história quase nas maos

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A história (quase) em nossas mãos! 1 Sérgio Lessa Membro da editoria da Revista Crítica Marxista e Professor da Faculdade de Filosoa da Universidade Federal de Alagoas. 7/9/2013 1 Versão preliminar do texto. Publicado em Borba, M. Natasha, F. E Reys, . P. !or"s# Brasil em Movimento , refexões a partir dos protestos de junho , Ed. Rocco, $%1&.

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A histria (quase) em nossas mos!

Srgio LessaMembro da editoria da Revista Crtica Marxista e Professor da Faculdade de Filosofia da Universidade Federal de Alagoas.

As manifestaes que atravessaram de norte a sul o pas, neste ano de 2013, foram um fenmeno social indito, desconhecido em nossa histria. Nunca tantas pessoas saram s ruas. Nunca, antes, milhes ganharam as praas sem serem convocados pelos partidos polticos e pelos principais rgos de imprensa (como ocorreu, diferenas consideradas, com o Primeiro de Maio de 1980 em So Bernardo, com as Diretas J e com o impeachment do Collor). As manifestaes no tiveram um mvel particular, definido ou pr-orquestrado. Talvez a palavra de ordem que melhor expresse o estado de esprito da maioria seja um difuso, porm perceptvel, "contra tudo e contra todos!".As manifestaes vieram na esteira de um recrudescimento da represso aos movimentos populares (o antigo MST, a resistncia construo de barragens, como em Belo Monte, a resistncia privatizao da universidade pblica e ao Reuni, etc.), uma estratgia iniciada no final da "era FHC" e aprimorada nos diversos governos petistas. Desde a Ditadura Militar, foi pela primeira vez sob o governo Lula que a Polcia Federal entrou nos Campi universitrios para reprimir estudantes, professores e funcionrios, que a represso s manifestaes de rua se tornou mais violenta (com ataques da tropa de choque e o cerceamento ostensivo do direito manifestao pelo isolamento dos manifestantes no interior de um cordo de policiais, com a priso e abertura de processos contra militantes e por fim, mas no por ltimo, a manuteno dos assassinatos das lideranas no campo e da impunidade dos assassinos, etc.). A mera quantidade de manifestantes implodiu essa estratgia. Frente nova correlao de foras, uma nova estratgia repressiva ainda no parece ter sido encontrada pelas foras da ordem.

As manifestaes ocorreram, tambm, na etapa final do "teste", digamos, dos partidos estruturados na redemocratizao. Todos os partidos com expresso nacional (o PMDB, o antigo PFL, o PSDB e o PT) assumiram o poder e demonstraram a enorme distncia entre seus discursos eleitoreiros e suas prticas. Desde os municpios at o governo federal, todos os partidos comprovaram a tese, tida at h pouco de fantasiosamente radical, de que nada mais fazem do que "o mais do mesmo". O PSDB no fez mais do que aprofundar as polticas neoliberais inauguradas por Collor, o PT apenas aperfeioou a obra do PSDB. Quando as manifestaes mostraram sua fora, no foi por acaso que todos esses partidos reagiram do mesmo modo: ausentaram-se. Melanclico o silncio de Lula. Fake o "observar acadmico" de FHC. Macambzia a promessa de Dilma de "escutar as ruas". Farsante a tentativa do Congresso Nacional "mostrar servio" aprovando legislaes rigorosamente incuas. Enquanto partcipes do "Partido da Ordem", buscaram salvar as "instituies" do espontneo rechao popular. Todos eles so parte do "tudo" e dos "todos" contra os quais fomos s ruas. As manifestaes tiveram, por isso, um claro e inequvoco carter antipartidos, antipoltica e antigrande imprensa (sobre esses aspectos, voltarei mais frente).

Essas causas, sem deixarem de ser verdadeiras, so insuficientes para explicar o que vivenciamos. O descontentamento generalizado e o desgaste das instituies, por si s, no explicam o que assistimos. As razes mais importantes na ecloso das manifestaes possivelmente sejam uma alterao das classes trabalhadoras e populares de 1970 para c e uma nova aliana de classes no poder que se desenvolveu, paulatinamente, desde a dcada de 1980.

A aristocracia operria e o grande capital

Graas abundncia de matrias-primas baratas, espaos continentais ainda desocupados, uma malha de transporte e produo de energia capaz de se expandir com investimentos no to vultuosos e, acima de tudo, com uma fora-de-trabalho da ordem de dezenas de milhes, disciplinada e sem tradio de lutas (como, por exemplo, a da classe operria argentina ou boliviana); com uma estrutura sindical e partidria "confivel" vinda da ditadura militar e, ainda, com classes dominantes que, desde 1500, cumprem diligentemente seu papel de serviais do grande capital mundial todos esses fatores fizeram do Brasil, uma vez iniciada a crise econmica mundial, em meados de 1970, um dos locais preferidos para investimentos pelo grande capital internacional.

Isto deu incio transformao das classes assalariadas. Os primeiros passos, ainda tmidos, sob o "Milagre Brasileiro", entre 1969 e 1973, se aprofundaram, com avanos e recuos, at chegarmos aos nossos dias. Seu mvel mais importante que a fonte de riqueza mais lucrativa ao grande capital deixou de ser a extrao de matrias-primas e a exportao dos produtos primrios. Ao lado destas fontes de riqueza "tradicionais", em nossa histria desde o Ciclo do Acar, revelou-se ainda mais lucrativa a explorao da fora-de-trabalho pela introduo no pas de grandes plantas industriais e pela converso do latifndio tradicional em agrobusiness. Sendo breve, as indstrias cresceram, promoveram o inchamento dos centros urbanos escala atual, milhes de trabalhadores abandonaram o campo para formar uma gerao operria jovem e inexperiente, poltica e sindicalmente. Pelo mesmo processo e pelas mesmas mediaes, o crescimento das cidades e do parque industrial gerou um novo mercado de servios (desde limpeza de fbricas, manuteno de mquinas, assistncias tcnicas de todas as ordens, at servios como lazer, sade, educao, transportes etc.) que tem sido a base econmica para o surgimento de um amplo conjunto de assalariados. Composto por profissionais liberais, comerciantes, "empreendedores", ambulantes, trabalhadores part-time e do mercado informal etc., formam uma enorme massa de pessoas, heterognea e varivel no espao de alguns poucos anos. Em poucas palavras, entre os grandes proprietrios do campo e da cidade, com sua umbilical conexo com o sistema mundial do capital, de um lado e, de outro lado, os proletrios do campo e da cidade, se interps algo indito na nossa histria: "as classes de transio" entre os extremos sociais. o que, muitas vezes, nas estatsticas oficiais tem sido apresentado como a "nova classe mdia".

H, aqui, que se avanar com precauo. Pois a tradicional "classe mdia" dos pases capitalistas mais desenvolvidos cumpre uma funo social distinta das nossas "classes de transio". L, devem potencializar o consumo perdulrio; aqui, devem maximizar a lucratividade dos empreendimentos, notadamente nas indstrias. Em ambos os casos servem reproduo do capital, verdade; contudo, servem de modo distinto e isso pode ter consequncias quando se tratar das manifestaes de 2013. Nos pases centrais, tendem a ser mais conservadoras enquanto que, na periferia, tendem a ser mais combativas.

O impacto dessas transformaes sociais mais profundo do que sugere um primeiro olhar. A lucratividade de todo empreendimento capitalista pode ser ampliada, basicamente, por dois mecanismos. O primeiro fazer com que se trabalhe mais pelo mesmo salrio. Isso conseguido de diversas maneiras, a mais frequente em pocas de grande desemprego despedir trabalhadores e contratar outros com salrios mais baixos. Essa uma forma eficaz economicamente, mas tem a desvantagem de aumentar a revolta entre os trabalhadores. O segundo mecanismo fazer com que perca o seu valor a fora de trabalho. Caso a alimentao, o vesturio, as despesas com a educao dos filhos, sade, transportes etc., fiquem mais baratos, possvel que uma parcela menor da riqueza produzida pelo operrio seja convertida em seu salrio, aumentando, consequentemente, a poro da riqueza que fica com o patro sem que diminua o poder aquisitivo do trabalhador.

A urbanizao j coloca em ao o segundo mecanismo, a queda do valor da fora de trabalho. O crescimento do mercado consumidor torna lucrativa a produo muito mais barata, em escala industrial, dos alimentos, roupas, remdios etc. consumidos pelos trabalhadores. A ampliao da escala dos servios de transporte, sade, educao etc. faz com que diminuam seus custos. Essa tendncia natural do mercado complementada por calculados investimentos do Estado nos servios pblicos (transporte, sade, educao e moradias, principalmente), barateando ainda mais o custo da reproduo da fora de trabalho e, consequentemente, ampliando a lucratividade do sistema do capital no seu todo.

Os operrios mais especializados, que quase sempre trabalham em grandes plantas industriais ou empresas gigantescas (montadoras automobilsticas, Petrobrs, CSN etc.), possuem no apenas salrios mais elevados como ainda tendem a ter, durante boa parte de sua vida produtiva, uma estabilidade relativamente maior no emprego. Por outro lado, para produzir tanto os bens de primeira necessidade (vesturio, alimentos, moradia, etc.), quanto matrias-primas (carvo vegetal, estanho, etc.) e componentes (autopeas e eletroeletrnicos, etc.), o interior do pas tambm vive um processo de industrializao. Pequenas cidades como Turitama (PE), Gois Velho (GO) e Toledo (PR) recebem indstrias que exploram uma mo de obra barata, sem organizao sindical, no especializada, para a qual o mero emprego industrial uma melhoria de vida. As jornadas e a intensidade do trabalho so inimaginveis os relatos so impressionantes. Uma massa proletria no interior do pas (onde havia antes camponeses e trabalhadores rurais, quase sempre massa de manobra poltica das foras mais conservadoras) a contrapartida do desenvolvimento do operariado nos grandes centros.

Nessas novas circunstncias, os operrios especializados dos grandes centros urbanos e das plantas industriais com emprego intensivo de tecnologia participam ativamente do mercado de consumo de massas e tm interesse direto na manuteno dos baixos salrios dos trabalhadores que produzem o que eles consomem. Quanto menor o salrio nas indstrias txtil, alimentcia, tecelagem, eletroeletrnica etc., maior ser seu poder aquisitivo. Do mesmo modo, quanto menor o dispndio do Estado com os salrios dos funcionrios pblicos, com a assistncia aos mais carentes, etc., mais baratos sero os servios pblicos (transportes, sade, educao, etc.) e, portanto, maior seu poder aquisitivo.

Instaura-se, por essa via, uma clivagem entre o setor mais especializado dos operrios, com melhores salrios, culturalmente mais elevado, politicamente melhor formado, e o restante da classe. Foi assim que, desde 1970-80, passamos a contar com uma "aristocracia operria". Esta se distingue dos seus colegas de classe no apenas pelo seu maior poder de compra, mas tambm por uma maior disposio em se aliar com o grande patronato sempre que seu emprego ou seu poder aquisitivo estiver em jogo. um setor da classe operria que no hesita em prejudicar o restante da classe para manter seus "privilgios" e sua participao no mercado de consumo.

Como rene a parcela do operariado mais especializada, culturalmente melhor formada e com maior capacidade de liderana, desde o sculo 19 na Alemanha e na Inglaterra, desde o incio do sculo 20 na Frana e, desde a dcada de 1980 no Brasil, os sindicatos e centrais sindicais, os partidos e agremiaes polticas que se originam do movimento dos trabalhadores, tendem a ser liderados por representantes da aristocracia operria. Por essa razo, fundamentalmente, tais sindicatos e partidos tm se aliado ao grande capital e atuado como seus "ces de guarda" (a expresso de Alan Bihr) sobre o conjunto dos trabalhadores.

Nesse particular, a trajetria do PT e da CUT exemplar pela sua rapidez no tempo e pela transparncia de suas causas. As greves de 1978-80, que chacoalharam o Brasil, foram saudadas como a entrada da classe operria no processo de democratizao. As saudaes eram acertadas: a ditadura no se recuperaria daquele golpe e a iniciativa poltica tenderia a ficar com as foras mais moderadas da oposio.

Hoje, todavia, podemos perceber o que, naquele momento, passou despercebido: a entrada do proletariado foi to limitada quanto seria o prprio processo de redemocratizao. A industrializao criara uma aristocracia operria e os processos mais lucrativos (os "carros chefes da economia", como se dizia ento), literalmente passavam por suas mos. Tal como nos pases capitalistas centrais, tambm no Brasil um setor mais especializado, mais culto, politicamente mais informado, tinha sido gerado espontaneamente pelo simples avano das indstrias e o crescimento dos centros urbanos. Nos outros pases, esse setor do proletariado se aliou ao grande capital e desempenha, at hoje, um papel poltico que lhe garante vantagens materiais e, para seus representantes, a burocracia sindical, um excelente lugar ao sol. Os burocratas sindicais, com sua capacidade de controlar o conjunto dos trabalhadores a partir do slido apoio da aristocracia operria, ocupam postos nos ministrios, fazem parte de comisses e assessoram diretamente o governo com todas as vantagens "naturais" dessa situao. So parceiros "responsveis" "na conduo" dos "negcios nacionais", como avaliara De Gaulle ao entregar o controle do principal rgo de previdncia francs s centrais sindicais logo aps a II Guerra Mundial.

At 1980, nossa burocracia sindical exclua os representantes da jovem aristocracia operria. Era, para ser breve, pouco mais do que uma mfia que mantinha a estrutura sindical sob seu controle com o auxlio da ditadura militar e do patronato. Era corrente a prtica de nomear os militantes que estavam surgindo para serem despedidos pelos patres. O grande capital, contando com os militares e com os pelegos, no tinha porque tratar nossa aristocracia operria melhor do que j o fazia: salrios "condizentes com o mercado", isto , acima dos salrios mdios dos "pees"; uma estabilidade no emprego um pouco maior (principalmente devido sua maior especializao) e a intensidade do trabalho era um pouco menor. Mas, ainda que fosse a "aristocracia", era reprimida e tratada como se fosse a plebe.

As greves de 1978-80

Foi essa insatisfao que explodiu com as greves de 1978-80. Contou com o apoio amplamente majoritrio da classe operria e levantou simpatias generalizadas porque ningum mais suportava a opresso, a misria, a corrupo, as injustias e, acima de tudo, a brutal concentrao de renda. Rapidamente, o movimento ganhou uma caracterstica indita em nossa histria: a aristocracia operria se articulou nacionalmente dando origem CUT e ao PT. Os velhos pelegos naufragaram nas greves. Nem os patres os procuravam mais, j que s representavam a eles prprios. A nsia por mudanas e justia eram anos de Constituinte, retorno dos exilados, luta pela anistia, MST em ascenso, reconstruo das entidades estudantis etc. foi sendo polarizada ao redor de um projeto cujo eixo era a maior participao dos trabalhadores na "vida poltica" e na "determinao dos rumos da nao" pouco se falava em superar o capitalismo. Naturalmente, a CUT e o PT foram se tornando as instituies mais representativas dos ventos de mudana.

A Constituinte de 1987-8 foi a consolidao do que viria a ser o rumo "democrtico" do pas. Tanto a nova burocracia sindical (o sindicalismo "autntico") quanto as foras mais progressistas (a Igreja, o MST, o movimento popular etc.) jogaram toda a fora na eleio de representantes para a Constituinte e, depois, nas disputas internas para a elaborao da nova Carta Magna. Promulgada a nova Constituio, todavia, nada se alterou no pas. A transio, que se iniciara da forma a mais conservadora, com a eleio da dupla Tancredo-Sarney (aquele fiel servidor dos ditadores e das classes dominantes e, este, o ltimo presidente da ARENA), no teria seu rumo alterado pela recm promulgada Constituio. Fracassou a estratgia de aproveitar a Constituinte para uma transio democracia mais favorvel aos setores populares -- e a vitria de Collor sobre Lula, apenas um ano depois, em 1989, selou a derrota da frente progressista que congregava, sob a liderana dos sindicalistas "autnticos", a Igreja, os movimentos populares, parte da imprensa e setores progressistas.

Foi nesse momento que foram assentados os termos da negociao entre os representantes da aristocracia operria e o grande capital em vista a uma acomodao que propiciasse o "desenvolvimento econmico" e a "consolidao da democracia" uma democracia que era a derrota dos trabalhadores. Com a fora poltica e organizativa que conquistara, a aristocracia operria se cacifou para negociar de uma posio de fora; contudo, as derrotas na Constituinte e a vitria de Collor devolveram a iniciativa poltica ao grande capital. Collor iniciou a abertura econmica que foi o primeiro passo das reformas neoliberais e a CUT, reconhecendo a derrota, enviou ao Planalto seu ento presidente, Jair Meneguelli, para um beija-mo. A CUT e o PT reconheciam a derrota e aceitavam a regra do jogo queriam todavia dele participar.

A histria de como foi sendo costurada essa aliana da aristocracia operria e seus representantes com o grande capital quase um misto de histria de espionagem e romance policial. No faltaram lances secretos, negociaes s escuras e escusas, promessas que nunca podero ser pblicas, malas de dinheiro e, tambm, confrontos, embates abertos, quase sempre no Congresso (com a CUT e o PT organizando manifestaes e campanhas) ou por ocasio das eleies at que, com o segundo governo FHC e o aprofundamento da crise econmica que marcou o final de sua "era", o PT e a CUT tiveram uma oportunidade de ouro de selar a aliana com o grande capital.

Internamente, a CUT e o PT j haviam destroado suas alas mais combativas. Com a greve dos petroleiros, em 1995, abandonada morte por inanio pela CUT e pelo PT, desarticulou-se a ltima fora mais esquerda que talvez viesse a ser um obstculo para um acordo com o empresariado. Por outro lado, com a crise poltica do final do governo FHC, as reformas neoliberais enfrentavam uma significativa oposio popular. A reforma da previdncia dos funcionrios pblicos, a grande negociata do dia, no passaria sob um governo do PSDB. Lula e os dirigentes do PT e da CUT (nesse momento, j com o apoio e participao do MST, o ltimo movimento popular ainda com fora social significativa) se dispunham a levar avante as medidas que o PSDB gostaria de implementar, mas no tinha foras -- e que a grande burguesia almejava no curto prazo, mas no contava com uma representao poltica com potncia para empreend-las. O PT na presidncia foi a soluo.

A "repblica dos sindicalistas" vivia seus dias de glria. A posse de Lula em Braslia foi uma apoteose nacional. Nas semanas e meses seguintes, a burocracia sindical recebeu sua parte do bolo na forma de milhares de cargos comissionados, quase sempre com polpudas gratificaes, e muitos dos principais sindicalistas passaram a administrar os fundos de penso e ter influncia nas grandes negociatas que sempre envolvem o "fundo pblico". As reformas neoliberais foram aprofundadas com o "modo petista de governar" e mesmo a reforma da previdncia do funcionalismo pblico to drstica que provocou o que seria o maior movimento de massas nos dois governos Lula contou com apoio suficiente para garantir o cu de brigadeiro que o grande capital almejava.

Excetuada a "brecada de arrumao" que foi o episdio do mensalo o PT foi com muita sede ao pote da corrupo e era preciso "impor limites" (Roberto Jefferson) a verso tupiniquim do "pensamento nico" rezava que no havia governo melhor no universo do que o petista. As provas? A elevada popularidade dos governantes, as "bolsas" todas (famlia, escola, alimentao, minha casa, meus eletrodomsticos etc.), o prestgio de Lula junto aos "grandes" da poltica mundial (Obama: "This is our guy!"), a adeso do MST base de apoio ao governo, a manipulao estatstica que "comprova" uma fictcia distribuio de renda e riqueza, etc. etc.

Consolidou-se, dessa forma, um dos elementos que nos parecem decisivos para explicar as manifestaes que vivenciamos: sindicalistas e grande capital se uniram para promover uma unanimidade nacional ao redor dos governos petistas e de uma poltica econmica, para ser breve, neoliberal. A grande imprensa, todos os grandes partidos, todas as centrais sindicais e quase todos os sindicatos (o ANDES, sindicato nacional dos professores universitrios, e o Sindicato dos Metalrgicos de So Jos dos Campos so excees que confirmam a regra) adentraram ao "Partido da Ordem": nenhuma fora parecia existir que pudesse desafiar este construto poltico to bem articulado e slido.

Todavia, de Collor a Dilma, as polticas neoliberais cumpriram a sua finalidade: alocar maciamente riqueza no sistema financeiro para deslocar as contradies cada vez mais agudas de um sistema mundial do capital que contempla sua quebradeira geral. O quanto tais polticas concentraram de renda e riqueza nas mos de uma nfima minoria e, no outro polo, o quanto resultaram em misria, desemprego, violncias de todas as ordens, tanto as institucionalizadas (Guantnamo, com seus inovadores mtodos de tortura), quanto aquelas das nossas ruas e avenidas, algo que no precisamos mais do que mencionar.

O descontentamento geral e generalizado "com tudo e com todos" no parou de crescer e, contudo, no tinha como se manifestar.

Hic et nuncEnquanto nas "nuvens da poltica" o cu era de brigadeiro para "os do poder", a vida continuava a percorrer seus caminhos pelas avenidas e vielas do pas.

Desde 1500, a marca de nossa histria tem sido a de sermos fontes de riqueza a ser acumulada nos pases capitalistas centrais. Uma classe dominante, scia do grande capital mundial na explorao das riquezas naturais e dos trabalhadores, a contrapartida necessria do fato de sermos "exportadores de capital". O efeito colateral, nada desprezvel, uma sociedade profundamente desigual, com a pior distribuio de renda do planeta.

Quando nos tornamos independentes, de fundamental, nada mudou. Nossa independncia foi predominantemente determinada pela necessidade da Inglaterra industrializada tirar Portugal do papel de intermedirio no comrcio com o Brasil. Passamos a exportar caf em 1830 e fizemos a Abolio e a Repblica, porque assim atenderamos melhor s necessidades do capital ingls. Entre o suicdio de Getlio, em 1954, e o Golpe Militar de 1964, demorou apenas uma dcada para que as epidrmicas alteraes nesse esquema (a industrializao pela substituio das importaes) fossem revertidas: "o que bom para os EUA" voltou a ser "bom para o Brasil"!

Com a crise estrutural do capital que se iniciou em 1970, como j vimos, o pas passou a ser um dos focos de investimentos do grande capital: no apenas para continuar a explorar perdulariamente nossas riquezas naturais, mas tambm para intensificar a explorao da fora de trabalho em moldes "modernos", o que inclui vasto parque industrial, a gerao de uma aristocracia operria, a industrializao de reas do interior do pas e o agrobusiness.

O petismo, com seu "desenvolvimentismo", nada mais que a prossecuo nos moldes hoje possveis, do nosso papel tradicional no "concerto das naes". Por isso o paradoxo de que, por mais que aumente o nosso Produto Interno Bruto, a distribuio de renda no melhora (estamos aqui excluindo, por que no realiza qualquer distribuio de renda, os programas de esmolas federais, como o bolsa famlia, etc. Dar esmola reproduz a misria, no distribui renda ou riqueza). Por isso as misrias da vida cotidiana no tm qualquer perspectiva de melhoria: das escolas de samba, da educao ao transporte, da sade ao meio-ambiente, da famlia aos indivduos, em nenhum setor da vida as coisas devero melhorar no futuro previsvel. O oposto parece ser o mais correto: estamos indo desta para uma pior. A desagregao dos centros urbanos em praas de guerra talvez seja o fenmeno contemporneo que epidermicamente melhor simbolize o tamanho da crise em que estamos metidos.

A profundidade e extenso da desagregao social, contudo, no possui nenhum reflexo, no sentido de provocar movimentos, na esfera das "nuvens da poltica". Em Braslia, v-se o mundo com outros olhos. Um milho de assinaturas pedindo o afastamento de Renan Calheiros da presidncia do Senado protocolado no Congresso e o resultado uma demonstrao de fora por parte do senador apupado nas praas que o torna ainda mais poderoso em seu cargo.

dessa tica do mundo das nuvens que as Copas das Confederaes e do Mundo e as Olimpadas deveriam ser o coroamento do projeto "desenvolvimentista" do PT e a garantia da volta ao Planalto de Lula aps o segundo mandato de Dilma. Se at a Ditadura Militar foi capaz de capitalizar uma copa do mundo, imaginem o que os petistas e seus marqueteiros no poderiam fazer! O plano parecia perfeito: estimularia a construo civil, propiciaria grandes ganhos para os empreiteiros, aqueceria a economia, geraria empregos e, ainda, seria a oportunidade para os corruptos em todos os postos demonstrarem sua rapacidade e sua criatividade. Tinha tudo para dar certo. O povo ficaria a favor, teria jogos de futebol e, ainda, empregos. As empreiteiras e a burocracia se locupletariam. A imprensa e os partidos polticos poderiam fazer reparos aqui ou ali, mas no teriam como deixar de reconhecer o brilhantismo da estratgia petista. A reeleio tranquila de Dilma para o seu segundo mandato prepararia o retorno glorioso de Lula em 2018.

A crescente insatisfao de todos e as misrias de muitos no tinham como se articular em um discurso, quanto mais como se manifestar. At que as coisas chegaram ao ponto em que surgiu uma nova qualidade pelo mero agravamento quantitativo. Essa a caracterstica mais importante das manifestaes de 2013: a forma e maneira em que as insatisfaes com o nosso "modo de ser brasileiro" (Arnaldo Jabor) puderam se manifestar. Contra tudo e contra todos!

O quanto isto positivo, difcil ser exagerado.

O preocupante, todavia, so as enormes debilidades para atingir o objetivo de transformar seriamente o pas que o movimento exibe. Antes que seja capaz de articular uma organizao nacional e um claro projeto de tomada do poder contra as classes dominantes e sua fiel aliada, a burocracia sindical, ser joguete fcil na mo dos polticos profissionais, isto , dos serviais das classes dominantes. Como esse desafio ser enfrentado pelo movimento e com qual sucesso algo que no se pode antever. O que podemos dizer, at agora, que os partidos de esquerda que sobreviveram s dcadas neoliberais no parecem capazes de cumprir essa funo. Com esse ltimo tpico, concluiremos nossas observaes.

A esquerda e as manifestaes

Impe-se que, nesses dias, ao falarmos de esquerda, iniciemos por defini-la. Depois de tantos anos sem revolues, nada mais natural que as coisas estejam confusas. A esquerda so as foras e organizaes polticas que no apenas so oposio ao governo, mas tambm que defendem a superao da sociedade fundada na explorao do homem pelo homem, da sociedade organizada pelo Estado e da famlia patriarcal. Ao lado de centenas de organizaes locais, com presena nacional temos trs organizaes: o PCO (Partido da Causa Operria), o PSTU (Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado) e o PCB (Partido Comunista Brasileiro).

As trs organizaes so muito distintas entre si. Suas estratgias polticas, as formas de funcionamento interno, suas referncias tericas e ideolgicas, suas trajetrias, etc., so bastante diferentes. Das trs, o PSTU a organizao que conseguiu alguma insero no movimento operrio e que articulou uma expressiva central sindical de oposio ao petismo, a Conlutas. Possui, ainda, a maior editora de esquerda do pas e um jornal semanal de ampla circulao feito nico desde as dcadas de 1950 e 1960. Nem o PT conseguiu um rgo de imprensa como o PSTU.

Diferenas parte, as trs organizaes possuem o mrito de terem resistido avalanche conservadora que foram as trs ltimas dcadas do sculo 20. Sobreviver sob tal presso ideolgica, por si s, um grande mrito.

Mritos reconhecidos e assinalados, o fato que tais organizaes foram colocadas como integrantes do "tudo" e "todos" contra os quais as manifestaes se levantaram. Isso apenas decorrente do fato de que, para sobreviver, as organizaes da esquerda fizeram o que parecia possvel: escolhiam sempre a "menos pior" das alternativas no interior da ordem. Participaram de todas as eleies e foram ganhando ares eleitoreiros; apresentaram propostas que lhes pareciam viveis para melhorar a sorte do povo, administraram sindicatos e associaes de classe como era possvel... em poucas palavras, passaram a viver em funo das eleies, dos cargos que conquistavam nos sindicatos e congneres e, no dia a dia, no se diferenciavam nem do PT, nem do PSDB, nem do PSOL. Sua prtica e seu discurso eram apenas mais radicais, mas dentro da ordem. Quando o "contra tudo e contra todos" se expressou nas praas, seria surpreendente se tais organizaes no fossem duramente criticadas.

"O general que comanda a ofensiva no o mesmo que comanda a retirada", reza um ditado russo. Os partidos de esquerda tiveram o mrito indisputvel de terem resistido. Para isso, contudo, tiveram que desenvolver caractersticas que, talvez, os incapacitem para liderarem as lutas futuras. Acima de tudo, tiveram que desenvolver um centralismo na direo e uma disciplina nos militantes que se contrapem frontalmente s caractersticas organizacionais que esto surgindo nas manifestaes (no apenas no Brasil, mas tambm no exterior). A defesa rigorosa e intransigente da "doutrina revolucionria" as converteu em defensoras de dogmas e com enorme dificuldade em aprender com a histria. Mesmo a recusa dos partidos polticos que possui um elemento muito positivo de denncia do fundamental da ordem muitas vezes foi, pelos partidos de esquerda, reduzida a uma fantasiosa ameaa fascista. Fascistas existem, claro est. Mas imaginar que sejam eles os responsveis pela postura antipartidos mistificao dos fatos e manifestao de um certo "esprito de preservao".

O que h de positivo na recusa dos partidos e da poltica, de algum modo esteve tambm presente na recusa grande imprensa. Uma recusa ativa, com palavras de ordem e posturas que inviabilizavam a presena de reprteres da grande mdia junto dos manifestantes. A surpresa de um Caco Barcelos ao ser hostilizado -- "nem na ditadura....!" apenas comparvel sua incompreenso do que ocorria. No d para servir a dois senhores! Pago pelos Robertos Marinhos da vida, seu lugar no entre os manifestantes. No por outra razo, mas porque dcadas deste assalariamento levaram os profissionais da grande imprensa a tergiversar, a se calar, a se ausentar, a virar o rosto quando no a mentir abertamente! a servio dos poderosos. E, pelo mesmo ato e pelas mesmas palavras, as pessoas abriam suas redes domsticas para que os reprteres dos manifestantes, em cores e ao vivo, transmitissem pela internet, para quem quisesse ver e ouvir, o que ocorria nas ruas. O que de fato ocorria nas ruas: sem edies em cabines fechadas e sem a direo de quem quer que fosse! Uma nova imprensa, uma nova escola de jornalismo, um novo cdigo profissional est dando seus primeiros passos, analogamente a como uma nova gerao de militantes est se formando.

O Brasil no mais o mesmo! Isso parece ser uma unanimidade nacional. O que est em jogo em que sentido e com que contedo as mudanas iro se consolidar. O futuro est em aberto e depender, em enorme medida, do que pessoas como eu e voc fizermos no futuro prximo. Ou seja, como ocorre raras vezes, a histria pode estar em nossas mos.

Mos obra, portanto!

Verso preliminar do texto. Publicado em Borba, M. Natasha, F. E Reys, J. P. (orgs) Brasil em Movimento, reflexes a partir dos protestos de junho, Ed. Rocco, 2014.

O primeiro mecanismo denominado de mais-valia absoluta e, o segundo, de mais-valia relativa.

Alan ou Alain?

As aspas devem ficar assim mesmo? Ou responsveis na conduo dos negcios nacionais?

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