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80 Grupo de Trabalho: Indústrias Midiáticas HISTÓRIA E O STORYTELLING NA ERA DA COMUNICAÇÃO Maria Ester Cacchi BATISTA 1 Orientação do Professor Adenil Alfeu Domingos 2 “Fazer história imediata é ser Georges-Jacques Danton levado ao cadafalso, falando ao povo de sua relação com a revolução e explicando o significado da sua morte.” Jean Lacouture Resumo Pretende-se abordar aqui a adaptação do discurso oficial da História para a televisão, que transforma o fato histórico em Storytelling, ou seja, fenômeno de mídia. O episódio número 8 do quadro É Muita História, parte do Fantástico da Rede Globo, abre as comemorações do bicentenário da vinda da Família Real Portuguesa para o Brasil fazendo uma teatralização mesclada com um apelo jornalístico desse momento. Serão destacados aspectos como o conceito de Storytelling, a historiografia moderna que enfoca a história imediata que se relaciona com o meio jornalístico e a necessidade de uma abordagem crítica ao utilizar os recursos tecnológicos disponíveis na composição inter, multi e transdisciplinar que a História assume ao tornar-se filão da indústria cultural. Palavras-chaves: História; Storytelling, Historiografia, Mídia. Introdução O objetivo deste artigo é demonstrar que na era das superproduções midiáticas, o fato histórico também torna-se parte integrante da Storytelling, ganhando ares de espetáculo teatralizada através de programas de televisão em canais abertos, como é o caso do Fantástico da Rede Globo. 1 Licenciada em História pela Fundação Educacional Dr. Raul Bauab. Docente das disciplinas de História, Filosofia e Sociologia no Ensino Médio da rede privada. Contato: [email protected] 2 Professor titular dos Cursos de Comunicação Social da Unesp Bauru

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Grupo de Trabalho: Indústrias Midiáticas

HISTÓRIA E O STORYTELLING NA ERA DA COMUNICAÇÃO

Maria Ester Cacchi BATISTA1 Orientação do Professor Adenil Alfeu Domingos2

“Fazer história imediata é ser Georges-Jacques Danton levado ao cadafalso, falando ao povo de sua relação com a revolução e explicando o significado da sua morte.” Jean Lacouture Resumo Pretende-se abordar aqui a adaptação do discurso oficial da História para a televisão, que transforma o fato histórico em Storytelling, ou seja, fenômeno de mídia. O episódio número 8 do quadro É Muita História, parte do Fantástico da Rede Globo, abre as comemorações do bicentenário da vinda da Família Real Portuguesa para o Brasil fazendo uma teatralização mesclada com um apelo jornalístico desse momento. Serão destacados aspectos como o conceito de Storytelling, a historiografia moderna que enfoca a história imediata que se relaciona com o meio jornalístico e a necessidade de uma abordagem crítica ao utilizar os recursos tecnológicos disponíveis na composição inter, multi e transdisciplinar que a História assume ao tornar-se filão da indústria cultural. Palavras-chaves: História; Storytelling, Historiografia, Mídia. Introdução

O objetivo deste artigo é demonstrar que na era das superproduções midiáticas, o fato

histórico também torna-se parte integrante da Storytelling, ganhando ares de espetáculo

teatralizada através de programas de televisão em canais abertos, como é o caso do Fantástico da

Rede Globo.

1 Licenciada em História pela Fundação Educacional Dr. Raul Bauab. Docente das disciplinas de História, Filosofia e Sociologia no Ensino Médio da rede privada. Contato: [email protected] 2 Professor titular dos Cursos de Comunicação Social da Unesp Bauru

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O programa em questão trata da vinda da Família Real Portuguesa para o Brasil em 1808 e

foi exibido em 28 de outubro de 2007, como início das comemorações desse momento histórico,

que, segundo o jornalista Eduardo Bueno, escritor responsável pela composição histórica do

episódio, muda a imagem de D. João VI, já que a História “(...) está sendo sempre reescrita, agora

mesmo em que vamos completar os duzentos anos da chegada da Família Real Portuguesa no

Brasil, Dom João já está passando por uma mudança de imagem, sai o monarca apalermado,

covarde, preguiçoso, comilão, entra o estrategista brilhante. Mas, o que terá sido ele? Talvez as

duas coisas. E a transferência da Família Real para o Brasil, o que é que foi? Um golpe de mestre

ou uma fuga atabalhoada?” (BIAL 2007)i

Ao questionar o fato em si, aparentemente é proposto um debate acerca da história oficial,

de cunho positivista que muitas vezes não aprofunda a discussão em torno das vertentes

historiográficas, e as possibilidades de outras abordagens históricas sobre o mesmo assunto. No

entanto, para a mídia, o questionamento funciona como âncora para a teatralização sobre a vinda

da Família Real Portuguesa para o Brasil e a comemoração de seu bicentenário, trazendo o

telespectador comum para dentro do acontecimento histórico, através da representação do

apresentador Pedro Bial como o repórter que dá notícias das vitórias napoleônicas e da resistência

inglesa e do próprio Napoleão (interpretado por Eduardo Bueno) como aquele a quem assiste pela

televisão notícias de sua glória.

O caráter jornalístico é reforçado quando Pedro Bial entrevista o público do Saara, rua de

comércio popular do Rio de Janeiro, fazendo um paralelo entre as celebridades atuais,

extremamente assediadas pelo público e a surpresa que a corte lusitana causou ao chegar ao porto

fluminense. Nesse aspecto, é interessante perceber que até o conceito de Rei tem como

explicação primária figuras populares como o “Rei Pelé” e o eterno “Rei Roberto Carlos”, ambos

ícones de toda uma geração e grandes representantes de sucesso em suas respectivas áreas, tendo

justamente por isso um caráter soberano no imaginário popular.

Ao entrevistar as pessoas sobre como elas se comportariam diante de um Rei, o espectador

mais que um agente passivo de um acontecimento passado, transforma-se em parte integrante do

mesmo acontecimento como se isso acontecesse em tempo real: estar diante de uma personagem

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paramentada de monarca desperta a imaginação e a emoção parecidas com o que supostamente o

mesmo público de 1808 teria sentido.

A figura de D. João VI, tida muitas vezes como caricata, ajuda a compor o tom informal de

sua apresentação em público, quando são feitas considerações sobre sua “fealdade” e sobre a falta

de higiene da nobreza portuguesa, indicada em falas que relatam as várias micoses que D. João

tinha pelo corpo para daí retratar a cerimônia do Beija Mão, reforçando o caráter jocoso com que

a família real muitas vezes é descrita.

Eduardo Bueno vestido de D. João interage com a população e com Pedro Bial, exatamente

no local em que desembarcou toda a corte portuguesa. Transeuntes param para participar do

espetáculo que se utiliza de um momento histórico para relacionar a vida da realeza naquele

instante e o homem atual, a celebridade e o homem comum, sempre com um enfoque mais

voltado para o entretenimento, para a comunicação de massa que necessariamente para um real

ensino da história brasileira.

É importante destacar que ao longo do episódio, a teatralização é enriquecida com trilha

sonora que contempla, desde a Overture (Abertura) de 1812 do compositor Pyotr Ilyich

Tchaikóvsky, obra que comemora o fracasso da invasão napoleônica na Rússia; até músicas

brasileiras que tratam do período como a canção composta por Jorge Mautner e Nelson Jacobina,

cujo nome não foi revelado no vídeo em pauta. Também estão presentes quadros de artistas

integrantes da Missão Artística Francesa chegada ao Brasil em 1816, como Jean Baptiste Debret,

sendo um grande marco em diversos aspectos da arte brasileira, o que possibilita o contraponto

entre imagens da época e o Rio de Janeiro atual.

A abordagem feita neste artigo procura redimensionar a indústria da comunicação enquanto

canal, não apenas de entretenimento comum (novelas, programas de auditórios), mas também

com uma roupagem cultural e muito bem-acabada, que de certa forma lembra um fast-food

cultural como muito bem coloca Pierre Bourdieu em seu livro Sobre a Televisão.ii (BOURDIEU

1997)

Para a compreensão da relação feita entre Indústria da Comunicação e História é

imprescindível que seja destacado também o papel de correntes historiográficas que herdaram da

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História dos Annales3 um caráter mais cultural enquanto pesquisa das fontes históricas, como é o

caso da História das Mentalidades, que geraram livros como o dos franceses Philipe Àries e

George Duby, que enfocava o cotidiano de tempos passados.

Na historiografia brasileira, há a coleção História da Vida Privada do Brasil, organizada

por Fernando Novaes, em quatro volumes, com um caráter muito próximo desse cotidiano

esmiuçado, através da análise de cronistas, jornais, processos, pinturas, entre outras fontes.

Tratando-se da evocação da História em quadros como este destacado no Fantástico, esta deixa

de ser objeto isolado de estudo e conecta-se a vários outros elementos.

O argumento positivista de que eram necessários 50 anos para construir uma história

imparcial acaba sendo inválido, como se fosse possível o distanciamento do objeto de análise,

sem as típicas relações de interdependência. Os positivistas realmente acreditavam que o

historiador narrava os fatos acontecidos, como realmente teriam acontecido, enquanto fatos

narráveis, como analisa José Carlos Reis em seu livro A História – Entre a Filosofia e a

Ciência.(REIS 1996).

Dessa forma, a História ainda possui esboço de cunho positivista quanto ao seu caráter

narrativo, ao mesmo tempo em que ganha uma abordagem mais digerível, adquirindo nuanças de

Storytelling, enquanto produto vendável ao paladar do grande público, mesclando toda a

problemática antropológica, sociológica e até de saúde pública daquela época e que tem feito

parte do processo histórico do Rio de Janeiro e do próprio Brasil. Portanto, este artigo discutirá a

relação é a relação da História Oficial e a História Oficiosa, teatralizada para ser veiculada na

mídia, ou seja, o Storytelling da História Oficial.

O Storytelling e a História

O conceito de Storytelling muitas vezes ainda tem uma apreensão restrita, sendo

interessante e necessário nesta etapa do trabalho definir o conceito que permite analisar o

3 É a corrente de pesquisa historiográfica que propõe uma abordagem mais cultural e minuciosa acerca do processo histórico

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episódio do Fantástico sobre a vinda da família real à luz dessa nova abordagem em termos de

indústria midiática.

No livro Storytelling, La machine à Fabriquer des Histoires et à Formater les Esprits,

Christian Salmon (SALMON 2007, 12) destaca o papel da Storytelling como uma técnica de

comunicação, de controle e de poder. É a palavra, a narrativa ganhando um formato industrial e,

muitas vezes, performático para convencer, seduzir, vender, não apenas um produto, como

também um estilo de vida e até mesmo uma leitura histórica.

Outro aspecto importante a ser destacado no conceito de Storytelling é o pragmatismo de

seu discurso, ou seja, há a função como uma narrativa que possa persuadir as pessoas a mudarem

hábitos, crenças, valores ainda que momentaneamente e até por impulso, como analisa Zygmunt

Bauman no conceito de liquidez na Pós-Modernidade(BAUMAN 2001), quanto ao dinamismo

que torna nossa sociedade muito mais leve e fluida que a modernidade por ela suplantada.

Justamente por fazer parte de uma sociedade estabelecida em um contexto histórico em que

o interesse é despertado pelo esteticamente belo, dinâmico e com certo apelo cultural e mesmo

ecológico, ou politicamente correto (ainda que essa expressão esconda muitas formas de

violências ocultas sob a pele das imagens que teoricamente priorizem apenas a informação), o

apelo à narrativa histórica une aspectos de uma novela com começo, meio e fim, de forma linear

e com um final feliz, expresso na frase em que Eduardo Bueno afirma que: “Para D. João esta

convivência [no Brasil e com brasileiros] também acabou fazendo bem, afinal ao voltar para sua

velha e querida Lisboa em 1821, ele era o único monarca de sua geração que mantinha a cabeça

em seu lugar e com uma coroa em seu lugar.” Nessa frase é perceptível o típico final feliz muito

comum nas novelas da emissora onde foi veiculada a série batizada de “É muita História”.

Inclusive, Pierre Bourdieu (BOURDIEU 1997, 40) chama de fast-thinkers, pensadores de

“idéias feitas”, de caráter geral e aceitas por todo mundo. Assim a comunicação é instantânea,

porque muitas vezes ela é apenas aparente e em outros momentos ela não existe.

No caso da frase supracitada, nem por um momento foi colocado que a volta de D. João VI

à Portugal aconteceu após uma revolta na cidade do Porto, e que, estando de volta à antiga sede

do governo, o monarca enfrentaria problemas de ordem social e econômica, pois tinha uma

grande dívida com a Inglaterra, país que patrocinou a vinda da corte para terras do além mar.

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Sobre o discurso massificante da televisão e a produção cultural é válido citar novamente

Bourdieu (BOURDIEU 1997, 53):

“A televisão é um instrumento de comunicação muito pouco autônomo, sobre o qual pesa toda uma série de restrições que se devem às relações sociais entre os jornalistas, relações de concorrência encarniçada, implacável, até o absurdo, que são também relações de convivência, de cumplicidade objetiva, baseadas nos interesses comum ligados à sua posição no campo de produção simbólica e no fato de que têm em comum estruturas cognitivas, categorias de percepção e de apreciação ligadas à sua origem social, à sua formação (ou à sua não-formação). (...) Quando, nos anos 60, a televisão apareceu como um fenômeno novo, certo número de “sociólogos” (com muitas aspas) precipitou-se em dizer que a televisão, enquanto “meio de comunicação de massa”, ia “massificar”. Supostamente, a televisão ia nivelar, homogeneizar pouco a pouco todos os telespectadores. De fato, era subestimar as capacidades de resistência. Mas, sobretudo, era subestimar a capacidade que a televisão teve de transformar os que a produzem e, de maneira mais geral, os outros jornalistas e o conjunto das produções culturais (através do fascínio irresistível que exerceu sobre alguns deles). O fenômeno mais importante, e que era bastante difícil de prever, é a extensão extraordinária da influência da televisão sobre o conjunto das atividades de produção cultural, aí incluídas as atividades de produção científica ou artística.”

E é neste aspecto que se percebe nitidamente a utilização do Storytelling através da

apropriação do fato histórico em si. Ao ser veiculado na mídia alcança três facetas: a inter, multi

e transdisciplinaridade. As cortinas vermelhas que servem como pano de fundo no vídeo, para

que o fato seja inicialmente explicado aos telespectadores de forma bastante didática, tem

também como função mostrar a teatralidade proposta pela atuação dos apresentadores que

posteriormente interagirão com o grande público nas ruas, relacionando-os com a chegada da

Corte Portuguesa no Rio de Janeiro. E todo o discurso proferido durante o programa não levanta

polêmicas. No máximo, dá um tom irônico ou bem-humorado às descrições físicas tanto de Dom

João VI, quanto de Carlota Joaquina. É a maneira de não provocar, de servir o fato como algo

fácil de ser digerido e de forma agradável, ao mesmo tempo em que reitera o papel do cidadão

como agente de todo esse processo. Nesse aspecto há certa debilidade do passado, da consciência

história em si.

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Apesar de propor a contextualização do Brasil na história mundial, citando Napoleão

Bonaparte e o bloqueio feito à Inglaterra, esse passado fica descontextualizado do processo

dialético que marca as mudanças históricas. Para ter um formato adequado aos pouco mais de dez

minutos de apresentação, o Storytelling do vídeo ganha ares de citação, uma forma de brincar, de

juntar presente e passado.

Assim, mesmo sendo reconhecida a necessidade do historiador em utilizar as novas

linguagens e instrumentos na pesquisa histórica acadêmica ou em salas de aulas é preciso um

cuidado para não tornar programas que tendem mais para o Storytelling em verdades absolutas e

recursos didáticos para salas de aula do Ensino Fundamental. Se isto acontecer, o professor deve

reconhecer a História Oficial e a Oficiosa, alertando os alunos para as defasagens entre ambas.

O Storytelling que se utiliza da imagem é, com certeza, um portal muito mais significativo

e mais fácil de ser assimilado, mesmo trazendo, quase em tempo real, para dentro da casa dos

telespectadores, cenas de um passado inconcebível no cotidiano da maioria das pessoas. Por isso

mesmo, ele não deve ter um apelo denso em demasia, nem conflitante com o imaginário popular.

Assim, por exemplo, até para falar da fealdade do Rei, o Storytelling encontrou uma maneira

agradável de dar essa informação, tornando-o jocoso e inusitado.

Inclusive, Ciro Marcondes Filho (FILHO 1988, 10, 11) faz uma importante colocação sobre

a realidade e o imaginário no contexto televisivo que seria interessante citar nesse instante:

“Enquanto a vida do real transcorre de forma regular, repetitiva, cotidiana, a mente do homem, ao contrário, trabalha ansiosa por inovações, melhorias, mudanças de vida. As pessoas vivem permanentemente em conflito entre esses dois mundos. Somente aquele que vive só, isolado dos outros e da agitação das cidades, entregue à degradação física, já não sonha mais. O homem comum, porém, tem esperanças, vontades, desejos, que não existem só para ele, mas para todos os demais. É o imaginário. Ele é social, coletivo, e a forma como se organiza é por meio de símbolos. (...) O elemento vivo das pessoas, seu “motor”, aquilo que as faz ter vontade de viver, não está o real, no cotidiano nem no mundo do trabalho e sim no imaginário. E a televisão é a forma eletrônica mais desenvolvida de dinamizar esse imaginário. “Ela é também a maior produtora de imagens.”

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Como a História, enquanto fato passado, é abstrata, torná-la uma representação, uma

mistura de conceitos de modo imaginário, transporta-a a categoria de entretenimento cultural.

História: dos livros aos meios de comunicação

É muito importante destacar a eterna busca dos historiadores em validar a cientificidade da

História. Em tempos de liquidez (BAUMAN 2001), fica ainda mais difícil trabalhar com um

objeto que se dissipa com rapidez, ainda que, em termos de história recente, a possibilidade de

documentar tenha grande ajuda da tecnologia. No entanto, ao que se refere a fatos ocorridos em

um passado um pouco mais distante, a interpretação do contexto sofre, com certeza, influência do

momento em que o historiador vive e de quem o lerá.

Muitos historiadores, inclusive, recusam-se a escrever sobre o tempo presente. É o caso de

Eric Hobsbawn que resistiu muito em escrever A Era dos Extremos: o Breve Século XX que

analisa os anos que ele próprio viveu como pessoa comum a História de sua época, conforme se

pode ver na citação abaixo (HOBSBAWN 1998, 7):

“Meu tempo de vida coincide com a maior parte da época de que trata este livro e durante a maior parte de meu tempo de vida – do início da adolescência até hoje – tenho tido consciência dos assuntos públicos, ou seja, acumulei opiniões e preconceitos sobre a época, mais como contemporâneo que como estudioso. Este é um dos motivos pelos quais, enquanto historiador, evitei trabalhar sobre a era posterior a 1914 durante quase toda a minha carreira, embora não abstivesse de escrever sobre ela em outras condições.”

Mas, qual motivo de haver esse cuidado e porque isso é interessante para este artigo?

Em primeiro lugar é importante lembrar que a pesquisa histórica e o ensino da história em

si devem sair do isolacionismo acadêmico e interagir com outras formas de elaborar o processo

de sobrevivência e construção humana. Ao mesmo tempo, como essas novas possibilidades de

ampliar tanto a pesquisa como o ensino da história dentro da Era das Comunicações, serão

utilizadas por professores, pesquisadores e jornalistas é essencial para impedir que a banalização

faça com que se regrida à narrativa positivista, agora espetacularizada em uma superprodução

hollywoodiana.

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Sempre se discutiu muito sobre a cientificidade da História. Para que tenha um caráter

científico, é necessária a submissão aos métodos científicos. Como nem sempre pode ser

integralmente aplicada a todos os campos das ciências experimentais, pode-se fazê-lo adotando

os métodos das Ciências Sociais.

Dessa forma, Ciro Flamarion Cardoso consegue expressar bem a intensidade das leituras

acerca da História quando define o termo como “polissêmico”, ou seja, que possui significados

variados. Fazendo-se mais que necessário deixar sempre bem claro o sentido que está se

empregando em cada contexto de seu uso (CARDOSO 1994, 28, 29). Por exemplo, há três

significados básicos quando se refere à expressão “História do Brasil”:

“1) os fatos e processos socais ocorridos no corte espacial e institucional que chamamos “Brasil”, o qual foi variável em seu caráter e em suas dimensões segundo as épocas (e que deve ser definido para cada uma delas antes de ser usado), desde que começou a existir um tal conjunto brasileiro; 2) uma disciplina cujo objeto é o anterior e cujos especialistas são os historiadores que se ocupam, portanto, de História do Brasil; 3) o conjunto das obras que resultam do trabalho de tais especialistas: assim, podemos falar na História Geral do Brasil Antes de Sua Separação e Independência de Portugal, escrita por Francisco Adolfo de Varnhagen.

Assim, quando a série É muita História se utiliza da expressão História do Brasil estaria se

referindo ao conceito 2. No entanto, o responsável pela série, Eduardo Bueno não é

necessariamente um especialista desses moldes científicos. Sua formação jornalística é

transferida para a composição histórica do objeto. O historiador tem uma visão especializada

dessas diferentes maneiras de se ver a História, enquanto o jornalista, produtor da série, está

preocupado quase que apenas em dar informações, sem se preocupar com os pormenores da

cientificidade. Interessa-lhe mais a eficiência da comunicação do fato, do que propriamente um

aprofundamento científico do mesmo.

A história oficial é multifocalizada e polidimensional, já que as outras ciências humanas

nelas se encontram presentes, dando uma perspectiva global, típica da comunicação atual. É

importante destacar que sempre há a necessidade de se optar por um ponto de vista, considerando

a subjetividade e a ideologia, selecionando-se a parte histórica que se toma por objeto. Mesmo

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dentro da concepção da História dos Annales, a visão de que era preciso compreender o passado

pelo presente e o presente pelo passado sempre foi muito bem fundamentada pelos historiadores

da época, porém com o necessário cuidado de não estudar jamais como história o presente em si

mesmo. Ou talvez, tornar como algo presente o que está distante de nossa realidade dois séculos,

como se fosse possível representar verdadeiramente, sem correr o risco de uma anacronia. Um

fato, quando recriado, corre o risco de sofrer toda a influência da época de quem o recria.

O cinema sempre recriou contextos históricos cheios de significados. Filmes como

Cleópatra, Júlio César, ou A Cruzada, por exemplo, dão o toque cultural na indústria do

entretenimento. Até mesmo os documentários que se transformam em DVD’s também têm na

História Midiática a possibilidade de investigar novas áreas do interesse em consumir cultura.

Atualmente, grandes canais da TV por assinatura se interessam por este novo filão. A HBO

lançou em 2001 a série Band of Brothers, série dirigida em parceria por Steven Spilberg e Tom

Hanks que trata do cotidiano dos integrantes da Easy Company, um dos destacamentos presente

no dia D, durante a Segunda Guerra Mundial. A série foi lançada em meio ao sucesso do filme O

Resgate do Soldado Ryan, que tinha Tom Hanks como protagonista. Logo em seguida, foi a vez

do lançamento do box com seis DVD’s com a série completa. A mesma HBO lançou outra

superprodução em 2006 para tratar de forma bastante realista, em forma de seriado novamente, a

história romana. “Roma” teve apenas duas temporadas, pois apesar do fino acabamento e elenco

impecável, não lucrou como o esperado.

Em 2007, o canal People & Arts fez da eterna paixão inglesa (a monarquia) também um

tema para um Storytelling Cultural: trouxe para a televisão a série de 20 episódios The Tudors,

sobre o polêmico rei Henrique VIII, destacando muito mais sua atuação na alcova que

necessariamente sua importância político-religiosa. Assim, mais que uma discussão sobre seu

caráter filosófico ou científico, a História hoje faz parte também dos meios de comunicação e

entretenimento de forma mais intensa que em qualquer outra época.

A História Oficial na Era das Comunicações

Segundo Marilena Chauí (CHAUÍ 2003, 140):

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“A memória é uma evocação do passado. É a capacidade humana para reter e guardar o tempo que se foi, salvando-o da perda total. A lembrança conserva aquilo que se foi e não retornará jamais. É nossa primeira e mais fundamental experiência do tempo (...) a memória é a garantia de nossa própria identidade, o modo de podermos dizer ‘eu’ reunindo tudo o que fomos e fizemos a tudo que somos e fazemos.”

Ora, se memória é essa garantia de nossa identidade, como dimensionar o homem comum

dentro da história e a história dentro das diversas perspectivas resultantes dos Meios de

Comunicação de Massa? Não é exagero, nem preciosismo interagir tanto a perspectiva histórica

como a comunicação sem que para isso seja necessário tornar linear o que pode ser dialético, ou

mesmo, singularmente analítico. Ou seja, unir televisão e história em uma possibilidade reflexiva,

em amplas discussões nos meios acadêmicos e em salas de aulas, seria uma forma menos

vulgarizante de estabelecer novas formas de enxergar o homem em seu próprio tempo e

contextualizá-lo no passado.

Caso isso não ocorra, ao invés de difundir a cultura ou a História, há a “vulgarização de

informações”(CHAUÍ 2003, 291). Para cumprir a função epistemológica do artigo, vale definir

filosoficamente o que é seria a explicação para Massa: “agregado sem forma, sem rosto, sem

identidade e sem pleno direito à cultura.” (idem). Assim, quando se utiliza a expressão

comunicação de massa, referimo-nos aos:

“objetos tecnológicos capazes de transmitir a mesma informação para um público muito amplo, isto é, para a massa. Inicialmente, referia-se ao rádio e ao cinema, pois a imprensa pressupunha pessoas alfabetizada, o que não era requerido pelo rádio nem pelo cinema em seus começos. Pouco a pouco estendeu-se para a imprensa, a publicidade ou propaganda, a fotografia, o telefone, o telégrafo, o fonógrafo com os discos e a televisão.”(CHAUÍ 2003, 293)

O termo “público amplo” já dá uma noção da generalização que se submete o narratário de

programas como Fantástico, SBT Repórter, entre outros; isso leva a refletir qual o interesse que

existe de fato em criar um quadro que visita acontecimentos históricos e se propõem a,

teoricamente, analisá-los? Seria incentivar esse público amplo a se enxergar como agente

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histórico? Ou é apenas um programa, um quadro a mais, dentre os muitos que abrigam

formidáveis Storytellings, só que com um apelo didático-cultural?

Sendo a comunicação uma relação primordialmente (PERUZZOLO 2004) que passa uma

mensagem ao outro, todo meio que se diz comunicativo tem uma mensagem a passar e é nesse

âmbito que se torna interessante tentar entender “o porquê” de se utilizar da História como idéia

de base de um vídeo midiático e transformá-la em Narrativa, ou em Storytelling. Que mensagens

estariam presentes nesse programa, tanto em nível de superfície, como em seu nível ideológico

mais profundo?

Para responder a essa pergunta é interessante recorrer a Bourdieu (BOURDIEU 1997, 65)

que analisa os apresentadores de jornais televisivos, os animadores de debates, os comentaristas

esportivos como pequenos diretores de consciência que são porta-vozes de uma moral pequeno-

burguesa, que ditam os rumos do que se deve pensar, desde os problemas de violência urbana até

sobre arte e literatura.

Ora, a História tem uma função subversiva se explorada como reflexão e ação. Logo,

submetê-la aos recursos áudios-visuais é torná-la pronta, conceitualmente acabada, parte de uma

grande novela que é a existência do Homo Sapiens. No caso do vídeo em pauta, foi revisitado

alguns problemas atuais da cidade destacada no episódio. O Rio de Janeiro passa por problemas

sociais que vão desde a violência à saúde pública. Isso não é novidade, pois quando se olha para

o passado da cidade, dos tempos coloniais ao início do século XX (vide a Revolta da Vacina em

1904), já se encontram problemas semelhantes aos atuais. Citar cronistas da época que relatavam

ser o Rio de Janeiro “a mais suja associação humana vivendo sob a curva dos céus.”(BIAL 2007)

permite uma resignação maior ao se contemplar os problemas da cidade e de seu morador,

sempre a espera de um rei, um príncipe encantado que possa, a exemplo do que fez D. João VI,

promover outra reforma que eleve novamente a “Cidade Maravilhosa” à categoria de domínios da

realeza.

Considerações Finais

É importantíssimo que a História possa contemplar a maioria da população que muitas

vezes está à margem de toda abordagem formal, minimamente qualitativa sobre a importância da

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identidade mnemônica, utilizando-se para isso todos os recursos tecnológicos existentes na

atualidade. Trazer para o âmbito televisivo o discurso anteriormente identificado como oficial

escrito e outorgado de cima para baixo, reduzindo a apreensão temporal a meras datas

decorativas, já é um avanço. Avanço analisado com algumas ressalvas provenientes do fator

ideológico e consumista que cerca os meios de comunicação de massa.

Justamente por isso procurou-se fazer a análise da História Oficial à luz da conceituação de

Storytelling que é um fenômeno oficioso da mídia e produto colocado à venda. No entanto, a

própria História Oficial não deixa de ser uma boa história para ser recontada, tendo como pano de

fundo o passado que determina o presente. É a possibilidade de incentivar o aspecto da inter,

multi e transdisciplinaridade que tanto buscam os atuais historiadores.

Essa é uma tendência cada vez mais forte no conceito historiográfico, pois a teoria

científica originária da França chamada Nova História Nova tem como foco a história atual,

verdadeiramente contemporânea, de interesse na atualidade e com aspectos globalizados, ou seja,

que não seja restritiva a compreensão de um grupo de estudiosos apenas.

Inclusive, há a diferenciação entre história contemporânea e a história imediata, ocorrida

após a queda do Muro de Berlim.iii Reconhece-se a importância em se desenvolver mudanças

iguais entre as historiografias nacionais, criar alianças internacionais sem etno ou eurocentrismo

porque isso não caminha em um mundo em que a Internet rapidamente avança, apesar das

diferenças sócio-culturais. Seria o plurilinguismo historiográfico, a criação de um trabalho em

rede, privilegiando o uso da internet para difundir e praticar esse "fazer história", característica do

século XXI. O Storytelling veio servir como meio auxiliar de transformar uma idéia mais

complexa e científica em um produto facilmente assimilável pelo grande público, sem perder o

factual histórico de base.

Essa história imediata (LACOUTURE,Jean. In LE GOFF, Jacques (org.) 1990) deve ser

engajada, plural e honesta, como escreveu Bloch em 1940, competitiva e concorrencial com as

outras disciplinas. Uma história com valores, mas para isso, é preciso abrir o debate. Unir

História e Storytelling gerando uma história compartilhada com outros sujeitos: o acadêmico, o

social e o político, já que, atualmente todos desejam escrever a história, não apenas o historiador.

Isso é bom? Sim, pela nossa história profissional. Evitar a fratura entre História e memória.

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O trabalho do historiador quer elucidar questionamentos acerca da vida, da academia e da

sociedade civil, não ficando mais restrito às avalanches bibliográficas. Ao mesmo tempo em que

com a ampliação dos meios de comunicação (contribuindo muito para isso a Internet), a

diversidade dos assuntos tratados acaba sendo de fundamental importância para que não haja uma

diminuição significativa de audiência.

É nesse vértice sequioso de maiores aprofundamentos e convidativo a novas pesquisas e

questionamentos que o artigo se encaixa, trazendo para o centro da discussão essa nova forma de

produzir e reproduzir história e audiência, integrando Storytelling e didática em uma teia que não

tem como fim teleológico uma verdade absoluta, mas a perene busca por respostas que nunca

param de gerar outras perguntas, dando real sentido tanto à existência do homem, com à narrativa

e à linguagem que fez dos primeiros hominídeos o homo sapiens que hoje julga-se conhecer. Fica

para reflexão final a citação de Jean Baudrillard sobre a glória histórica que antes era a busca pela

glória substituída pela procura de uma identidade, como Bauman (BAUMAN 2001) coloca em

seu livro A Modernidade Líquida.

“Durante séculos, a história foi vivida sob o signo da glória, sob o signo de uma ilusão muito forte que atua sobre a perenidade do tempo, por ser uma herança dos antepassados e se refletir nos descendentes. Esta paixão parece hoje irrisória. O que procuramos já não é a glória, mas a identidade, já não é uma ilusão, mas, pelo contrário, uma acumulação de provas, de tudo que pode servir de testemunho de uma existência histórica, ao passo que dantes a preocupação era perdermo-nos numa dimensão prodigiosa, a ‘imortalidade’ de que fala Hanna Arendt” (JEAN BAUDRILLARD)

i A única fonte bibliográfica citada no programa é o livro de autoria do próprio Eduardo Bueno que não discute as várias facetas iconográficas de D. João VI. Ao longo do episódio é possível ver Pedro Bial munido de livros de cronistas da época, sem uma única menção aos mesmos. ii É interessante destacar que Bourdieu tece uma crítica a este pensamento pré‐digerido que muitas vezes a televisão faz questão de padronizar entre os vários programas que se auto‐intitulam como informativos, classificando os debates televisivos em Verdadeiramente Falsos ou Falsamente Verdadeiros. (BOURDIEU 1997) iii Dentro do episódio trabalhado neste artigo, uma cena chama a atenção: o jornalista Pedro Bial assiste a si próprio dando a notícia da queda do Muro de Berlim e se colocando desde então como parte da História . Isso demonstra a afinidade com as recentes abordagens acerca da historiografia.    

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Bibliografia BAUMAN, Zygmunt. A Modernidade Líquida. São Paulo: Jorge Zahar, 2001.

É Muita História. Direção: Pedro BIAL. 2007.

BOURDIEU, Pierre. Sobre a Televisão, seguido de A influência do jornalismo e Os Jogos Olímpicos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.

BUENO, Eduardo. Brasil, uma História. São Paulo: Ática, 2007.

CARDOSO, Ciro Flamarion. Uma Introdução à História. São Paulo: Brasiliense, 1994.

CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ática, 2003.

FILHO, Ciro Marcondes. Televisão, a Vida pelo Vídeo. São Paulo: Moderna, 1988.

HOBSBAWN, Eric. Era dos Extremos: O breve século XX - 1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

LACOUTURE,Jean. In LE GOFF, Jacques (org.). A História Nova. São Paulo: Martins Fontes, 1990.

PERUZZOLO, Adair Caetano. Elementos de Semiótica da Comunicação - Quando aprender é fazer. Bauru: Edusc, 2004.

REIS, José Carlos. A História - Entre a Filosofia e a Ciência. São Paulo: Ática, 1996.

SALMON, Christian. Storytelling: la machine à fabiquer des histoires et à formater les esprits. Paris: La Découverte, 2007.