história geral da África vi

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Comitê Científico Internacional da UNESCO para Redação da História Geral da África HISTÓRIA GERAL DA ÁFRICA VI África do século XIX à década de 1880 UNESCO Representação no BRASIL Ministério da Educação do BRASIL Universidade Federal de São Carlos EDITOR J. F. ADE AJAYI

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  • 1. Comit Cientfico Internacional da UNESCO para Redao da Histria Geral da frica HISTRIA GERAL DA FRICA VI frica do sculo XIX dcada de 1880 EDITOR J. F. ADE AJAYI UNESCO Representao no BRASIL Ministrio da Educao do BRASIL Universidade Federal de So Carlos
  • 2. Comit Cientfico Internacional da UNESCO para Redao da Histria Geral da frica HISTRIA GERAL DA FRICA VI frica do sculo XIX dcada de 1880
  • 3. Coleo Histria Geral da frica da UNESCO Volume I Metodologia e pr-histria da frica (Editor J. Ki-Zerbo) Volume II frica antiga (Editor G. Mokhtar) Volume III frica do sculo VII ao XI (Editor M. El Fasi) (Editor Assistente I. Hrbek) Volume IV frica do sculo XII ao XVI (Editor D. T. Niane) Volume V frica do sculo XVI ao XVIII (Editor B. A. Ogot) Volume VI frica do sculo XIX dcada de 1880 (Editor J. F. A. Ajayi) Volume VII frica sob dominao colonial, 1880-1935 (Editor A. A. Boahen) Volume VIII frica desde 1935 (Editor A. A. Mazrui) (Editor Assistente C. Wondji) Os autores so responsveis pela escolha e apresentao dos fatos contidos neste livro, bem como pelas opinies nele expressas, que no so necessariamente as da UNESCO, nem comprometem a Organizao. As indicaes de nomes e apresentao do material ao longo deste livro no implicam a manifestao de qualquer opinio por parte da UNESCO a respeito da condio jurdica de qualquer pas, territrio, cidade, regio ou de suas autoridades, tampouco da delimitao de suas fronteiras ou limites.
  • 4. Comit Cientfico Internacional da UNESCO para Redao da Histria Geral da frica HISTRIA GERAL DA FRICA VI frica do sculo XIX decada de 1880 EDITOR J. F. Ade Ajayi Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a Cultura
  • 5. Esta verso em portugus fruto de uma parceria entre a Representao da UNESCO no Brasil, a Secretaria de Educao Continuada, Alfabetizao e Diversidade do Ministrio da Educao do Brasil (Secad/MEC) e a Universidade Federal de So Carlos (UFSCar). Ttulo original: General History of Africa, VI: Africa in the nineteenth century until the 1880s. Paris: UNESCO; Berkley, CA: University of California Press; London: Heinemann Educational Publishers Ltd., 1989. (Primeira edio publicada em ingls). UNESCO 2010 Coordenao geral da edio e atualizao: Valter Roberto Silvrio Tradutores: David Yann Chaigne, Joo Bortolanza, Luana Antunes Costa, Lus Hernan de Almeida Prado Mendoza, Milton Coelho, Sieni Maria Campos Reviso tcnica: Kabengele Munanga Preparao de texto: Eduardo Roque dos Reis Falco Reviso e atualizao ortogrfica: Ilunga Kabengele Projeto grfico e diagramao: Marcia Marques / Casa de Ideias; Edson Fogaa e Paulo Selveira / UNESCO no Brasil Histria geral da frica, VI: frica do sculo XIX dcada de 1880 / editado por J. F. Ade Ajayi. Braslia : UNESCO, 2010. 1032 p. ISBN: 978-85-7652-128-0 1. Histria 2. Histria contempornea 3. Histria africana 4. Culturas africanas 5. frica I. Ajayi, J. F. Ade II. UNESCO III. Brasil. Ministrio da Educao IV. Universidade Federal de So Carlos Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a Cultura (UNESCO) Representao no Brasil SAUS, Quadra 5, Bloco H, Lote 6, Ed. CNPq/IBICT/UNESCO, 9 andar 70070-912 Braslia DF Brasil Tel.: (55 61) 2106-3500 Fax: (55 61) 3322-4261 Site: www.unesco.org/brasilia E-mail: [email protected] Ministrio da Educao (MEC) Secretaria de Educao Continuada, Alfabetizao e Diversidade (Secad/MEC) Esplanada dos Ministrios, Bl. L, 2 andar 70047-900 Braslia DF Brasil Tel.: (55 61) 2022-9217 Fax: (55 61) 2022-9020 Site: http://portal.mec.gov.br/index.html Universidade Federal de So Carlos (UFSCar) Rodovia Washington Luis, Km 233 SP 310 Bairro Monjolinho 13565-905 So Carlos SP Brasil Tel.: (55 16) 3351-8111 (PABX) Fax: (55 16) 3361-2081 Site: http://www2.ufscar.br/home/index.php Impresso no Brasil
  • 6. SUMRIO Apresentao....................................................................................VII Nota dos Tradutores........................................................................... IX Cronologia........................................................................................ XI Lista de Figuras.............................................................................. XIII Prefcio...........................................................................................XIX Apresentao do Projeto..................................................................XXV frica no incio do sculo XIX: problemas e perspectivas....... 1 A frica e a economiamundo.............................................. 27 Tendncias e processos novos na frica do sculo XIX........ 47 . A abolio do trfico de escravos........................................... 77 O Mfecane e a emergncia de novos Estados africanos...... 105 O impacto do Mfecane sobre a colnia do Cabo................ 147 Os britnicos, os beres e os africanos na frica do Sul 18501880..................................................................... 169 Captulo 8 Os pases da bacia do Zambeze........................................... 211 Captulo 9 O litoral e o interior da frica Oriental de 1800 a 1845.................................................................................. 249 Captulo 10 O litoral e o interior da frica Oriental de 1845 a 1880................................................................................ 275 Captulo 1 Captulo 2 Captulo 3 Captulo 4 Captulo 5 Captulo 6 Captulo 7
  • 7. VI Captulo 11 Captulo 12 Captulo 13 Captulo 14 Captulo 15 Captulo 16 Captulo 17 Captulo 18 Captulo 19 Captulo 20 Captulo 21 Captulo 22 Captulo 23 Captulo 24 Captulo 25 Captulo 26 Captulo 27 Captulo 28 Captulo 29 frica do sculo XIX dcada de 1880 P ovos e Estados da regio dos Grandes Lagos.................. 317 A . bacia do Congo e Angola.............................................. 343 O renascimento do Egito (18051881)............................. 377 . O Sudo no sculo XIX..................................................... 411 Etipia e a Somlia........................................................ 435 A adagascar, 18001880..................................................... 477 M N ovos desenvolvimentos no Magreb: Arglia, Tunsia e Lbia................................................................................ 517 O Marrocos do incio do sculo XIX at 1880.................. 549 N ovas formas de interveno europeia no Magreb............ 571 O Saara no sculo XIX...................................................... 591 A s revolues islmicas do sculo XIX na frica . do Oeste. ........................................................................... 619 O califado de Sokoto e o Borno........................................ 641 O Macina e o Imprio Torodbe (Tucolor) at 1878.......... 699 E stados e povos da Senegmbia e da Alta Guin.............. 741 E stados e povos do Arco do Nger e do Volta................... 771 D aom, pas iorub, Borgu (Borgou) e Benim no sculo XIX......................................................................... 813 O delta do Nger e Camares............................................ 843 A dispora africana............................................................ 875 Concluso: a frica s vsperas da conquista europeia...... 905 Membros do Comit Cientfico Internacional para a Redao de uma Histria Geral da frica........................................................931 Dados biogrficos dos autores do volume VI......................................933 Abreviaes e listas de peridicos.......................................................939 Referncias bibliogrficas..................................................................941 ndice remissivo..............................................................................1001
  • 8. VII APRESENTAO APRESENTAO Outra exigncia imperativa de que a histria (e a cultura) da frica devem pelo menos ser vistas de dentro, no sendo medidas por rguas de valores estranhos... Mas essas conexes tm que ser analisadas nos termos de trocas mtuas, e influncias multilaterais em que algo seja ouvido da contribuio africana para o desenvolvimento da espcie humana. J. Ki-Zerbo, Histria Geral da frica, vol. I, p. LII. A Representao da UNESCO no Brasil e o Ministrio da Educao tm a satisfao de disponibilizar em portugus a Coleo da Histria Geral da frica. Em seus oito volumes, que cobrem desde a pr-histria do continente africano at sua histria recente, a Coleo apresenta um amplo panorama das civilizaes africanas. Com sua publicao em lngua portuguesa, cumpre-se o objetivo inicial da obra de colaborar para uma nova leitura e melhor compreenso das sociedades e culturas africanas, e demonstrar a importncia das contribuies da frica para a histria do mundo. Cumpre-se, tambm, o intuito de contribuir para uma disseminao, de forma ampla, e para uma viso equilibrada e objetiva do importante e valioso papel da frica para a humanidade, assim como para o estreitamento dos laos histricos existentes entre o Brasil e a frica. O acesso aos registros sobre a histria e cultura africanas contidos nesta Coleo se reveste de significativa importncia. Apesar de passados mais de 26 anos aps o lanamento do seu primeiro volume, ainda hoje sua relevncia e singularidade so mundialmente reconhecidas, especialmente por ser uma histria escrita ao longo de trinta anos por mais de 350 especialistas, sob a coordenao de um comit cientfico internacional constitudo por 39 intelectuais, dos quais dois teros africanos. A imensa riqueza cultural, simblica e tecnolgica subtrada da frica para o continente americano criou condies para o desenvolvimento de sociedades onde elementos europeus, africanos, das populaes originrias e, posteriormente, de outras regies do mundo se combinassem de formas distintas e complexas. Apenas recentemente, temse considerado o papel civilizatrio que os negros vindos da frica desempenharam na formao da sociedade brasileira. Essa compreenso, no entanto, ainda est restrita aos altos estudos acadmicos e so poucas as fontes de acesso pblico para avaliar este complexo processo, considerando inclusive o ponto de vista do continente africano.
  • 9. VIII frica do sculo XIX dcada de 1880 A publicao da Coleo da Histria Geral da frica em portugus tambm resultado do compromisso de ambas as instituies em combater todas as formas de desigualdades, conforme estabelecido na declarao universal dos direitos humanos (1948), especialmente no sentido de contribuir para a preveno e eliminao de todas as formas de manifestao de discriminao tnica e racial, conforme estabelecido na conveno internacional sobre a eliminao de todas as formas de discriminao racial de 1965. Para o Brasil, que vem fortalecendo as relaes diplomticas, a cooperao econmica e o intercmbio cultural com aquele continente, essa iniciativa mais um passo importante para a consolidao da nova agenda poltica. A crescente aproximao com os pases da frica se reflete internamente na crescente valorizao do papel do negro na sociedade brasileira e na denncia das diversas formas de racismo. O enfrentamento da desigualdade entre brancos e negros no pas e a educao para as relaes tnicas e raciais ganhou maior relevncia com a Constituio de 1988. O reconhecimento da prtica do racismo como crime uma das expresses da deciso da sociedade brasileira de superar a herana persistente da escravido. Recentemente, o sistema educacional recebeu a responsabilidade de promover a valorizao da contribuio africana quando, por meio da alterao da Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional (LDB) e com a aprovao da Lei 10.639 de 2003, tornou-se obrigatrio o ensino da histria e da cultura africana e afro-brasileira no currculo da educao bsica. Essa Lei um marco histrico para a educao e a sociedade brasileira por criar, via currculo escolar, um espao de dilogo e de aprendizagem visando estimular o conhecimento sobre a histria e cultura da frica e dos africanos, a histria e cultura dos negros no Brasil e as contribuies na formao da sociedade brasileira nas suas diferentes reas: social, econmica e poltica. Colabora, nessa direo, para dar acesso a negros e no negros a novas possibilidades educacionais pautadas nas diferenas socioculturais presentes na formao do pas. Mais ainda, contribui para o processo de conhecimento, reconhecimento e valorizao da diversidade tnica e racial brasileira. Nessa perspectiva, a UNESCO e o Ministrio da Educao acreditam que esta publicao estimular o necessrio avano e aprofundamento de estudos, debates e pesquisas sobre a temtica, bem como a elaborao de materiais pedaggicos que subsidiem a formao inicial e continuada de professores e o seu trabalho junto aos alunos. Objetivam assim com esta edio em portugus da Histria Geral da frica contribuir para uma efetiva educao das relaes tnicas e raciais no pas, conforme orienta as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educao das Relaes tnico-Raciais e para o Ensino da Histria e Cultura Afrobrasileira e Africana aprovada em 2004 pelo Conselho Nacional de Educao. Boa leitura e sejam bem-vindos ao Continente Africano. Vincent Defourny Fernando Haddad Representante da UNESCO no Brasil Ministro de Estado da Educao do Brasil
  • 10. NOTA DOS TRADUTORES IX NOTA DOS TRADUTORES A Conferncia de Durban ocorreu em 2001 em um contexto mundial diferente daquele que motivou as duas primeiras conferncias organizadas pela ONU sobre o tema da discriminao racial e do racismo: em 1978 e 1983 em Genebra, na Sua, o alvo da condenao era o apartheid. A conferncia de Durban em 2001 tratou de um amplo leque de temas, entre os quais vale destacar a avaliao dos avanos na luta contra o racismo, na luta contra a discriminao racial e as formas correlatas de discriminao; a avaliao dos obstculos que impedem esse avano em seus diversos contextos; bem como a sugesto de medidas de combate s expresses de racismo e intolerncias. Aps Durban, no caso brasileiro, um dos aspectos para o equacionamento da questo social na agenda do governo federal a implementao de polticas pblicas para a eliminao das desvantagens raciais, de que o grupo afrodescendente padece, e, ao mesmo tempo, a possibilidade de cumprir parte importante das recomendaes da conferncia para os Estados Nacionais e organismos internacionais. No que se refere educao, o diagnstico realizado em novembro de 2007, a partir de uma parceria entre a UNESCO do Brasil e a Secretaria de Educao Continuada, Alfabetizao e Diversidade do Ministrio da Educao (SECAD/ MEC), constatou que existia um amplo consenso entre os diferentes participantes, que concordavam, no tocante a Lei 10.639-2003, em relao ao seu baixo grau de institucionalizao e sua desigual aplicao no territrio nacional. Entre
  • 11. X frica do sculo XIX dcada de 1880 os fatores assinalados para a explicao da pouca institucionalizao da lei estava a falta de materiais de referncia e didticos voltados Histria de frica. Por outra parte, no que diz respeito aos manuais e estudos disponveis sobre a Histria da frica, havia um certo consenso em afirmar que durante muito tempo, e ainda hoje, a maior parte deles apresenta uma imagem racializada e eurocntrica do continente africano, desfigurando e desumanizando especialmente sua histria, uma histria quase inexistente para muitos at a chegada dos europeus e do colonialismo no sculo XIX. Rompendo com essa viso, a Histria Geral da frica publicada pela UNESCO uma obra coletiva cujo objetivo a melhor compreenso das sociedades e culturas africanas e demonstrar a importncia das contribuies da frica para a histria do mundo. Ela nasceu da demanda feita UNESCO pelas novas naes africanas recm-independentes, que viam a importncia de contar com uma histria da frica que oferecesse uma viso abrangente e completa do continente, para alm das leituras e compreenses convencionais. Em 1964, a UNESCO assumiu o compromisso da preparao e publicao da Histria Geral da frica. Uma das suas caractersticas mais relevantes que ela permite compreender a evoluo histrica dos povos africanos em sua relao com os outros povos. Contudo, at os dias de hoje, o uso da Histria Geral da frica tem se limitado sobretudo a um grupo restrito de historiadores e especialistas e tem sido menos usada pelos professores/as e estudantes. No caso brasileiro, um dos motivos desta limitao era a ausncia de uma traduo do conjunto dos volumes que compem a obra em lngua portuguesa. A Universidade Federal de So Carlos, por meio do Ncleo de Estudos Afrobrasileiros (NEAB/UFSCar) e seus parceiros, ao concluir o trabalho de traduo e atualizao ortogrfica do conjunto dos volumes, agradece o apoio da Secretaria de Educao Continuada, Alfabetizao e Diversidade (SECAD), do Ministrio da Educao (MEC) e da UNESCO por terem propiciado as condies para que um conjunto cada vez maior de brasileiros possa conhecer e ter orgulho de compartilhar com outros povos do continente americano o legado do continente africano para nossa formao social e cultural.
  • 12. Cronologia Na apresentao das datas da pr-histria convencionou-se adotar dois tipos de notao, com base nos seguintes critrios: Tomando como ponto de partida a poca atual, isto , datas B.P. (before present), tendo como referncia o ano de + 1950; nesse caso, as datas so todas negativas em relao a + 1950. Usando como referencial o incio da Era Crist; nesse caso, as datas so simplesmente precedidas dos sinais - ou +. No que diz respeito aos sculos, as menes antes de Cristo e depois de Cristo so substitudas por antes da Era Crist, da Era Crist. Exemplos: (i) 2300 B.P. = -350 (ii) 2900 a.C. = -2900 1800 d.C. = +1800 (iii) sculo V a.C. = sculo V antes da Era Crist sculo III d.C. = sculo III da Era Crist
  • 13. XIII Lista de Figuras Lista de Figuras Figura 1.1 Figura 3.1 Figura 3.2 Figura 3.3 Figura 3.4 Figura 4.1 Figura 4.2 Figura 4.3 Figura 6.1 Figura 7.1 Figura 7.2 Figura 8.1 Figura 8.2 Figura 8.3 Figura 8.4 Figura 8.5 Figura 8.6 Figura 8.7 Dana cerimonial em Mbelebele, campo militar zulu, em 1836........................... 22 As misses crists e o isl, 18001860.................................................................. 54 Igreja da misso da Church of Scotland em Blantyre (Malaui)............................ 56 Tiyo Soga.............................................................................................................. 58 Escola da vila Charlotte, Serra Leoa, cerca de 1885............................................. 61 Mapa da costa ocidental da frica. ...................................................................... 86 . Um grupo de mulheres oromas a bordo do HMS Daphne depois de sua libertao de um veleiro lesteafricano................................................................ 102 Escravos libertados no domnio da Misso das universidades em Mbweni, perto de Zanzibar pagamento dos salrios....................................................... 102 Bonecas venda no Cabo no incio do sculo XIX, representando um homem e uma mulher san................................................................................... 152 Mapa da frica do Sul indicando os Estados e os povos, 18501880................ 172 Membros de um comando ber, por volta de 1880............................................ 206 . Mapa tnico e poltico da frica Central, 18001880........................................ 214 Jumbe de Khota Khota.......................................................................................... 222 . Mercadores rabes da regio norte do lago Malaui............................................ 224 . Um Ruga ruga (caador de escravos).................................................................. 228 Os shangana de Soshangane chegam a Shapanga para recolher o imposto . anual devido pelos portugueses........................................................................... 237 Tocador de tambor e danarinos na corte de Sipopa, rei dos lozi, 1875............. 241 Sipopa, um dos chefes da rebelio lozi contra os kololo em 1864...................... 241
  • 14. XIV frica do sculo XIX dcada de 1880 Figura 9.1 O litoral e o interior: povos e principais rotas comerciais, 18001850................ 251 Figura 9.2 O litoral setentrional e o interior: as rotas comerciais, 1850............................... 256 Figura 9.3 Extrao em prensas do leo de gergelim em Mogadscio, 1847........................ 257 Figura 9.4 Sad ibn Sultan, sulto de Zanzibar (18041856).............................................. 259 Figura 10.1 O Oceano ndico no sculo XIX...................................................................... 277 Figura 10.2 O comrcio na frica Oriental no sculo XIX................................................. 282 Figura 10.3 Penteados e cortes de cabelos nyamwezi........................................................... 285 . Figura 10.4 Mercadores nyamwezi na estrada. .................................................................... 285 Figura 10.5 Mirambo em 1882 ou 1883.............................................................................. 295 Figura 10.6 A regio dos Grandes Lagos, 18401884......................................................... 297 . Itinerrio das migraes em direo ao Norte dos nguni de Zwangendaba, Figura 10.7 dos maseko nguni e dos msene......................................................................... 300 Figura 10.8 Os massai e seus vizinhos, 18401884.............................................................. 304 Figura 11.1 A regio dos Grandes Lagos............................................................................. 319 Figura 11.2 O Buganda em 1875: a capital do kabaka........................................................ 322 . Figura 11.3 O kabaka Mutesa, rodeado de chefes e dignitrios........................................... 322 Figura 11.4 A casa do Tesouro e os ornamentos reais do rumanyika, rei do Karagwe......... 326 Figura 11.5 Batalha naval no Lago Vitria entre os Baganda e o povo das Ilhas Buvuma, 1875................................................................................................... 329 . Figura 11.6 Circuitos comerciais da regio dos Grandes Lagos. ......................................... 331 Figura 12.1 A frica Central do Oeste no sculo XIX. ...................................................... 344 . . Figura 12.2 Uma aldeia da provncia de Manyema, a Nordeste do Imprio Luba.............. 346 Figura 12.3 Tambores reais do reino kuba, no sculo XIX................................................... 351 Figura 12.4 Munza, rei dos mangbetu, em 1870.................................................................. 356 Figura 12.5 Kazembe em 1831............................................................................................ 356 Figura 12.6 A frica Central do Oeste: espaos comerciais por volta de 1880................... 358 Figura 12.7 Mulher da aristocracia kimbundu com sua escrava, nos anos 1850.................. 359 Figura 12.8 Guerreiro kimbundo e mulher da aristocracia, nos anos 1850.......................... 359 Figura 12.9 Chifre de elefante esculpido, da metade do sculo XIX.................................... 360 Figura 12.10 Uma caravana de mercadores ovimbundo durante um pouso......................... 363 Figura 12.11 Esttua chokwe representando Chibinda Ilunga, o lendrio fundador do Imprio lunda................................................................................................. 367 . Figura 12.12 O mwant yav Mbumba................................................................................... 372 Figura 13.1 O Imprio egpcio de Muhammad Al (18041849). ...................................... 380 . Figura 13.2 Muhammad Al................................................................................................ 383 Figura 13.3 Ibrhm, filho de Muhammad Ali e seu generalemchefe.............................. 384 Figura 13.4 O shaykh Rif alTahtw. ............................................................................... 389 . Figura 13.5 chegada do primeiro trem ligando o Cairo a Suez, 14 de dezembro A de 1858............................................................................................................. 395 Figura 13.6 O bombardeio de Alexandria, julho de 1882.................................................... 407
  • 15. Lista de Figuras XV Figura 14.1 O Sudo sob o domnio turco, 18201881........................................................ 412 Figura 14.2 Sennar em 1821: a capital do antigo sultanato dos funj................................... 415 . Figura 14.3 Um acampamento de caadores de escravos turcoegpcios no Cordofo........ 415 Figura 14.4 Navios mercantes de Cartum sobre um afluente do Bahr al Ghazal ao Norte das terras dinka....................................................................................... 422 Figura 14.5 zeriba de um mercador em Mvolo, com um estabelecimento dinka fora A de seus muros.................................................................................................... 422 . Figura 14.6 Uma vila shilluk aps um ataque de caadores de escravos. ............................. 424 Figura 14.7 Um msico zande............................................................................................. 426 Figura 14.8 O reforo da administrao e a modernizao turcoegpcias........................... 433 Figura 15.1 A Etipia no incio do sculo XIX................................................................... 437 Figura 15.2 Dajazmach Web do Tigre............................................................................... 440 Figura 15.3 O rei Sahla Sellas de Shoa.............................................................................. 443 Figura 15.4 O emir Ahmad ibn Muhammad do Harar, 17941821.................................... 451 Figura 15.5 O imperador Teodoro inspecionando o canteiro de obras de uma estrada....... 454 Figura 15.6 O grande canho Sebastopol do imperador Teodoro..................................... 458 Figura 15.7 Eclesisticos etopes durante a dcada de 1840................................................ 459 Figura 15.8 Uma interpretao moderna da cena do suicdio do imperador Teodoro em frente a sir Robert Napier................................................................................. 466 Figura 15.9 O imperador Johanns IV................................................................................. 469 . Figura 16.1 Madagascar e seus vizinhos. ............................................................................. 479 Figura 16.2 Vista de Antananarivo nos anos 1850. ............................................................. 480 . Figura 16.3 Madagascar, 18001880.................................................................................... 483 Figura 16.4 A expanso do reino merina, 18101840.......................................................... 488 . Figura 16.5 Adrianampoinimerina, morto em 1810.. .......................................................... 491 Figura 16.6 O rei Radama I, 18101828.............................................................................. 491 Figura 16.7 A rainha Ranavalona I, 18281861................................................................... 491 Figura 16.8 O rei Radama II, 18611863............................................................................ 491 Figura 16.9 A rainha Rasoherina, 18631868...................................................................... 491 Figura 16.10 A rainha Ranavalona II, 18681883.................................................................... 491 Figura 16.11 palcio da rainha em Antananarivo, comeado em 1839 por Jean O Laborde a pedido da rainha Ranavalona I.......................................................495 Figura 16.12 O palanquim da rainha Rasoherina diante de uma palhota venerada............. 507 Figura 16.13 Acampamento de Ranavalona II.................................................................... 511 . Figura 16.14 Fundio e forjamento do ferro em Madagascar, nos anos 1850.................... 512 Figura 16.15 Mulheres escravas tirando gua e pilando arroz em Madagascar.................... 515 Figura 17.1 Interior da mesquita de Ketchawa (erguida em 1794), em Argel..................... 520 Figura 17.2 Uma escola cornica em Argel, 1830................................................................ 522 Figura 17.3 Membros do nizm [exrcito] tunisiano com uniformes de estilo europeu..... 539 Figura 17.4 O tmulo de Muhammad ben Al alSansi, fundador da Sansiyya.............. 544
  • 16. XVI frica do sculo XIX dcada de 1880 Figura 17.5 Mulheres da alta sociedade argelina servidas por uma escrava negra................ 546 Figura 18.1 O sulto Abd al-Rahmn (1822-1859) em 1832............................................. 550 Figura 18.2 As regies histricas do Marrocos no sculo XIX............................................ 552 Figura 18.3 O sulto Hasan I (18731894)......................................................................... 560 . . Figura 18.4 Rial de prata cunhado em Paris em 1881 para Hasan I. .................................. 563 Figura 19.1 Abd alKdir.................................................................................................... 579 . Figura 19.2 Soldados de Abd alKdir: a infantaria............................................................ 580 Figura 19.3 Soldados de Abd alKdir: a cavalaria.............................................................. 580 Figura 19.4 A guerra francomarroquina: a batalha de Isly, 1844........................................ 581 Figura 19.5 A submisso de Abd alKdir.......................................................................... 582 . Figura 20.1 O comrcio nos confins do deserto................................................................... 605 Figura 20.2 A kasba [citadela] de Murzuk, no Fezzn, em 1869......................................... 606 Figura 20.3 A sociedade oasiana: mulheres no mercado de Murzuk, 1869.......................... 608 Figura 20.4 Os minaretes da mesquita de Agads............................................................... 609 Figura 20.5 Artigos de marroquinaria tuaregue venda em Tomboctou nos anos 1850..... 614 . Figura 22.1 O califado de Sokoto, o Borno e os seus vizinhos............................................ 643 Figura 22.2 Carta de Muhammad Bello, califa de Sokoto, 18171837................................ 648 Figura 22.3 Artigos do artesanato huassa colecionados por Gustav Nachtigal, em 1870.... 682 Figura 22.4 O xeque Muhammad alAmn alKnemi....................................................... 685 Figura 22.5 Um dos lanceiros kanembu do xeque alKanmi.............................................. 689 Figura 22.6 Blusa bordada de uma mulher do Borno, feita nos anos 1870........................... 694 Figura 23.1 pginas iniciais de alIdtirar, supostamente o nico livro escrito por As Seku Ahmadu....................................................................................................702 . Figura 23.2 O Macina em seu apogeu, 1830. ...................................................................... 705 . Figura 23.3 Runas de uma torre de defesa do tat [fortaleza] de Hamdallahi. .................. 707 Figura 23.4 Sepultura de Seku Ahmadu em Hamdallahi.................................................... 709 Figura 23.5 Imprio Torodbe em seu apogeu....................................................................... 717 Figura 23.6 De Dinguiraye a Hamdallahi............................................................................ 727 Figura 23.7 Entrada do palcio de Ahmadu, em SgouSikoro........................................... 736 Figura 23.8 Ahmadu recebendo a corte do seu palcio......................................................... 740 Figura 24.1 Estados e povos da Senegmbia e da Alta Guin.............................................. 743 Figura 24.2 Chefes da regio costeira de Mandinka na Gmbia em 1805.. ........................ 748 . Figura 24.3 Vista de Timbo, capital de Futa Djalon, c. 1815............................................... 753 Figura 24.4 Barqueiros kru.................................................................................................... 761 Figura 24.5 Casas kru........................................................................................................... 761 . Figura 25.1 Povos e cidades da frica Ocidental mencionados no texto............................. 773 Figura 25.2 A banqueta de ouro dos ashanti. ...................................................................... 774 . Figura 25.3 A corte das finanas, Kumashi, 1817................................................................ 781 Figura 25.4 primeiro dia da festa anual do Odwira, em Kumashi, 1817n Murray, O Londres..............................................................................................................782
  • 17. Lista de Figuras XVII Figura 25.5 Personagens mascarados mossi, provavelmente sacerdotes da terra representando a autoridade aborgene, no incio do sculo XIX....................... 786 . Figura 25.6 Mogho Naaba Sanem festejado pelos seus sujeitos em 1888. .......................... 786 Figura 25.7 Tipos de casa bambara, 1887............................................................................ 795 Figura 25.8 Um mercador ambulante mossi, 1888. ............................................................. 801 . Figura 25.9 Mapa de Kintampo, cidade comercial do interior da Costa do Ouro............... 802 Figura 25.10 Salaga em 1888............................................................................................... 803 Figura 25.11 Uma oficina de carpintaria da misso de Bal, em Christiansborg (Accra).... 810 Figura 26.1 Escultura representando um guerreiro sobre os ombros de um babala........... 815 Figura 26.2 O pas iorub-aja e o antigo Imprio Oyo (incio do sculo XIX)................... 817 Figura 26.3 porta da cidade iorub de Ipara, no pas ijebu, aproximadamente A em 1855.............................................................................................................819 Figura 26.4 Vista de Ibadan, em 1854, em primeiro plano as instalaes da Church Missionary Society.............................................................................................822 Figura 26.5 Altar no recinto do rei, Benin........................................................................... 829 Figura 26.6 Vista da cidade de Benin na poca da invaso britnica, 1897......................... 830 Figura 26.8 Esttua de um homem em p, brao direito levantado e esquerdo dobrado, considerada uma representao simblica do rei Ghezo (1818-1858).............. 838 Figura 26.9 O rei Gll (1858-1889), simbolicamente sob a forma de um leo.................. 838 Figura 27.1 O delta do Nger e Camares no sculo XIX................................................... 844 Figura 27.2 Uma localidade itsekiri no rio Benin, nos anos 1890........................................ 846 Figura 27.3 Nana Olomu de Itsekiri.................................................................................... 847 Figura 27.4 O rei Jaja de Opobo.......................................................................................... 852 Figura 27.5 A casa do rei Bell, na dcada de 1840............................................................... 865 Ouassengo, comerciante de Ogou, empunhando presas de elefante, Figura 27.6 acompanhado das suas mulheres....................................................................... 870 Figura 27.7 Antchuwe Kowe Rapontchombo (o rei Denis), soberano das margens do Ogou, com a sua grande mulher 871 Figura 28.1 Figura masculina de tipo negride suportando nas costas o peso de um cris indonsio preso cintura, provavelmente proveniente da regio do atual . Vietn e datado, verossmil, do sculo XVII...................................................878 Figura 28.2 trfico de escravos da frica do Leste nos anos 1850, visto por sir O Richard Burton................................................................................................. 880 Figura 28.3 Servial negra e eunuco negro com a criana do seu mestre na ndia Oriental, no sculo XIX.................................................................................... 885 Figura 28.4 Toussaint Louverture, lder da revoluo de Santo-Domingo e patrono da independncia do Haiti..................................................................................... 902
  • 18. XIX Prefcio Prefcio por M. Amadou - Mahtar MBow, Diretor Geral da UNESCO (1974-1987) Durante muito tempo, mitos e preconceitos de toda espcie esconderam do mundo a real histria da frica. As sociedades africanas passavam por sociedades que no podiam ter histria. Apesar de importantes trabalhos efetuados desde as primeiras dcadas do sculo XX por pioneiros como Leo Frobenius, Maurice Delafosse e Arturo Labriola, um grande nmero de especialistas noafricanos, ligados a certos postulados, sustentavam que essas sociedades no podiam ser objeto de um estudo cientfico, notadamente por falta de fontes e documentos escritos. Se a Ilada e a Odissia podiam ser devidamente consideradas como fontes essenciais da histria da Grcia antiga, em contrapartida, negava-se todo valor tradio oral africana, essa memria dos povos que fornece, em suas vidas, a trama de tantos acontecimentos marcantes. Ao escrever a histria de grande parte da frica, recorria-se somente a fontes externas frica, oferecendo uma viso no do que poderia ser o percurso dos povos africanos, mas daquilo que se pensava que ele deveria ser. Tomando freqentemente a Idade Mdia europia como ponto de referncia, os modos de produo, as relaes sociais tanto quanto as instituies polticas no eram percebidos seno em referncia ao passado da Europa. Com efeito, havia uma recusa a considerar o povo africano como o criador de culturas originais que floresceram e se perpetuaram, atravs dos sculos, por
  • 19. XX frica do sculo XIX dcada de 1880 vias que lhes so prprias e que o historiador s pode apreender renunciando a certos preconceitos e renovando seu mtodo. Da mesma forma, o continente africano quase nunca era considerado como uma entidade histrica. Em contrrio, enfatizava-se tudo o que pudesse reforar a idia de uma ciso que teria existido, desde sempre, entre uma frica branca e uma frica negra que se ignoravam reciprocamente. Apresentava-se frequentemente o Saara como um espao impenetrvel que tornaria impossveis misturas entre etnias e povos, bem como trocas de bens, crenas, hbitos e idias entre as sociedades constitudas de um lado e de outro do deserto. Traavam-se fronteiras intransponveis entre as civilizaes do antigo Egito e da Nbia e aquelas dos povos subsaarianos. Certamente, a histria da frica norte-saariana esteve antes ligada quela da bacia mediterrnea, muito mais que a histria da frica subsaariana mas, nos dias atuais, amplamente reconhecido que as civilizaes do continente africano, pela sua variedade lingstica e cultural, formam em graus variados as vertentes histricas de um conjunto de povos e sociedades, unidos por laos seculares. Um outro fenmeno que grandes danos causou ao estudo objetivo do passado africano foi o aparecimento, com o trfico negreiro e a colonizao, de esteretipos raciais criadores de desprezo e incompreenso, to profundamente consolidados que corromperam inclusive os prprios conceitos da historiografia. Desde que foram empregadas as noes de brancos e negros, para nomear genericamente os colonizadores, considerados superiores, e os colonizados, os africanos foram levados a lutar contra uma dupla servido, econmica e psicolgica. Marcado pela pigmentao de sua pele, transformado em uma mercadoria, entre outras, e condenado ao trabalho forado, o africano passou a simbolizar, na conscincia de seus dominadores, uma essncia racial imaginria e ilusoriamente inferior quela do negro. Este processo de falsa identificao depreciou a histria dos povos africanos, no esprito de muitos, rebaixando-a a uma etno-histria em cuja apreciao das realidades histricas e culturais no podia ser seno falseada. A situao evoluiu muito desde o fim da Segunda Guerra Mundial, em particular, desde que os pases da frica, tendo alcanado sua independncia, comearam a participar ativamente da vida da comunidade internacional e dos intercmbios a ela inerentes. Historiadores, em nmero crescente, esforaramse em abordar o estudo da frica com mais rigor, objetividade e abertura de esprito, empregando obviamente com as devidas precaues fontes africanas originais. No exerccio de seu direito iniciativa histrica, os prprios africanos sentiram profundamente a necessidade de restabelecer, em bases slidas, a historicidade de suas sociedades.
  • 20. Prefcio XXI nesse contexto que emerge a importncia da Histria Geral da frica, em oito volumes, cuja publicao a Unesco comeou. Os especialistas de numerosos pases que se empenharam nessa obra, preocuparam-se, primeiramente, em estabelecer-lhe os fundamentos tericos e metodolgicos. Eles tiveram o cuidado em questionar as simplificaes abusivas criadas por uma concepo linear e limitativa da histria universal, bem como em restabelecer a verdade dos fatos sempre que necessrio e possvel. Eles esforaram-se para extrair os dados histricos que permitissem melhor acompanhar a evoluo dos diferentes povos africanos em sua especificidade sociocultural. Nessa tarefa imensa, complexa e rdua em vista da diversidade de fontes e da disperso dos documentos, a UNESCO procedeu por etapas. A primeira fase (1965-1969) consistiu em trabalhos de documentao e de planificao da obra. Atividades operacionais foram conduzidas in loco, atravs de pesquisas de campo: campanhas de coleta da tradio oral, criao de centros regionais de documentao para a tradio oral, coleta de manuscritos inditos em rabe e ajami (lnguas africanas escritas em caracteres rabes), compilao de inventrios de arquivos e preparao de um Guia das fontes da histria da frica, publicado posteriormente, em nove volumes, a partir dos arquivos e bibliotecas dos pases da Europa. Por outro lado, foram organizados encontros, entre especialistas africanos e de outros continentes, durante os quais discutiu-se questes metodolgicas e traou-se as grandes linhas do projeto, aps atencioso exame das fontes disponveis. Uma segunda etapa (1969 a 1971) foi consagrada ao detalhamento e articulao do conjunto da obra. Durante esse perodo, realizaram-se reunies internacionais de especialistas em Paris (1969) e Addis-Abeba (1970), com o propsito de examinar e detalhar os problemas relativos redao e publicao da obra: apresentao em oito volumes, edio principal em ingls, francs e rabe, assim como tradues para lnguas africanas, tais como o kiswahili, o hawsa, o peul, o yoruba ou o lingala. Igualmente esto previstas tradues para o alemo, russo, portugus, espanhol e chins1, alm de edies resumidas, destinadas a um pblico mais amplo, tanto africano quanto internacional. A terceira e ltima fase constituiu-se na redao e na publicao do trabalho. Ela comeou pela nomeao de um Comit Cientfico Internacional de trinta e 1 O volume I foi publicado em ingls, rabe, chins, coreano, espanhol, francs, hawsa, italiano, kiswahili, peul e portugus; o volume II em ingls, rabe, chins, coreano, espanhol, francs, hawsa, italiano, kiswahili, peul e portugus; o volume III em ingls, rabe, espanhol e francs; o volume IV em ingls, rabe, chins, espanhol, francs e portugus; o volume V em ingls e rabe; o volume VI em ingls, rabe e francs; o volume VII em ingls, rabe, chins, espanhol, francs e portugus; o VIII em ingls e francs.
  • 21. XXII frica do sculo XIX dcada de 1880 nove membros, composto por africanos e no-africanos, na respectiva proporo de dois teros e um tero, a quem incumbiu-se a responsabilidade intelectual pela obra. Interdisciplinar, o mtodo seguido caracterizou-se tanto pela pluralidade de abordagens tericas quanto de fontes. Dentre essas ltimas, preciso citar primeiramente a arqueologia, detentora de grande parte das chaves da histria das culturas e das civilizaes africanas. Graas a ela, admite-se, nos dias atuais, reconhecer que a frica foi, com toda probabilidade, o bero da humanidade, palco de uma das primeiras revolues tecnolgicas da histria, ocorrida no perodo Neoltico. A arqueologia igualmente mostrou que, na frica, especificamente no Egito, desenvolveu-se uma das antigas civilizaes mais brilhantes do mundo. Outra fonte digna de nota a tradio oral que, at recentemente desconhecida, aparece hoje como uma preciosa fonte para a reconstituio da histria da frica, permitindo seguir o percurso de seus diferentes povos no tempo e no espao, compreender, a partir de seu interior, a viso africana do mundo, e apreender os traos originais dos valores que fundam as culturas e as instituies do continente. Saber-se- reconhecer o mrito do Comit Cientfico Internacional encarregado dessa Histria geral da frica, de seu relator, bem como de seus coordenadores e autores dos diferentes volumes e captulos, por terem lanado uma luz original sobre o passado da frica, abraado em sua totalidade, evitando todo dogmatismo no estudo de questes essenciais, tais como: o trfico negreiro, essa sangria sem fim, responsvel por umas das deportaes mais cruis da histria dos povos e que despojou o continente de uma parte de suas foras vivas, no momento em que esse ltimo desempenhava um papel determinante no progresso econmico e comercial da Europa; a colonizao, com todas suas conseqncias nos mbitos demogrfico, econmico, psicolgico e cultural; as relaes entre a frica ao sul do Saara e o mundo rabe; o processo de descolonizao e de construo nacional, mobilizador da razo e da paixo de pessoas ainda vivas e muitas vezes em plena atividade. Todas essas questes foram abordadas com grande preocupao quanto honestidade e ao rigor cientfico, o que constitui um mrito no desprezvel da presente obra. Ao fazer o balano de nossos conhecimentos sobre a frica, propondo diversas perspectivas sobre as culturas africanas e oferecendo uma nova leitura da histria, a Histria geral da frica tem a indiscutvel vantagem de destacar tanto as luzes quanto as sombras, sem dissimular as divergncias de opinio entre os estudiosos. Ao demonstrar a insuficincia dos enfoques metodolgicas amide utilizados na pesquisa sobre a frica, essa nova publicao convida renovao e ao
  • 22. Prefcio XXIII aprofundamento de uma dupla problemtica, da historiografia e da identidade cultural, unidas por laos de reciprocidade. Ela inaugura a via, como todo trabalho histrico de valor, a mltiplas novas pesquisas. assim que, em estreita colaborao com a UNESCO, o Comit Cientfico Internacional decidiu empreender estudos complementares com o intuito de aprofundar algumas questes que permitiro uma viso mais clara sobre certos aspectos do passado da frica. Esses trabalhos publicados na coleo da UNESCO, Histria geral da frica: estudos e documentos, viro a constituir, de modo til, um suplemento presente obra2. Igualmente, tal esforo desdobrar-se- na elaborao de publicaes versando sobre a histria nacional ou sub-regional. Essa Histria geral da frica coloca simultaneamente em foco a unidade histrica da frica e suas relaes com os outros continentes, especialmente com as Amricas e o Caribe. Por muito tempo, as expresses da criatividade dos afrodescendentes nas Amricas haviam sido isoladas por certos historiadores em um agregado heterclito de africanismos; essa viso, obviamente, no corresponde quela dos autores da presente obra. Aqui, a resistncia dos escravos deportados para a Amrica, o fato tocante ao marronage [fuga ou clandestinidade] poltico e cultural, a participao constante e massiva dos afrodescendentes nas lutas da primeira independncia americana, bem como nos movimentos nacionais de libertao, esses fatos so justamente apreciados pelo que eles realmente foram: vigorosas afirmaes de identidade que contriburam para forjar o conceito universal de humanidade. hoje evidente que a herana africana marcou, mais ou menos segundo as regies, as maneiras de sentir, pensar, sonhar e agir de certas naes do hemisfrio ocidental. Do sul dos Estados-Unidos ao norte do Brasil, passando pelo Caribe e pela costa do Pacfico, as contribuies culturais herdadas da frica so visveis por toda parte; em certos casos, inclusive, elas constituem os fundamentos essenciais da identidade cultural de alguns dos elementos mais importantes da populao. 2 Doze nmeros dessa srie foram publicados; eles tratam respectivamente sobre: n. 1 O povoamento do Egito antigo e a decodificao da escrita merotica; n. 2 O trfico negreiro do sculo XV ao sculo XIX; n. 3 Relaes histricas atravs do Oceano ndico; n. 4 A historiografia da frica Meridional; n. 5 A descolonizao da frica: frica Meridional e Chifre da frica [Nordeste da frica]; n. 6 Etnonmias e toponmias; n. 7 As relaes histricas e socioculturais entre a frica e o mundo rabe; n. 8 A metodologia da histria da frica contempornea; n. 9 O processo de educao e a historiografia na frica; n. 10 A frica e a Segunda Guerra Mundial; n. 11 Lbya Antiqua; n. 12 O papel dos movimentos estudantis africanos na evoluo poltica e social da frica de 1900 a 1975.
  • 23. XXIV frica do sculo XIX dcada de 1880 Igualmente, essa obra faz aparecerem nitidamente as relaes da frica com o sul da sia atravs do Oceano ndico, alm de evidenciar as contribuies africanas junto a outras civilizaes em seu jogo de trocas mtuas. Estou convencido que os esforos dos povos da frica para conquistar ou reforar sua independncia, assegurar seu desenvolvimento e consolidar suas especificidades culturais devem enraizar-se em uma conscincia histrica renovada, intensamente vivida e assumida de gerao em gerao. Minha formao pessoal, a experincia adquirida como professor e, desde os primrdios da independncia, como presidente da primeira comisso criada com vistas reforma dos programas de ensino de histria e de geografia de certos pases da frica Ocidental e Central, ensinaram-me o quanto era necessrio, para a educao da juventude e para a informao do pblico, uma obra de histria elaborada por pesquisadores que conhecessem desde o seu interior os problemas e as esperanas da frica, pensadores capazes de considerar o continente em sua totalidade. Por todas essas razes, a UNESCO zelar para que essa Histria Geral da frica seja amplamente difundida, em numerosos idiomas, e constitua base da elaborao de livros infantis, manuais escolares e emisses televisivas ou radiofnicas. Dessa forma, jovens, escolares, estudantes e adultos, da frica e de outras partes, podero ter uma melhor viso do passado do continente africano e dos fatores que o explicam, alm de lhes oferecer uma compreenso mais precisa acerca de seu patrimnio cultural e de sua contribuio ao progresso geral da humanidade. Essa obra deveria ento contribuir para favorecer a cooperao internacional e reforar a solidariedade entre os povos em suas aspiraes por justia, progresso e paz. Pelo menos, esse o voto que manifesto muito sinceramente. Resta-me ainda expressar minha profunda gratido aos membros do Comit Cientfico Internacional, ao redator, aos coordenadores dos diferentes volumes, aos autores e a todos aqueles que colaboraram para a realizao desta prodigiosa empreitada. O trabalho por eles efetuado e a contribuio por eles trazida mostram com clareza o quanto homens vindos de diversos horizontes, conquanto animados por uma mesma vontade e igual entusiasmo a servio da verdade de todos os homens, podem fazer, no quadro internacional oferecido pela UNESCO, para lograr xito em um projeto de tamanho valor cientfico e cultural. Meu reconhecimento igualmente estende-se s organizaes e aos governos que, graas a suas generosas doaes, permitiram UNESCO publicar essa obra em diferentes lnguas e assegurar-lhe a difuso universal que ela merece, em prol da comunidade internacional em sua totalidade.
  • 24. Apresentao do Projeto pelo Professor Bethwell Allan Ogot Presidente do Comit Cientfico Internacional para a redao de uma Histria Geral da frica A Conferncia Geral da UNESCO, em sua dcima sexta sesso, solicitou ao Diretor-geral que empreendesse a redao de uma Histria Geral da frica. Esse considervel trabalho foi confiado a um Comit Cientfico Internacional criado pelo Conselho Executivo em 1970. Segundo os termos dos estatutos adotados pelo Conselho Executivo da UNESCO, em 1971, esse Comit compe-se de trinta e nove membros responsveis (dentre os quais dois teros africanos e um tero de no-africanos), nomeados pelo Diretor-geral da UNESCO por um perodo correspondente durao do mandato do Comit. A primeira tarefa do Comit consistiu em definir as principais caractersticas da obra. Ele definiu-as em sua primeira sesso, nos seguintes termos: Em que pese visar a maior qualidade cientfica possvel, a Histria Geral da frica no busca a exausto e se pretende uma obra de sntese que evitar o dogmatismo. Sob muitos aspectos, ela constitui uma exposio dos problemas indicadores do atual estdio dos conhecimentos e das grandes correntes de pensamento e pesquisa, no hesitando em assinalar, em tais circunstncias, as divergncias de opinio. Ela assim preparar o caminho para posteriores publicaes. A frica aqui considerada como um todo. O objetivo mostrar as relaes histricas entre as diferentes partes do continente, muito amide
  • 25. XXVI frica do sculo XIX dcada de 1880 subdividido, nas obras publicadas at o momento. Os laos histricos da frica com os outros continentes recebem a ateno merecida e so analisados sob o ngulo dos intercmbios mtuos e das influncias multilaterais, de forma a fazer ressurgir, oportunamente, a contribuio da frica para o desenvolvimento da humanidade. A Histria Geral da frica consiste, antes de tudo, em uma histria das idias e das civilizaes, das sociedades e das instituies. Ela fundamenta-se sobre uma grande diversidade de fontes, aqui compreendidas a tradio oral e a expresso artstica. A Histria Geral da frica aqui essencialmente examinada de seu interior. Obra erudita, ela tambm , em larga medida, o fiel reflexo da maneira atravs da qual os autores africanos vem sua prpria civilizao. Embora elaborada em mbito internacional e recorrendo a todos os dados cientficos atuais, a Histria ser igualmente um elemento capital para o reconhecimento do patrimnio cultural africano, evidenciando os fatores que contribuem unidade do continente. Essa vontade em examinar os fatos de seu interior constitui o ineditismo da obra e poder, alm de suas qualidades cientficas, conferir-lhe um grande valor de atualidade. Ao evidenciar a verdadeira face da frica, a Histria poderia, em uma poca dominada por rivalidades econmicas e tcnicas, propor uma concepo particular dos valores humanos. O Comit decidiu apresentar a obra, dedicada ao estudo sobre mais de 3 milhes de anos de histria da frica, em oito volumes, cada qual compreendendo aproximadamente oitocentas pginas de texto com ilustraes (fotos, mapas e desenhos tracejados). Para cada volume designou-se um coordenador principal, assistido, quando necessrio, por um ou dois codiretores assistentes. Os coordenadores dos volumes so escolhidos, tanto entre os membros do Comit quanto fora dele, em meio a especialistas externos ao organismo, todos eleitos por esse ltimo, pela maioria de dois teros. Eles encarregam-se da elaborao dos volumes, em conformidade com as decises e segundo os planos decididos pelo Comit. So eles os responsveis, no plano cientfico, perante o Comit ou, entre duas sesses do Comit, perante o Conselho Executivo, pelo contedo dos volumes, pela redao final dos textos ou ilustraes e, de uma maneira geral, por todos os aspectos cientficos e tcnicos da Histria. o Conselho Executivo quem aprova, em ltima instncia, o original definitivo. Uma vez considerado pronto para a edio, o texto remetido ao Diretor-Geral
  • 26. Apresentao do Projeto XXVII da UNESCO. A direo da obra cabe, dessa forma, ao Comit ou ao Conselho Executivo, nesse caso responsvel no nterim entre duas sesses do Comit. Cada volume compreende por volta de 30 captulos. Cada qual redigido por um autor principal, assistido por um ou dois colaboradores, caso necessrio. Os autores so escolhidos pelo Comit em funo de seu curriculum vitae. A preferncia concedida aos autores africanos, sob reserva de sua adequao aos ttulos requeridos. Alm disso, o Comit zela, tanto quanto possvel, para que todas as regies da frica, bem como outras regies que tenham mantido relaes histricas ou culturais com o continente, estejam de forma equitativa representadas no quadro dos autores. Aps aprovao pelo coordenador do volume, os textos dos diferentes captulos so enviados a todos os membros do Comit para submisso sua crtica. Ademais e finalmente, o texto do coordenador do volume submetido ao exame de um comit de leitura, designado no seio do Comit Cientfico Internacional, em funo de suas competncias; cabe a esse comit realizar uma profunda anlise tanto do contedo quanto da forma dos captulos. Ao Conselho Executivo cabe aprovar, em ltima instncia, os originais. Tal procedimento, aparentemente longo e complexo, revelou-se necessrio, pois permite assegurar o mximo de rigor cientfico Histria Geral da frica. Com efeito, houve ocasies nas quais o Conselho Executivo rejeitou originais, solicitou reestruturaes importantes ou, inclusive, confiou a redao de um captulo a um novo autor. Eventualmente, especialistas de uma questo ou perodo especficos da histria foram consultados para a finalizao definitiva de um volume. Primeiramente, uma edio principal da obra em ingls, francs e rabe ser publicada, posteriormente haver uma edio em forma de brochura, nesses mesmos idiomas. Uma verso resumida em ingls e francs servir como base para a traduo em lnguas africanas. O Comit Cientfico Internacional determinou quais os idiomas africanos para os quais sero realizadas as primeiras tradues: o kiswahili e o haussa. Tanto quanto possvel, pretende-se igualmente assegurar a publicao da Histria Geral da frica em vrios idiomas de grande difuso internacional (dentre os quais, entre outros: alemo, chins, italiano, japons, portugus, russo, etc.). Trata-se, portanto, como se pode constatar, de uma empreitada gigantesca que constitui um ingente desafio para os historiadores da frica e para a comunidade cientfica em geral, bem como para a UNESCO que lhe oferece sua
  • 27. XXVIII frica do sculo XIX dcada de 1880 chancela. Com efeito, pode-se facilmente imaginar a complexidade de uma tarefa tal qual a redao de uma histria da frica que cobre no espao, todo um continente e, no tempo, os quatro ltimos milhes de anos, respeitando, todavia, as mais elevadas normas cientficas e convocando, como necessrio, estudiosos pertencentes a todo um leque de pases, culturas, ideologias e tradies histricas. Trata-se de um empreendimento continental, internacional e interdisciplinar, de grande envergadura. Em concluso, obrigo-me a sublinhar a importncia dessa obra para a frica e para todo o mundo. No momento em que os povos da frica lutam para se unir e para, em conjunto, melhor forjar seus respectivos destinos, um conhecimento adequado sobre o passado da frica, uma tomada de conscincia no tocante aos elos que unem os Africanos entre si e a frica aos demais continentes, tudo isso deveria facilitar, em grande medida, a compreenso mtua entre os povos da Terra e, alm disso, propiciar sobretudo o conhecimento de um patrimnio cultural cuja riqueza consiste em um bem de toda a Humanidade. Bethwell Allan Ogot Em 8 de agosto de 1979 Presidente do Comit Cientfico Internacional para a redao de uma Histria Geral da frica
  • 28. frica no incio do sculo XIX: problemas e perspectivas 1 CAPTULO 1 frica no incio do sculo XIX: problemas e perspectivas J. F. Ade. Ajayi O presente volume pretende apresentar de forma geral a histria da frica no sculo XIX, ou seja, antes da corrida macia dos europeus e da colonizao. , em grande parte, sobre o assim chamado1 sculo prcolonial que versa o esforo desempenhado aps a Segunda Guerra Mundial para renovar a interpretao da histria da frica, esforo este de que a Histria geral da frica, publicada pela UNESCO, representa, sem dvida, o pice. A partir do momento em que se admitiu o fato de as mudanas ocorridas na frica no remontarem poca colonial, despertouse um considervel interesse no que concerne ao sculo que precede colonizao. Os historiadores consagraram vrios trabalhos aos acontecimentos revolucionrios do sculo XIX, tais como as reformas de Muhammad Ali no Egito, a reunificao da Etipia sob os imperadores Tewodros e Menelik, o Mfecane dos Estados sothonguni na frica Central e Austral, ou as jihad da frica Ocidental. Tais acontecimentos, assim como outros de importncia comparvel, sero estudados nos prximos captulos. Contudo, os traos gerais do sculo XIX, bem como o significado global deste sculo na histria da frica, permanecem controversos. Em grande parte da frica, o sculo XIX mais bem conhecido e estudado do que os perodos anteriores. Isso se deve abundncia e confiabilidade rela1 P. D. Curtin, S. Feierman, L. Thompson e J. Vansina, 1978, p. 362.
  • 29. 2 frica do sculo XIX dcada de 1880 tiva das fontes orais, assim como s novas fontes representadas pelos documentos escritos decorrentes da intensificao da atividade dos europeus na frica: relatos de viajantes, de missionrios, de comerciantes, de agentes diplomticos e outros representantes dos pases europeus que penetraram, em muitos casos pela primeira vez, em diversas regies do interior do continente. Houve uma tendncia, como no caso da tradio oral, para situar neste sculo privilegiado todas as mudanas importantes sofridas pela frica antes da colonizao. Felizmente, a dinmica da evoluo da frica no decorrer dos precedentes perodos j foi analisada nos outros volumes da presente Histria, permitindo assim refutar o mito de uma frica esttica. Porm, o corolrio desse mito subsistiu: acredita se ainda que as mudanas ocorridas no sculo XIX seriam necessariamente diferentes das mudanas anteriores, podendo apenas ser explicadas por fatores antes desconhecidos. Portanto, importante estudar aqui em que medida as mudanas do sculo XIX prolongariam as do sculo XVIII, e em que medida novos fatores, ligados intensificao da atividade dos europeus e crescente integrao da frica ao sistema econmico mundial, poderiam expliclas. A tendncia para explicar, exageradamente ou exclusivamente, as mudanas ocorridas na frica durante o sculo prcolonial em funo da intensificao da atividade dos europeus coloca o segundo problema caracterstico do estudo deste perodo. A crescente integrao da frica ao sistema econmico mundial muitas vezes considerada, no somente como um elemento importante, mas antes como o principal acontecimento da histria da frica no sculo XIX. Em vez de ser considerado como um prenncio, o sculo XIX aparece ento como o incio do perodo colonial. Conforme a assero do falecido professor Dike em Trade and Politics, segundo a qual a histria moderna da frica Ocidental , em grande medida, a histria de cinco sculos de comrcio com os europeus2, considerouse por muito tempo que o crescimento do comrcio com os europeus, a organizao das rotas comerciais e o desenvolvimento (em mercados que se multiplicavam na prpria frica) das trocas, destinadas a alimentar o comrcio externo, eram os principais, seno os nicos, fatores de mudana na histria da frica oitocentista. Destarte, atribuise a transformao do Egito ao choque causado pela chegada 2 K. O. Dike, 1956, p. 1. Tal assero era claramente exagerada, at mesmo em relao prpria posio de Dike em seu estudo do Delta do Nger no sculo XIX, pois neste so destacados os fatores internos de mudana. S. I. Mudenge (1974, p. 373) critica assim a tese de Trade and Politics: Uma vez estabelecida a existncia de relaes comerciais com o estrangeiro, quando se trata de expor as consequncias destas, Dike negligencia o estudo do efeito real desse comrcio sobre o sistema poltico, assim como de suas relaes com a produo e o consumo internos em cada Estado; ao contrrio, ele concentra todos seus esforos na descrio das rotas comerciais, dos mercados e dos produtos trocados.
  • 30. frica no incio do sculo XIX: problemas e perspectivas 3 de Bonaparte, em vez de considerar o complexo conjunto de fatores internos que haviam originado, j no sculo XVIII, um movimento nacional em torno do albans Muhammad Ali. Ao se apoiar no renascimento egpcio, Muhammad Ali, impedira o poder otomano de assentar de novo seu domnio direto sobre o Egito. Da mesma forma, vse no Mfecane no um produto da prpria dinmica da sociedade nguni do Norte, mas antes uma vaga reao presena dos europeus, reao esta que teria dado origem a presses sobre a fronteira ocidental do Cabo ou ao desejo de comerciar com os portugueses na baa de Delagoa. No incio do sculo XIX, a notvel conjuno desses acontecimentos com as jihad da frica Ocidental e o despertar da Etipia exigem uma explicao global3. Mas, em vez de buscar essa explicao na dinmica das sociedades africanas, os historiadores acreditam poder encontrla na industrializao da Europa e na influncia da economia mundial sobre a frica. , portanto, necessrio, neste captulo de introduo, concentrar nossa ateno no que realmente era a frica no incio do sculo XIX e destacar as caractersticas e as tendncias gerais deste perodo, a natureza e a importncia dos elementos subsistentes do passado, as inovaes e outros elementos novos, e, por fim, as tendncias para o futuro. apenas ao abordar logo esse problema que poderemos entender, no fim do presente volume, o que foi a evoluo da frica no sculo XIX e em que medida devemos considerar a presena dos europeus como uma condio prvia e necessria ao desenvolvimento tcnico, cultural e moral das sociedades africanas4, ou, pelo contrrio, como a principal causa de subdesenvolvimento da frica. A demografia e os movimentos populacionais5 No incio do sculo XIX, os principais grupos lingusticos e culturais que compunham a populao da frica haviam se estabelecido h muito tempo 3 4 5 Ver a tentativa de I. Hrbek em 1965 (publicada em 1968): surpreendente o nmero de acontecimentos de grande alcance ocorridos na frica entre 1805 e 1820; ainda que no tenham ligaes entre eles, constituem um movimento distinto na histria da frica. Ele cita as jihad dos fulbe da frica Ocidental, o levante dos zulus e o do Buganda, a fundao do Egito moderno por Muhammad Ali, a expanso do Imerina em Madagascar, o levante dos omani em Zanzibar e a abolio do trfico de escravos. Ver I. Hrbek, 1968, p. 4748. Os historiadores, que almejam doravante por uma sntese aplicvel a todo o continente, acreditam, muitas vezes de forma simplificadora, que a explicao global reside na integrao progressiva da frica economia global. T. Hodgkin, 1976, p. 7, a respeito do ponto de vista daqueles que ele chama os sbios administradores imperialistas. Essa seo inspirase em grande parte de dois captulos da presente Histria, escritos respectivamente por J. Vansina (cap. 3, vol. V) e J. C. Caldwell (cap. 18, vol. VII).
  • 31. 4 frica do sculo XIX dcada de 1880 nos diferentes territrios dos quais reivindicavam a posse. Na maior parte do continente, essa partilha havia se findado antes do sculo XVII. No sculo XIX, os diferentes grupos, aps terem assentado suas posies, haviam alcanado uma certa estabilidade. Nos sculos XVII e XVIII, foi apenas no Chifre da frica e na frica Oriental (com exceo do centro da regio dos Grandes Lagos), bem como em Madagascar, que importantes migraes ocorreram rumo a regies relativamente pouco povoadas. Mesmo nessas regies, as populaes haviam atingido, no incio do sculo XIX, uma estabilidade que implica o domnio do espao. Entenderemos aqui por migrao o deslocamento extraordinrio de um grande nmero de pessoas em vastos territrios e durante um longo perodo. Os deslocamentos regulares efetuados, a fim de garantir sua sobrevivncia, por criadores de animais transumantes, por cultivadores praticantes de culturas alternadas, por caadores e aqueles que vivem da colheita, que percorriam determinados territrios procura de caa, de mel ou at de palmeiras das quais comiam as frutas, por pescadores que seguiam as migraes sazonais dos peixes, por mercadores e artesos especializados, como os ferreiros, que exerciam sua atividade em colnias longnquas, todos esses deslocamentos ainda ocorriam, mas geralmente no implicavam uma mudana definitiva e no apresentavam o carter de uma migrao, no sentido que demos palavra. Todavia, a presso demogrfica ligada ao tipo de uso das terras, muitas vezes resultante de um crescimento populacional normal durante um perodo de relativa prosperidade, ou a imigrao provocada por vrios fatores guerra, desmoronamento dos sistemas polticos, seca prolongada, epidemia ou outra catstrofe natural podiam acarretar processos de expanso progressiva. Ocorreu um grande nmero dessas expanses no sculo XIX. Algumas, como a dos fang na zona das florestas equatoriais, desencadearamse em funo de movimentos anteriores ao sculo XIX; outras, como a dos chokwe de Angola, foram provocadas pela modificao das relaes comerciais no sculo XIX. Os movimentos populacionais de maior amplitude eram ligados ao declnio ou ao avano dos sistemas estatais. Limitavamse a uma regio, como aquele que se seguiu queda do Antigo Oyo na parte ioruba da Nigria Ocidental, ou se estendiam em toda uma parte do continente, como aquele dos nguni do Norte que, na frica Austral, se seguiu ao Mfecane. As populaes em movimento muitas vezes tiveram que ocupar e cultivar terras que, at ento, haviam sido consideradas de qualidade inferior, e, por conseguinte, desenvolver culturas e tcnicas agrcolas adequadas a seu novo meio. Estimase habitualmente em 100 milhes de habitantes a populao total da frica no incio do sculo XIX. Este nmero arbitrrio, pelo menos em parte,
  • 32. frica no incio do sculo XIX: problemas e perspectivas 5 e resulta de uma extrapolao fundada nos poucos dados demogrficos relativos ao perodo posterior a 1950. Tal estimativa pode se revelar muito diferente do nmero real. Porm, do ponto de vista histrico, as questes essenciais referem se menos ao nmero exato da populao do que s tendncias demogrficas e s suas relaes com os sistemas econmicos, a atividade agrcola e a repartio geogrfica da populao em relao aos recursos do solo. Em virtude da organizao da agricultura, do grau de desenvolvimento das tcnicas e da higiene, bem como da forte mortalidade infantil causada pelas doenas, os demgrafos supem geralmente que a populao total no podia aumentar muito. O crescimento anual teria se situado habitualmente na faixa dos 0,5% (ao passo que alcana atualmente entre 2,5 e 3,5%), ou seja, cada ano, o nmero dos nascimentos teria ultrapassado o dos bitos de 50 por mil habitantes. A populao teria assim duplicado em um milnio. Na frica do Norte, visto que a populao permanecia estvel e que se praticava uma agricultura intensiva, e a irrigao nas regies frteis, principalmente nos osis, a populao aumentava regularmente durante os perodos de prosperidade. Entretanto, tudo indica que esse crescimento no compensava as secas e as epidemias, de modo que a populao podia dificilmente permanecer estvel. Nas pastagens do Sudo, da frica Central e Austral, as populaes transformavam constantemente suas tcnicas. Elas associavam a criao ao cultivo do solo ou praticavam diversos tipos de agricultura mista, capazes de garantir a subsistncia da crescente populao. Os habitantes das regies mais arborizadas tambm desenvolveram tipos de agricultura permitindo o crescimento demogrfico. No sculo XVIII, a populao atingia uma forte densidade em regies como a Baixa Casamansa, o pas dos igbo no Sudeste da Nigria, as pastagens de Camares e a regio dos Grandes Lagos da frica Oriental. Contudo, acrescentandose s catstrofes naturais, o trfico de escravos e as guerras mortferas por ele acarretadas causaram perdas demogrficas de grande escala e, notadamente, a diminuio, durante um longo perodo, do nmero de mulheres em idade de procriar. Tais perdas fizeram com que a populao total da frica diminusse nos sculos XVII e XVIII. Esse despovoamento, desigualmente repartido, atingiu de forma mais ampla aqueles que eram menos capazes de se defender, ento concentrados no oeste e no centrooeste da frica. Ainda no se analisaram todos os efeitos desse despovoamento. As hipteses a seu respeito continuam a alimentar uma viva controvrsia6. Considerase hoje 6 Ver J. E. Inikori (org.), 1982a e 1982b, p. 2936.
  • 33. 6 frica do sculo XIX dcada de 1880 que o crescimento rpido da populao, associado a recursos escassos e a uma produtividade limitada, uma das principais caractersticas do subdesenvolvimento7. Porm, isso apenas se verifica no caso de economias interdependentes. No caso das economias relativamente independentes do incio do sculo XIX, foi sobretudo o subpovoamento que constituiu um fator de subdesenvolvimento. Tudo indica que algumas comunidades africanas, ao comparlas com suas vizinhas, tiraram proveito do trfico de escravos. Conseguiram conservar sua capacidade de resistncia ao explorar a fraqueza de outras comunidades. Assim fizeram durar sua prosperidade o tempo suficiente para implementar slidos sistemas econmicos, nos quais o crescimento demogrfico aumentava a produtividade e garantia o desenvolvimento. , contudo, provvel que essas mesmas comunidades tenham sofrido do empobrecimento de suas vizinhas e da insegurana que reinava em suas fronteiras. Nenhuma sociedade ou economia poderia ter escapado do traumatismo e do desalento geralmente causados pelas considerveis perdas demogrficas acarretadas pelo trfico de escravos e as guerras correlatas8. O trfico parece fornecer a melhor explicao pelo fato de a frica, entre todos os continentes, ter tido as mais instveis e frgeis estruturas polticas e econmicas do sculo XIX. As fronteiras dos Estados e os centros administrativos deslocaramse aparentemente ao ritmo de uma constante flutuao. Se considerarmos os mtodos e as tcnicas em uso na poca, os agricultores no teriam tirado o melhor proveito da maioria das terras. O sculo XIX no alterou de vez a situao demogrfica em seu conjunto. A campanha em favor da abolio do trfico s produziu seus efeitos de forma demorada. De incio, o processo de abolio resultou menos na reduo da exportao de escravos do que na concentrao do trfico em um nmero reduzido de portos. Lenta no incio, a queda nas exportaes tomou, aps 1850, propores considerveis. Porm, o trfico rumo a Zanzibar e ao Oceano ndico aumentava medida que diminua o das Amricas. Ademais, o crescimento das exportaes que substituram o trfico fez com que, na prpria frica, se precisasse de um nmero muito maior de escravos para conseguir marfim, para recoltar o leo de palma, os amendoins, o mel, os cravosdandia e, mais tarde, a borracha e o algodo, bem como para transportar todos esses produtos. O sculo XIX assistiu, portanto, ao crescimento considervel do trfico interno e do trabalho servil, o que teve desastrosas consequncias sobre os procedimentos de explorao. Alguns historiadores afirmam que a populao diminuiu 7 8 L. Valensi, 1977, p. 286. J. E. Inikori, 1982b, p. 5160.
  • 34. frica no incio do sculo XIX: problemas e perspectivas 7 pela metade, no perodo de uma gerao, em determinadas regies de Angola antes de 1830, e da frica Central e Oriental pouco aps 1880. Entretanto, a abolio da escravido permitiu parar com a deportao macia dos africanos. Tudo indica que, no comeo do sculo XIX e pela primeira vez desde o sculo XVII, a populao tendeu a crescer no conjunto do continente9. Esse movimento acentuouse entre 1850 e 1880, depois declinou um pouco no incio da colonizao, antes de prosseguir, lentamente de incio e depois em um ritmo mais acelerado, a partir dos anos 1930. Esse crescimento demogrfico do incio do sculo XIX, devido a fatores tanto internos quanto externos, foi, por si mesmo, um importante fator de mudana, particularmente em regies que, como a frica Oriental e Austral setecentista, no foram atingidas, ou muito pouco, pelo trfico de escravos. O crescente interesse dos europeus pela frica Quaisquer que sejam as dvidas a respeito do nmero da populao da frica no incio do sculo XIX ou das consequncias do crescimento demogrfico da poca, h um elemento do qual temos certeza: os europeus mostraram, ento, pela frica um crescente interesse, cuja importncia como fator de mudana na histria da frica foi certamente exagerada. Tal interesse levou de incio os europeus a empreenderem, aproximadamente a partir do fim do sculo XVIII, expedies visando recolher informaes mais precisas sobre as principais caractersticas geogrficas do continente africano: fontes dos rios, situao das montanhas e dos lagos, repartio da populao. Buscavase tambm saber quais eram os maiores Estados, os mais importantes mercados e as principais produes agrcolas e industriais. A Revoluo Francesa, as guerras napolenicas e os esforos dos pases coligados notadamente da Inglaterra, enquanto principal potncia martima para conter a expanso francesa tiveram repercusses sobre a frica. Os franceses, para os quais o Egito representava a porta do Extremo Oriente, ocuparam Alexandria e Cairo. Os ingleses tomaram a colnia holandesa do Cabo. Em seguida, ao tomar amplitude, o movimento em prol da abolio da escravido permitiu Inglaterra, cuja supremacia martima se afirmava cada vez mais, intervir na frica o quanto queria, sob o pretexto de uma misso a cumprir. Em 1807, o Governo ingls proibiu o trfico de escravos aos mercadores ingleses e fez da 9 UNESCO, Histria Geral da frica, vol. VII, cap. 18; ver tambm J. C. Caldwell, 1977, p. 9.
  • 35. 8 frica do sculo XIX dcada de 1880 cidade de Freetown, fundada por escravos alforriados, uma colnia da Coroa e a base de uma campanha naval dirigida contra o trfico ao largo da frica Ocidental. Os franceses foram expulsos do Egito, mas, aproveitandose da fraqueza do Imprio Otomano, continuaram a buscar vantagens, entre outras comerciais, na frica do Norte, onde a luta contra os piratas magrebinos servia de desculpa para seus empreendimentos. Aps sua derrota, os franceses tiveram que aderir ao movimento abolicionista, e isso foi mais uma razo para eles se interessarem nos portos e nas feitorias da frica Ocidental. No sculo XIX, o abolicionismo, as misses e a busca por produtos cujo comrcio era mais honorvel do que o dos escravos tornaramse, portanto, elementos importantes da situao poltica da frica. Convm no exagerar, nem a potncia dos europeus na frica no incio do sculo XIX, nem o ritmo com o qual adquiriram posses ou penetraram no interior do continente antes de 1850. Os portugueses pretendiam dominar os territrios que vo de Angola a Moambique. No interior das terras, haviam fundado postos militares e prazos (exploraes agrcolas), e dominavam intermitentemente a regio que se estendia de Loje, a Sul do Cuanza, at Casanga (Kasanga), a Leste, alm de suas feitorias situadas na costa, entre Ambriz e Momedes. Em Moambique, a dominao portuguesa limitavase, em 1800, Ilha de Moambique. Nessa ilha, os mercadores brasileiros e mulatos desempenhavam um papel mais importante do que os administradores portugueses. A crescente demanda por escravos do fim do sculo XVIII e do incio do XIX levouos a abandonarem o sistema dos prazos. A segurana das rotas comerciais era principalmente garantida pelos pombeiros. Porm, esses mulatos descalos, que vendiam produtos brasileiros, no poderiam ter exercido seu comrcio caso este no tivesse sido tolerado pelos chefes e mercadores africanos10. Aps 1815, os franceses haviam restabelecido suas feitorias da Senegmbia, notadamente em SaintLouis e Gore. No Waalo, eles tentaram fundar, sem sucesso, uma explorao agrcola defendida por um posto militar em Bakel. Na frica do Norte, tomaram Argel em 1830. Vinte anos foram necessrios para derrotar a resistncia dos argelinos liderados pelo emir Abd AlKdir (Abd ElKader). Na colnia inglesa formada por Freetown e pelas aldeias de agricultores vizinhas, a aculturao dos escravos alforriados deu origem cultura crioula. A crescente prosperidade dessa colnia e a emigrao de seus habitantes para Bathurst, Badagri, Lagos, e mais adiante, estendeu sobre a costa a influncia 10 A. F. Isaacman, 1976, p. 811.
  • 36. frica no incio do sculo XIX: problemas e perspectivas 9 dos mercadores e dos missionrios ingleses que, em um ou dois lugares como Abeokuta, comearam a penetrar no interior do continente por volta de 1850. Na Costa do Ouro, os ingleses, ainda submetidos concorrncia dos comerciantes dinamarqueses e holandeses, opuseramse aos esforos de dominao dos ashanti, notadamente ao explorar o temor que estes ltimos inspiravam aos fanti, incentivandoos a uniremse sob a proteo da Inglaterra. Na frica Austral, ainda que os fazendeiros ingleses no tivessem conseguido se implantar em Natal, a colnia do Cabo estendeuse consideravelmente graas secesso dos trekboers rebeldes que avanaram para o interior do continente, obrigando assim os ingleses a seguilos, ainda que fosse apenas para impedir seu extermnio pelos exrcitos dos novos Estados africanos. Dessa forma, os ingleses pareciam ser os rbitros da situao e os verdadeiros senhores da regio. Mas a frica do Sul permaneceu, at meados do sculo XIX, uma colnia dividida e povoada por fazendeiros pobres, muitas vezes merc de seus vizinhos africanos, os quais no eram menos divididos. Foram feitas vrias tentativas no intuito de repetir o sucesso dos ingleses em Freetown: os americanos fundaram uma colnia na Libria e os franceses em Libreville. O crescente interesse dos ingleses e dos franceses sobre a ndia e o Oceano ndico Aden, Ilha Maurcio, Madagascar e o novo sultanato de Zanzibar comeou a ter repercusses na frica. Contudo, preciso lembrar que os europeus e os americanos chegavam frica pelo mar, concentrandose assim nas costas. Penetraram pouco no interior do continente antes de 1850, enquanto os principais acontecimentos do incio do sculo XIX na frica, tais como o Renascimento Etope, o Mfecane ou as jihad da frica Ocidental, surgiram todos, com exceo da reforma de Muhammad Ali, no interior do continente. A presena dos missionrios contribuiu muito para o notvel sucesso dos ingleses em Freetown. Respondendo s exigncias da situao e aps terem superado as hesitaes inspiradas por sua f pietista, missionrios de cultura alem, oriundos de Brema e, sobretudo, de Basileia, participaram da valorizao dessa colnia britnica. Da mesma maneira que os missionrios ingleses, eles entenderam que a explorao das fazendas, o estudo dos idiomas autctones, o ensino, a construo e o comrcio ofereciam maiores possibilidades de ao do que a predicao. Foi construdo um certo nmero de misses, e alguns missionrios de primeiro plano desempenharam, a ttulo individual, um papel importante nos conflitos raciais. Porm, o sucesso de Freetown nunca foi igualado. Surgiram diversas organizaes encarregadas da propagao do cristianismo. O ensino bsico e os estudos lingusticos inaugurados pelos primeiros missionrios
  • 37. 10 frica do sculo XIX dcada de 1880 apenas frutificariam mais tarde. Na frica, as misses crists constituram um fator de mudana mais importante na segunda metade do sculo XIX do que na primeira. Em 1850, Livingstone s efetuava sua primeira expedio missionria. A Congregao dos Padres do Esprito Santo foi fundada em 1847, a dos Padres Brancos em 1863. Na primeira metade do sculo XIX, a atividade dos comerciantes europeus ampliouse de forma muito mais rpida e alcanou territrios muito maiores do que a influncia dos missionrios. Isso se deveu em grande parte ao fato de esse comrcio ser a continuao do trfico de escravos que ocorreu antes do sculo XIX. Os primeiros a praticarem o comrcio legtimo foram os negociantes, que haviam antes praticado o trfico, ou que permaneciam negreiros. Tal fato merece ser destacado, j que as estruturas das novas relaes comerciais eram muito semelhantes quelas do trfico. A moeda desempenhou um papel cada vez maior aps 1850, mas, na primeira metade do sculo, o comrcio do leo de palma, dos amendoins, do marfim e dos cravosdandia, baseavase no trfico interno e no crdito: era preciso, aps ter pagado adiantado em gneros aos mercadores africanos, tomar medidas para proteger o investimento e garantir a entrega dos bens assim adquiridos. Os negociantes europeus permaneciam na costa, onde comerciantes africanos do interior traziamlhes mercadorias. Da mesma forma, intermedirios africanos, inclusive pombeiros ou comerciantes rabes e sualis, traziam para a costa produtos negociados no interior em troca de mercadorias compradas a prazo no litoral. Enquanto duraram essas formas de organizao, as trocas comerciais permaneceram estruturadas da mesma forma que nos sculos anteriores. A colheita das frutas da palmeira, da goma arbica e do m