historia das politicas de saude no brasil_tatiana baptista

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Histria das Polticas de Sade no Brasil: a trajetria do direito sadeTatiana Wargas de Faria Baptista

Introduo Antes de iniciarmos a leitura sobre a histria das polticas de sade no Brasil, fao um convite reflexo: Qual a importncia da sade para o indivduo e para a sociedade? Quem ou deve ser responsvel pela sade dos indivduos e da sociedade? Que direitos e garantias os Estados devem prover a seus cidados? Os Estados devem atuar na proteo sade das comunidades? Se entendermos que os Estados tm um papel fundamental na garantia do direito sade, qual deve ser a extenso desse direito? Os Estados devem proteger todos os indivduos ou apenas aqueles que contribuem financeiramente para um sistema de ateno? Ou apenas os mais necessitados? Qual deve ser a abrangncia da proteo ofertada? O Estado deve prover todos os tipos de assistncia sade ou somente aes coletivas de preveno e promoo sade? Estas questes tm permeado o debate das polticas de sade em todos os pases desde pelo menos o final do sculo XIX. Desde ento, cada pas buscou solues e modelos de polticas que atendessem a suas necessidades e respondessem s reivindicaes de cada sociedade, conformando modelos de proteo social de maior ou menor abrangncia. No Brasil, a garantia do direito sade1 e a configurao de uma poltica de proteo social em sade abrangente (para todos e de forma igualitria) se configuraram muito recentemente, com a promulgao da Constituio Federal1 Sobre direito e cidadania, ver Reis, texto Cultura de direitos e Estado: os caminhos (in)certos da cidadania no Brasil, no livro Sociedade, Estado e Direito Sade, nesta coleo (N. E.).

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de 1988 e a instituio do Sistema nico de Sade (SUS). Contudo, ainda hoje (2007) as questes anteriormente apontadas se apresentam no debate poltico e social, tensionando interesses e somando problemas para a consolidao do modelo de proteo social. Fato que o SUS legal no ainda uma realidade nacional e muito h que se fazer para se alcanar a proposta constitucional. Basta dizer que o gasto pblico em sade no Brasil, no ano de 2006 (gastos do Ministrio da Sade, dos governos estaduais e municipais), foi menor que o gasto privado em sade. Neste mesmo ano eram beneficirios de planos de sade 36 milhes de brasileiros (ANS, 2007). O que esses dados revelam um paradoxo, pois, apesar da existncia de um sistema de sade pblico e universal, h uma boa parcela da populao que optou por outro tipo de sistema de sade, o privado. Tal situao fragiliza o modelo de proteo definido em 1988 e levanta questionamentos acerca da extenso dos direitos desde as formas de financiamento do sistema protetor at quem dever ser protegido pelo Estado. O objetivo central deste texto apresentar a histria das polticas de sade no Brasil, tendo como principal eixo de anlise o direito sade conhecer como e por que no se tinha o direito sade at um perodo da nossa histria e quando isso mudou a fim de avanar em uma compreenso crtica sobre os desafios e dilemas do SUS na atualidade. A Formao do Estado Brasileiro e as Primeiras Aes de Sade Pblica A histria das polticas de sade no Brasil est inserida em um contexto maior da prpria histria do Brasil como Estado-Nao. As primeiras aes de sade pblica implementadas pelos governantes foram executadas no perodo colonial com a vinda da famlia real para o Brasil (1808) e o interesse na manuteno de uma mo-de-obra saudvel e capaz de manter os negcios promovidos pela realeza. Muitas doenas acometiam a populao do pas, doenas tropicais e desconhecidas dos mdicos europeus, como a febre amarela e a malria, alm das doenas trazidas por estes, como a peste bubnica, a clera e a varola. O conhecimento acerca da forma de transmisso, controle ou tratamento dessas doenas ainda era frgil, possibilitando diferentes intervenes ou vises sobre as molstias.30

HISTRIA DAS POLTICAS DE SADE NO BRASIL

O povo brasileiro constitua-se de portugueses, outros imigrantes europeus e, principalmente, ndios e negros escravos. Cada um desses grupos era detentor de uma cultura prpria, costumes e tradies e um conhecimento tambm prprio acerca das doenas e da forma de trat-las. At a chegada da famlia real, o assistir sade era uma prtica sem qualquer regulamentao e realizada de acordo com os costumes e conhecimento de cada um desses grupos. A populao recorria, em situaes de doena, ao que fosse vivel financeiramente ou fisicamente. Existia o barbeiro ou prtico, um conhecedor de algumas tcnicas utilizadas pelos mdicos europeus, tais como as sangrias, que atendia populao capaz de remuner-lo. Existiam os curandeiros e pajs, pertencentes cultura negra e indgena, mais acessveis maioria da populao, que se utilizavam das plantas, ervas, rezas e feitios para tratar os doentes. Havia tambm os jesutas, que traziam algum conhecimento da prtica mdica europia utilizando-se principalmente da disciplina e do isolamento como tcnica para cuidar dos doentes. A vinda da famlia real para o Brasil possibilitou tambm a chegada de mais mdicos e o aumento da preocupao com as condies de vida nas cidades, possibilitando o incio de um projeto de institucionalizao do setor sade no Brasil e a regulao da prtica mdica profissional. Foi assim que, no mesmo ano da chegada da famlia ao Brasil (1808), foi inaugurada a primeira faculdade de medicina, a Escola mdico-cirrgica, localizada em Salvador Bahia, com vistas institucionalizao de programas de ensino e normalizao da prtica mdica em conformidade aos moldes europeus. A regulamentao do ensino e da prtica mdica resultou em um maior controle das prticas populares e na substituio gradativa dos religiosos das direes dos hospitais gerais, especialmente a partir da Repblica. Outro resultado da poltica de normalizao mdica foi a constituio de hospitais pblicos para atender algumas doenas consideradas nocivas populao e de necessrio controle pelo Estado, como as doenas mentais, a tuberculose e a hansenase. Assim, em 1852 inaugurado o primeiro hospital psiquitrico brasileiro no Rio de Janeiro Hospital D.Pedro II com o objetivo de tratar medicamente os denominados doentes mentais (Costa, 1989).31

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Nesse perodo, o interesse pela sade e pela regulamentao da prtica profissional esteve estritamente relacionado ao interesse poltico e econmico do Estado de garantir sua sustentabilidade e a produo da riqueza, seguindo uma velha poltica, j aplicada com sucesso em outros pases da Europa, desde o incio do sculo XVIII (Costa, 1985; Rosen, 1979), de controle da mo-deobra e dos produtos, com aes coletivas para o controle das doenas, disciplina e normatizao da prtica profissional (Foucault, 1979). Assim, as primeiras aes de sade pblica (polticas de sade) que surgiram no mundo e que tambm passaram a ser implementadas no Brasil colnia voltaram-se especialmente para:

proteo e saneamento das cidades, principalmente as porturias, responsveis pela comercializao e circulao dos produtos exportados;

controle e observao das doenas e doentes, inclusive e principalmente dos ambientes;

teorizao acerca das doenas e construo de conhecimento paraadoo de prticas mais eficazes no controle das molstias. A preocupao maior era a sade da cidade e do produto; a assistncia ao trabalhador era uma conseqncia dessa poltica. Nesse sentido, algumas campanhas voltadas para os trabalhadores comeavam a ser implementadas, mas ainda eram pouco resolutivas, como a quarentena afastamento por quarenta dias do doente do ambiente que habita e circula , principal estratgia utilizada para evitar a propagao de doenas entre os trabalhadores, sem uma preocupao mais efetiva com o tratamento do doente. A proclamao da Repblica em 1889 inicia um novo ciclo na poltica de Estado com o fortalecimento e a consolidao econmica da burguesia cafeeira. As polticas de sade ganham ainda mais espao nesse contexto, assumindo um papel importante na construo da autoridade estatal sobre o territrio e na conformao de uma ideologia de nacionalidade, configurando um esforo civilizatrio (Lima, Fonseca & Hochman, 2005). A lavoura do caf e toda a base para armazenamento e exportao do produto, dependentes do trabalho assalariado, necessitava cada vez mais de mo-de-obra, e as epidemias que se alastravam entre os trabalhadores, devido s pssimas condies de saneamento, prejudicavam o crescimento da economia.32

HISTRIA DAS POLTICAS DE SADE NO BRASIL

Comeava a busca por conhecimento e aes na rea da sade pblica, com a criao, em 1897, da Diretoria Geral de Sade Pblica (DGSP), o incentivo s pesquisas nas faculdades de medicina e no exterior (no Instituto Pasteur) e a criao de institutos especficos de pesquisa, como o Instituto Soroterpico Federal, criado em 1900, renomeado Instituto Oswaldo Cruz (IOC) um ano depois. A partir de 1902, com a entrada de Rodrigues Alves na presidncia da Repblica, ocorreu um conjunto de mudanas significativas na conduo das polticas de sade pblica. A primeira ao mais concreta levou concepo de um programa de obras pblicas junto com o prefeito da capital Guanabara, Pereira Passos, na primeira tentativa mais sistematizada de organizao e saneamento da cidade capital. As aes de saneamento e urbanizao foram seguidas de aes especficas na sade, especialmente no combate a algumas doenas epidmicas, como a febre amarela, a peste bubnica e a varola. A reforma na sade foi implementada a partir de 1903, sob a coordenao de Oswaldo Cruz, que assume a diretoria geral de sade pblica. Em 1904, Oswaldo Cruz prope um cdigo sanitrio que institui a desinfeco, inclusive domiciliar, o arrasamento de edificaes consideradas nocivas sade pblica, a notificao permanente dos casos de febre amarela, varola e peste bubnica e a atuao da polcia sanitria. Ele tambm implementa sua primeira grande estratgia no combate s doenas: a campanha de vacinao obrigatria. Seus mtodos tornaram-se alvo de discusso e muita crtica, culminando com um movimento popular no Rio de Janeiro, conhecido como a Revolta da Vacina (Costa, 1985; COC, 1995). O cdigo sanitrio foi considerado por alguns como um cdigo de torturas, dada a extrema rigidez das aes propostas. A polcia sanitria tinha, entre outras funes, a tarefa de identificar doentes e submet-los quarentena e ao tratamento. Se a pessoa identificada como doente no tivesse recurso22 Durante os sculos XVIII e XIX, os cientistas europeus buscavam explicaes para os quadros de morbidade que acometiam a populao. As pesquisas acerca das doenas baseavam-se na observao da morbidade com registro contnuo dos quadros de adoecimento e morte (evoluo da doena e acompanhamento dos casos) e na busca de causualidade e formas de transmisso das doenas (Costa, 1985). Uma referncia interessante o livro de Snow (1967) publicado em 1849 no qual o autor demonstra o raciocnio e a conduta de investigao de um cientista para compreender a forma de transmisso do clera. No Brasil, a pesquisa epidemiolgica (o estudo das doenas) tem incio de forma mais sistemtica no sculo XX, sendo seu principal executor Oswaldo Cruz (mdico, especialista em microbiologia, formado pelo Instituto Pasteur na Frana).

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prprio para se isolar em fazendas distantes e pagar mdicos prprios, era enviada aos hospitais gerais conhecidos no perodo como matadouros ou simplesmente isolada do convvio social, sem qualquer tratamento especfico, o que significava a sentena de morte para a grande maioria, uma prtica que causou revolta e pnico na populao. O isolamento dos doentes e o tratamento oferecido nos hospitais eram o maior temor do perodo. Alm disso, a ignorncia da populao sobre o mecanismo de atuao da vacina no organismo humano associada ao medo de se tornar objeto de experimentao pelos cientistas e atender interesses polticos dos governantes fez com que surgissem reaes de grupos organizados (Costa, 1985).3 Em contrapartida, com as aes de Oswaldo Cruz conseguiu-se avanar bastante no controle e combate de algumas doenas, possibilitando tambm o conhecimento acerca das mesmas. Em 1907, a febre amarela e outras doenas j tinham sido erradicadas da cidade do Rio de Janeiro e Belm. Outros cientistas, como Emlio Ribas, Carlos Chagas, Clementino Fraga, Belisrio Penna, estiveram, juntos com Oswaldo Cruz, engajados na definio de aes de sade pblica e na realizao de pesquisas, atuando em outros estados e cidades do pas. Nas dcadas de 1910 e 1920 tem incio uma segunda fase do movimento sanitarista com Oswaldo Cruz, e a nfase passou a estar no saneamento rural e no combate a trs endemias rurais (ancilostomase, malria e mal de Chagas). A partir de expedies pelo pas, os mdicos sanitaristas tiveram um conhecimento mais amplo da situao de sade no territrio nacional e do quanto era necessrio desenvolver uma poltica de Estado nesta rea (Hochman & Fonseca, 1999). As expedies revelaram um Brasil doente e suscitaram o questionamento do discurso romntico sobre os sertes como espao saudvel. A repercusso dos relatrios mdicos sobre as condies de sade nos sertes propiciou intenso debate sobre a questo nacional, e a doena generalizada passou a ser apontada como razo para o atraso nacional (Lima, Fonseca & Hochman, 2005). As expedies foram acompanhadas por escritores como Euclides da Cunha que, mais tarde, atravs da sua obra Os Sertes, expressou as mazelas vividas pelo povo brasileiro nesta regio.3 interessante como ainda existe no imaginrio social do povo brasileiro o temor em relao s vacinas e a desconfiana acerca das intenes dos governantes quando instituem uma nova vacina no calendrio oficial, como ocorreu nos anos 90 no caso da vacina contra a gripe para os idosos.

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Durante a Primeira Repblica, o movimento sanitarista trouxe a situao de sade como uma questo social e poltica o grande obstculo civilizao. Um dos efeitos polticos do movimento, nesse perodo, foi a expanso da autoridade estatal sobre o territrio, ao mesmo tempo em que se criavam as bases para a formao da burocracia em sade pblica. Em 1920, criada a Diretoria Nacional de Sade Pblica (DNSP), reforando o papel do governo central e a verticalizao das aes (Hochman & Fonseca, 1999). Mas o fato de as aes de sade pblica estarem voltadas especialmente para aes coletivas e preventivas deixava ainda desamparada grande parcela da populao que no possua recursos prprios para custear uma assistncia sade. O direito sade integral no era uma preocupao dos governantes e no havia interesse na definio de uma poltica ampla de proteo social. Cidadania Regulada e Direito Sade Na dcada de 1920, incio do sculo passado, o Estado brasileiro sofria mais agudamente a crise do padro exportador capitalista. Os pases importadores tornavam-se cada vez mais exigentes com a qualidade dos produtos e muitas represlias surgiam com relao aos produtos brasileiros, pois os navios e portos ainda mantinham nveis de higiene insalubres, exportando doenas. Novas aes foram implementadas no controle das doenas, tanto na rea da sade pblica quanto na da assistncia mdica individual (Costa, 1985). As revoltas populares, os movimentos anarquistas e comunistas pressionavam por aes mais efetivas do Estado na ateno sade. Foi a partir desses movimentos que o chefe de polcia, Eloy Chaves, props, em 1923, uma lei que regulamentava a formao de Caixas de Aposentadorias e Penses (Caps) para algumas organizaes trabalhistas mais atuantes poltica e financeiramente, como os ferrovirios e os martimos, ligados produo exportadora (Oliveira & Teixeira, 1985). As Caps eram organizadas por empresas e administradas e financiadas por empresas e trabalhadores, em uma espcie de seguro social. Nem toda empresa oferecia ao trabalhador a possibilidade de formao de uma Caixa esse era um benefcio mais comum nas empresas de maior porte. O Estado em nada contribua financeiramente e muito menos tinha responsabilidade na administrao dessas Caixas sua atuao restringia-se legalizao de uma organizao, que j se vinha dando de maneira informal desde a dcada de35

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1910, e ao controle a distncia do funcionamento dessas caixas, mediando possveis conflitos de interesses (Oliveira & Teixeira, 1985). Os benefcios que os segurados recebiam eram: socorros mdicos (para o trabalhador e toda a famlia, inclusive amigados), medicamentos, aposentadorias e penses para os herdeiros. Com as Caps, uma pequena parcela dos trabalhadores do pas passava a contar com uma aposentadoria, penso e assistncia sade. Assim, o direito assistncia sade estava restrito, nesse perodo, condio de segurado. Note-se que apesar de o Estado no ter definido um sistema de proteo abrangente e de se ter mantido parte dessa forma de organizao privada, restringindo-se a legaliz-la e a control-la a distncia, esse modelo serviu de base para a constituio de um primeiro esboo de sistema de proteo social no Estado brasileiro, que se definiu a partir dos anos 30 no contexto do governo de Getlio Vargas.4 O Estado assume ativamente, a partir de 30, o papel de regulador da economia (Fiori, 1995) e define um projeto econmico baseado na industrializao. Investe na rea de energia, siderurgia e transportes, implantando uma infra-estrutura produtiva, absorvendo a mo-de-obra advinda do campo e alavancando a economia nacional. Assistia-se a um gradativo fortalecimento do projeto poltico-ideolgico de construo nacional, acompanhado de medidas que favoreceram sua implementao (Lima, Fonseca & Hochman, 2005). Duas mudanas institucionais marcaram a trajetria da poltica de sade e merecem ser aprofundadas: a criao do Ministrio da Educao e Sade Pblica (Mesp) e do Ministrio do Trabalho, Indstria e Comrcio (MTIC). O Mesp trazia para o centro do debate duas polticas sociais importantes na configurao de qualquer modelo de proteo. No entanto, os primeiros anos do Mesp foram marcados pela inconstncia e indefinio de projetos e propostas, enquanto o MTIC reunia proposies claras e bastante especficas de proteo ao trabalhador, inclusive na rea da sade. Desenvolveu-se de um lado um arcabouo jurdico e material de assistncia mdica individual previdenciria, a ser garantida pelo MTIC, e, de outro, a definio de aes de sade pblica de carter preventivo atribudas ao Mesp. Como resumem Lima, Fonseca & Hochman (2005: 41)4

O governo Vargas tem incio no cerne de uma crise mundial, efeito da quebra da bolsa de Nova Iorque em 1929, e a partir de uma revoluo poltica interna, Revoluo de 1930, que encerra a Repblica Velha (1889-1930).

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muito alm de uma simples diviso e especificao de funes em razo da rea de atuao de cada rgo, em um contexto de reestruturao e consolidao de polticas sociais, a separao correspondeu a um formato diferenciado de reconhecimento de direitos sociais. A poltica de proteo ao trabalhador iniciada no governo Vargas marca uma trajetria de expanso e consolidao de direitos sociais. Algumas polticas foram importantes: a obrigatoriedade da carteira profissional para os trabalhadores urbanos, a definio da jornada de trabalho de oito horas, o direito a frias e a lei do salrio-mnimo. Getlio, o pai dos trabalhadores, como passou a ser conhecido, inicia no Estado brasileiro uma poltica de proteo ao trabalhador, garantindo, com isso, uma mo-de-obra aliada ao projeto de Estado, mantendo sua base decisria na estrutura estatal centralizada e atendendo aos seus interesses econmicos. nesta fase que so criados os Institutos de Aposentadorias e Penses (Iaps ), ampliando o papel das Caps, constituindo um primeiro esboo do sistema de proteo social brasileiro. Os Iaps passam a incluir em um mesmo instituto toda uma categoria profissional, no mais apenas empresas instituto dos martimos (IAPM), dos comercirios (IAPC), dos industriais (Iapi) e outros , e a contar com a participao do Estado na sua administrao, controle e financiamento. Com os Iaps, inicia-se a montagem de um sistema pblico de previdncia social mantendo ainda o formato do vnculo contributivo formal do trabalhador para a garantia do benefcio. O trabalhador que no contribusse com os institutos estava excludo do sistema de proteo. Portanto, estavam excludos: o trabalhador rural, os profissionais liberais e todo trabalhador que exercesse uma funo no reconhecida pelo Estado. A proteo previdenciria era um privilgio de alguns includos, o que fazia com que grande parcela da populao, principalmente os mais carentes, fosse vtima de uma injustia social. Para Santos (1979), essa forma de organizao do sistema protetor brasileiro reforou um padro de regulao do Estado que valoriza o trabalhador que exerce funes de interesse do Estado, atribuindo apenas a estes um status de cidado, uma cidadania regulada e excludente, pois no garante a todos os mesmos direitos. Outra caracterstica desse modelo era a discriminao dos benefcios de acordo com a categoria profissional. Cada IAP organizava e oferecia a seus contribuintes um rol de benefcios compatvel com a capacidade de contribuio e organizao de cada categoria, o que fez com que algumas categorias pro37

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fissionais tivessem mais privilgios que outras. As categorias com maior poder econmico, como os industriais, os bancrios, tinham maior disponibilidade de verbas, e por isso podiam oferecer a seus contribuintes um leque maior de benefcios. No que diz respeito sade, tal fato significava um padro melhor de assistncia mdica e hospitalar, diferenciado por categoria e mantenedor da desigualdade social mesmo entre os trabalhadores. Quem no se inseria na medicina previdenciria estava tambm excludo do direito assistncia sade prestada pelos institutos e contava com alguns servios ofertados pelo Mesp em reas estratgias (sade mental, tuberculose, hansenase e outros), alm da caridade e do assistencialismo dos hospitais e de profissionais de sade. O Mesp promovia tambm as aes de sade pblica, cuidando do controle e preveno das doenas transmissveis. Anos 50: desenvolvimento e sade A partir da dcada de 1950, mudanas ocorreram no sistema de proteo sade. O processo de acelerada industrializao do Brasil determinou um deslocamento do plo dinmico da economia. At ento, o Brasil tinha sua economia assentada na agricultura, mas, a partir dessa dcada, com o processo de industrializao, os grandes centros urbanos passaram a ser o plo dinmico da economia, o que gerou uma massa operria que deveria ser atendida pelo sistema de sade (Mendes, 1993). Tal fato levou a uma expanso progressiva e rpida dos servios de sade, instaurando a prtica de convnios-empresa para suprir as demandas cada vez mais crescentes. Surgem os grandes hospitais, com tecnologias de ltima gerao e com a incorporao da lgica de especializao dos recursos humanos. A assistncia torna-se mais cara, e o hospital, o principal ponto de referncia para a busca de um atendimento em sade. O modelo de sade que passa a se definir baseado no hospital e na assistncia cada vez mais especializada tambm seguia uma tendncia mundial, fruto do conhecimento obtido pela cincia mdica no ps-guerra.5 O conhe5 A guerra possibilitou um grande quantitativo de experimentos com humanos utilizados como cobaias nos campos de concentrao e nos hospitais militares e, conseqentemente, um maior conhecimento acerca das drogas, tcnicas mdicas e seus efeitos no homem.

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cimento mais detalhado da fisiologia e da fisiopatologia permitiu o desenvolvimento de drogas modernas6 e possibilitou uma revoluo na prtica mdica, bem como o incio de um processo de mudana nos nveis de sade das populaes, que passam progressivamente a viver mais (aumenta a expectativa de vida) e a sofrer de doenas mais complexas (crnicas) ou tpicas da modernidade, como os acidentes de carro, violncias, entre outras. 7 Nos principais pases desenvolvidos da Europa, constituem-se, no psguerra, os Estados de Bem-Estar Social (tambm conhecidos como Welfare

State) com o objetivo de reerguer as economias afetadas pela guerra e configurar Estados fortes e compromissados com a democracia e a justia social uma forma de combater o comunismo e manter as economias europias no padro competitivo mundial (Esping-Andersen, 1995). Os Estados de Bem-Estar consistem em uma poltica sustentada e pactuada entre a rea econmica e a rea social com o objetivo de garantir o bemestar da populao e manter a produo econmica. Os pilares dessa poltica eram: o pleno emprego, a proviso pblica de servios sociais universais como sade, educao, saneamento, habitao, lazer, transporte etc. e a assistncia social para aqueles no includos no sistema produtivo (Faria, 1997). No Brasil, no se configurou nesse perodo (anos 50) uma poltica de bem-estar social, mas ganhou espao a ideologia desenvolvimentista que apontou a relao pobreza-doena-subdesenvolvimento, indicando a necessidade de polticas que resultassem em melhora do nvel de sade da populao como condio para se obter desenvolvimento este foi o primeiro passo para uma discusso mais aprofundada sobre o direito sade e proteo social como poltica pblica. O sanitarismo desenvolvimentista, que tinha como representantes Samuel Pessoa, Carlos Gentile de Melo e Mrio Magalhes, reagia ao campanhismo da sade pblica, centralizao decisria, fragilidade dos governos locais e ao baixo conhecimento do estado sanitrio do pas e propunha a6 Como exemplos, podemos citar os betabloqueadores, para a preveno das dores cardacas; os medicamentos contra lcera e Parkinson; a quimioterapia do cncer, os antidepressivos. 7 Fenmeno que se consolidar especialmente nos pases desenvolvidos, em trs dcadas (de 1950 para 1980), e que ser denominado transio demogrfica para explicar a mudana no perfil populacional, com pessoas mais idosas e maior controle da natalidade e transio epidemiolgica para explicar a mudana no perfil das doenas, com uma diminuio das doenas infecciosas e parasitrias e o aumento das doenas degenerativas, crnicas e tpicas da modernidade. Nos pases em desenvolvimento (ou perifricos), h uma grande variedade de situaes com transies mais ou menos avanadas, convivendo novas e antigas doenas.

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compreenso das relaes entre sade e doena e sua importncia para a transformao social e poltica do pas (Lima, Fonseca & Hochman, 2005). Foram acontecimentos importantes deste perodo e que marcaram a trajetria da poltica de sade: a criao do Ministrio da Sade em 1953, atribuindo um papel poltico especfico para a sade no contexto do Estado brasileiro; e a reorganizao dos servios nacionais de controle das endemias rurais no Departamento Nacional de Endemias Rurais (Deneru) em 1956, possibilitando o incremento nas aes e nos programas de sade voltados para o combate s doenas endmicas na rea rural. Na prtica, os anos do desenvolvimentismo mantiveram a lgica de organizao do modelo poltico em vigor para a sade, com as aes e servios de sade pblica de um lado e o sistema previdencirio de outro, com polticas isoladas de sade que atendiam a diferentes objetivos. Uma poltica de sade pblica universal e com nfase na preveno das doenas transmissveis, e uma poltica de sade previdenciria, restrita aos contribuintes da previdncia e seus dependentes, com nfase na assistncia curativa. O direito sade integral ainda no era um direito do cidado brasileiro. Mas o desenvolvimentismo gerou riqueza e mobilizou recursos, o que levou a mudanas concretas nas cidades e novas demandas para o sistema previdencirio e para a sade pblica. A partir de ento, as polticas de sade configuram-se em um importante instrumento do Estado, no mais apenas pelo controle a ser exercido no espao de circulao dos produtos e do trabalhador, mas principalmente pelo quantitativo de recursos que passou a mobilizar postos de trabalho, indstrias (de medicamentos, de equipamentos), ensino profissional, hospitais, ambulatrios e tantos outros. Estava constituda a base para a expanso do sistema de sade e para a consolidao de um complexo produtivo, como veremos no tpico a seguir. Expanso e Consolidao do Complexo Mdico-Empresarial O golpe militar, em 1964, e a nova forma de organizao do Estado trouxeram mudanas para o sistema sanitrio brasileiro, dentre elas a nfase na assistncia mdica, o crescimento progressivo do setor privado e a abrangncia de parcelas sociais no sistema previdencirio. A primeira ao significativa no sistema previdencirio brasileiro ocorreu em 1966 com a unificao dos Iaps e a constituio do Instituto Nacional da40

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Previdncia Social (INPS). A criao do INPS permitiu uma uniformizao dos institutos, principalmente em termos dos benefcios prestados, causando certa insatisfao naqueles contribuintes com mais benefcios; afinal, com a unificao, a assistncia dos institutos mais ricos podia tambm ser usufruda pelos contribuintes de outros institutos, que contribuam com valores menores e no apresentavam uma assistncia de to boa qualidade. Tal fato ocasionou uma migrao de pacientes de alguns institutos e a superlotao de alguns hospitais, gerando filas, demora no atendimento e outros problemas, o que culminou em uma insatisfao geral. Alm disso, a unificao levou centralizao do poder dos Iaps no Estado e ao afastamento dos trabalhadores das decises a serem tomadas. Com isso, fortaleceu-se a tecnocracia8 e reforaram-se as relaes clientelistas do Estado, como a troca de favores, a barganha de interesses e o jogo de benefcios para os aliados do poder. No incio da dcada de 1970, a poltica proposta pelo INPS levou incluso de novas categorias profissionais no sistema trabalhadores rurais, empregadas domsticas e autnomos , e, a cada nova categoria includa, aumentava ainda mais a procura por servios e os gastos no setor sade. O Estado respondeu demanda com a contratao dos servios privados, permitindo a formao do que ficou conhecido como complexo mdico-empresarial (Cordeiro, 1984). Os gastos com a sade dobraram de valor, com uma tendncia clara para o atendimento hospitalar. A poltica de sade estava subordinada organizao do INPS, que manteve a estrutura de funcionamento anteriormente proposta pelos Iaps e oferecia servios apenas para aqueles que comprovavam o vnculo com o INPS as pessoas levavam suas carteiras de trabalho ou carn de contribuio previdenciria quando procuravam os hospitais ou qualquer outro tipo de assistncia, a fim de comprovar sua incluso no sistema. Mesmo com a incluso de novas categorias no sistema de proteo, muitos ainda no tinham o direito ateno sade. Os ndices de sade mostravam8 A tecnocracia expressa uma forma de atuar do burocrata que se utiliza do argumento tcnico no processo de construo de estratgias de ao do Estado. O tecnocrata, assim como o tcnico, parte da competncia e tem em vista a eficincia. No um especialista, mas um perito em idias gerais, e com isso acumula um conhecimento global das variveis de ao. ele quem coordena e reelabora o processo decisrio, com o argumento da legitimidade e neutralidade da cincia. Outras interpretaes sobre esse conceito so apresentadas no Dicionrio de Poltica organizado por Bobbio, Matteuci e Pasquino (1995).

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a situao alarmante vivida pelo pas. Apenas para citar alguns dados: a esperana de vida ao nascer na dcada de 1970 era de 52,7 anos, a taxa de mortalidade infantil era de 87,9 bebs para 1.000 nascidos-vivos, e as doenas infecciosas e parasitrias constituam uma das principais causas de bito. A transio demogrfica e epidemiolgica ocorrida nos pases desenvolvidos ainda estava longe de ser alcanada na realidade brasileira, mesmo em face de todo desenvolvimento econmico obtido pelo pas desde os anos 50 at o milagre econmico do perodo 1968-1974. A principal razo para o quadro de estagnao social foi o total descaso dos governantes com relao s polticas pblicas comprometidas com o desenvolvimento social. Durante todo o regime militar autoritrio, o investimento na rea de sade pblica foi precrio, doenas antes erradicadas voltaram, doenas controladas apareceram em surtos epidmicos, o saneamento e as polticas de habitao populares foram desprezados, aumentou a pobreza e, principalmente, a desigualdade social. A partir de meados da dcada de 1970, finalizado o milagre econmico e em um cenrio de crise poltica, institucional e econmica iminente do governo militar comeam a se definir novas estratgias para a garantia de manuteno do governo, dentre elas a definio do II Plano Nacional de Desenvolvimento (II PND) e a poltica de abertura do governo. O II PND significou a composio de uma poltica de desenvolvimento que tinha como meta bsica a formulao de estratgias de desenvolvimento social, buscando a integrao e a interdependncia das polticas estatais um avano na poltica de Estado, pois selava o compromisso de conjugao da poltica econmica e social. O processo de abertura, em outra medida, possibilitou a expanso e expresso gradativa dos movimentos sociais, at ento, sob forte represso e sem espao para vocalizar as demandas. Para a sade, esse contexto significou a possibilidade de fortalecimento do movimento sanitrio, que estabelecia sua base de apoio em instituies acadmicas com forte respaldo terico Universidade de So Paulo (USP), Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IMS/Uerj), Escola Nacional de Sade Pblica Sergio Arouca da Fundao Oswaldo Cruz (Ensp/Fiocruz), dentre outras. A intelectualidade pertencente ao setor sade divulgava estudos sobre as condies sociais e de sade com crticas contundentes conduo poltica do Estado brasileiro e reinvidicava mudanas efetivas na assistncia sade no Brasil.42

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O movimento sanitrio buscava reverter a lgica da assistncia sade no pas apresentando quatro proposies para debate: A sade um direito de todo cidado, independente de contribuio ou de qualquer outro critrio de discriminao; As aes de sade devem estar integradas em um nico sistema, garantindo o acesso de toda populao a todos os servios de sade, seja de cunho preventivo ou curativo; A gesto administrativa e financeira das aes de sade deve ser descentralizada para estados e municpios; O Estado deve promover a participao e o controle social das aes de sade. O cenrio era de excluso de uma boa parcela da populao do direito sade, haja vista o fato de que apenas poucos tinham garantido, nesse momento, o direito assistncia mdica prestada pelo INPS, e que os servios de sade, do Ministrio da Sade, das secretarias estaduais e municipais, no absorviam a demanda de ateno gerada pelo restante da populao. No havia de fato se constitudo, at ento, no Brasil, uma poltica de Estado cidad no sentido mais abrangente; uma cidadania substantiva que desobrigasse qualquer espcie de vnculo com o processo produtivo e que reconhecesse o cidado simplesmente pelo valor que tem como membro daquela comunidade. Prevalecia a lgica da cidadania regulada, em que cidado era aquele que se encontrava localizado em qualquer uma das ocupaes reconhecidas e definidas por lei. Portanto, a proposta de reforma do setor sade apresentada pelo movimento sanitrio tambm se inseria em uma lgica maior de reestruturao do prprio Estado e de afirmao de uma cidadania substantiva para o povo brasileiro (Baptista, 2003). As presses por reforma na poltica de sade possibilitaram transformaes concretas ainda nos anos 70, mudanas que se efetivaram de forma incipiente e resguardando os interesses do Estado autoritrio. Dentre as polticas implementadas, destacam-se: a criao do Fundo de Apoio ao Desenvolvimento Social (FAS), em 1974, que distribuiu recursos para o financiamento de programas sociais; a formao do Conselho de Desenvolvimento Social (CDS), em 1974, que organizou as aes a serem implementadas pelos diversos ministrios da rea social;43

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a instituio do Plano de Pronta Ao (PPA), em 1974, que consistiu emuma medida para viabilizao da expanso da cobertura em sade e desenhou uma clara tendncia para o projeto de universalizao da sade; a formao do Sistema Nacional de Sade (SNS), em 1975, primeiro modelo poltico de sade de mbito nacional, que desenvolveu ineditamente um conjunto integrado de aes nos trs nveis de governo; a promoo do Programa de Interiorizao das Aes de Sade e Saneamento (Piass), em 1976, que estendeu servios de ateno bsica sade no Nordeste do pas e se configurou como a primeira medida de universalizao do acesso sade; a constituio do Sistema Nacional da Previdncia e Assistncia Social (Sinpas), em 1977, com mecanismos de articulao entre sade, previdncia e assistncia no mbito do Ministrio da Previdncia e Assistncia Social (MPAS) e a criao do Instituto Nacional de Assistncia Mdica da Previdncia Social (Inamps), que passou a ser o rgo coordenador de todas as aes de sade no nvel mdico-assistencial da previdncia social. Este conjunto de medidas favoreceu a construo de polticas mais universalistas na rea da sade priorizando a extenso da oferta de servios bsicos e fortalecendo a perspectiva de reforma do setor. Foi tambm neste perodo que o setor mdico-empresarial comeou a se fortalecer institucionalmente, beneficiando-se igualmente das polticas de investimento na rea social. O FAS, por exemplo, repassou grande parte dos recursos para investimento na expanso do setor hospitalar, onde 79,5% dos recursos foram destinados para o setor privado e 20,5% para o setor pblico. O aumento gradativo dos convnios com o setor privado significou o desinvestimento progressivo na criao de servios pblicos, e as medicinas de grupo surgiram tambm como mais uma opo de ateno populao (Cordeiro, 1984). A concesso de privilgios ao setor privado e a mercantilizao da medicina sob o comando da previdncia social foram duramente criticados pelo movimento sanitrio. Os reformistas buscavam a universalizao do direito sade, a unificao dos servios prestados pelo Inamps e Ministrio da Sade em um mesmo sistema e a integralidade das aes (com a garantia do acesso a aes de preveno e assistncia mdica). A partir desse momento, ampliavase o debate sobre o direito sade no Brasil, a comear pela prpria concepo de sade.44

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A sade passava a assumir um sentido mais abrangente, sendo resultante das condies de alimentao, habitao, educao, renda, meio ambiente, trabalho, transporte, emprego, lazer, liberdade, acesso a servios de sade, dentre outros fatores. Portanto, o direito sade significava a garantia, pelo Estado, de condies dignas de vida e de acesso universal e igualitrio s aes e servios para promoo, proteo e recuperao, em todos os nveis, de todos os habitantes do territrio nacional. Nesse sentido, a proposta de reforma para a sade era tambm uma proposta de reforma do Estado, Estado este que se havia constitudo sob uma base fundada no patrimonialismo, poltica de clientela, centralizao decisria e excluso social modos de fazer poltica que se reproduziam no s no mbito de organizao do setor sade como em todos os demais setores, mas que foram explicitados no debate da sade, talvez por ser este um setor que criticava com muito mais dureza a situao de injustia social que se havia consolidado (Baptista, 2003). Os 100 anos de histria do Brasil tinham enraizado uma cultura poltica de Estado enfaticamente concentradora do poder decisrio nas mos de uma parcela pequena da sociedade (poder oligrquico), ou dos recursos produzidos no mbito do Estado, mantendo um grande fosso entre grupos sociais e regies, reproduzindo, dessa forma, uma situao de desigualdade. Assim, o processo poltico tambm estava comprometido em uma rede imbricada de poder institudo na burocracia estatal, na organizao poltica e partidria e na cultura social. O ideal da Reforma Sanitria exigia, nesse contexto, uma reviso do modo de operar do Estado, da lgica burocrtica que concentrava poder e uma disposio social para repartir a renda (redistribuir) e participar ativamente da construo desse novo Estado, agora de inteno democrtica. Redemocratizao e Direito Sade A dcada de 1980 iniciou-se em clima de redemocratizao, crise poltica, social e institucional do Estado Nacional. A rea social e, em especial, a previdncia social vivia uma crise profunda, assumindo medidas de racionalizao e reestruturao do sistema. No mbito da sade, o movimento da Reforma Sanitria indicava propostas de expanso da rea de assistncia mdica da previdncia, intensificando os conflitos de interesse45

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com a previdncia social e envolvendo poder institucional e presses do setor privado. Neste contexto, foi realizada a VII Conferncia Nacional de Sade (1980), que apresentou como proposta a reformulao da poltica de sade e a formulao do Programa Nacional de Servios Bsicos de Sade (PrevSade). O Prev-Sade consistia em uma proposta de extenso nacional do Programa de Interiorizao das Aes de Sade e Saneamento (Piass), que havia sido desenvolvido no perodo compreendido entre 1976/79 no Nordeste do Brasil. O Piass foi uma experincia bem-sucedida que possibilitou uma melhoria no nvel de sade da populao da regio Nordeste a partir da implantao de uma estrutura bsica de sade pblica nas comunidades de at 20.000 habitantes. O Prev-Sade visava, na mesma medida, dotar o pas de uma rede de servios bsicos que oferecesse, em quantidade e qualidade, os cuidados primrios de proteo, promoo e recuperao da sade, tendo como meta a cobertura de sade para toda a populao at o ano 2000 (Conferncia Nacional de Sade, 1980). No entanto, o Prev-Sade acabou no sendo incorporado pelo governo e muito menos estabelecido na prtica, dadas as resistncias intraburocrticas assentadas no Inamps, a forte oposio das entidades do segmento mdicoempresarial e ainda as presses oriundas do campo da medicina liberal e do setor privado contratado (Cordeiro, 1991). Este conjunto de foras conformou um sem-nmero de razes para que o Prev-Sade no se concretizasse. Os conflitos em torno dos encaminhamentos da poltica de sade ganhavam o espao da arena institucional. Em contrapartida, e significativamente, o PrevSade tambm revelou um momento indito de entrada do discurso reformista na arena de discusso institucional estatal da sade. As idias reformistas defendidas por diversos grupos de discusso comeavam a se integrar em uma proposta abrangente de definio da poltica de sade. Existiam, contudo, divergncias de postura no encaminhamento das propostas entre os grupos de reformistas, o que tambm influiu na conduo da poltica de sade. Em 1980, outros mecanismos de reformulao comearam a ser encaminhados. A primeira medida tomada foi a formao, em 1981 na esfera de atuao do MPAS e do Conselho Consultivo de Administrao da Sade Previdenciria (Conasp) um grupo de trabalho especfico criado no contexto46

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da crise da previdncia com a inteno de buscar respostas concretas que explicassem as razes da crise do setor. O diagnstico do Conasp identificou um conjunto de distores no modelo de sade ento vigente, a saber: servios inadequados realidade; insuficiente integrao dos diversos prestadores; recursos financeiros insuficientes e clculo imprevisto; desprestgio dos servios prprios; superproduo dos servios contratados. O diagnstico apontava para uma rede de sade ineficiente, desintegrada e complexa, indutora de fraude e de desvio de recursos. A relao do Inamps rgo responsvel pela assistncia mdica previdenciria com os demais servios de assistncia promovidos pelo Estado, via estados e municpios, era opaca e pouco operativa. Os servios oferecidos pelo Ministrio da Sade (secretarias estaduais e municipais, inclusive) funcionavam independente e paralelamente aos servios oferecidos pelo MPAS/Inamps, o que formava uma rede pblica desintegrada sem a prvia programao do sistema. Tal fato conformava uma dificuldade a mais no planejamento dos investimentos e gastos no setor (Cordeiro, 1991). A partir deste diagnstico, foram elaboradas propostas operacionais bsicas para a reestruturao do setor, mas no para desmontagem do sistema. Dentre as propostas apresentadas, destacaram-se: o Programa das Aes Integradas de Sade (Pais), a Programao e Oramentao Integrada (POI), o Programa de Racionalizao Ambulatorial (PRA) e o Sistema de Assistncia Mdico-Hospitalar da Previdncia Social (SAMHPS). O Pais, posteriormente denominado apenas Aes Integradas de Sade (AIS), revelou-se como a estratgia mais importante para a universalizao do direito sade e significou uma proposta de integrao e racionalizao dos servios pblicos de sade e de articulao destes com a rede conveniada e contratada, o que comporia um sistema unificado, regionalizado e hierarquizado para o atendimento.9 A proposta resumia-se na assinatura de convnios entre o9 Unificado nas aes propostas pelo Ministrio da Sade, secretarias de sade e pelo Inamps. Regionalizado, compondo a organizao de um sistema em que municpios se comunicam e planejam juntos a assistncia sade. Hierarquizado por nvel de ateno, do mais simples ao mais complexo.

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Inamps e os estados e municpios para o repasse de recursos destinados construo de unidades da rede com o compromisso dos governos de oferecer assistncia gratuita toda populao e no s para os beneficirios da previdncia. Com essa proposta, as AIS retomavam a estratgia apresentada no Prev-Sade e conquistavam um avano expressivo na conformao de polticas que levaria reforma do setor sade, fortalecendo o princpio federativo (coordenao de aes entre a unio e os estados) e a incorporao do planejamento prtica institucional. O programa era executado a partir da gesto tripartite MS/Inamps/Secretarias Estaduais. O processo de coordenao interinstitucional e gesto colegiada concretizou-se a partir da Comisso Interministerial de Planejamento (Ciplan), envolvendo os ministrios da Sade, da Previdncia e Assistncia Social e da Educao e Cultura. Formaram-se tambm as comisses interinstitucionais estaduais (CIS), regionais (CRIS), municipais (CIMS) e locais (Ceaps) respectivamente, construindo um amplo contingente de tcnicos nas secretarias estaduais e municipais envolvidos com o projeto de reforma. A POI consistiu na criao de mecanismos para programao e oramentao dos recursos para sade de forma integrada, ou seja, na concepo de um instrumento integrador da poltica de recursos do Inamps e dos servios estaduais e municipais. O PRA pretendia estabelecer uma hierarquia de prioridades assistenciais entre os postos de assistncia mdica (PAM do Inamps) e o conjunto de consultrios e laboratrios privados e credenciados. J o SAMHPS visou ao controle de recursos para o setor privado, a partir da introduo de um instrumento gerencial e de pagamento de contas hospitalares baseado nos procedimentos mdico-cirrgicos a Autorizao de Internao Hospitalar (AIH). Com este sistema foi possvel alcanar uma informatizao inicial do controle das internaes e, conseqentemente, maior controle das fraudes. A AIH ainda hoje utilizada, tendo sido empregada no controle das internaes tambm no setor pblico a partir de 1991. Dos quatro programas apresentados, apenas o Pais e o SAMHPS expressaram a conformao dos princpios bsicos para uma poltica de sade unificada, integrada e descentralizada. Estas propostas avanaram na discusso sobre o funcionamento do setor previdencirio e sua articulao com48

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a sade e criaram condies para a discusso sobre a democratizao e universalizao do direito sade, especialmente a partir do governo da Nova Repblica. A Poltica de Sade na Nova Repblica No governo da Nova Repblica, a partir de 1985, a estratgia das AIS foi retomada, promovendo, junto com uma nova POI, a reformulao do sistema de sade na lgica de uma rede unificada. Integrantes do movimento sanitrio passaram a ocupar cargos de expresso no mbito poltico-institucional do Estado (no Ministrio da Sade, no Inamps, na Fiocruz), coordenando as polticas e negociaes no setor da sade e previdencirio. No ano de 1986, o Ministrio da Sade convocou tcnicos, gestores de sade e usurios para uma discusso aberta sobre a reforma do sistema de sade, realizando, assim, a VIII Conferncia Nacional de Sade (VIII CNS). Esta conferncia foi um marco histrico da poltica de sade brasileira, pois, pela primeira vez, contava-se com a participao da comunidade e dos tcnicos na discusso de uma poltica setorial. A conferncia reuniu cerca de 4.000 pessoas nos debates, e aprovou, por unanimidade, a diretriz da universalizao da sade e o controle social efetivo com relao s prticas de sade estabelecidas. Aps 20 anos de ditadura, conquistava-se o direito participao; aps sculos de desassistncia, falavase na definio de um modelo protetor com a garantia do direito sade integral (Faria, 1997). No relatrio da VIII Conferncia consta: Sade como Direito em seu sentido mais abrangente, a sade a resultante das condies de alimentao, habitao, educao, renda, meio ambiente, trabalho, transporte, emprego, lazer, liberdade, acesso e posse da terra e acesso a servios de sade. , assim, antes de tudo, o resultado das formas de organizao social da produo, as quais podem gerar grandes desigualdades nos nveis de vida. Direito sade significa a garantia, pelo Estado, de condies dignas de vida e de acesso universal e igualitrio s aes e servios de promoo, proteo e recuperao de sade, em todos os seus nveis, a todos os habitantes do territrio nacional, levando ao desenvolvimento pleno do ser humano em sua individualidade.49

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Este relatrio, com todas as afirmaes nele contidas, serviu como instrumento de presso poltica no contexto da Nova Repblica. E mais: serviu de referncia na discusso da Assemblia Nacional Constituinte em 1987/88,10 sendo reconhecido como um documento de expresso social. As propostas da VIII CNS no foram concretizadas de imediato. Aps a conferncia, por iniciativa do MPAS/Inamps, foi constitudo o Sistema Unificado e Descentralizado de Sade (Suds), que se apresentou como estratgiaponte na construo do SUS. O Suds surgiu como uma proposta poltica formulada no interior da burocracia do Inamps, contando com o apoio dos ministros da Previdncia, da Sade e da Educao, que assinaram juntos a exposio de motivos para a criao do Suds, em julho de 1987. O Suds avanou na poltica de descentralizao da sade e, principalmente, na descentralizao do oramento, permitindo uma maior autonomia dos estados na programao das atividades no setor; deu prosseguimento s estratgias de hierarquizao, regionalizao e universalizao da rede de sade e retirou do Inamps a soma de poder que ele centralizava. Mas o Suds tambm foi motivo de controvrsias entre os dirigentes e reformistas dos ministrios da Sade e da Previdncia. Enquanto os reformistas do Ministrio da Sade pressionavam por uma poltica de unificao imediata da sade com a incorporao do Inamps, os reformistas do MPAS resistiam na passagem do rgo e definiam estratgias mais graduais para a unificao, fortalecendo especialmente os estados (Faria, 1997). Ao mesmo tempo em que o Suds era implementado, ocorria a discusso da Assemblia Nacional Constituinte de 1987/88. Nela, o relatrio da VIII CNS foi tomado como base para a discusso da reforma do setor sade, e o SUS foi finalmente aprovado. O debate constituinte foi acirrado e revelou resistncias por parte dos prestadores de servio privado do setor sade e da medicina autnoma, alm de conflitos de interesses entre os reformistas atrelados ao Ministrio da Sade e os reformistas da previdncia social. As disputas de interesse no foram suficientes para barrar a aprovao do SUS e seus princpios, mas impediram a definio de algumas polticas importantes para o processo de implementaoEste frum reuniu parlamentares na definio de uma nova Carta Constitucional para o Brasil. A nova carta surgia no contexto poltico da redemocratizao e tinha a inteno explcita de afirmar o compromisso com polticas mais justas e igualitrias. A Constituio foi aprovada em 5 de outubro de 1988 e ganhou a denominao de Constituio Cidad.10

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da reforma, tais como o financiamento, a regulao do setor privado, a estratgia para a descentralizao e unificao do sistema, dentre outras (Faria, 1997). Aps a legalizao do SUS, em 1988, buscou-se definir em novas leis, assim como em portarias do Ministrio da Sade, regras para garantir o financiamento do setor e a regulao do setor privado e demais pontos da poltica. Hoje, 2007, aps quase 19 anos da Constituio, ainda resta muito a se definir para a garantia da proposta, e antigos e novos conflitos se apresentam no processo de negociao da poltica de sade. Vamos, ento, entender um pouco melhor o SUS e seus princpios para que possamos avanar na compreenso dos principais desafios que essa poltica enfrenta. O Sistema nico de Sade: seus princpios e diretrizes O SUS insere-se em um contexto mais amplo da poltica pblica a seguridade social11 que abrange, alm das polticas de sade, as polticas de previdncia e assistncia social. A definio do modelo de seguridade social no Brasil significou a formulao, pela primeira vez na histria do pas, de uma estrutura de proteo social abrangente (universalidade da cobertura e do atendimento), justa (uniformidade e equivalncia dos benefcios e servios s populaes urbanas e rurais), eqnime (eqidade na forma de participao do custeio) e democrtica (carter democrtico e descentralizado na gesto administrativa), na qual cabe ao Estado a proviso e o dever de ateno (Brasil, 1988, art. 194). Com esse modelo, rompe-se definitivamente com o padro poltico anterior excludente e baseado no mrito e afirma-se o compromisso com a democracia. O SUS foi pea-chave no processo de luta e construo do modelo protetor brasileiro. Com a sua instituio, o Estado assumiu a sade como um direito de todos e um dever do Estado, assegurado mediante polticas sociais e econmicas que visem reduo do risco de doena e de outros agravos e uma poltica setorial de sade capaz de garantir o acesso universal e igualitrio s aes e servios para promoo, proteo e recuperao da sade da populao (Brasil, 1988, art. 196).Sobre seguridade social no Brasil, ver Monnerat e Senna, texto Seguridade social brasileira: dilemas e desafios, no livro Sociedade, Estado e Direito Sade, nesta coleo (N. E.).11

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Com esse enunciado, pelo menos trs inovaes esto presentes: Uma proposta de reforma que prev o compromisso do Estado na maior integrao entre os diversos setores, com polticas econmicas e sociais que promovam desde condies de habitao, alimentao, educao, renda, meio ambiente, trabalho, transporte, lazer at acesso a servios de sade, o que amplia a compreenso do que seja sade e do que preciso fazer para alcanar uma condio de sade plena. A proposta de construo de um sistema de sade para todos, igualitrio e de responsabilidade do Estado, e a instituio de um novo formato para a poltica de sade brasileira, at ento fundada em uma lgica restrita de proteo social que beneficiava apenas alguns grupos sociais, no sentido de avanar na construo de um modelo que vise a atender a todos conforme suas necessidades. A proposta de construo de um sistema de sade nico capaz de abarcar as diferentes situaes de sade nos seus variados nveis de complexidade, possibilitando o acesso a aes de promoo e preveno s doenas at a assistncia mdica de maior complexidade. (Lima & Baptista, 2003): PRINCPIO 1 UNIVERSALIZAO DO ACESSO S AES E SERVIOS DE SADE consiste na garantia de que todos os cidados, sem privilgios ou barreiras, devem ter acesso aos servios de sade pblicos e privados conveniados, em todos os nveis do sistema. O acesso aos servios ser garantido por uma rede de servios hierarquizada (do menor nvel de complexidade para o maior) e com tecnologia apropriada para cada nvel. Todo o cidado igual perante o SUS e ser atendido conforme suas necessidades at o limite que o sistema pode oferecer para todos. o princpio fundamental da reforma. PRINCPIO 2 INTEGRALIDADE DA ATENO diz respeito garantia do acesso a um conjunto articulado e contnuo de aes e servios preventivos e curativos, individuais e coletivos, exigidos para cada caso em todos os nveis de complexidade do sistema, devendo o sistema de sade proporcionar ao indivduo ou coletividade, as condies de atendimento, de acordo com as suas necessidades. O princpio da integralidade se apresentou no contexto da reforma como um contraponto ao contexto institucional da sade que se dividia nas aes promovidas pela sade pblica e pela medicina previdenciria. Surgiu, portanto,52

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como uma proposta para a integrao dessas aes com o argumento de que tanto as aes individuais quanto as coletivas eram necessrias e imprescindveis para a garantia da sade da populao. Estava posta a a questo da unicidade do sistema (na composio de um novo Ministrio da Sade, reunindo suas antigas funes e as aes do Inamps) e da necessria articulao dos diferentes nveis de governo (federal, estadual e municipal) e de ateno (primrio, secundrio e tercirio) para a organizao das polticas de sade. Com esse princpio, o Estado compromete-se na garantia a todo e qualquer tipo de ateno sade, do mais simples ao mais complexo (da vacina ao transplante). PRINCPIO 3 DESCENTRALIZAO, COM DIREO NICA DO SISTEMA apresentase no contexto da Reforma Sanitria brasileira com o propsito de promover uma maior democratizao do processo decisrio na sade, j que at ento se estabeleciam prticas centralizadoras de poder no mbito federal de governo. A descentralizao vista como uma estratgia para o enfrentamento das desigualdades regionais e sociais e prev a transferncia de poder decisrio do governo federal para as instncias subnacionais de governo, considerando uma redistribuio das responsabilidades quanto s aes e servios de sade entre os vrios nveis de governo (Unio, estados, municpios). A descentralizao se apresentou como uma estratgia de democratizao porque possibilitaria populao um maior controle e acompanhamento das aes pblicas. Desse modo, a populao poderia interferir de forma mais efetiva no processo de formulao da poltica. Por trs dessa concepo h uma lgica de organizao do sistema de sade que tem como pressuposto que quanto mais perto o gestor est dos problemas de uma comunidade, mais chance tem de acertar na resoluo dos mesmos. O princpio da descentralizao exige um novo formato na conduo e organizao da poltica. Nesse sentido, apresentam-se as diretrizes do SUS de regionalizao e hierarquizao dos servios, com a organizao de um sistema de referncia e contra-referncia, incorporando os diversos nveis de complexidade do sistema (primrio, secundrio, tercirio). Regionalizar implica um melhor conhecimento, por parte de estados e municpios, dos problemas sociais e de sade de suas localidades para que se possa ento implementar uma poltica de sade condizente. Quem passa a decidir as prioridades de cada regio o gestor, que leva em considerao as caractersticas geogrficas, o fluxo da demanda, o perfil epidemiolgico, a ofer53

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ta de servios e as necessidades expressas pelos usurios. Estados e municpios devem estar mais integrados no processo de planejamento das aes e servios de sade de modo a atender melhor s necessidades da populao. A hierarquizao dos servios segue a mesma lgica, organizando a rede de sade a partir dos diferentes nveis de complexidade dos servios e de acordo com as realidades local e regional. A referncia e contra-referncia funcionam como os elos de ligao dessa rede. Se um municpio ou um servio de sade no apresenta condies para atender a um determinado problema de sade, individual ou coletivo, deve remet-lo a uma outra unidade (referenciada), com capacidade de resoluo do problema apresentado e de garantir seu atendimento. A contra-referncia significa o ato de encaminhamento de um paciente ao estabelecimento de origem (que o referiu) aps a resoluo da causa responsvel pela referncia. Para a construo desse sistema, faz-se necessria a identificao das unidades de prestao de servios de sade por rea, por nvel de complexidade, tipo de atendimento, especializao e natureza (pblica ou privada), alm de um compromisso de cada unidade na execuo dos servios definidos, garantindo o acesso da populao aos diferentes nveis de ateno que cada caso requer. Com o princpio da descentralizao e as diretrizes de regionalizao e hierarquizao apresenta-se uma proposta de organizao e gesto do sistema de sade bastante diferente da prtica adotada durante toda a histria das polticas de sade no Brasil. A proposta s se concretiza com sucesso se h solidariedade e cooperao entre governantes (das trs esferas de governo), transparncia e democratizao decisria. PRINCPIO 4 P ARTICIPAO POPULAR trata da garantia constitucional que a populao, por meio de suas entidades representativas, poder participar do processo de formulao das polticas e do controle de sua execuo. Esse princpio expressa bastante bem o momento poltico de redemocratizao vivido pelo pas e a capacidade de articulao do movimento social no contexto da sade. A participao social foi enunciada na Constituio de 1988 e regulamentada na lei reguladora do SUS de 1990 (lei 8.142/1990), onde se definem a configurao dos conselhos de sade (em cada esfera de governo) e a realizao peridica (a cada quatro anos) das conferncias de sade (tambm em cada esfera de governo).54

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Os conselhos tm como funo, dentre outras, exercer papel de formulao, acompanhamento e controle permanente das aes do governo nos seus trs nveis. O principal avano foi o estabelecimento de um canal permanente de relao entre o gestor e a populao representada de forma paritria nos conselhos , possibilitando maior transparncia no processo decisrio. J as conferncias de sade tm por objetivo avaliar a situao de sade e propor as diretrizes para a formulao da poltica de sade nos nveis correspondentes, podendo ser convocada pelo poder executivo ou, extraordinariamente, pelo conselho de sade (Brasil, 1990). SUS: uma reforma em construo e muitos desafios a enfrentar Os princpios e diretrizes do SUS definem para os gestores da sade e governantes em geral quais so as bases para a construo das polticas de sade e aonde se deseja chegar (imagem-objetivo). A Constituio afirmou um direito, e cabe ao Estado, na figura de seus governantes, implement-lo. Entretanto, no simples colocar em prtica uma poltica to abrangente como a que foi proposta com a seguridade social e o SUS, menos simples ainda quando existem lacunas importantes no desenho da proposta, como na questo do financiamento ou da descentralizao fatores importantes na sustentao da reforma. Com a definio do SUS, na Constituio Federal de 1988, iniciaramse o debate e as negociaes em torno da lei reguladora do SUS, tambm conhecida como Lei Orgnica da Sade (LOS 8.080). A lei visava regulamentar o SUS, definir com maior nvel de detalhamento seus objetivos e atribuies, aprofundar a questo do financiamento, da regulao do setor privado, da descentralizao, regionalizao e hierarquizao do sistema, da participao popular, dentre outras, mas o contexto poltico no momento de negociao dessa lei (ltimo ano do governo Sarney e primeiro ano do governo Collor) no possibilitou agilidade na sua aprovao; foram 390 dias de tramitao no Congresso Nacional e uma aprovao parcial da lei, que sofreu vetos presidenciais (Collor) nos aspectos relativos ao financiamento, participao popular, organizao da estrutura ministerial, da poltica de cargos e salrios e outras.55

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Trs meses aps a aprovao da lei 8.080, foi aprovada uma outra (lei 8.142), complementar a esta, definindo algumas propostas vetadas na lei original, especialmente no que diz respeito ao financiamento e participao popular. Contudo, ainda se mantm, nas leis reguladoras do SUS (8.080 e 8.142), lacunas expressivas para a implementao efetiva da poltica. No processo de construo e operacionalizao do SUS nesses ltimos 14 anos (1990-2002) o que se v um constante processo de negociao e reconstruo da proposta original. Milhares de portarias foram editadas pelo Ministrio da Sade, e novas leis foram aprovadas pelo Congresso Nacional. Cada contexto poltico e de gesto de governo permitiu avanar ou definir rumos mais consistentes para a reforma; s uma anlise mais precisa de cada gesto pode dizer o que se alcanou. Em uma anlise ampliada da poltica e de todas as estratgias adotadas visando operacionalizao do SUS, possvel identificar alguns desafios que se apresentam de forma constante, desafios que revelam as heranas deixadas pelos anos de autoritarismo, centralizao decisria e prtica clientelista no Brasil e que foram reproduzidas na burocracia institucional da sade e nas prticas dos servios de sade, qui no imaginrio social. No princpio da descentralizao, esbarramos no primeiro grande desafio na operacionalizao da reforma. O Brasil um pas de grande heterogeneidade: convivem estados ricos e pobres, municpios de grande e tambm de pequena extenso territorial, tem secretrio de sade que vira ministro e secretrio de sade que mal escreve o prprio nome, tem cidade com mais de 1.000 unidades de sade e cidade sem mdico. Por trs da disparidade entre regies e at mesmo entre municpios de um mesmo estado est a trajetria de organizao poltica e dos interesses daqueles que se mantiveram no poder. A proposta de descentralizao, tal como apresentada no contexto da reforma da sade, exige um enfrentamento das disparidades, pressupe uma poltica de solidariedade e cooperao entre Unio, estados e municpios, provoca a reviso de prticas institucionalizadas na forma de conduo da poltica, buscando maior transparncia no processo decisrio e o compromisso com a poltica pblica, o que, em um cenrio de disputa por56

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poder, tem-se mostrado bastante difcil. No toa esse tem sido o princpio mais discutido no processo de operacionalizao do SUS com normas prprias buscando alavancar o processo. 12 O principal desafio construir uma poltica de descentralizao que fortalea de fato os gestores estaduais e municipais mantendo o compromisso destes na garantia do SUS, e a continuidade do governo federal como principal regulador da poltica capaz de suprir eventuais fragilidades dos estados e municpios (especialmente com suporte tcnico e financeiro). A descentralizao no uma poltica uniforme e que se ajuste como uma frma para todo o pas. H que se definir estratgias diferenciadas de modo a fortalecer aqueles que precisam de fora e manter os estmulos para aqueles que j garantem a construo da reforma. Tambm o princpio da participao popular esbarra no cenrio de heterogeneidade do pas e especialmente na imaturidade poltica dos diversos segmentos sociais (prestadores, profissionais e usurios), que tm dificuldade para se articularem como propositores e controladores da poltica, seja nos conselhos ou nas conferncias de sade. A imaturidade poltica est diretamente associada compreenso da noo de direito, o que tambm denuncia a trajetria poltico-institucional do Estado brasileiro. O processo de construo de nossa cidadania esbarrou em barreiras de toda ordem no curso da histria: a segmentao dos direitos por classes sociais, etnia e sexo; a valorizao do trabalhador (a cidadania regulada); o estmulo ao corporativismo extremado na briga por interesses de cada categoria (cooptao do trabalhador, populismo); os perodos de ditadura em momentoschave de transformao poltica e social (ditadura populista, ditadura militar); a manuteno constante das elites no poder. A cidadania se constituiu assim imagem e semelhana da forma de funcionamento do Estado, baseada na garantia de um direito primordialmente individual, revelando-se no dito popular farinha pouca, meu piro primeiro.Como as Normas Operacionais Bsicas da Sade (Nobs) publicadas nos anos de 1991, 1992 (reedio da NOB 91 com pequenos acrscimos), 1993 e 1996, e as Normas Operacionais da Assistncia Sade (Noas), publicadas em 2001 e 2002. As normas tm exercido, especialmente desde a edio de 1993, o papel de orientao do processo de descentralizao, explicitando as competncias e responsabilidades de cada esfera de governo e estabelecendo as condies necessrias para que estados e municpios possam assumir novas posies no processo de implantao do SUS. Cada norma avanou na definio de regras para a implantao do SUS sobrepondo propostas, mas no necessariamente anulando a poltica anterior.12

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Quando transportamos essa prtica para os fruns participativos da sade, encontramos dificuldade para a definio de polticas mais redistributivas e solidrias, e prevalecem os interesses individuais e/ou corporativos. Por ltimo, o desafio na construo de uma poltica universal e integral de sade. A trajetria de constituio de dois campos na rea da sade a sade pblica e a medicina previdenciria constituiu uma lgica de atuao que no favorece a construo de aes integradas e muito menos a solidariedade social com o objetivo da universalizao. Um dos principais embates no processo de discusso da reforma nos anos 70/80 esteve relacionado ao fato de que os trabalhadores que financiavam o sistema previdencirio no estavam dispostos a repartir seus benefcios com o restante da populao (no contribuinte). A definio da proposta da seguridade social se deu sob bases frgeis e sem o apoio efetivo dos trabalhadores vinculados ao sistema previdencirio (Faria, 1997). Outro aspecto da questo o fato de que os servios, os profissionais de sade e tambm a populao apreenderam durante anos uma prtica em sade que no buscava o olhar integral. Com a reforma, necessrio incorporar e construir uma nova concepo de sade, capaz de compreender o indivduo no contexto de uma coletividade e dos problemas que dela emana. Esse desafio remete questo da formao profissional e de novas prticas sociais. Todos os desafios aqui apresentados exigem uma disposio dos governantes, tcnicos e da populao para a mudana. O SUS no nasceu da cabea de alguns poucos; nasceu de um processo poltico complexo e que envolveu a sociedade civil, as instituies de ensino e pesquisa e o prprio Estado. So milhares de indivduos hoje implicados nesse processo com muitos interesses em questo. Na lei est escrito que todos tm direito sade, independente de raa, gnero, idade, classe social etc. Na prtica, o que percebemos ainda uma grande insatisfao/descrena com relao ao SUS. A sade pblica no consegue atender a todos, e o setor privado, com regras frouxas, estabelece seus prprios critrios de excluso. A reforma do sistema de sade brasileiro ainda est em curso, e certamente s ter um final feliz se Estado e sociedade concordarem que h a necessidade urgente de uma poltica mais justa, solidria e redistributiva no Brasil. Durante os anos 90, assistimos a inmeras tentativas de ajuste e estabi58

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lizao de nossa economia, sacrificamos as classes sociais menos favorecidas e apostamos nas reformas de governo propostas. 13 Hoje, no incio do terceiro milnio, mantemos estruturas sociais que correspondem ao modo de vida do incio do sculo passado. O compromisso com o social, com uma poltica de sade coletiva dever de qualquer cidado, mas principalmente daquele que pretende algum dia atuar na rea de sade. O direito sade uma conquista do movimento social, e o caminho agora a busca para implement-lo. Referncias ANS. Agncia Nacional de Sade Suplementar. Tabnet Distribuio dos beneficirios. Rio de Janeiro: Agncia Nacional de Sade Suplementar. Disponvel em: . Acesso em: 8 out. 2007. BAPTISTA, T. W. F. Polticas de Sade no Ps-Constituinte: um estudo da poltica implementada a partir da produo normativa dos poderes executivo e legislativo no Brasil, 2003. Tese de Doutorado, Rio de Janeiro: Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro. BOBBIO, N; MATTEUCI, N. & PASQUINO, G. Dicionrio de Poltica. Braslia: Editora Universidade de Braslia, 1995. BRASIL. Constituio da Repblica. Artigos 194, 196. Braslia, Senado Federal, 1988. Disponvel em: . Acesso em: 20 mar. 2003. BRASIL. Lei n. 8.142, de 28 de dezembro de 1990. Disponvel em: . Acesso em: 1 out. 2004. COC. Casa de Oswaldo Cruz. Guia do Acervo da Casa de Oswaldo Cruz. Rio de Janeiro: COC, Fiocruz, 1995. CONFERNCIA NACIONAL DE SADE, 7. Relatrio Final. Braslia: Ministrio da Sade, 1980. CORDEIRO, H. As Empresas Mdicas. Rio de Janeiro: Graal, 1984. CORDEIRO, H. O Sistema nico de Sade. Rio de Janeiro: Ayuri, 1991. COSTA, J. F. Histria da Psiquiatria no Brasil: um corte ideolgico. Rio de Janeiro: Xenon, 1989. COSTA, N. R. Lutas Urbanas e Controle Sanitrio: origens das polticas de sade no Brasil. Rio de Janeiro: Vozes, 1985. ESPING-ANDERSEN, G. O futuro do Welfare State na nova ordem mundial. Revista Lua Nova, 35: 73-111, 1995.Sobre o ajuste estrutural no Estado capitalista, ver Pereira e Linhares, texto O Estado e as polticas sociais no capitalismo, no livro Sociedade, Estado e Direito Sade , nesta coleo (N. E.).13

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