1960) principalmente no Tomo I da sua “Critica a razão dialética”.

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    Já sobre “massa” diz Ober: “minha definição de massas no entanto exclui muitas pessoas(escravos, mulheres, trabalhadores metecos)” (p. 11). O problema que me vem a mente é oque fazer com escravos, mulheres e metecos (estrangeiros)? Ignorá-los? O conceito de classe,

    articulado com outras categorias como gênero, vai além da análise dos conflitos dentro docorpo dos cidadãos masculinos da Grécia, será que então não pode oferecer uma análise maiscompleta e menos excludente? É possível restringir os conflitos sociais ou pensando de formamarxista, a luta de classes, a um conjunto de 10 a 15 % da população total de Atenas?

    Moses Finley e seus discípulos de Cambridge são os principais responsáveis pelo des-crédito em relação a validade do conceito de classe para a história da Grécia dentro de algunsambientes acadêmicos. Finley foi um grande historiador social que exerceu muita influência

    nos estudos sobre a Grécia na Inglaterra, na França e no Brasil, país este que conta com parteconsiderável de sua obra traduzida e é muito lido nos cursos de graduação. Finley trouxe, comrelativo sucesso, o uso de alguns conceitos weberianos, como status social32, para ponto cen-tral da análise da história social da Grécia. Status, seja social ou jurídico, é importante paraestudar os conflitos antigos, haja vista que a própria identificação de luta de classes como pequenos proprietários e proprietários ricos está assentada em um critério de pertencimento àcidadania ateniense, portanto um critério jurídico. A questão, contudo, é que por trás do status

    ou “prestígio” há quase sempre uma posição dominante nas relações sociais de produção, ouseja, uma posição de classe. Além disso, concordo com a exposição de Ste.Croix (1984, p.102-121) sobre este tema: status é um conceito útil mas excessivamente descritivo, poucoanálitico e subjetivo em excesso33 (quem mede a honra que alguém possuiu a milhares deanos atrás?), além de ser, como nota Rose (2009, p.470), pouco frutífero na hora de explicar

    32 Weber divide basicamente a estratificação social de uma sociedade em três facetas: econômica, segundo a classe; política,segundo a autoridade; social, segundo a honra ou o prestígio de um indíviduo ou grupo social. Note que classe para Weber“são grupos de pessoas que, desde o ponto de vista de seus interesses específicos, possuem a mesma situação econômica. A posse ou não posse de bens materiais ou de determinadas técnicas constituem a ‘situação de classe’” (Weber, citado por SteCroix (1988, p.112). Esta situação de classe é intimimante ligada a uma “situação de mercado”, onde os indíviduos estãomais ou menos protegidos de acordo com seus bens e técnicas. Já status, termo que assumiu papel central nos livros de Fin-ley, “é uma qualidade de honra social ou de carência dela, e geralmente se vê condicionada e também expressada por umamaneira específica de viver” (Weber, citado por Ste Croix (1988, p.112).33 Sobre isso, um texto muito elucidativo sobre o modo como classe pode ser articulado com status social ou jurídico é Stave-nhagen (1994). Observe que classe e status (no sentido weberiano) não são exatamente duas formas concorrrentes de explicaro mesmo fenômeno, a saber, a desigualdade social, uma vez que status é quase sempre um fenômeno superestrutural que temcondicionantes advindos do fato da exploração e, portanto, das classes. Assim, o historiador pode precisar de ambos, depen-dendo do seu objeto de estudo. Por exemplo, se estivermos estudando um caso de escravos que conseguiram enriquecer e teraté mesmo outros escravos (fenômeno romano, na Grécia era mais difícil) estamos lidando com uma classe, em certo sentido,de proprietários e, por isso, menos sujeita a coerção. No entanto, mesmo sendo proprietários o acesso à participação política ea outros recursos dentro da sociedade estarão interditados por serem escravos, o que nos leva a considerar não só sua posiçãode classe (proprietário) mas também sua posição jurídico-política (não-livres). Como o estudo das classes é sempre relacional(uma classe não existe de forma isolada) teremos que diferenciar estes escravos em particular da classe de escravos em geral, para isso temos que articular o status jurídico ao fundamento econômico. Sendo assim, a classe de escravos propriamente ditaserá, então, aqueles que “não possuem meios de produção e estão sujeitos a uma coerção” (Zelin 1978, p.68).

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    mudanças sociais a médio e longo prazo, justamente porque não consegue relacionar prestígioou status com estruturas mais profundas, como as relações sociais de produção.

    É significativo que no seu penúltimo livro “ Politics in the Ancient World ” [ Política nomundo antigo ], de 1983, Finley trabalhe com classe, embora não seja classe no sentido mar-xista, como ele mesmo diz. Assim é a justificativa de Finley: “Meu retorno no presente traba-lho para ‘classe’ (no sentido que tem na linguagem ordinária e não em um sentido técnico,marxista ou não) não implica uma mudança de visão” (p. 10).

    Seu uso vago do termo classe, como ele próprio admite na mesma página da citaçãoacima, talvez indique sim uma mudança de visão. Nesse livro, talvez a principal dificuldadede Finley em usar o seu habitual “continuum de status social”34 deva-se ao uso da “ Política ”

    de Aristóteles como fonte. Com efeito, é difícil encaixar uma ideia de gradação contínua destatus social diante das solapantes afirmações de Aristóteles de que as cidades estavam dividi-das em facções de ricos e pobres e que estas facções desempenhavam uma papel muito impor-tante nas revoluções e nas mudanças de regimes políticos.

    Conclusão

    Visto isso, enfatizamos que a luta de classes na Grécia possui duas facetas substanciais.Há o conflito dentro do conjunto dos cidadãos livres entre pequenos (eventualmente sem pro- priedade) e “grandes” proprietários35 ou proprietários assentados em famílias ricas. Este con-flito assumiu várias facetas desde o período arcaico em torno de duas bandeiras de luta: distri- buição das terras e cancelamento de dívidas (que no período pré-Solon levavam muitos ate-nienses para a condição de servo ou escravo por não poderem pagar as dívidas). As fontesgregas, como Aristóteles, Platão ou Tucídides, quando falam em stasis (conflito interno nacidade) referem-se quase sempre a este tipo de conflito que divide a cidade entre os ricos e a

    massa ou o povo (demos )36. No caso ateniense, as reformas de Sólon e de Clístenes possibili-taram que os cidadãos (ou parte deles) tivessem a prerrogativa de decisão política, o que per- 34 Na década de 40, antes de ter que sair dos Estados Unidos por conta do marchartismo, Finley leu bastante Marx e escreveuinclusive alguns artigos. Algumas influências marxistas vão acompanhar-lhe durante toda a sua obra (como a defesa do termo“modo de produção escravista”) mas outras, como classe e luta de classe, vão perder espaço principalmente na década de 70,com a incorporação de status e “prestígio” como termos centrais para a análise.35 Ao que tudo indica não existia na Grécia o equivalente aos grandes latifúndios romanos, portanto, a concentração de terrasna Grécia clássica não era tão grande quando comparada ao império romano. Foxhall (2002, p.211) sugere que 9% dos pro- prietários de terras detinham a posse de 35% do total de terras da Ática clássica, número este que poderia chegar a 45% coma incorporação de terras de pequenos proprietários que passariam a ser arrendatários. Embora tenhamos poucas fontes acercado acesso à propriedade na Grécia clássica, as fontes levam a crer que a posse de algum lote de terra era algo crítico, comoaliás sugerem os números acima e o item B3 do anexo, mas parece que abrangia parte considerável dos camponeses. Parauma visão diferente, bastante otimista a ponto de falar em igualdade agrária entre os atenienses, ver Gallego (2004). 36 A palavra gregademos pode significar tanto o povo em geral (conjunto dos cidadãos), como o povo mais pobre em oposi-ção aos ricos. Assim, é preciso ter em mente que povo aqui exclui os escravos, em qualquer dos dois sentidos.

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    mitia aos cidadãos lutarem pelo controle político da cidade com um certo nível de consciênciacoletiva37.

    Existia, também, a luta entre senhores de terra e de escravos e os escravos, que muitas

    vezes se adequava ao Marx e Engels chamaram no manifesto comunista de luta de classesvelada ou escondida, embora exista registros de fugas de escravos e de revoltas. Consciênciade classe era bem mais nítida entre a classe dominante por conta da necessidade desta classeem assegurar a extração de excedente do trabalhador subordinado e da própria posição demanter um modo de vida afastado do trabalho38.

    Mesmo que a luta de classes empiricamente mais observável seja entre os cidadãoslivres, o mundo grego do período clássico era uma sociedade escravista, e não apenas uma

    sociedade que continha escravos, e o termo modo de produção escravista está justificado, emque pese tentativas recentes de deslegitimar este termo –mesmo dentro do marxismo39.

    Por último, gostaria de lamentar que não temos acesso ao livro de Geoffrey de Ste Croixna nossa graduação em História. A primeira dificuldade é que o livro original é em inglês enão há tradução para o português. A segunda dificuldade é que o autor é ainda pouco lido noBrasil, mesmo dentre aqueles que dominam o inglês, seja dentro da História antiga seja dentrodo marxismo. Diferente do Brasil, os estudos feitos por Geoffrey de Ste.Croix causaram e

    causam um impacto muito forte em países como Espanha e Inglaterra, tanto na área de Histó-ria antiga como entre os marxistas. Sobre o livro de Ste Croix acerca da Luta de Classes naGrécia, vários especialistas em antiguidade, marxistas ou não, têm alertado que se trata “damais completa e rigorosa avaliação marxista da sociedade antiga já feita (ao menos eminglês)” (Ober 1989, p.12). Essa citação de Josiah Ober, que não é marxista, dá um pouco adimensão do que estamos perdendo por não ter Ste Croix em português.

    ANEXO- EXTRATO DE FONTES PRIMÁRIAS GREGAS. (As traduções, em relação ao referen-cial bibliográfico, foram levemente alteradas, seja para adaptar ao português do Brasil seja

    37 Sobre isto, veja-se no anexo intens B1 e B2.38 Conferir no anexo itens B6 até B10.39 Ver, por exemplo, Ellen Meikins Wood (2002) que em artigo originalmente de 1983 constata a incongruência, que elaexagera, entre a primeira e a segunda parte do texto de Ste Croix (1988) no que diz respeito aos agentes da luta de classes.Tendo isso em mente, a autora levanta várias dúvidas sobre a validade da ideia do mundo clássico como sociedade escravista(ou mesmo modo de produção escravista). Para Woods, o que caracteriza mais a economia clássica é o trabalho dos campo-neses, de tal forma que a expressão economia escravista não é muito adequada. Paralelo a isto, a autora reconhece que asduas formas de luta de classes na Grécia não são mutuamente excludentes, mas oferece a primazia na análise da luta de clas-ses à luta entre classe proprietária (senhores de terra) e livre produtores (camponeses). Para meu juízo, Wood traça um qua-dro um tanto idílico da vida camponesa (quase sem exploração) que me parece pouco plausível. De todo jeito, a pouca explo-ração sofrida pelo camponês (em relação ao escravo) mostra que Ste.Croix e outros autores têm razão em afirmar que o gros-so do sobretrabalho vem do escravo e, portanto, é preferível economia escravista do que economia camponesa (embora seja possível falar em economia camponesa se o critério for a forma generalizada de produção e não a extração de excedente).

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    porque o sentido da tradução destoava muito do texto grego original. Palavras em negritona tradução são meus destaques e servem para reforçar os pontos discutidos no artigo).

    A) ECONOMIA

    1) Racionalidade “moderna” no pensamento econômico dos antigos? Pseudo-Aristóteles (naverdade provavelmente algum pensador do final de século III a.c pertencente ao ciclo de Aris-tóteles) em seu livro “Econômicos” expõe diversos modos em que “notáveis” conseguiramangariar dinheiro em épocas difíceis .

    “Sempre que Cóndalo, um governador de Mausolo 40, atravessava a região e lhe ofereciam um carnei-ro, um porco ou um bezerro, ele registrava o nome da pessoa e a data da oferta;ordenava, depois,

    que o interessado levasse o animal de volta e que o alimentasse até ao seu regresso. Quando lheparecia que o tempo já era suficiente, reclamava tanto o animal criado como a renda, que tinha cal-culado. E as árvores que cresciam ou tombavam para cima dos caminhos reais vendia-as também de rendas. Sempre que algum soldado morria, ele reclamava o pagamento de umadracma pelo transporte do corpo” (Pseudo-Aristóteles, Econômicos: II 1348a 18-28).

    2) Relacao entre produção, circulação e aumento da exploração de sobretrabalho: renda daterra.

    “Na altura em que Cótis formou um exército, o ateniense Ifícrates conseguiu arranjar-lhe dinheiro da

    seguinte forma: aconselhou-o a ordenar às pessoas que estavam sob o seu comando que semeassempara ele um terreno capaz de produzir três medimnos; cumpridas estas instruções, foi-lhe possível juntar bastante quantidade de trigo. Então, desceu com ele até aos entrepostos comerciais e ven-deu-o, conseguindo assim abundância de dinheiro” (Pseudo-Aristóteles, Econômicos: II 1351a 18-23).

    3) Aristóteles esboça uma teorização sobre o duplo aspecto da mercadoria: valor-de-uso evalor-de-troca. Note a subordinação do valor de troca ao valor-de-uso.

    “ Começemos a discussão desse assunto da seguinte maneira: tudo o que possuímos tem um duplouso, mas não no mesmo sentido; um dos usos é adequado ao objeto, o outro não. Por exemplo, umasandália tem dois modos de uso: como calçado e como objeto de troca . Ambos são modos de utili-zação da sandália; aquele que troca uma sandália por dinheiro ou alimento com alguém que delanecessita,faz uso da sandália como sandália, mas não faz o uso da própria coisa; é que esta não exis-te para ser trocada” (Aristóteles, Política I 1257a 9-14)

    B) CLASSE E LUTA DE CLASSE

    CIDADÃOS LIVRES POBRES (GERALMENTE CAMPONESES) X CIDADÃOS LIVRES RIC

    (GERALMENTE DONOS DE TERRAS E ESCRAVOS)

    40 Tirano da Trácia. Se governo situa-se entre 377 e 353 a.C.

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    1) Consciência de Aristóteles de que a cidade (pólis) estava dividida entre ricos e pobrese que isso gerava conflitos

    “Por identicas razões devem tomar-se precauções em relação à prosperidade excessiva de cada fac-ção da cidade . O remédio consiste em colocar a condução dos assuntos públicos e as magistraturasnas mãos de facções opostas (e digo que os notáveis se opõem à massa [ plethos ] e os pobres [ apo-ria ] aos ricos [euporia ]) tentando ao mesmo tempo combinar a massa dos pobres com os ricos, oupromover o crescimento da classe média [ mesos ]: poder-se-á deste modo pôr termo às revoltas[stasis ] suscitadas pela desigualdade ” (Aristóteles, Politica: 1308b 24-30).

    2) Platão também reconhece a divisão da cidade entre ricos e pobres

    “Sócrates: Às outras cidades- respondi- é preciso dar um nome de significação mais ampla, pois cada

    cidade é múltipla e não una, como no jogo41

    ; encerra, ao menos, duas cidades inimigas entre si: ados pobres [ penés ] e a dos ricos [ ploúsios ], e cada uma destas se subdivide em várias outras”. (Pla-tão, A República: IV 422e-422a).

    3) Relato de apropriação ilegal de terras de campone