história do paraná - xv encontro regional de história da … · 2016-07-15 · apresentada pelo...

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Discursos Identitários na obra História do Paraná de Romário Martins Raiane C. Ramirez dos Santos 1 UNIOESTE Resumo: O objetivo desta comunicação é apresentar uma análise da obra História do Paraná, escrita pelo historiador Romário Martins, publicada pela primeira vez em 1899. Nela são construídos discursos a respeito do Paraná e de sua população. Nosso intuito é realizar uma reflexão sobre as práticas discursivas e intencionalidades de seu autor. Para nortear esta análise, partimos das concepções expressas por Stuart Hall acerca do conceito de identidade. Portanto, entendemos que as identidades são construídas dentro de discursos que ao serem produzidos e divulgados, atendem a determinados interesses e, assim, não são neutros. A comunicação é resultado parcial de minha pesquisa de mestrado intitulada “Mosaico Étnico”: uma análise de discursos que constroem uma identidade para o Paraná (1948-2015), em andamento no Programa de Pós Graduação da UNIOESTE, financiada pela CAPES. O objetivo geral da pesquisa é problematizar discursos que constroem uma identidade para o Paraná como um “mosaico de etnias”, “terra de todas as gentes”. Palavras Chave: História do Paraná; Historiografia; Identidades; Romário Martins. Financiamento: CAPES “A presença em território paranaense de grupos étnicos tão numerosos e das mais diversas procedências, deu ao Estado uma característica toda especial. Provavelmente, o Paraná é o maior laboratório étnico do Brasil. Esses imigrantes representados pelas novas gerações, praticamente integraram-se à sociedade brasileira, uns mais, outros menos, todos, porém dando sua colaboração para transformação da cultura original luso-brasileira” 2 . O objetivo deste artigo é apresentar uma análise de discursos que constroem uma identidade para o Paraná como um “mosaico de etnias”. Para tanto, abordaremos uma obra de referência para o estudo de História do Paraná: História do Paraná, do historiador Romário Martins, publicada pela primeira vez em 1899. Esta análise é um dos resultados de minha pesquisa de mestrado intitulada “Mosaico Étnico”: uma análise de discursos que constroem uma 1 Cursa mestrado em História pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE). Bolsista da CAPES. Orientador: Prof. Dr. Marcos Stein. E-mail: [email protected]. 2 WACHOWICZ, R. C. História do Paraná. Curitiba: Vicentina, 1995.p.151.

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Discursos Identitários na obra História do Paraná de Romário Martins

Raiane C. Ramirez dos Santos1 UNIOESTE

Resumo: O objetivo desta comunicação é apresentar uma análise da obra História do Paraná, escrita pelo historiador Romário Martins, publicada pela primeira vez em 1899. Nela são construídos discursos a respeito do Paraná e de sua população. Nosso intuito é realizar uma reflexão sobre as práticas discursivas e intencionalidades de seu autor. Para nortear esta análise, partimos das concepções expressas por Stuart Hall acerca do conceito de identidade. Portanto, entendemos que as identidades são construídas dentro de discursos que ao serem produzidos e divulgados, atendem a determinados interesses e, assim, não são neutros. A comunicação é resultado parcial de minha pesquisa de mestrado intitulada “Mosaico Étnico”: uma análise de discursos que constroem uma identidade para o Paraná (1948-2015), em andamento no Programa de Pós Graduação da UNIOESTE, financiada pela CAPES. O objetivo geral da pesquisa é problematizar discursos que constroem uma identidade para o Paraná como um “mosaico de etnias”, “terra de todas as gentes”. Palavras – Chave: História do Paraná; Historiografia; Identidades; Romário Martins. Financiamento: CAPES

“A presença em território paranaense de grupos étnicos tão numerosos e das mais diversas procedências, deu ao Estado uma característica toda especial. Provavelmente, o Paraná é o maior laboratório étnico do Brasil. Esses imigrantes representados pelas novas gerações, praticamente integraram-se à sociedade brasileira, uns mais, outros menos, todos, porém dando sua colaboração para transformação da cultura original luso-brasileira”2.

O objetivo deste artigo é apresentar uma análise de discursos que

constroem uma identidade para o Paraná como um “mosaico de etnias”. Para

tanto, abordaremos uma obra de referência para o estudo de História do

Paraná: História do Paraná, do historiador Romário Martins, publicada pela

primeira vez em 1899.

Esta análise é um dos resultados de minha pesquisa de mestrado

intitulada “Mosaico Étnico”: uma análise de discursos que constroem uma

1 Cursa mestrado em História pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE). Bolsista da CAPES. Orientador: Prof. Dr. Marcos Stein. E-mail: [email protected]. 2 WACHOWICZ, R. C. História do Paraná. Curitiba: Vicentina, 1995.p.151.

identidade para o Paraná (1948-2015), desenvolvida no Programa de Pós

Graduação em História da UNIOESTE. Nela, pretendo por meio da análise de

diferentes fontes – documentos escritos, jornais, entrevistas, obras

historiográficas – investigar e problematizar narrativas que, em diferentes

contextos, constroem identificações étnicas para grupos de nacionais e

estrangeiros que se fixaram no território paranaense a partir da segunda

metade do século XIX. Estes discursos emergem em diferentes contextos, com

determinados objetivos e são utilizados, em datas e festivais comemorativos,

para fixar uma identidade para o Paraná como sendo um “mosaico de etnias”,

uma “terra de todas as gentes”.

Em diferentes momentos e suportes verifica-se a produção e reprodução

de um discurso que afirma que o Paraná recebeu “contribuições” de grupos de

imigrantes alemães, poloneses, ucranianos, holandeses, dentre outros

europeus e, em menor número, asiáticos, classificados como etnias, e que

formariam o chamado “mosaico de étnico do Paraná”. Este discurso marca a

diferença da (re)ocupação do Paraná com relação a do restante do Brasil e cria

a ideia de um Paraná “europeizado”, “branco” e “civilizado”.

Cada grupo, classificado como “etnia”, é apresentado como portador de

características fixas, peculiaridades, especificidades que marcam a diferença

entre eles por meio de suas “qualidades”. Contudo, apesar dessas diferenças,

o discurso também marca a semelhança entre estes grupos: todos são

apresentados como “desbravadores de uma nova terra”, “perseverantes” e

“prósperos”.

Narrativas com este caráter emergem em vários momentos da história

paranaense em diversos meios, como em jornais, revistas, falas de políticos,

documentos oficiais, materiais e eventos comemorativos, livros didáticos, em

sites de órgãos oficiais do Estado e, também, em produções acadêmicas. A

constante produção e reprodução destes discursos causa “efeitos de verdade”3

que cristalizam uma identidade para o Estado e marcam sua diferença com

relação ao restante do Brasil.

3 FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 2°ed., Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2015.

Para esta análise nos apoiaremos nas reflexões de Eni Orlandi4, ou seja,

trataremos o discurso da obra selecionada como uma produção de sentidos,

como construtor dos objetos ou fatos sobre os quais fala. Em suas palavras:

(...) a análise de discurso trabalha com a materialidade da linguagem, considerando-a em seu duplo aspecto: o linguístico e o histórico, enquanto indissociáveis no processo de produção do sujeito do discurso e dos sentidos que (o) significam5.

Em consonância com as reflexões do filósofo Michel Foucault,6

consideramos o discurso como uma construção de características sociais que

buscam legitimação de um poder ou ideologia. Discurso, de acordo com

Foucault, é a produção e reprodução de conhecimento, fruto de relações de

poder que definem o que é posto como norma e o que a transgride. A memória

sobre a participação dos imigrantes na constituição da população paranaense

não é construída por acaso, mas fruto de uma série de processos históricos e

respaldada por uma série de discursos.

A forma como entendemos os conceitos de Identidade e Etnia são de

extrema relevância para a realização deste trabalho. Sobre o conceito

Identidade nos apoiaremos nas reflexões de Stuart Hall. Este autor critica as

afirmações essencialistas ou fixas a respeito da composição da identidade dos

sujeitos, defende, assim, a "existência de um 'eu' inevitavelmente

performativo”7. Ou seja, segundo Hall, a rapidez da modernidade tardia causa

uma "crise de identidade" nos sujeitos, pois além de fragmentar "paisagens

culturais", como gênero, classe, etnia, estas rápidas transformações da

sociedade também mudam nossas identidades pessoais, o que caracteriza a

"perda do sentido de si".

Desta forma, entendemos que os discursos de identificação presentes

na obra historiográfica selecionada para esta análise, ao serem produzidos e

divulgados, atendem a determinados interesses e apresentam uma

determinada visão de mundo, portanto não são neutros. É sob este prisma que

4 ORLANDI, E. P. Análise de Discurso: princípios e procedimentos. Campinas: Pontes, 1999. 5ORLANDI, E. P. Discurso: Fato, dado, exterioridade. Interpretação: Autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico. Petrópolis, RJ: Vozes, 1996, p. 36 e 37. 6 FOUCAULT, M. A Ordem do Discurso. São Paulo: Loyola, 1996 7 HALL. S. A Identidade Cultural na Pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2001.

surgem políticas de identidade nacional, por exemplo. De acordo com Stuart

Hall:

É precisamente porque as identidades são construídas dentro e não fora dos discursos que nós precisamos compreendê-las como produzidas em locais históricos e institucionais específicos, no interior de formações e práticas discursivas específicas, por estratégias e iniciativas específicas8.

Nessa perspectiva, as narrativas sobre cada um dos grupos de

migrantes e imigrantes presentes na obra remetem a um passado comum, que

dá embasamento para a construção de suas identidades culturais, garantindo

sua manutenção e continuidade, bem como acaba por fixar uma identidade

para o Paraná como um lugar de convivência harmoniosa entre todos os

grupos.

Articulado a este conceito não essencialista de Identidade, abordaremos

o conceito de Etnia a partir da perspectiva apresentada pelo antropólogo e

etnólogo Fredrik Barth. Seus estudos questionam a naturalidade com que se

trata este termo, geralmente utilizado como algo estático que classifica as

pessoas em função da sua origem suposta, por meio de signos culturais

socialmente diferenciadores. Os sociólogos Philippe Poutignat e Jocelyne

Streiff-Fenart9 sintetizam a ideia de Barth da seguinte maneira:

Há de convir, com Barth, que a etnicidade é uma forma de organização social, baseada na atribuição categorial que classifica as pessoas em função de sua origem suposta, que se acha validada na interação social pela ativação de signos culturais socialmente diferenciadores10.

Esta “atribuição categorial que classifica as pessoas” é marcada pela

diferença que é construída dentro de discursos. É isto que faz com que uma

pessoa afirme ser “alemão” e não “argentino”. Dessa forma, visamos

apresentar diferentes contextos em que são empreendidas políticas em prol da

valorização de elementos que dariam caráter identitário ao Paraná.

8HALL, Stuart. Quem precisa da identidade?. In: Identidade de Diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Tomaz Tadeu da Silva (org.). Petrópolis, RJ: Vozes, 2000 9 POUTIGNAT, P.; STREIFF-FENART, J. Teorias da Etnicidade. Seguido de grupos étnicos e suas Fronteiras de Fredrik Barth. São Paulo: Fundação editora da UNESP, 1998.

A obra História do Paraná, de autoria do historiador e jornalista Alfredo

Romário Martins, teve sua primeira publicação em 1899 e foi reeditada outras

três vezes: 1937, 1953 e 1995. Considerada uma obra canônica, foi a primeira

compilação que pretendia apresentar “toda” a História do Paraná em volume

único11. Este livro foi resultado de uma monografia apresentada ao Ginásio

Paranaense, publicada em 1899 e adotada nas escolas como obra oficial,

durante muito tempo foi principal referência sobre o tema.

De acordo com o historiador José Erondi Iurkiv12, a diferença entre a

primeira e a segunda edição desta obra é significativa. Sua primeira edição

contava com 250 páginas, passou por correções e acréscimos e foi reeditada

em 1937 com aproximadamente 500 páginas. Todas as edições contam com

investimentos do governo. Para esta análise utilizaremos trechos referentes a

edição de 1995, composta por 471 páginas.

Antes de apresentar análise de alguns trechos desta obra é necessário

contextualizar quem foi este autor, de que lugares ele falava e quem ele

representava. Alfredo Romário Martins nasceu em 1874, seu pai era militar e

sua família abastada13. Construiu uma carreira política, foi deputado estadual

por oito vezes, entre os anos de 1904 e 1928. Em 1900 atuou como

Superintendente do Ensino Público. Participou da fundação do Instituto

Histórico e Geográfico do Paraná (IHGP), presidido por ele cerca de 20 anos14.

Participou ativamente do movimento que buscava a fundação da Universidade

Federal do Paraná. Na década de 1920 dirigiu o Museu Paranaense. Envolveu-

se também com instituições culturais internacionais como a Sociedade

Geográfica de Lisboa e a Sociedade de História Internacional de Paris. Além

disso, trabalhou nos jornais Diário do Comércio, A República, na revista

Ilustração Paranaense, dentre outros. Enquanto deputado estadual foi autor de

11 GAZETA DO POVO. Reportagem publicada online em 08 de fevereiro de 2014. Disponível

em:http://www.gazetadopovo.com.br/vida-e-cidadania/com-romario-martins-surge-o-registro-historico-do-parana-emk8gu7nwdlkuhngaimmj2ury. Acessado em 11 de fevereiro de 2016. 12 IURKIV, J.E. Romário Martins e a historiografia paranaense. Educare, UNIPAR, vol.2 n.2, 2002. 13 Idem. 14 Idem.

várias leis dentre as quais estabeleceram símbolos como a bandeira e o brasão

de armas do Paraná. Este autor faleceu no ano de 194815.

A concepção de história e o projeto político defendido por este intelectual

pode ser percebida por meio de seu vínculo com o Instituto Histórico e

Geográfico. O primeiro Instituto Histórico Geográfico do Brasil (IHGB) foi

fundado em 1839, no Rio de Janeiro, com o objetivo de construir uma história

para a nação brasileira fundada em um passado comum e em elementos

homogeneizadores deste vasto território. Os primeiros institutos eram mantidos

financeiramente pelo imperador ou pelos próprios sócios. De acordo com a

historiadora Lilia Schwarcz, estas instituições pretendiam: “(..) unificar a nação

significava a construção de um passado que se pretendia singular (...)16”, a

autora também afirma que “os diferentes centros produziram falas

marcadamente regionais, apesar da sua pretensão totalizante”17.

A concepção adotada como “história oficial” do Brasil pelo IHGB é a

apresentada pelo alemão Carl Friedrich Phillip von Martius, em seu texto

premiado pelo instituto em 1847, chamado “Como se deve escrever a história

do Brasil”. Neste texto, a questão étnica passa a ser o eixo para a construção

identitária brasileira. Segundo von Martius, a população brasileira seria

constituída pelos indígenas, pelos negros e pelos brancos de origem

europeia18. Podemos perceber uma concepção muito semelhante a esta no

texto de Romário Martins que será apresentado abaixo.

No Paraná, o Instituto Histórico Geográfico foi fundado já no período

republicano. O historiador Ernando Brito Gonçalves Junior realizou estudo

sobre esta instituição para sua dissertação defendida em 2011. De acordo com

ele:

O Instituto Paranaense foi fundado no dia 24 de maio de 1900, em meio às comemorações do quarto centenário do descobrimento do Brasil‖ promovidas pelo Estado do Paraná.

15 MARTINS, Romário. História do Paraná. Curitiba: Travessa dos Editores, 1995. 16 SCHWARCZ, L. O espetáculo das raças: cientistas instituições e questão racial no Brasil.

São Paulo: Companhia das Letras, 2002.p.99 17 Idem. 18 GUIMARÃES, M.L.S. História e Natureza em von Martius: esquadrinhando o Brasil para

construir a nação. História, Ciências e Saúde – Manguinhos, vol.VII, jul.- out. 2000, p. 389-410.

Tinha como principal finalidade, de acordo com seu estatuto de fundação, ―Coligir, estudar, publicar e arquivar os documentos que sirvam à historiografia do Paraná, promovendo a difusão de seu conhecimento pela imprensa e pela tribuna‖ (BIHGP, 1917, p. 22). Essa passagem do estatuto da instituição paranaense assemelha-se bastante ao estatuto do IHGB já citado acima, mostrando que o IHGB era o modelo a ser

seguido pelos institutos regionais19.

No interior do instituto foram fomentadas discussões que visavam

estabelecer e valorizar elementos característicos de uma “regionalidade”

paranaense. O Paranismo, um movimento intelectual que tem como precursor

Romário Martins, entre outros, nasce da valorização das regionalidades

paranaenses, pode, desta forma, estar relacionado a participação de Martins

no instituto (IHGP). Este movimento procurava enaltecer elementos como terra,

clima e homem. Em 1927, Martins define este movimento da seguinte forma:

Paranista é aquele que em terras do Paraná lavrou o campo, vadeou uma floresta, lançou uma ponte, construiu uma máquina, dirigiu uma fábrica, compôs uma estrofe, pintou um quadro, esculpiu uma estátua, redigiu uma lei liberal, praticou a bondade, iluminou um cérebro, evitou uma injustiça, educou um sentimento, formou um perverso, escreveu um livro, plantou uma árvore20.

A partir deste trecho, podemos perceber o esforço realizado por

Romário Martins para definir o que é o sentimento de orgulho em se fazer parte

do Estado do Paraná. Nele vemos representado um ideal de paranaense

morigerado – “Praticou bondade” – laborioso – “lavrou o campo, vadeou uma

floresta (...)” – e letrado – “escreveu um livro”.

Cabe também, a esta discussão informarmos brevemente os contextos

de publicação e republicação da obra em questão. Em 1899, ano da primeira

edição desta obra, havia se passado dez anos da proclamação da república.

Nesta data, como indica Gonçalves Junior, aproximavam-se também as

comemorações dos 400 anos do “descobrimento” do Brasil. Datas

19 GONÇALVES JUNIOR, E. B. O impresso como estratégia de intervenção social: educação e história na perspectiva de Dario Vellozo (1885-1937). Curitiba, UFPR, 2011. Dissertação de mestrado. 20 MARTINS, R. Mensagem do Centro Paranista ao Presidente do estado Dr. Affonso Camargo, 1927. Apud TRINDADE, E. M. C.; ANDREAZZA, M. L. Cultura e Educação no Paraná. Curitiba: SEED, 2001.

comemorativas são ótimos momentos para se fabricar mitos de origem e

conferir sensação de continuidade histórica, para que o povo se reconheça

como parte de um todo, que no caso são o Paraná e o Brasil.

Em 1937, outra data em que História do Paraná foi reimpresso, o Brasil

passava pelo primeiro governo de Getúlio Vargas. Este governante se

comprometeu com a criação um “sentimento de brasilidade”, unívoco, que

visava impor o “espírito nacional” aos imigrantes estrangeiros. Giralda

Seyferth, em seus estudos sobre imigração, afirma que grupos de diferentes

origens são classificados como “alienígenas”, termo pejorativo como apresenta:

Entre 1937 e 1945 uma parcela significativa da população brasileira sofreu interferências na vida cotidiana produzidas por uma “campanha de nacionalização” que visava ao caldeamento de todos os alienígenas em nome da unidade nacional. A categoria “alienígena” — preponderante no jargão oficial — englobava imigrantes e descendentes de imigrantes classificados como “não-assimilados”, portadores de culturas incompatíveis com os princípios da brasilidade21.

A campanha de nacionalização teve forte expressão nos estados do sul

do Brasil (Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul), locais onde a

imigração estrangeira foi significativa. Podemos supor que a reedição de

História do Paraná neste período visava mostrar as contribuições dos

estrangeiros para a construção da nação brasileira, de modo a mostrar a

oposição da intelectualidade paranaense à política de nacionalização varguista.

No ano de 1953, que marca o centenário da emancipação política do

Estado do Paraná, esta obra foi republicada e novamente adotada pelas

escolas do Estado como sendo a obra oficial da história paranaenses22. Houve,

desta forma, grande dispersão do discurso presente neste livro por toda a

sociedade.

Esta obra contém um projeto de modernidade das elites locais, centrada

na ideia de um Paraná “branco”, que seria grande promessa para o futuro do

Brasil. Procuramos mostrar acima, como que o interesse em repetir tantas

21 SEYFERTH,G. A assimilação dos imigrantes como questão nacional. Mana vol.3 n.1 Rio de Janeiro Apr. 1997. 22 GILLIES, A. M. R. Identidade, cultura, relações étnico-raciais e representações no Paraná. Anais do II Congresso Internacional de História UEPG-UNICENTRO. 2015.

vezes o discurso desta obra ocorreu em momentos de redefinição

populacional, articulado com o cenário nacional, ora reafirmando, ora

discordando de suas políticas. De acordo com Zygmunt Bauman, a questão da

identidade só é debatida no momento em que o “pertencimento” sai da zona de

conforto.

Quando a identidade perde as âncoras sociais que a faziam parecer “natural”, predeterminada e inegociável, a “identificação” se torna cada vez mais importante para os indivíduos que buscam desesperadamente um “nós” a que possam pedir acesso23.

Os momentos de reedição da obra configuram momentos de busca por

“âncoras sociais” que naturalizem uma identidade para a população

paranaense. Isso ocorre devido a uma crise de “pertencimento” de uma

população que não se enquadra mais no discurso de identidade fixa, imutável.

Contextualizado isto, partiremos para a descrição e análise de alguns

trechos desta obra. Extremamente densa, descritiva e informativa, esta obra

divide-se em vinte subcapítulos: Introdução, Meio Físico, Distribuição

geográfica das tribos indígenas, A posse da terra, Província índio – cristã de

Guaíra, Caminhos Históricos, Fatores Étnicos Fundamentais, Bandeiras e

Bandeirantes, Origens da Administração Pública, Ciclo da Mineração de Ouro,

Povoamento do Litoral e do Planalto, Origens da Economia Rural, Militária,

Elevação da Comarca a Província, Novos Fatores étnicos, A campanha

abolicionista, A propaganda republicana, A organização da província,

Organização do Estado, Definição Territorial do Estado, Administradores

Públicos.

Os primeiros doze subcapítulos tratam do século XVI até o início do

século XIX. Aborda o período de começo da colonização do Brasil pelos

portugueses, em que este território se dividia em capitanias hereditárias. Trata

também sobre a chegada dos bandeirantes e sobre a descoberta do ouro

próximo ao litoral do território posteriormente denominado Paraná. Nos séculos

XVIII e início do XIX, o Paraná não existia enquanto província, ainda fazia parte

23BAUMANN, Z. Identidade: Entrevista a Benedetto Vecchi. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.P. 30.

da província de São Paulo. Para Romário Martins, nesse período a “formação

étnica” da região era constituída por “Povoadores Fundamentais”24, “o índio”, “o

colonizador ibérico” e “o africano escravo”, o que nos remete a concepção

presente no texto de von Martius, já exposta acima, consagrado pelo IHGB.

Devido ao engajamento de Martins no Instituto Histórico Geográfico do Paraná,

podemos supor que ele tenha tido contato com o texto de von Martius e,

portanto, incorporado esta concepção. Também podemos encarar como uma

tentativa do autor de aproximar a história do Paraná da considerada “história

oficial” do Brasil.

A partir do subcapitulo XIII, Romário Martins contextualiza o período pós

emancipação política do Estado do Paraná, ocorrida em 1853. No subcapítulo

XIV, o autor introduz “Novos Fatores Étnicos” ao seu estudo sobre a formação

da população. Martins trata sobre a chegada de imigrantes da Europa central e

oriental, e seus descendentes. O ufanismo e a busca constante por firmar uma

identidade para o Estado que o destaque perante aos outros são

características marcantes na escrita de Romário Martins. O trecho a seguir é o

que melhor sintetiza o discurso de um “Paraná de todos os povos”:

Em todas as zonas povoadoras do Estado, os elementos étnicos da segunda fase do nosso povoamento estão representados por imigrantes ou por seus descendentes de origem alemã, austríaca, italiana, polonesa, russa, ucraniana, holandesa, sírio – libanesa, em grande número, e por várias outras etnias de menor vulto. Conjuntamente com os descendentes dos outros povoadores fundamentais, essa população por toda a parte aí está construindo uma Babel de todas as raças, irmandadas na mesma obra colonizadora, integrada ao espírito novo de cooperação e de fraternidade, com que marchamos para o futuro25. (grifo nosso).

O Paraná é apresentado como um lugar de convivência harmoniosa

entre os vários povos que se fixaram em seu território. Os imigrantes são

tratados como possuidores de “espírito novo de cooperação” de

“fraternindade”.

24 Estes são apresentados no subcapitulo VI “Fatores étnicos Fundamentais”. MARTINS, Romário. História do Paraná. Curitiba: Travessa dos Editores, 1995. 25 MARTINS, Romário. História do Paraná. Curitiba: Travessa dos Editores, 1995.p. 352.

O termo “Babel de todas as raças”, denota certa contradição do autor.

Babel remete à passagem bíblica que diz respeito à comunicação entre os

povos. Nesta passagem bíblica, os homens tentam edificar uma torre que

alcance o céu. É então que Deus cria uma confusão, ou desorganização que

faz os homens falarem línguas diferentes e, assim, não poderem concluir a

torre. No entanto, para Romário Martins esta “babel” não irá desorganizar os

imigrantes, mas sim irá os “irmandar” em prol da “obra colonizadora” que

direciona para um “futuro”.

Há, ainda, outra reflexão que podemos fazer sobre este termo. Romário

Martins faz uma referência a uma “cooperação” entre diferentes povos, que

com “fraternidade” construirão um novo futuro, uma nova organização, cada um

fazendo sua parte. Assim, é constituída a memória de um lugar onde não há

conflitos.

Nas profissões liberais, nas artes e ciências especializadas, já se salientam paranaenses descendentes de alemães, italianos, poloneses, sírios e judeus. Nas sociedades e centros culturais, beneficentes, educativos, econômicos, esportivos, etc., colaboraram profusamente para o surto de nossas civilizações, valiosos elementos dessas mesmas origens. Diversas são as antigas colônias que se transformaram em vilas e cidades de origem alemã, italiana, polonesa e ucraniana26.

É possível perceber no trecho acima que para Romário Martins, os

imigrantes chegados, no que ele denomina, “2° fase do povoamento” trouxeram

o progresso comercial, industrial, cultural e “colaboraram profusamente para o

surto de nossas civilizações”.

Na obra História do Paraná, Romário Martins apresenta uma história de

governantes, grandes feitos e que pretende abarcar toda a história do Paraná

vivida até ali. Utilizando elementos geográficos e antropológicos visava

demarcar o território e ressaltar a formação da sua população com relação à do

restante do Brasil, bem como mostrar o potencial do Estado para um progresso

futuro.

O discurso presente na obra de Romário Martins foi e, de certa forma,

ainda é grande referência para os estudos de história do Paraná. A

26 Idem

caracterização da população paranaense baseada em sua origem étnica foi

repetida e/ou influenciou muitas produções historiográficas, sociológicas e

antropológicas posteriores. De acordo com Joseli Maria Nunes Mendonça27, no

final da década de 1950 e ao longo de toda década de 1960, um grupo de

pesquisadores ligados a Universidade Federal do Paraná desenvolveu uma

agenda de pesquisas demográficas que tratavam das “transformações

ocorridas com a entrada de novos contingentes étnicos” no Paraná, bem como

sobre as dinâmicas de auto preservação estabelecidas no interior de cada

grupo (alemães, ucranianos, poloneses, etc.).

A obra analisada colabora para que se constitua fronteiras que são

usadas para estabelecer uma identidade para o Paraná, criar um sentimento de

pertencimento e amor a este Estado. Podemos notar, também, a intenção de

legitimar um projeto de sociedade para o Paraná vinculado a uma elite

intelectual.

Romário Martins produziu saberes sobre o Paraná, ocupou espaços de

saber como o instituto Histórico geográfico paranaense (IHGP) entre outras

instituições nacionais e internacionais. Além disto, tinha vínculo com as elites

políticas, tendo em vista que constituiu por cerca de 30 anos o cargo de

Deputado, e com a imprensa, que facilitavam a veiculação dos seus modos de

vista.

Vale retomarmos as considerações de Foucault a respeito de discurso,

feitas no início deste texto. O discurso é construído dentro de relações de

poder para um poder ou ideologia. Tal legitimação, de acordo com Foucault,

ocorre por meio de mecanismos de saber, de lugares de fala que

delimitam/classificam o discurso como sendo verdadeiro. As narrativas a

respeito da identidade do Paraná produzidas por este intelectual, diferenciam e

classificam uma realidade social ao cristalizar uma memória sobre a população

paranaense.

Narrativas como as que estão presentes no livro História do Paraná, ao

enaltecer e celebrar as diferenças e a harmonia entre os grupos,

27 MENDONÇA, J. M. N. Revisitando a história da imigração e da colonização no Paraná

provincial. Revista Antíteses. v.8, n.16, p.204-226, jul./dez. 2015.

apagam/silenciam o dissenso, os conflitos políticos, de classe, de gênero, de

organização social entre descendentes de imigrantes e migrantes. Assim, é

criando um sentimento de unidade harmonia que compõe o chamado “mosaico

étnico do Paraná”.

Fontes: MARTINS, Romário. História do Paraná. Curitiba: Travessa dos Editores, 1995. MARTINS, R. Mensagem do Centro Paranista ao Presidente do estado Dr. Affonso Camargo, 1927.

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