história das ideias políticas - georges lescuier e marcel prelot

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HISTÓRIA DAS IDEIAS POLÍTICAS 葡京法律的大学 | 2013/2015 | 大象城堡 Regência: Professora Susana Videira

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resumo da matéria alvo de avaliação em frequência final de avaliação contínua (ano letivo 2013/2014). Regência Professora Susana Videira (não é, de todo completo, mas serve para compreensão base)

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HISTÓRIA DAS IDEIAS POLÍTICAS

葡京法律的大学 | 2013/2015 | 大象城堡

Regência: Professora

Susana Videira

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História das Ideias Políticas, Marcel Prélot e Georges Lescuyer

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IDADE MÉDIA

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O SACERDOTALISMO MEDIEVAL

A Revolução Cristã:

A importância da mensagem evangélica é a revolução, acima de tudo, religiosa. A

revolução cristã caracteriza-se por uma alteração radical d conceção que o homem tem da

divindade, exceto no pequeno mundo judaico. O cristianismo vem afirmar a transcendência

divina. Enquanto o paganismo era um naturalismo, o cristianismo situa Deus fora da Natureza

visível e acima dela. Substitui uma mitologia por uma metafísica. Além disso, pela encarnação

terrestre do Verbo, a divindade reveste natureza humana. «E o Verbo fez-se carne e habitou entre

nós.» Doravante a natureza passa a participar da divindade. Assim, o cristianismo é um resgate

que terá incidência imediata no pensamento político. Revolução cristã vai aceitar a herança do

mundo antigo.

Elementos de rutura: não há apenas continuidade, há também rutura. Introduz-se um

novo clima espiritual. O Sermão da Montanha e o conjunto das exortações de Cristo, relatadas

no Evangelho, estão impregnados de u calor vital e de uma força comunicativa que se traduzirá

na sua propagação através dos séculos em todos os estratos da sociedade. O antigo dever de

justiça vai ser superado pelo dever novo da Caridade, que o transfigurará. O cristianismo apela

ao amor que implanta na Terra o reino de Deus. Implica uma mudança de visão através da prece,

da castidade e da sobriedade, que preparam a união com Deus.

O contributo judaico: o contributo hebraico é importante, no que toca à natureza da

autoridade. Inspirará o cristianismo, substituindo a sua conceção ao pensamento greco-latino. A

diferença reside no facto de o povo de Israel ser monoteísta; depois, do facto de manter relações

diretas com Deus. Ele concluiu uma aliança com Abraão e a sua posterioridade. Esse contrato, de

que é preciso compreender claramente os termos, resulta do livre consentimento do povo de

Deus. O povo eleito subscreveu o acordo por sua plena decisão. Mas, uma vez constituído, o

pacto tem caráter indissolúvel. Se o violar, o povo falta às obrigações reconhecidas e torna-se

culpado – logo, punível. O próprio Deus conduz diretamente o seu povo, mas respeita a liberdade

de Israel. O regime político que resulta desta vocação excecional não é menos excecional. É o

regime de uma sociedade sem constituição política. Quanto a Moisés, realiza uma organização

social submetida única e diretamente à soberania de uma lei religiosa e civil, e que é consagrada

por um contrato solene entre o povo e a divindade. Em seguida, o povo judeu é governado por

juízes. Então, os Israelitas reclamam um rei. A aceitação divina é-lhes concedida como

contra/vontade. No entanto, o povo de Deus é livre. Mas a monarquia, desprovida, tal como o

regime anterior, de instituições firmes, degenera em despotismo, segundo a tendência habitual.

Encontram-se na Bíblia duas correntes, uma hostil à monarquia e a outra favorável, sob os traços

idealizados de David. Só aparentemente se opõem. Inspiram-se na mesma conceção de poder,

que é fundamental no pensamento israelita, a teocracia. Por isso Israel permanece, de uma ponta

à outra da sua história, uma comunidade religiosa. O seu contributo institucional para o mundo

moderno é puramente negativo. Em contrapartida, será grande a influência da Antiguidade

semita sobre a conceção da autoridade. Uma vez que residem em Deus a soberania poderosa, a

majestade e o princípio de toda a dominação, os reis devem obedecer às suas ordens. No mesmo

sentido, os súbditos devem obedecer às ordens dos reis, lugar-tenentes de Deus, como se

emanassem do próprio Deus. Os príncipes da terra têm, portanto, um poder legítimo, que não

deve ser exercido arbitrariamente nem egoisticamente, pois que Deus acabará por pedir contas

rigorosas. O príncipe deverá conhecer e respeitar as leis, viver na humildade para com Deus, não

se abandonar ao luxo e à voluptuosidade, e em tudo estar atento ao bem do povo que Deus lhe

confia. A justiça do príncipe será então abençoada por Deus e traduzir-se-á na prosperidade do

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povo e na conservação da dinastia. Esta conceção da autoridade será recolhida quase na íntegra

pela tradição cristã.

O primado da pessoa humana: a esta nova conceção de autoridade o cristianismo

acrescenta transformações mais radicais, resultantes do seu ideal da pessoa. A natureza religiosa

e moral da pessoa faz com que não possa aceitar um qualquer ato que o Estado lhe propõe ou

impõe. O cristianismo quer que o homem afaste certas relações de subordinação e recuse todas

as relações de absorção. O homem traz em si direitos inerentes à personalidade, decorrentes da

sua vocação para a imortalidade. Por conseguinte, a delimitação dos direitos do Estado e algo de

essencial para o cristianismo. A simples ideia de que o homem, como tal, é livre, ideia a que o

direito romano jamais se tinha elevado na prática… constitui para o direito ulterior um tal avanço

sobre o direito romano, que a superioridade por este alcançada no aspeto técnico fica

completamente na sombra.

A noção de humanidade: o cristianismo não admite qualquer diferença de natureza entre

os homens. Pode haver diversidades acidentais de função, de situação, de nacionalidade, de raça;

não as há quanto à humanidade. Todos os homens são igualmente filhos de Deus. As palavras

dos apóstolos, nomeadamente as de São Paulo, não permitem equívocos. A supressão de

barreiras tem por consequência a realização da unidade. “Há vários membros”, diz São Paulo,

“mas formam todos um só corpo”. O princípio desta união é Deus. Único por essência, anterior e

superior à pluralidade do universo, origem e fim de cada ser em particular, Deus dá a cada um a

sua lei. Por isso existe unidade do universo terrestre na unidade do seu chefe, que é o Deus

criador e redentor pelo Verbo, seu filho. O poder virá de Deus e será feito à imagem de Deus. Em

latim clássico, humanitas, designa a communio sanguinis, a comunhão de sangue, a similitude de

natureza fisiológica que existe entre os membros da espécie humana. Além disso, indica a virtude

de doçura e benevolência para com aqueles que participam da natureza humana; ao mesmo

tempo que “às humanidades” designam os estudos liberais propícios à aquisição e ao exercício

desta mesma virtude de doçura e benevolência para com os semelhantes. O cristianismo modifica

completamente o alcance do termo. Já não considera a natureza comum do animal humano, mas

a natureza comum das pessoas concebidas na sua dignidade nova, na sequência da Redenção.

Assim, a palavra humanidade passa a designar uma entidade própria, constituída por todas as

condições, entre os quais a presença de Deus instituiu uma solidariedade real.

Dualidade político-eclesiástica: o cristianismo, ao criar a noção de humanidade, reúne

tudo em Deus. Depois de afirmar a unidade da humanidade, o cristianismo acrescenta

imediatamente que certos domínios são da competência da autoria religiosa e outros são da

competência da autoridade civil. A separação entre domínio do político e o domínio do

eclesiástico está na base de todo o direito público moderno. Do mesmo modo que São Paulo

lançou os fundamentos do direito internacional moderno, assim o direito público recebeu os seus

limites e adquiriu a sua dimensão própria quando, no Evangelho segundo São Mateus, Cristo

estabeleceu a distinção entre as coisas que dependiam de César e as que pertenciam a Deus. Na

Antiguidade, o poder é, por essência, ilimitado. A organização política pode assumir formas

diversas mas é sempre totalitária. Tem o direito de mandar em tudo. A explicação filosófica deste

totalitarismo foi-nos dada por Aristóteles. a existência do todo é anterior e superior à existência

das partes. Logo, nada mais estranho à Antiguidade do que a noção de direito individual; nada

mais natural do que esta subordinação. Inclui a religião, instituição política. Há só imperium; o jus

sacrum faz parte do jus publicum. A antiga Cidade tinha sido fundada sobre uma religião e era

como uma igreja. Isto permite compreender a importância verdadeiramente revolucionária do

Evangelho. O episódio é conhecido: a certa altura, os Fariseus tentam obter de Jesus palavras

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imprudentes que permitam condená-lo. Mandam os seus discípulos e alguns herodianos, que

começam por dirigir a Cristo pérfidos cumprimentos: «Mestre, vós que tão bem falais, dizei-nos

a vossa opinião sobre isto: “É permitido pagar tributo a César?”». Jesus pede-lhe uma moeda e

pergunta por sua vez «De quem é esta imagem e esta inscrição?» «De César.», respondem eles.

«Então», diz Jesus, «dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus.» Palavras decisivas,

pois indicam que há coisas que César tem o direito de pedir e obter, mas que, em oposição a todo

o pensamento antigo, há outras que Deus reserva para si. Noutras passagens, Cristo proclamará

que o seu «reino não é deste mundo». E ordenará a Pedro, no Jardim das Oliveiras, que volte a

embainhar a espada. Mas se o poder civil é respeitado, a seu lado institui-se uma igreja que é a

transposição do poder originário de Deus para o plano intermédio da humanidade. «Tudo o que

for ligado ou desligado na terra será igualmente ligado ou desligado no céu.» Assim nasce um

dualismo fundamental. Há uma partilha entre duas ordens de vida e uma divisão entre dois

poderes. O poder político tem por domínio o temporal, isto é, o governo dos interesses presentes

da vida humana, combinado com sanções materiais. Inversamente, o poder religioso exerce-se

sobre o intemporal. Diz respeito às relações entre os homens e Deus. O seu domínio é o do

espiritual, do governo dos interesses eternos das almas, com meios de santificação e sanções

apropriadas que, em si, não são de caráter material. O dualismo instaurado pelo Cristianismo é a

tradução normal da mudança que afetou a religião: de assunto do grupo, torna-se assunto

individual.

Harmonia entre as duas sociedades: a dualidade espiritual-temporal vai dar origem a

duas instituições distintas: uma “política” e a outra “eclesiástica”. A Igreja, como comunidade

espiritual e moral organizada, tem uma vocação mais ampla do que os Reinos, pois que reivindica

a direção de toda a humanidade. A comunidade religiosa constitui, em relação ao Reino, um todo

autónomo e homogéneo. Assim, por um lado, o individuo fica espiritualmente liberto do Estado,

mas, por outro, no plano religioso, vê-se atraído simultaneamente por dois polos de organização:

o político e o religioso.

OS APÓSTOLOS E OS PADRES

De São Paulo a Santo Ambrósio

A doutrina pauliana: nos primeiros anos da pregação evangélica, a tónica não é posta na

noção de humanidade nem na dualidade de poderes. No interior do Império Romano, os cristãos

das origens formam incontestavelmente uma sociedade. Não passam de comunidades

escondidas e vivem num fervor extremo, muitas vezes à espera do fim do mundo. Depois, o

primeiro ponto do ensino evangélico, o «Dai a César», adquire toda a sua importância. A tónica é

posta na obediência ao poder estabelecido. Apesar das perseguições, ele parece continuar a ser

o invólucro protetor dentro do qual o catolicismo nascente pode desenvolver-se Acima de tudo,

o primado do dever de obediência a César resulta do desejo dos cristãos de responder, pela

doutrina e pelos factos, às calúnias dos pagãos que vêm neles uma seita de revoltados. Nestas

condições, é bastante lógico que, até ao momento em que o Édito de Constantino, em 313, vem

ordenar o fim das perseguições e a tolerância do culto cristão, o dever de submissão às ordens

do soberano seja especialmente realçado, primeiro pelos Apóstolos, depois pelos escritores

cristãos. São Pedro, o primeiro Papa, escreve aos fiéis que se encontram sob a sua jurisdição:

«Submetei-vos a todas as instituições humanas por causa do Senhor, tanto ao rei como àquele

que possui a autoridade suprema, tanto aos governantes, como aos seus delegados.» Estes

ensinamentos serão retomados em pormenor por São Paulo, na Epístola aos Romanos: «Que

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todas as almas se submetam aos soberanos, pois não há poder que não venha de Deus». Trata-

se da famosa fórmula: non est enim potestas nisi a Deo, «não há poder que não venha de Deus».

Por isso os cristãos devem ser «submissos não só por temor, mas por razões de consciência». São

Paulo confirma a doutrina geral nas instruções pastorais que dá aos seus discípulos. Escreve ele

a Tito: «Lembra aos fiéis, meu filho, o dever de se submeterem ao Príncipe e às autoridades, o

dever de lhes obedecerem.» E diz a Timóteo: «Assim, começo por exortar a que se façam preces

súplicas e ações de graças pelos reis e por todos os que estão constituídos em dignidade.» Para

o apóstolo, parece ser essencial lembrar aos fiéis o dever de obediência e ao mesmo tempo levá-

los a rezar pelos que mandam na Cidade. A partir daqui, é possível destacar uma conceção

pauliana da autoridade política. A autoridade do Príncipe impõe-se porque ele é instrumento de

Deus. O príncipe é o executante, quer queira quer não, das intenções da Providência que inspira

os seus atos. É feito para promover o bem e reprimir o mal. Desempenha uma tarefa divina, ainda

que o não saiba. A Igreja constitui uma formação quase exclusivamente espiritual, embora preste

aos fiéis certos serviços de ordem prática, como a assistência aos pobres. Mas a Igreja é

clandestina e o poder público é inteiramente estranho à religião, a ponto de não haver qualquer

ponto de contacto entre si. Os deveres dos cristãos para com o Estado pagão assentam

exclusivamente no direito natural. É em funções de um ministério pelo bem que estes são objeto

de uma obediência diferente e de uma prece ao Deus dos cristãos.

O Império cristão: a situação da Igreja primitiva é clara na sua simplicidade, pois que Reino

e Igreja se movem então em domínios distintos. Já o fim das perseguições vai arrastar, com as

primeiras imbricações constitucionais e pessoais, as primeiras dificuldades intelectuais. A partir

do momento em que o imperador se faz cristão, tudo passa a ser diferente. Os titulares do poder

tornam-se fiéis e, nessa qualidade, também pertencem à Igreja. Por outro lado, esta sai das

catacumbas, a princípio apenas tolerada, depois diretamente reconhecida. Constitui uma

coletividade institucionalizada que supera em importância tudo o que o império podia conter em

matéria de associações organizadas e coloca, na sua acuidade nascente, um problema

“interconstitucional”. A primeira fase era essencialmente de obediência ao poder estabelecido

levada ao extremo. A segunda já comporta certas tentativas dos homens de Estado para

subordinarem a si os homens da Igreja e dos homens da Igreja para ganharem vantagem sobre

os civis.

São Crisóstomo e a explicitação da doutrina pauliana: uma vitima eminente desta

ingerência é São João Crisóstemo (347-407) que, patriarca de Constantinopla, por duas vezes é

afastado da sua fé pelo imperador bizantino, vindo a morrer no exílio. Crisóstomo vê nela o aspeto

moral, razão por que não constrói um sistema. Tudo o que nele encontramos são os aspetos

fundamentais do pensamento cristão dos primeiros tempos. Em primeiro lugar, a obediência aos

poderes estabelecidos. Aquele que lhes resiste, resiste à ordem de Deus. A obediência é devida,

não ao príncipe, mas a Deus; não é um favor, uma liberdade dos súbditos, mas uma dívida que

estes pagam. De resto, não têm de se envergonhar da sua submissão; em contrapartida, se se

recusarem a obedecer, têm tudo a temer da cólera de Deus. Acrescenta: todo o poder vem de

Deus, omnis potestas a Deo; logo, é o poder em si, o poder objetivo e não a pessoa do seu titular,

sujeito do poder, que é estabelecido por Deus. Que haja autoridades, que uns mandem e os

outros se submetam, é algo de necessário para que as coisas não andem à deriva, ao acaso, como

que sacudidas pelas vagas. Caráter da dominação assim legitimamente exercida, Crisóstomo

considera-a natural. A natureza que ele encara é a natureza pecadora. A subordinação dos

súbditos é consequência das suas faltas, do mesmo modo que a submissão da mulher ao marido

e do escravo ao senhor. Um juiz armado foi posto acima do cristão, porque Deus, cuja lei tinha

sido ignorada, entregou os homens a esses duros pedagogos, a esses reeducadores implacáveis

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que são os príncipes. Crisóstomo compara ainda os que mandam aos médicos, que servem para

nos curar das doenças que nos afligem. As prescrições têm algo de penoso, mas quando se está

doente, é preciso obedecer-lhes. Portanto, é a perversidade que torna indispensável a autoridade.

Segundo o Antigo e o Novo Testamento, se o homem não fosse pecador, o governo seria inútil

Este principado é maior do que o outro; e por isso que o rei baixa a cabeça sob a mão do sacerdote.

Santo Ambrósio e o nascimento do sacerdotalismo: Santo Ambrósio marca uma fase no

desenvolvimento do pensamento cristão que rompe com a anterior. Ao tornarem-se cristãos, o

príncipe e o próprio principado deixam de ser exteriores à Igreja. «O imperador está na Igreja e

não acima da Igreja.» Existe, pois, uma subordinação do imperador ao poder eclesiástico. A partir

do momento em que se toca na religião e na moral, aquela obediência tão vasta e quase

incondicional aos poderes públicos, anteriormente reconhecida, é substituída pela obrigação de

os mesmos poderes reconhecerem a autoridade espiritual. Como cristão, o imperador está

submetido à Igreja, ao Papa e ao bispo que a representam por causa do pecado. Entra-se no

período da “hegemonia eclesial”, em que “o principado, opressor na Antiguidade, passa a

oprimido.» Perseguida, a Igreja só havia resistido quando tentavam força-la a trair a lei de Deus.

A partir do momento em que o Imperador se converte, o problema muda de natureza; a Igreja é

impelida a gerir diretamente um Estado cuja lei suprema passou a ser a lei de Deus.

A Cidade de Deus: Santo Agostinho

Agostinho, retórico e bispo: Ambrósio é pai espiritual de Agostinho. Nascido na Tagasta,

na Numídia, Agostinho é filho de Patricius, um pagão, e de Mónica, cristã, que, viúva aos vinte

anos, se dedicará inteiramente à sua educação. Agostinho, muito em breve, abraçará a heresia

maniqueia e entregar-se-á a uma vida dissoluta. Faz estudos em letras. Será sucessivamente

Professor de Gramática em Tagasta e Professor de Retórica em Cartago e Roma. Santo Agostinho

é um letrado antigo, discípulo de Cícero, longínquo aluno de Isócrates, é um gramático, um

retórico, um erudito de tipo bem definido, aquele que é comum a todos os retóricos do Império.

A sua formação filosófica não é menos determinada; bebeu e todas as filosofias racionalistas da

época helenística e romana, apesar de na sua obra dar especial relevo ao elemento platónico. Em

Milão Agostinho converte-se devido à leitura de um texto de São Paulo, que uma voz imperiosa

lhe ordenava que tomasse e lesse. Em 387 recebe o batismo das mãos de Ambrósio. Em 391,

Agostinho, que vivia bastante retirado, é reconhecido na basílica de Hipona pelo povo, que o

reclama para sacerdote. O seu ministério entrava frequentemente a composição da sua grande

obra, A Cidade de Deus.

A Cidade de Deus: tal como Ambrósio, seu pai em Deus, Agostinho ocupou-se das

relações entre a Igreja e o Império. Encontrava-se em Milão na altura em que o bispo entrou em

luta com a imperatriz Justina. Receando que a mãe do rei-menino mandasse os soldados raptar

Ambrósio, o povo cristão mantinha-se junto do seu bispo e passava as noites na igreja, pronto a

morrer com ele. Semelhante tensão desaparece na altura em que Agostinho, quase no fim da

vida, começa a Cidade de Deus. A Igreja está em paz com o Império. Além disso, o poder civil está

ameaçado; precisa de ser reforçado contra a dissolução interna e, sobretudo, contra as ameaças

do exterior, depois de Roma ter sido tomada por Alarico, à frente dos Godos em 410. Das suas

fileiras erguem-se queixas, seguidas de acusações à religião nova, por ter enfraquecido e

arruinado o Império. Como explica nas Retrações, foi para combater as suas blasfémias e os seus

erros que o zelo ardente da casa do Senhor colocou a pena na mão de Agostinho. Esta refutação

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preenche os cinco primeiros livros da Cidade de Deus. Os cinco seguintes afastam a tese pagã.

Assim, os dez primeiros livros são essencialmente apologéticos. Agostinho esforça-se por

convencer os pagãos de que o cristianismo em nada é o causador dos males que atingem o

império e a capital. O resto da obra é uma exposição das doutrinas cristãs. Descreve o nascimento

das duas Cidades: a Cidade de Deus e a Cidade do Mundo. Mostra o seu desenvolvimento paralelo.

Enuncia os seus fins necessários. A Cidade de Deus não é um tratado de política.

A politologia agostiniana: em A Cidade de Deus, Agostinho traça um fresco prodigioso em

que apresenta a evolução das criaturas inteligente, tanto dos anjos como dos homens. Mostra

que existem necessariamente duas Cidades, a do bem e a do mal, que estão em constante luta,

que a sua vida presente é um combate de todos os dias e que a paz perpétua só poderá existir na

vida futura. «Dois amores construíram duas Cidades, o amor de si elevado ao desprezo de Deus,

a Cidade da Terra, e o amor de Deus elevado ao desprezo de si, a Cidade de Deus. Uma glorifica-

se em si, a outra no Senhor. Uma pede a sua glória aos homens, a outra põe a sua glória mais cara

em Deus, testemunha da sua consciência. Uma, no orgulho da sua glória, caminha de cabeça

erguida; a outra diz o seu Deus: Vós sois a minha glória e sois vós que ergueis a minha cabeça.

Aquela, através dos seus chefes e das vitórias sobre os outros principados que verga, deixa-se

dominar pela paixão de dominar. Esta representa-nos cidadãos unidos na caridade, servidores

mútuos uns dos outros, governantes tutelares, súbditos obedientes.» O texto mostra claramente

que não devemos confundir a Cidade humana com o Império nem a Cidade de Deus com a Igreja.

Esta última é a comunidade cristã, que também comporta uma organização temporal do Estado,

de acordo com as leis do Evangelho. Para Agostinho, o homem não possui em si qualquer

autoridade sobre os outros homens. O império que lhe é atribuído pelo Génesis incide no reino

animal e nas coisas inanimadas, não se estendendo ao seu semelhante e igual, livre como ele,

criado por Deus à sua imagem e dotado de alma. Logo, o homem pode, de acordo com a natureza,

viver só e independente. No entanto, devido a uma segunda lei, a natureza leva o homem a

associar-se, de acordo com um fenómeno de ordem geral que ultrapassa a espécie humana e que

se estende também ao reino animal. Ainda segundo Agostinho, os cidadãos são os elementos e

os germes da Cidade. Inicialmente, combinam-se para formar a família que é o núcleo da Cidade.

Só existe associação fundada no direito onde há justiça. Não seria o caso do Império Romano.

Ignorando o verdadeiro Deus, ignorando também a justiça. Ora, «sem Deus, não há Justiça; sem

Justiça, não há Direito; sem Direito, não há Povo; sem Povo, não há Estado» Santo Agostinho

suprime, deste modo, sete séculos de República romana. Mas em breve reconsidera e propõe «o

povo é associado de uma multidão razoável que se une para gozar em comum e a um só coração

das coisas que ama.» Chama à união dos corações e das vontades «comunhão de natureza»: Esta

gera um «pacto de sociedade».

A autoridade: esta conceção afetiva e comunitária do povo deixa de lado, aparentemente,

a noção de autoridade. À autoridade renovada pelo Cristianismo, pede ele que salve a Cidade

antiga. Na família, a autoridade cabe ao melhor elemento, isto é, ao pai. A autoridade política

decorre assim da autoridade familiar. Os primeiros reis surgiram da avaliação feita às suas

qualidades. O seu poder não advém deles próprios mas de Deus, que delegou a sua potência a

cada principado, atribuindo o mando. Todavia, Deus não agiu diretamente, salvo a título

excecional, como no caso de Israel, que recebeu as chaves da sua mão Entre os outros povos, a

sua ação manifesta-se pelas vias naturais da ascensão ao trono e pelas normas do Direito positivo.

Surge assim, em Santo Agostinho, a chamada teoria do direito divino prudencial. Deus criou o

homem de tal maneira que a sociedade civil e, por conseguinte, o poder, lhe são indispensáveis.

Mas apenas certos factos humanos dão ao poder, em cada sociedade a uma forma concreta e

certos factos humanos dão ao poder, em cada sociedade, a sua forma concreta e legitima, bem

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como o seu sujeito. O homem necessita, por natureza, da sociedade e de uma sociedade dotada

de uma autoridade. Logo, a autoridade é indispensável e transcendente, mas a indicação do seu

titular e a instauração da sua forma concreta são imanentes e efetuam-se por intermédio dos

factos humanos. Aquele que faz do poder coisa sua escamoteia a liberdade e impõe aos cidadãos

um jugo de ferro, como fizeram Mário e Sila em Roma. Ao mesmo tempo, leva a sonhos de guerra

e de conquista. Ora, Santo Agostinho é essencialmente pacifista. O espírito belicoso transforma

a Civitas imperans, aCidade que manda segundo as leis, em Cidade tirânica. Civitas imperiosa, que

não passa da expressão de apetites desenfreados. A missão do poder consiste em fazer reinar a

justiça. Foi com este fim que o domínio foi dado ao rei. A justiça é, em si, anterior ao poder.

Imutável, eterna, soberana, comum no espaço e no tempo, impõe-se a todos os países, a todas

as instituições, a todas as consciências. A autoridade, pensa ele, não é um mal, mas relativamente

à justiça é secundum. O poder tem tudo a temer ao afastar-se da justiça. Segundo os pontos de

vista platónicos, o poder, se ameaçado na sua estabilidade e no seu equilíbrio, é-o igualmente na

sua retidão e na sua tranquilidade. A ausência de justiça desencaminha o poder, e o poder

desencaminhado é um poder que se perde. E aqui aparece a fórmula: «Que são os reinos sem

justiça, se não enormes malfeitorias?» A justiça consiste em desempenhar com a maior exatidão

o seu dever, em dar a cada um, de acordo com a tradição latina, o que lhe é devido sem fraude

nem favor. Considera a autoridade como moralista; indica os deveres que incubem aos seus

titulares e lembra-lhes as responsabilidades. Por fim, trata do mando na qualidade de apóstolo,

a fim de eliminar os resíduos pagãos que ainda sobrevivem. A autoridade, que já São Paulo

concebia como o exercício de um ministério, comporta em Santo Agostinho três ofícios ou oficia:

o officium imperandi: é o serviço de mando. Quem está investido dele deve poder impor

a vontade.

o officium providendi: é o da providência. Através dele, a autoridade assegura a

tranquilidade e a felicidade em vista à qual os homens se agruparam. O dever do chefe é

ver e prever por aqueles que lhe estão subordinados, saber o que é bom para eles e

satisfazer as exigências do seu bem.

o officium consulendi: dá ao chefe o papel de conselheiro do seu povo. A sua autoridade

deve ser posta ao serviço dele. O mando é um aspeto da caridade; os súbditos são irmãos.

Se alguém lhes impõe a sua vontade, é para bem deles, para cumprir perante eles o

grande mandamento, o mandamento evangélico por excelência: «a autoridade deve ser

aceite como um serviço e amada como um beneficio».

Tendo a justiça na base da caridade no topo, a Cidade proporciona a felicidade aos cidadãos.

As formas de poder: estes deveres impõem-se a todos os príncipes, seja qual for a forma do poder.

Logo, a escolha desta é secundária. Pelo que lhe diz respeito. Agostinho não vê vantagem tão decisiva, nem

inconveniente que leve a recorrer a um governo em vez de outro, ou a afastá-lo. Pouco importa, desde que

o depositário do poder não arraste os governados para atos de imoralidade, injustiça ou impiedade. Todo

o governo será, se não bom, pelo menos aceitável, na condição de, em matéria moral e religiosa, respeitar

Deus e respeitar o homem. Agostinho utiliza, com pequenas diferenças, a terminologia clássica da

Antiguidade. O rei injusto é um tirano; a aristocracia injusta é uma fação; o povo injusto merece, como rei

injusto, ser classificado de tirano. A perda de justiça e o seu desconhecimento têm para ele consequências

absolutamente radicais. O principado que desconhece o Direito não é apenas um principado corrompido,

é um principado aniquilado. Mas, com a reserva da manutenção da justiça e do respeito pela religião, todos

os regimes políticos e equivalem, todos têm os mesmos direitos e a mesma autoridade e podem reclamar

a mesma submissão.

A Igreja e o Império: do mesmo modo, seja qual for o regime, o poder civil e o poder eclesiástico,

cada um por seu lado, são bem distintos. Ambos gozam de uma independência soberana. Toda a

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espécie de ingerência de um poder no domínio do outro, é culpável, e perigosa, quer para o bem geral,

quer para o poder que desconhece os limites da sua esfera de competência. Assim, as duas esferas

parecem completamente separadas, Império e Igreja movem-se em dois planos diferentes. O plano da

Igreja é superior, entende que o Império não deve à Igreja serviços de dinheiro, mas somente proteção

contra os inimigos. Invoca a proteção do Império contra os pagãos, contra os judeus. É então levado a

estabelecer um princípio cuja importância domina toda a História da Idade Média e, em parte, dos

tempos modernos: o direito de intervenção do Império nos conflitos de consciência. Mas por amor da

paz, aceita o Império os erros de política e a insuficiência da administração. Em vista a um bem maior,

a Igreja tolera que lhe sejam impostas as leis muito imperfeitas neste mundo. É uma consequência da

sua condição. Na terra, a Igreja é cativa; passa o tempo no exílio. Nesta situação conforma-se a todas

as imperfeições que o Império arrasta atrás de si. Agostinho prefere insistir naquilo que a Igreja dá ao

Estado e que é essencial para a sua subsistência: a virtude dos cidadãos. A Igreja deve ser dentro do

Império uma escola de civismo e fraternidade. Segundo Agostinho, a evolução dos regimes não se deve

ao acaso nem a uma fortuna cega. A este respeito, opõe a Providência cristã à deusa Fortuna, que

usava uma faixa sobre os olhos. A marcha dos reinos e dos impérios processa-se segundo um plano

que Deus conhece, mas que os homens ignoram. Deus, autor e regulador de tudo, não pode deixar os

reinos fora da ordem universal. Os regimes adaptam-se às necessidades, às tendências e até aos

caprichos de cada época. Recebem de Deus, pelas vias já indicadas, a delegação misteriosa de mandar.

Mas a Providência, que preside ao seu nascimento, assiste aos seus avanços e aos seus recuos; segue

a sua evolução; estabelece o seu balanço; verifica o que cumpriram de bem e de mal; compara-os e

regula a sua sorte de acordo com uma justiça rigorosa. Pensa que o cristão tem um dever particular

de lealdade para com um príncipe que é, também ele, um príncipe cristão. Todavia formula, quanto à

imensidão do império, uma critica que merece ser assinalada. Agostinho pensa que a extensão do

Império Romano foi um fator da sua decadência, porque trouxe consigo a corrupção dos costumes e

da administração. Os serviços tornaram-se maus por ausência de controlo e por concussão. O aparato

do Império ultrapassou a sua solidez, e Agostinho, cujo estilo continua a ser, por vezes, o do antigo

retórico, compara-o ao vidro pelo brilho e pela fragilidade. O ideal político na medida em que existe

algum no plano terrestre, é o ideal de uma humanidade unida, mas fracionada em pequenos

principados, o que, moderando-lhes as pretensões por força da exiguidade, tornaria mais fáceis as suas

relações com a Igreja. Entre eles, entrevê uma emulação fraterna. Haveria muitos principados no

mundo, tal como há muitas famílias nas cidades.

O AGOSTINIANISMO POLÍTICO

O desvio do pensamento agostiniano: ao longo dos seus escritos, Agostinho mostra grande confiança

no Imperador cristão. Evita cuidadosamente identificar o Império com a Igreja. Discerne claramente o

caráter legítimo das instituições políticas Proclama que o papel destas é da vontade de Deus para que

a ordem seja mantida, e afirma a necessidade de as pessoas se submeterem a elas em obediência aos

desígnios providenciais, mesmo quando os reis ou imperadores são apóspatas ou pagãos. No entanto,

a conceção “ministerial” do poder secular traz como consequência, com a cristianização do Imperio, a

qualificação do bem como virtude e do mal como pecado. O ministério religioso de que são investidos

os reis e imperadores cristãos faz com que passem a dever obediência aos chefes da Igreja. Mas a

distinção continua a ser nítida. O papa Gelásio I também distingue claramente as duas jurisdições, a

espiritual e a temporal. A sua Decretal é célebre: «A origem da separação dos poderes espirituais e

temporais deve ser procurada na ordem estabelecida pelo divino Fundador da Igreja. A pensar na

fraqueza humana, teve o cuidado de que as duas autoridades ficassem separadas e cada uma

permanecesse no domínio particular que lhe foi atribuído. Os príncipes cristãos devem servir-se do

sacerdócio nas coisas que se referem à salvação. Os padres, por sua vez, devem fazer confiança no que

foi estabelecido pelos Príncipes, em tudo o que respeita aos acontecimentos temporais, de maneira

que o soldado de Deus não se intrometa nas coisas do mundo e que o Soberano temporal nunca se

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História das Ideias Políticas, Marcel Prélot e Georges Lescuyer

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pronuncie nas questões religiosas.» Repartimos assim os dois poderes, deve ser providenciado para

que nem um nem outro possam atribuir-se uma autoridade preponderante e para que cada qual

permaneça fiel à missão que lhe é confiada.

Agostinianismo politico: esta corrente intelectual, procedente da revolução cristã, mas

exagerando algumas das suas tendências, suprime as distinções entre direito natural e

justiça sobrenatural, entre o temporal e o espiritual, entre o político e o eclesiástico,

entre a Igreja e Império. Tudo se acha absorvido no ideal de uma comunidade única,

colocada sob o condomínio de duas autoridades soberanas, espirituais e temporais. Os

começos do desvio remontam a Gregório, O Grande. Na sua atitude, considerada a

primeira manifestação de agostinianismo politico, há uma espécie de desdobramento.

Por um lado, o respeito devido aos poderes estabelecidos sobrevive ao Imperador.

Gregório multiplica os sinais de respeito a Maurício, Imperador do Oriente. Mas, por

outro, começa a afirmar-se a influenciado poder sacerdotal sobre os jovens reinos

bárbaros, debilmente institucionalizados. «Ser rei nada tem de maravilhoso em si, pois

há outros que o são. O que importa é ser um rei católico.» Assim, para o Papa e para os

teólogos, a função religiosa do soberano torna-se a razão de ser da realeza. Daí decorrerá

logicamente a sujeição direta à autoridade sacerdotal. «Eis que o Cristo vos responde por

mim, seu servidor e vosso: fiz-te César, imperador e pai de imperador.» Doravante tudo

está na Igreja, incluindo os reis e os imperadores. Enquanto existia um Império romano,

fortemente constituído, havia o risco de choques, mas não de confusão. Tudo muda

quando desaparece o Império. Não só o Império, mas a própria ideia de Império dissipa-

se com a instalação dos bárbaros. A igreja que se institucionaliza com todo o vigor e rigor

que toma de empréstimo a Roma, encontra algo de melhor que um campo favorável,

encontra um terreno vazio, já que o domínio do político deixou de estar ocupado. O

poder político, na medida em que conserva alguma consistência, vai buscar força ao seu

caráter religioso. Surge como sendo «criado para atingir o fim que, noutro plano, a Igreja

reclama.» Já não se trata de uma autoridade independente e soberana, de uma

magistratura suprema que se impõe a todos, aos cristãos e aos outros, para o bem

comum temporal. Semelhante instituição, na sua autonomia, deixou de existir, vindo a

tornar-se um órgão quase eclesiástico.

O imperialismo carolíngio: no entanto, será feita uma tentativa para reconstruir a ordem

política da humanidade, dando à comunidade cristã uma estrutura que já não seria a do Império

pagão, mas que ultrapassaria as dominações locais e parciais resultantes das grandes invasões

bárbaras. À volta de Carlos Magno, leigos e eclesiásticos vêm o rei dos Francos, assinalado por

Deus para domar a barbárie, converter os povos pagãos e criar entre eles uma comunidade de fé

e de lei semelhante a um Estado. Mas ninguém pensa em dar-lhe a coroa imperial. O mundo

cristão contém três personagens providenciais: o imperador do Oriente, o Papa e o Rei. Este é,

de facto, poderoso e glorioso do que os outros dois, mas contenta-se com o título de “patrício” a

que recorreu para conter e em seguida esmagar os Lombardos e para se erigir em protetor da

Igreja. À volta do Papa ninguém parece disposto a conceder-lhe a dignidade imperial. Os seus

títulos são suficientes. Invoca-se a donatio Constantini, um documento de origem obscura

publicado por volta de 750, onde o Imperador, ao retirar-se para Bizâncio teria formalmente

doado todo o Ocidente ao Papa. Baseada ou não num facto autêntico, a donatio Constantini

traduz uma crença geral. Esta divergência inicial explica as atitudes de Leão III e de Carlos Magno,

por ocasião da coroação deste, a 25 de dezembro do ano 800. Leão III, que precisa de um protetor

e o encontrou em Carlos Magno, quer sagrá-lo Imperador. Mas é essencial que a iniciativa parta

dele. Por isso, atua de surpresa. Sem preparativos coroa Carlos Magno durante as cerimónias do

Natal. Este não aprecia muito um processo tão expedito. De facto, o título imperial não dá a Carlos

Magno nenhum território novo e nenhum direito que não tivesse já, nem sequer sobre o

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Imperium do pontificado, de que o Papa tinha a firme intenção de continuar a ser o soberano

espiritual. Mas confere-lhe grandeza e obrigações morais. Carlos Magno é assim colocado no topo

da hierarquia dos poderes humanos. Torna-se chefe temporal da comunidade cristã, de que o

Papa é o chefe espiritual. Não se trata propriamente de restauração do Império Romano mas da

criação de uma sociedade político-religiosa de tipo novo, cuja conceção decorre diretamente do

agostinianismo político. O exercício da sua elevada função religiosa absorve-lhe a atividade

temporal. Ao fazer do batismo o laço principal entre as nações tão diferentes que conquistou

realiza temporalmente aquela unidade humana, aquela “humanidade” outrora realçada como

ideal evangélico. Caminha-se assim para a realização do agostinianismo político: O Império

concebido como reino da Sabedoria e preparação para a Cidade de Deus… A ideia Imperial de

Carlos Magno é antes de mais uma visão religiosa da ordem do mundo. O Império carolíngio, ao

esvaziar em definitivo a noção de Império, legado da antiguidade, para o substituir pela conceção

nova de uma comunidade com base e fim religiosos, para os substituir pela conceção nova de

uma comunidade com base e fim religiosos, abre intelectualmente as vias para o sacerdotalismo

gregoriano. Cede-lhas na prática quando, por sua vez, entra em decadência. O novo sistema

político, o feudalismo, fruto da anarquia política provoca uma divisão ilimitada, um retalhamento

ao infinito. O papado, que ficou a ser o único poder universal, considera-se então, não só pai e

senhor de todas as Igrejas, mas o substituto da autoridade política definhante. Aquela

impressionante superioridade de todos os elementos da autoridade conduz a uma dominação da

Igreja até sobre o Século.

Definição de sacerdotalismo: assim se opera uma prodigiosa transferência da

preponderância política para o poder pontifício, sem que o pontífice, ao aceitá-la, julgue sair dos

deveres religiosos do seu cargo apostólico, e sem que pretenda usurpar funções publicas. A paz

tornou-se um assunto religioso, mais do que político. A absorção do direito natural do Império

por uma justiça mais alta leva à exaltação do pontificado, que, por instituição divina, é na terra o

seu principal arauto. Deste modo o sacerdotalismo não é uma doutrina das relações entre o

Império e a Igreja, mas uma conceção diferente da sociedade política. O poder supremo é

exercido pela autoridade religiosa. Esta não possui uma superioridade moral que não poderia ser-

lhe recusada. Reconhece a si própria as atribuições fundamentais da soberania política; a

instituição e a jurisdição. A hierarquia eclesiástica estabelece e julga o poder civil, que deixa de

ser independente. A palavra “sacerdotalismo” parece corresponder exatamente a um conjunto

de tendências de que o sacerdócio é o núcleo. Certos homens sagrados a Deus pelo sacramento

da Ordem têm, por instituição divina, um poder da autoridade sobre os outros homens, o poder

mais eminente que é possível existir. A base lógica da autoridade pontifícia é incontestável para

o crente. Os poderes da Igreja são os de Cristo. O sacerdócio tem, pois, a plenitudo potestatis no

domínio espiritual. Transforma-se em “sacerdotalismo” quando se estende ao temporal,

recusando-lhe valor próprio e conferindo-lhe eticidade. Assim, não só existe subordinação do

temporal ao espiritual, mas uma interpenetração de ambos que leva à inclusão do primeiro no

segundo, ou antes, à ausência de ventilação entre um e outro. Em princípio, o poder espiritual

sobreeminente exerce a sua jurisdição sobre o poder temporal quando o espiritual está em jogo.

Mas, para o sacerdotalismo, o espiritual está constantemente em jogo. Na desordem universal,

ao procurar-se um poder dotado de verdadeiro prestígio, vê-se apenas a Igreja a ocupar todo o

horizonte. O Estado é rebaixado, a Igreja é exaltada Para atingir este resultado, todos os meios

servem.

Expansão do sacerdotalismo: o Santo Império só pode reerguer a noção de político pela

sua subordinação à Igreja. Ao associá-lo aos seus fins sobrenaturais, esta fá-lo participar na sua

própria dignidade. No ponto de partida tudo é perfeitamente lógico na teoria sacerdotalista, tal

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como a formula Gregório VII: «É lei da religião cristã que, a seguir a Deus, a autoridade real seja

dirigida pelos cuidados da autoridade apostólica. A Escritura comprova que a autoridade

apostólica e pontifícia apresentará os reis cristãos e todos os outros fieis diante do tribunal divino

e prestará contas a Deus dos seus pecados.» É Rationi peccati, em razão de pecado, que os reis

são dependentes dos papas. A inclusão dos reis na vida moral faz parte da tradição da Igreja.

Gregório VII apoia-se numa declaração de Gelásio I: «Há dois poderes principais, Augusto

Imperador, a reger o mundo, a autoridade sagrada dos Pontífices e o poder Real. A

responsabilidade dos sacerdotes é ainda ais grave porque têm de prestar contas ao tribunal

divino por todos, até pelos Reis.» Mas Gregório VII só reconhece a autoridade dos reis como

legítima na condição de eles a exercerem na Igreja e para a Igreja, de serem os dóceis auxiliares

da justiça sobrenatural de que o papa é o supremo defensor. O Rei é o vigário de Cristo, do Papa.

Nos primeiros tempos do seu pontificado, Gregório VII utiliza fórmulas moderadas. Mas ao longo

do conflito com Henrique IV da Alemanha, a conceção sacerdotal vê-se definitivamente explicada.

Gregório VII que pode, «em nome de São Pedro e de São Paulo, tirar e dar na terra a cada um

conforme os seus merecimentos, os impérios, os reinos, os principados, os ducados, os

marquesatos e todas as possessões dos homens». A doutrina torna-se hirerocrática. O êxito de

Canossa em 1077, com a humilhação do imperador, coroa a obra de Gregório VII, que fica a dever-

se tanto às suas qualidades pessoais de energia e inteligência como às fraquezas dos

interlocutores. O agostinianismo politico soube transforar-se em tradição e fez entrar o domínio

Temporal na Igreja. O rei tornou-se um poder subordinado à Santa Sé; se não é abolido, o ofício

real é esvaziado da sua antiga soberania.

São Bernardo e a alegoria dos dois gládios: Contudo, uma menção especial deve ser feita

a São Bernardo (1090 – 1153). As duas espadas surgem no relato da Paixão. No sermão depois

da Ceia, Jesus indica aos Apóstolos que devem preferir a espada à túnica. E eles respondem que

têm duas espadas. Logo Cristo diz: «É quanto basta». Um pouco mais tarde, Jesus ordena a Pedro,

que tinha cortado uma orelha ao servo do grande sacerdote, que torne a meter a espada na

bainha. Destas duas espadas, São Bernardo extraiu uma simbologia completa. Os dois gládios

representam os poderes espiritual e temporal e são ambos de instituição divina. Mas, pelo facto

de Pedro ter duas espadas, cabe ao sucessor de Pedro conceder o gládio temporal ao imperador.

O príncipe é um agente necessário, pois puxar da espada é indigno das funções sacerdotais ou,

pelo menos, incompatível com elas. «Aquele que diz que a espada não é do Papa não me parece

que ouça com atenção bastante a frase do Senhor quando declara: “Torna a meter o gládio na

bainha.” Este pertence a Pedro e aos seus sucessores e só por ordem deles deve ser usado,

embora não deva sê-lo pela sua própria mão.». «Ambos os Gládios pertencem à Igreja, a saber, o

gládio espiritual e o gládio material [temporal]. Mas este deve ser usado para a Igreja e aquele

pela Igreja; o primeiro pela mão do sacerdote, o segundo pela mão do cavaleiro, mas certamente

por ordem do sacerdote e a mando do imperador.»

A sociedade segundo o sacerdotalismo: «Tal como», escreve o papa «para a beleza do

universo… Deus dispôs duas luminárias mais eminentes que as outras, o sol e a lua… assim

também providenciou a direção do mundo pela autoridade apostólica e pela autoridade real,

cujos deveres são deferentes». Inocêncio III (1198-1216), esclarecendo a comparação com o sol

«que presido ao dia» e a lua «que governa as noites», acrescenta que «da mesma maneira, no

firmamento da Igreja Universal, Deus instituiu duas grandes dignidades: a maior reina sobre as

almas que são coo dias, a mais pequena domina os corpos que são como noites; são a autoridade

pontifícia e o poder real… Uma e outra mereceram ter na Itália a sede da autoridade. Assim, a

Itália, por disposição divina, obteve o principado sobre todas as províncias… É lá que se encontra

o fundamento da religião cristã e reside o principado conjunto do sacerdócio e do poder real. Na

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Inglaterra, Thomas Becket, arcebispo da Cantuária, apostrofa o rei: «aquele que te fez rei, para

governar e não para oprimir, háde pedir-te contas com usura dos talentos que te confiou.» E João

da Salisbúria levará a análise ao extremo de formular uma das mais percucientes teorias do

tiranicídio:

1.º Existem duas autoridades distintas mas complementares, feitas para dirigir em

conjunto a cristandade, comunidade universal superior a todas as outras, a ponto de os países

serem apenas províncias suas;

2.º A autoridade espiritual é superior à autoridade temporal. O sacerdócio tem prioridade

sobre a realeza, mas o sacerdócio não tem que se ocupar diretamente das questões temporais,

de contrário haveria só uma autoridade e não duas;

3.º Foi o Papado que fez o Império do Ocidente. O Imperador é um cristão consagrado

que possui, acima de todos os outros, a primazia de ser oficialmente encarregado, por força da

sua sagração, da defesa da Igreja. Exerce o protetorado dos interesses gerais da cristandade.

4.º Ao receber do papa a coroa e a consagração, o imperador romano do Ocidete, o rei

da Germânia, toma nominalmente assento em Roma, que, graças à Santa Sé, volta a ser a capital

do mundo que tinha sido na Antiguidade.

O REGRESSO DE ARISTÓTELES: SÃO TOMÁS DE AQUINO

O conflito interno do pensamento medieval: a única diferença entre a posição de São

Tomás de Aquino e o ponto de vista comum sobre o poder sacerdotal e o poder do príncipe reside

na sua força, no condimento e, principalmente, na serenidade da exposição. Também para ele, a

relação entre as duas autoridades é comparável à diferença entre alma e corpo. Há no homem

duas naturezas, dois fins, duas ordens de virtude, dois graus de felicidade. Ora, a estas duas partes

da natureza humana devem corresponder dois poderes, o poder temporal e o poder religioso.

Mas este é necessariamente superior àquele, do mesmo modo que a superioridade da alma sobre

o corpo assenta na superioridade do fim. A jurisdição do papa explica-se logicamente pelo pecado.

O rei, culpado de heresia pode ser deposto; o papa pode dispensar do dever de obediência os

súbditos de um príncipe infiel. Devemos então ver nele um adepto do tiranicídio? Houve quem o

fizesse, como os conjurados de 20 de julho de 1944 que justificaram o atentado contra Hitler

citando os Comentários às Sentenças, em que São Tomás, ao referir a opinião de Cícero sobre a

morte de César, escreve: «Aquele que, para a libertação da sua pátria, mata o tirano, é louvado

e obtém recompensa.» É certo que, ao lado do recurso habitual à Escritura e à Tradição, surgem

na sua obra considerações inteiramente novas sobre a natureza objetiva do poder político. Ao

realçar a diferença entre ordem natural e a ordem sobrenatural. São Tomás dissipa a confusão

anterior, provinda do agostinianismo político. Procura separar o poder “em si” do poder “nestas

ou naquelas condições”. O que vem de Deus é o poder considerado em absoluto, o meio através

do qual se governa, e aquilo que se faz do poder, nada disso vem de Deus, pois que Deus não

instituiu esta ou aquela forma de governo. A instituição política é de direito humano. Se nos

limitássemos a dizer, a exemplo de São Paulo, que todo o poder vem de Deus, desobedecer seria

um sacrilégio. Ora, São Tomás escreve: «ainda que alguns tenham recebido o poder de Deus, se

abusarem dele, merecem que lhes seja tirado». E esclarece: «se um povo tem o direito de fazer

um rei, pode sem injustiça destituir o rei que tinha instituído… se for completamente impossível

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achar recurso humano contra o tirano, então é necessário recorrer ao rei de todos, a Deus, que,

no meio das tribulações, socorre no momento próprio». Verifica-se que São Tomás de Aquino, se

acentua e aprofunda o conflito interno do pensamento medieval, entalado entre o regresso do

pensamento antigo e o apelo, já percetível, do pensamento moderno. Efetivamente, a Idade

Média propõe um sistema político homogéneo e exclusivo, assente na ideia de uma comunidade

constituída por Deus e que engloba a humanidade total.

O doutor angélico: a personalidade de São Tomás de Aquino prestava-se admiravelmente

à gigantesca obra de síntese de que vai ser autor. Nascido perto de Nápoles reúne na sua

compleição maravilhosamente equilibrada dos dons dos homens do norte e dos homens do sul,

dos Normandos e dos Lombardos. Do mesmo modo que integra na sua missão de doutor a Itália

dos Papas, a Alemanha de Alberto, o Grande, França de São Luís e a Universidade de Paris,

também junta à herança dos Padres e da sabedoria cristã os tesouros dos Gregos e dos Latinos,

dos Árabes e dos Judeus, em suma, o contributo completo do mundo conhecido do seu tempo.

A sua vida confunde-se com a sua obra intelectual. Estudante e professor em Paris, Colónia e

Itália, São Tomás é, ao mesmo tempo, um erudito com conhecimentos enciclopédicos e um

contemplativo perdido em Deus. Meditativo e orador, o “grande boi mudo da Sicília” é um

professor consumado cujo discurso pedagógico se prolonga nos extensos ditados que constituem

a sua obra. Esta é sobretudo teológica e filosófica. Não contém exposições políticas de conjunto.

A cidade, obra de natureza e de razão: inicialmente, Tomás afirma a existência e o valor

em si da Cidade. A sociedade política é natural ao homem, pois este, também por natureza, é um

animal cívico. Aquino adota exatamente a terminologia de Aristóteles, que muitos autores

simplificam ao dizer que o homem é um “animal social”. Com efeito, há outras sociedades sem

ser a Cidade. A sociedade doméstica tem por fim a procriação, a conservação e a educação das

crianças. Não é suficiente para o homem, tal como o não são outras sociedades a que pode

pertencer voluntariamente. Além disso, o homem não é o único ser que vive em sociedade. Mas

só o homem, diferentemente das outras criaturas, é um animal político. A sua vida exige, para se

desenvolver e aperfeiçoar, segurança contra os inimigos externos e internos, além da ordem legal

que dá a cada um o que lhe é devido e permite a abundância de recursos materiais e espirituais.

Esta sociedade cívica não permite a abundância de recursos materiais e espirituais. Esta

sociedade cívica não é mero fruto do instinto. O homem participa nela devido a uma inclinação

para a vida social, aceite e regida pela razão. Neste sentido, há na associação humana uma parcela

de vontade e, posteriormente, um elemento contratual. Tomás reconhece-o fazendo sua a

definição de Cícero: «A sociedade é uma multidão organizada sob uma lei de justiça consentida

para um interesse comum.» Ao substituir por uma noção jurídica uma noção sentimental e afetiva

de povo, Agostinho facilitara a eclosão das confusões que se seguiram. Tomás afasta-as

destacando a noção de Cidade segundo Aristóteles e Cícero, cuja sociedade é considerada

perfeita. Mas a sua perfeição não é autarcia, nem o isolamento e a retração que resultariam da

suficiência moral. Significa somente que a coletividade por ela formada encontra aí a plena

satisfação do bem comum aos seus membros. O bem comum não é só de ordem temporal, mas

também de ordem espiritual, já que deve garantir o pleno desenvolvimento do homem, ser físico

mas também ser razoável e ser religioso depois da Revelação cristã. No seu conteúdo complexo,

o bem comum deve tomar em consideração o bem particular de cada membro da Cidade, e

designadamente garantir-lhe aquele mínimo de bens corporais necessário ao exercício da virtude.

A sociedade engloba os cidadãos, mas sem os absorver. A comunidade politica é formada por

indivíduos, por sociedades humanas, que não se tornam servas, mas se conservam livres numa

sociedade maior de que são membros vivos. Logo, pode falar-se a este respeito de organismo

social, uma vez que cada elemento possui atividade e vida próprias que lhe permitem, ainda que

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História das Ideias Políticas, Marcel Prélot e Georges Lescuyer

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sob a dependência de outrem, mover-se e eventualmente resistir. O contrário da peça de um

mecanismo que, privada de atividade, sofre passivamente o impulso que lhe é dado, sem

qualquer possibilidade de se opor.

Origem e forma do poder: à unidade humana, natural e racional, constituída pela Cidade,

é necessário um poder político. Existe em si, conforme à natureza e não procedente de outro

poder humano que lhe seria superior. Tem origem em Deus, mas Deus como criador da natureza.

Formulou a sua teoria num encadeamento de dois silogismos:

Maior: a sociedade é uma exigência da natureza do homem, ser moral, racional,

religioso e socia;

Menor: para viver em sociedade, é necessária uma autoridade superior que

governe cada membro da sociedade com vista ao bem comum;

Conclusão: logo, a autoridade é uma exigência da natureza, pois não pode haver

fim sem meio.

Maior: mas todas as exigências da natureza procedem de Deus, seu autor;

Menor: ora, a autoridade é uma exigência da Natureza;

Conclusão: logo, a autoridade procede de Deus.

Mas a colação desta autoridade, divina na sua essência, é humana nos seus modos. Passa

pelo povo: omnis potestas a Deo per populum. São Tomás formula claramente a doutrina da

Média Via Tomista. A comunidade é necessariamente o primeiro sujeito do poder. Pode

transmiti-lo a uma ou mais pessoas determinadas, por um período limitado e, de preferência, por

tempo indefinido. Ficam assim concretamente demarcadas as várias formas de governo. São

Tomás retoma por sua conta a vulgata de Aristóteles. Distingue três tipos específicos de governo

puro, a monarquia, a aristocracia e a democracia (politeia) e três formas desviadas ou alteradas,

a tirania, a oligarquia e a demagogia (démocratia). Sublinha o caráter moral desta classificação

separando os governos que agem retamente daqueles que agem injustamente quanto ao bem

comum que é o fim da sociedade. São Tomás aceita as formas retas e aprova-as, qualquer que

seja a sua estrutura. Afasta os desvios como sendo injustos, já que visam um bem particular. De

acordo com o mesmo esquema, o poder politico é diferente do poder despótico. O poder político

existe nas províncias ou cidades governadas por um só ou por vários segundo determinadas leis

ou convenções. O poder despótico é ilimitado, tal como o do senhor sobre o escravo. Finalmente,

São Tomás distingue uma terceira forma de poder, o poder real, que não é político nem despótico.

O príncipe governa sem leis, mas a sua liberdade é sábia. Bebe no seu coração a inspiração para

os seus atos, imitando assim a Providência divina.

Preferências teóricas: revelam-se aqui as preferências de São Tomás de Aquino pela

monarquia, as quais se ligam ao conjunto das suas conceções teológicas, filosóficas e históricas.

Teológicas: o exercício real do direito do monarca é comparável à ação de Deus e a constituição

monárquica é aquela que Cristo quis para a sua Igreja; Filosóficas: a arte imita a natureza, e a

natureza está suspensa da unidade. A sociedade política deve moldar-se por ela. Tudo bem da

unidade e retorna à unidade. A superioridade do poder fica mais bem garantida, tal como a sua

organização, pois o que é uno em si prevalece sobre o que é composto de elementos múltiplos;

Históricas: o passado prova que as províncias e cidades sem rei estão à mercê das discórdias e

andam à deriva. No entanto, apesar de ser melhor o governo de um só torna-se o pior quando se

desvia do seu fim. O egoísmo de um rei isola-o da multidão. Também é frequente acontecer que,

sem qualquer participação nas responsabilidades do governo, confiando-se inteiramente à

autoridade régia, os súbditos de uma monarquia trabalhem sem entusiasmo e acabem por se

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História das Ideias Políticas, Marcel Prélot e Georges Lescuyer

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desinteressar do bem comum. Por isso, se teoricamente a monarquia pura é o sistema ideal, na

prática deve preferir-se-lhe o regime misto.

O regime misto: o governo misto é, para São Tomás, aquele que conjuga a monarquia, a

aristocracia e o governo popular. Combinação de formas simples, dá origem à sua limitação

recíproca. Há sobretudo duas vantagens a tomar em consideração: é bom que os cidadãos

tenham alguma participação no governo, é o verdadeiro meio para conservar a paz social e

conseguir que todos se vinculem à constituição do país e a defendam; depois, a melhor

organização será aquela que combine com a unidade de ação própria da monarquia a

superioridade de mérito própria da aristocracia, e ainda a liberdade política e a igualdade civil

próprias da democracia. Logo, o melhor regime será aquele em que um único chefe à frente do

Reino governe segundo a lei e a virtude; onde segundo a mesma lei de virtude, determinado

número de magistrados intermédios concorram para a administração; e onde todos os cidadãos,

participando na soberania como eleitores, sejam elegíveis para todas as magistraturas, tanto a

suprema como as subordinadas.

Um politologia intemporal: Uma vez provado, em metafísica, que a natureza, obra de

deus, imita a razão divina e que a razão humana, obra de Deus, deve imitar a natureza para imitar

Deus, o que é conforme à natureza afigura-se bom, e o que não concorda com ela afigura-se mau.

Uma vez admitido, em teologia, que a natureza humana, ferida pelo pecado, precisa da graça

para se refazer e aperfeiçoar, a natureza do homem, com as suas tendências e hábitos, oferece-

se ao legislador para que se desenvolva o que ela inicia, se emende aquilo se que se afasta e se

mantenha e conserve o que ela organiza. Posteriormente, a politologia torna-se uma das ciências

práticas, e São Tomás presenta-a como tal ao estabelecer a sua classificação das várias disciplinas.

A ordem das ações voluntárias, domínio geral da filosofia dos costumes, divide-se em três partes:

a primeira, que considera as operações do individuo, é a moral individual ou ética; a segunda,

que encara aas operações da comunidade familiar, é a moral doméstica ou económica; a terceira,

que diz respeito às operações da coletividade civil, é a moral cívica ou política.

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História das Ideias Políticas, Marcel Prélot e Georges Lescuyer

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大象城堡

IDADE MODERNA

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História das Ideias Políticas, Marcel Prélot e Georges Lescuyer

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大象城堡

AFIRMAÇÃO DO PODER CIVIL

Uma inversão de Tendências: o tomismo como doutrina equilibrada, poderia ter evitado

a inversão de tendências. Mas as conceções do Doutor Angélico têm simultaneamente, a força e

a fraqueza de ultrapassar o seu tempo. O tomismo chega tarde de mais para salvar o Santo

Império. A forma política original, de que a Idade Média estava grávida e que poderia ter nascido

então, diferentemente da Cidade antiga e do Estado moderno, morreu institucionalmente à

nascença. Só a organização da Igreja, muito avançada depois do período dos papas de Avinhão,

beneficiará deste vasto movimento intelectual. O tomismo chega cedo de mais para combater a

violenta reação temporalista do século seguinte e impedir que as tendências laicas assumam o

rigor implacável de um anti-sacerdotalismo radical que estabelece as linhas do absolutismo do

príncipe. O ideal de unidade muda de direção e dá origem a um temporalismo que, para alguns,

resulta sobretudo do despeito. Já que os Papas, por causa das suas constantes dissesções com os

Imperadores, arruinaram o Santo Império, que venha então o poder temporal substituir-se a eles!

A oposição vitoriosa afirma o primado, e até à exclusividade, do poder temporal. Dante Alighieri,

Marsílio de Pádua e Guilherme d’Occam são os seus principais defensores.

A monarquia universal: Dante: O INCOMPARÁVEL POETA DA Divina Comédia escreveu

também um tratado de política, intitulado De Monarchia (Do Império). Dante vê neste um

«principado único que com o tempo se estende sobre todas as pessoas»: Em três livros, propõe-

se «examinar, em primeiro lugar, se o Império é necessário ao bem estar do mundo; em segundo

lugar, e o povo romano fez bem ao assumir a função da monarquia; em terceiro lugar, se a

autoridade da monarquia lhe vem diretamente de Deus ou de algum ministro ou vigário de Deus».

A resposta às duas primeiras perguntas é afirmativa. Quanto à terceira, Dante acha que a

autoridade temporal e política decorre diretamente de Deus. Deste modo, Dante inaugura a

Doutrina anti-hierocrática. Para isso, elimina os argumentos simbólicos (alegoria do Sol e da Lua),

das Escrituras (o poder de Pedro de ligar e desligar) e tradicionais (donatio constantini). O

soberano temporal não está sujeito ao soberano espiritual no que se refere aos assuntos políticos.

Só lhe deve respeito na sua qualidade de guia para a vida eterna. Concretamente, Dante refugiado

na Itália do Norte, toma partido no importante debate político entre os partidários do Imperador

e os partidários do papa. Ao virar-se para o Imperador alemão, apela a ele contra o papado. A

invocação que Maquiavel fará mais tarde ao príncipe libertador, endereça-a a Dante ao

Imperador, a favor da «Itália subjugada, morada da dor». Com efeito, tal como Marsílio e Occam,

pode ser arrumado no campo dos discípulos europeus do grande comentador árabe de

Aristóteles, Averróis (nascido em Córdoba em 1126 e falecido em Marraquexe em 1198), que até

certo ponto laicizou o pensamento do Estagirita. O Averroísmo como uma doutrina de

aristotelismo integral, apresentada como a verdade racional absoluta perante a verdade revelada.

Deixou de haver ponto entre a fé e a razão, como em São Tomás. Daí resulta a separação radical

entre o domínio da Igreja e o domínio do Estado, em proveito do último.

Regresso ao totalitarismo: Marsílio de Pádua: depois de Dante, Marsílio de Pádua lançpa

muito pouco brilho. Mas politicamente, o seu pensamento é, sem dúvida, de grande importância.

A Monarchia não parece tê-lo influenciado, embora comungue de algumas críticas com Alighieri.

Masílio, foi reitor da Universidade de Paris. O papa João XXII amarra-o ao pelourinho, como «filho

perdido e fruto da maldição», ao mesmo tempo que incrimina Luís da Baviera por lhe ter dado

guarida. Será vigário imperial quando da coroação do Imperador Luís e da deposição do Papa

João. Depois desta vitória de curta duração Luís retrata-se publicamente. Não entrega Marsílio,

mas abandona as suas doutrinas que, em Defensor Minor, revestem uma forma mais condensada

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História das Ideias Políticas, Marcel Prélot e Georges Lescuyer

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大象城堡

e portanto mais insolente. E, no entanto, qual não era já a veemência do Defensor Pacis! «Para

desmascarar a mentira desses bispos, a vós me dirijo como um arauto da verdade e grito a plenos

pulmões, a vós todos, reis, príncipes, povos, tribos de todas as línguas, não vedes que esse bispo

romano se atribuiu a soberania sobre todos os príncipes, sobre todos os reis do mundo… Pode

imaginar-se peste mais perniciosa, mas perigosa para o repouso, a felicidade e o bem estar de

toda a raça humana… Sob uma mascara de honestidade e decência, o papado é tão perigoso para

o género humano que, se não for travado trará um prejuízo intolerável à civilização e à pátria.» A

inspiração de Marsílio é totalitária. Marsílio retorna a Aristóteles onde São Tomás o havia

corrigido. Ao ter por nula e inexistente a frase de Cristo separando as coisas de César das coisas

de Deus suprime a distinção entre os dois domínios, um dos pontos essenciais da revolução cristã

no aspeto político. Não se limita a proclamar a superioridade do poder temporal, reconduz tudo

a este. Das a primazia ao poder laico não é suficiente, é preciso atribuir-lhe a autoridade total. O

sacerdotalismo era uma espécie de totalitarismo eclesiástico; Marsílio toma a direção

diametralmente oposta. No meio de uma sociedade que leva tão longe o dualismo cristão e

parece tê-lo partilhado por meio de instituições tão poderosas, deixa entrever o ideal de um

Estado que resume todas as manifestações da vida social e governa como senhor em todos os

domínios. Mas Marsílio é menos um percursor do que o protagonista de um retrocesso. Os

argumentos bíblicos ou apostólicos só lhe servem para favorecerem o renascimento da sociedade

paga. Ao escrever que «o mal que desola o nosso tempo, não pôde conhecer Aristóteles», está a

maldizer também a revelação cristã. Ao ligar-se estreitamente ao totalitarismo antigo, deconhece

os direitos fundamentais da pessoa.

A independência imperial: Guilherme de Occam: Guilherme de Occam reproduz, no

Diálogo entre um Mestre e o seu Discípulo, sobre o poder dos imperadores e dos pontífices, quase

todos os argumentos de Defensor Pacis. Por isso foi amiúde situado na esteira de Marsílio, salvo

quando sustentou o contrário. A sua posição pessoal é formulada no Breviloquim de potestate

papae. Comparadas ao radicalismo de Marsílio, as teses do franciscano parecem moderadas.

Adversário do sacerdotalismo, não o é verdadeiramente do poder pontifício, o que explica que

não seja condenado imediatamente em Avinhão, onde o Papa João XXII manda investigar os seus

escritos. Mas, ligando aos franciscanos Guilherme acabará por romper com o papado para se aliar

a Luís da Baviera. Este gesto, somando a uns tantos panfletos, valer-lhe-á a excomunhõ em 1330.

Fica ainda mais livre para apresentar a dignidade imperial como oriunda imediatamente de Deus,

que, po intermédio dos imperadores, governa diretamente o género humano. «A autoridade do

papa não se estende, segundo a regra, aos direitos e liberdades de outrem para os suprimir ou

perturbar, sobretudo aos dos imperadores, reis, príncipes e outros laicos, porque os direitos e

liberdades desta espécie pertencem ao número de coisas do século sobre as quais o papa não

tem autoridade. É por isso que o papa não pode privar quem quer que seja de um direito que

vem, não dele, mas de Deus, da natureza ou de outro homem. Não pode privar os homens das

liberdades que lhes foram concedidas por Deus ou pela natureza.» Aquele que foi eleito pela

maioria de sufrágios dos príncipes eleitores é legitimamente sobreano. Pelo simples facto da sua

eleição, o eleito é imperador legítimo e temporal. Não conhece superiores. Foi neste sentido que

Jesus disse que era preciso dar a Deus o que é de Deus e a César o que é de César. São estes os

termos da declaração de Rense (16 de julho de 1338), fonte da famosa “Bula de Ouro”, que na

prática ia pôr fim ao sacerdotalismo.

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História das Ideias Políticas, Marcel Prélot e Georges Lescuyer

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大象城堡

O PRÍNCIPE: MAQUIAVEL

A unificação de Itália: perante o Reino de França já constituído, pelo menos

intelectualmente, a Itália permanece dividida, aberta às invasões, à mercê das cobiças. A obra

de Maquiavel resulta destas circunstâncias. A Itália, a norte dos Estados pontifícios, contínua

a ser muito semelhante, pela sua estrutura de Cidade-Estado, à Grécia da Polis. Trata-se de

cidades mercantis que contam, nos arredores, com um campo que as abastece e a que

servem de mercado. A atividade política concentra-se essencialmente na própria Cidade.

Maquiavel compreende a necessidade de abandonar estas estruturas políticas, quantitativa

e qualitativamente ultrapassadas. As Cidades são unidades insuficientes, nos aspetos militar

e demográfico. Apesar do desenvolvimento das indústrias e do comércio, são

economicamente muito frágeis. Chegou o tempo do Estado-Nação. A Itália pode e deve unir-

se. Mas só pode unificar-se sob a direção de um Príncipe e, a este respeito, o exemplo dos

grandes vizinhos é decisivo. O artífice desta unidade foi um Príncipe, uma dinastia. Maquiavel

põe o problema em termos rigorosos: «sem Príncipe não há unificação». Não basta dirigir-se

ao Príncipe, virar-se para ele com apelos angustiados, mas platónicos; é preciso suscitar o

Príncipe e que o Príncipe triunfe. Escrever política reverte, pois, em redigir um manual de

êxito. Tudo assenta num estudo psicológico das condições de sucesso. A de Maquiavel é

desenfreada, mas também realista.

As obras de Maquiavel: numa carta de 9 de abril de 1513, explica assim a sua principal

preocupação: «querendo a sorte que não soubesse discorrer sobre a arte da seda, nem sobre

a arte da lã, nem de ganhos e perdas, eu preciso de me calar, ou de discorrer sobre os

assuntos do Estado». Entre várias obras de que é autor, o Príncipe faz a sua glória. Escreveu-

o no seu retiro forçado e logo a apresentou a Lourenço de Médicis. Os Discursos sobre a

Primeira Década de Tito Lívio não são menos importantes para se conhecer o pensamento

político de Maquiavel. Há que acrescentar ainda o Discurso sobre a Reforma do Estado de

Florença, que faz com que o autor volte a cair em boas graças. Tratou então de redigir a

História Florentina de 1251 a 1492. Ao lado destas obras políticas, Maquiavel escreveu um

tratado, A Arte da Guerra, além de poesias e teatro.

Renascimento do Estado: a palavra e a coisa: o objeto central dos estudos de Maquiavel

é o Estado. É ele o criador deste termo. Nas primeiras linhas de O Príncipe, emprega a palavra

“Estado” no sentido moderno, com o significado que assumirá mais tarde em todas as línguas

da Europa Ocidental. Além disso, Maquiavel introduz uma distinção fundamental entre os

Estados: «Todos os Estados que tiveram ou têm império sobre os homens são repúblicas ou

principados.» Traça, assim, a diferença entre república e monarquia, que se conservará na

linguagem política. No entanto, apesar de ser o inventor do “Estado”, uma vez que lhe

descobre o nome, a coisa continua envolta, para ele, numa certa bruma. A noção de “Estado”

ainda não se desligou da realidade dos homens que a constituem. O fenómeno da estatização

ainda não atingiu a plena maturidade. Está-se a caminho da institucionalização, mas o

“estado” continua estritamente ligado à pessoa do Príncipe. Assim, o que interessa a

Maquiavel é o Estado, mas o Estado do Príncipe, e dentro do Estado, o Príncipe em primeiro

lugar.

O ideal do Príncipe: o Príncipe é o homem que há de vir, mas também o que deve

conseguir, no duplo sentido do termo. “O Príncipe” é uma obra breve e, a seu ver, as

características do Príncipe são:

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História das Ideias Políticas, Marcel Prélot e Georges Lescuyer

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1. O realismo: o Príncipe considera o homem individualmente por aquilo que é, ou

seja, coisa pouca, e os homens coletivamente por aquilo que são, ou seja, menos

ainda que a sua soma. Não se preocupa com o que deveria ser feito, mas com o

que se faz. Anda à espreita de tudo, mas não acredita facilmente no que lhe

contam e não se espanta com coisa nenhuma;

2. O egoísmo, e também o egotismo: o Príncipe aprendeu a não ser bom no meio

de homens que são maus. Pratica o culto e a cultura do “eu”, uma ginástica da

vontade, uma disciplina do pensamento, do sentimento e dos nervos;

3. O cálculo: o Príncipe prefere ser temido a ser amado. Gostaria de ser uma coisa

e outra, mas como geralmente é impossível ser temido e amado ao mesmo

tempo, escolhe ser temido, já que isso depende dele, ao passo que ser amado

depende dos outros;

4. A indiferença ao bem e ao mal: o Príncipe prefere o bem, mas resigna-se ao mal

se a isso for obrigado, e é-o muitas vezes. Conhece muita gente que violou a fé

jurada e triunfou sobre os que respeitaram o seu juramento;

5. A habilidade: a principal qualidade do Príncipe é a “virtu”, segundo a etimologia

italiana de virtuoso e virtuosismo. A “virtu” é a esperteza e ao mesmo tempo a

energia, a resolução pois as qualidades do Príncipe exigem uma criação continua,

uma tensão sem tréguas para o objetivo;

6. A simulação e a dissimulação: o Príncipe é conhecedor da oportunidade,

colaborador avisado da Providência, mas também corruptor audacioso da

Fortuna, grande amador da manha e grande adorador da força;

7. A grandeza: o Príncipe está acima do comum. O que o autoriza a escapar à moral

e o facto de estar acima da mediocridade envolvente. Por isso, situa-se acima do

bem e do mal. Cupidez, rapacidade, dolo, libertinagem, deboche, velhacaria,

perfídia, traição: que importa, se nada disso deve ser julgado pela medida

comum das vidas privadas, mas segundo o ideal de um Estado a fazer ou manter.

Contanto que o Príncipe alcance o resultado, todos os meios são tidos por

honrosos.

«Aquele que implanta uma ditadura e não mata Bruto, ou que funda uma República e não mata

o filho de Bruto, não há de reinar por muito tempo» Aqui surge a chave do maquiavelismo, a

noção de “Razão de Estado”, seu legado fundamental à corrente política que vais suscitar. A

fórmula encontra-se, em termos aproximativos, no seu amigo e discípulo Guichardin.

Itália unida, armada e despadrada: no entanto, seria errado pensar que o povo não tem

importância para Maquiavel. Com efeito entendia que se devia convencer. No extremo, seria

necessário saber se o povo romano não é para Maquiavel comparável a uma espécie de Príncipe

coletivo. Em todo o caso, o povo virá a desempenhar um papel importante na criação da Itália.

Maquiavel pretende substituir os soldados mercenários dos condottieri por tropas animadas de

um sentimento patriótico, recrutadas em Florença entre os burgueses e o povo. Deste modo, por

lógica e por gosto, Maquiavel reserva um papel importante, nos seus escritos, às coisas militares,

pois o Príncipe é, em primeiro lugar, chefe de guerra. Por fim, é inimigo do clero romano, a que,

paradoxalmente, atribui a sua falta de crença. Maquiavel mostra ressentimento para com os

papas, por terem diminuído e até arruinado fé, quando «um povo religioso é mais fácil de

governar». E acusa o cristianismo de não ser uma religião cívica, opondo-a às religiões antigas,

que punham a tónica naquelas virtudes fortes que fazem um povo poderoso e livre, ao passo que

«a nossa religião coloca a felicidade suprema na humildade, na abjeção, no desprezo das coisas

humanas». Estes princípios parecem tornar «os homens mais fracos… e atreitos a ficar mais

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História das Ideias Políticas, Marcel Prélot e Georges Lescuyer

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大象城堡

facilmente à mercê dos maus. Estes viram que a suportar as ofensas do que a vingá-las». Além

disso, está contra o governo de Roma, pois a presença papal afigura-se-lhe o grande obstáculo à

unidade italiana, já que o papado é fraco de mais para garantir a unidade da Itália e forte de mais

para a tolerar. O próprio Maquiavel resumiu a sua política de uma maneira pitoresca. Durante as

longas estadas num albergue, quando do seu exílio aldeão, os bebedores que discutiam com ele,

fartos das suas críticas, preguntavam-lhe: «Mas qual é então a tua bandeira?» Maquiavel meteu

o dedo na taça de chianti e desenhou na mesa uma auriflama onde se lia esta divisa: A Itália unida,

armada e despadrada.

O método de Maquiavel: nova é a política, e novo também o método. Maquiavel, que

nasceu de olhos abertos, manteve-os toda a vida arregalados. Substitui à especulação a

observação direta e indireta, feita de contactos e leituras. A leitura das coisas antigas ocupou-o

bastante. Mais do que um gozo estético e gratuito, encontrou aí uma experiência acumulada,

sobre a qual funda a sua doutrina política. Também teve o génio de, ao escrever sobre política,

se limitar a ela. Não só põe a política em primeiro lugar, mas ocupa-se só dela. No entanto, para

ser um politólogo positivo, falta a Maquiavel o essencial, ou seja, a objetividade e o desinteresse.

Maquiavel tem interesses pessoais. Está constantemente com dificuldades de dinheiro e sente a

falta da sua secretária, pelo que se multiplica em gestos de servilismo junto do Médicis. Assim

que saiu da prisão, tenta conquistar as suas boas graças por todos os meios. Consegue-o de um

modo bastante medíocre, o que não o desanima. Maquiavel é homem de uma causa e de uma

grande causa, pois faz da sua causa da unidade italiana o seu fim imediato.

O HUMANISMO CRISTÃO: ERASMO E THOMAS MORE (TOMÁS MORES)

O Príncipe Cristão: Erasmo

O humanismo evangélico: «se observarmos com atenção a cabeça e as feições da águia,

os olhos rapaces e maus, a curva ameaçadora do bico, as faces cruéis, a testa feroz, não

reconheceremos de imediato a imagem de um rei? De todas as aves, só a águia pareceu aos

sábios o verdadeiro tipo da realeza: não é bela, nem musical, nem boa para comer, é carniceira,

glutona, larápia, aguerrida, solitária, odiada por todos, flagelo de todos». Esta passagem de

Erasmo evoca imediatamente o perfil e quase a caricatura do Príncipe de Maquiavel. Perante uma

política não só “laicizada” mas “descristianizada”, Erasmo retoca a imagem tradicional do Príncipe

Cristão. A Instituição é publicada em 1516. Escrita em Latim, é, de acordo com o uso da época,

dedicada a um grande Príncipe: o imperador Carlos V. Desideratus Erasmus Roteradamus,

nascido em 1466, em Roterdão, é então a figura mais saliente do humanismo renascente. A sua

obra exprime uma curiosidade universal, a que corresponde uma audiência universal para o seu

tempo. Através de trabalhos tão variados, Erasmo prossegue um desígnio fundamental, o

renascimento do homem e de toda a sociedade, no duplo sentido racionalista e cristão. Tendo

em vista a sua primeira orientação, é frequentemente invocado como precursor e protagonista

do livre pensamento, mas na realidade e um católico convicto. Grande parte da sua obra é

consagrada à edição de textos religiosos, designadamente do Evangelho. Se critica os

comportamentos da Igreja Romana da sua época, nem por isso deixa de querer batizar a cultura

e de levar o humanismo à perfeição, por meio da aliança entre a tradição clássica e a religião

cristã.

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História das Ideias Políticas, Marcel Prélot e Georges Lescuyer

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Situação e deveres do Príncipe cristão: à maneira dos autores medievais, Erasmo constrói

idealmente um Corpus Christianum. O centro desse corpo cristão é Cristo. À volta dele,

estendem-se concentricamente três círculos, dois pequenos e um grande. A primeira zona é

ocupada pelos príncipes da Igreja e pelos sacerdotes: é a zona interna. A zona externa contém a

grande massa de simples leigos, com os pés pesadamente presos à gleba e pertencentes ao Corpo

da Igreja. Entre as duas zonas – interna ou eclesiástica e externa ou laica -, há uma zona

intermédia, constituída pelos príncipes temporais. Quando estes governam com justiça e

proporcionam repouso aos seus povos, participam à sua maneira da dignidade sacerdotal,

situando-se assim muito acima dos que constituem a zona externa do laicado. No entanto, para

ele não há dois cristianismos, um para os príncipes e outro para o comum das pessoas. A religião

de todos deve ser conforme ao ideal evangélico. O príncipe, por estar situado maias acima, deve

superar os outros pelas suas virtudes , prudência e integridade. A lei do sacrifício impõe-se-lhe

como a todos os cristãos. Se tenciona seguir Cristo, deve carregar a sua cruz. Não pode escapar

à lei comum. O Príncipe deve assemelhar-se à imagem de Deus pela Cruz de Cristo e não «pelo

Globo e pela Coroa». Erasmo, embora reconheça direitos ao Príncipe, limita-o fortemente.

Apoiados na primeira doutrina da Igreja nascente, os reis tendem a considerar que se lhes deve

obediência sem discussão, de acordo com o princípio estabelecido pelo apóstolo: omnis potestas

a Deo. Mas esta fórmula de submissão referia-se aos imperadores romanos. «Império, realeza,

majestade, poder, outros tantos termos de um vocabulário pagão.» Ao invés, a soberania cristã

é «administração, benevolência e gestão fiel.» Assim, Erasmo quer que o Príncipe seja escolhido

em atenção aos seus méritos autênticos. O primeiro, a seu ver, consiste em ser pacífico. O

Evangelho é um Evangelho de paz; por isso, o primeiro dever do Príncipe é não fazer a guerra.

Dirigida a Carlos V ou a Francisco I, esta linguagem parece muito ingénua. No entanto, aos olhos

de Erasmo, é sábia, pois aumentar as possessões não constitui vantagem para um Príncipe. Mais

lhe valeria restringi-las, pois ser-lhe-ia mais fácil fazer reinar a justiça num território menos vasto.

Proporcionaria ao seu povo maior prosperidade.

O regresso à moral: tal como a orientação e os fins, o método de Erasmo opõe-se

diametralmente ao de Maquiavel. Nenhumas perspetivas sobre o Estado e escassa análise dos

móbeis do poder. A Instituição do Príncipe Cristão, como indica a palavra “instituição”, é

essencialmente uma obra pedagógica. A necessidade gera as sociedades. Os príncipes impõem-

se pelas virtudes. A autoridade é justa quando visa o bem público e quando é aceite pelos

subordinados. O reino do tirano, que governa para si contra a vontade dos súbditos, está interdito

ao príncipe cristão. Para alcançar o seu ideal, este necessita de uma formação completa, e é essa

aprendizagem moral, essa abertura de espírito através da cultura que essencialmente interessa

a Erasmo e aos seus numerosos sucessores.

“A Utopia”: Thomas More

Saint Thomas More: de Erasmo a More, a transição é fácil. Além de serem ambos

humanistas, liga-os uma profunda amizade. Thomas More, nascido em 1478, el Londres,

começou por ser jurista prático e advogado de renome. Ouvem quem sugerisse que não gostava

muito da profissão; no entanto, os rendimentos que dela tirava mostram que era ativo e hábil no

seu exercício. Humanista conversador brilhante e cheio de humor, poeta e artista, conquistou as

boas graças de Henrique VII, que em 1531 o nomeou chanceler de Inglaterra. Mas foi breve o

favor de que gozou, e que acabou por se inverter completamente. Por instigação de Ana Bolena

More foi condenado à morte por Henrique VII, em 1535. A Igreja começou por declará-lo beato,

e em 1935 declarou-o santo. É breve o papel de Thomas More na História Política. A sua influência

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História das Ideias Políticas, Marcel Prélot e Georges Lescuyer

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junto de Henrique VIII, monarca absoluto, foi extremamente limitada até ao momento em que,

irritado com a sua resistência, respeitosa mas inflexível, o soberano o fez condenar à morte. Em

contrapartida, ocupa um lugar importante na História das Ideias Políticas, como autor da “Utopia”.

A Utopia: a palavra utopia vem do grego: “não lugar”, “lugar inexistente”, “inencontrável”.

Todas as personagens e países citados têm também nomes fantasiados que traduzem a

irrealidade, quer dos seres, quer das coisas. A capital da Utopia é Amaurota, «a cidade fantasma»,

talvez também a «cidade sombria», ou ainda a «cidade das brumas». O rio que atravessa

Amaurota chama-se Anidro, «o rio sem água». O Rei chama-se Adamos, «o Príncipe sem povo».

Os cidadãos são os Aleopolitas, ou «sem cidade». Quanto ao viajante que descobriu Utopia, More

denomina-o com humor Hitlodeu, «o Vendedor de Quinquilharia». No entanto, essa ilha

inencontrável e minuciosamente descrita. Para o efeito, More começa por recorrer ao exotismo.

Em sua casa há aves, macacos e pedras raras de que faz coleção, e o seu mundo imaginário

inspira-se em larga medida nas descobertas mais recentes. Os descobrimentos americanos serve

de pretexto à efabulação e aos pormenores pitorescos. Mas que importância tem aqui a América,

se se trata de uma ilha inencontrável? Muito simplesmente, Thomas More procura dar ao seu

relato o ponto de apoio picante de uma aventura vivida. Vespúcio deixara alguns companheiros

num forte do Brasil. Um deles regressou a Antuérpia. É uma personagem de aspeto singular, um

aventureiro dos mares com as feições curtidas e um trajo que intriga Thomas More. Arrasta o

homem para casa do seu amigo Pedro Giles e interroga-o. É Hitlodeu, «o vendedor de

quinquilharias», que na sua rota havia visitado um país desconhecido e com estranhos costumes,

a Ilha dos Utopianos. Retornou “por milagre” por Taprobana e Calecute, «onde felizmente

encontrou navios portugueses» que o repatriaram. Outro milagre é o seu encontro com Thomas

More. Mas não haverá terceiro milagre, pois Hitlodeu desaparece. Com tal guia, more poderia

ter representado uma ilha afortunada sob um Sol radioso, com florestas cheias de frutos

saborosos e mulheres selvagens seminuas. Nada disso: o autor procede, em seguida, por

transposição. Erasmo comenta: «ele descreve a Grã-Bretanha que viu e conheceu a fundo». A

Ilha da Utopia é só meio imaginária, pois contém os traços dominantes da Inglaterra. Em primeiro

lugar, a insularidade: inicialmente a Utopia estava ligada à terra por um isto, mas foi separada

pelo rei Utope I. Em seguida, uma população comparável à inglesa distribui-se por 54 cidades,

que correspondem aos 54 condados da Inglaterra. A capital fica à beira de um rio, é atravessada

por uma ponte famosa e está envolta em nevoeiro. Aliás, houve quem contestasse que Amaurota

fosse Londres e assinalasse pormenores que fazem pensar em Antuérpia. De resto, Thomas More

pode perfeitamente ter combinado aspetos das duas cidades, já que se deslocou várias vezes à

segunda em missões diplomáticas. Em todo o caso, os habitantes são ingleses idealizados:

marinheiros, colonizadores e comerciantes, positivos e contudo místicos, em certos aspetos.

As intenções de More: na verdade, as intenções do futuro chanceler não são fáceis de

destrincar. A sua personalidade é atraente, mas complexa. Por outro lado, há muitas coisas na

utopia e coisas muito diversas. More misturou críticas e louvores ao seu país, transposições e

puras invenções fantasiosas, e a tudo isso imprimiu a marca de um estilo pessoal. Espírito subtil,

matizado, cheio de humor, ele é um humanista cristão, como Erasmo, ardente de helenismo e

também de patrística. Sentimos nele duas influências em luta: a de Platão, mestre dos utopistas

da Antiguidade, e a influência mística do Santo Agostinho de A Cidade de Deus. Thomas More

pratica o regresso às fontes. «A erudição liberta da superstição». Também liberta dos

abastardamentos do catolicismo ambiente. Adversário das deformações do pensamento cristão

por obras de segunda mão e de segundo plano, vai ao ponto de hostilizar o tomismo. E é também

um censor, respeitoso mas severo, das abusos presentes da Igreja. Os Utopianos são epicuristas,

no verdadeiro sentido da palavra, pois que para eles «nenhum prazer vale a felicidade de uma

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História das Ideias Políticas, Marcel Prélot e Georges Lescuyer

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consciência virtuosa e de um coração puro». No entanto, o futuro santo não faz deles cristãos.

Praticam a religião natural, a melhor religião possível na ausência de revelação, do que assinala a

expectativa e contém o pressentimento. Para ele, e de acordo com a conceção tradicional do

catolicismo, o homem, pela sua própria essência, tem necessariamente um valor e um papel livre

na escolha da sua salvação. No entanto, não prefere a religião natural, do mesmo modo que não

opõe a natureza a graça. Insiste vivamente numa natureza humana suscetível de grandeza,

progresso e santidade, apesar de ferida pelo pecado original. A alma conserva, com a sua retidão

primordial, uma inclinação natural para o bem e para a virtude. A isto, Thomas More acrescenta

a tolerância e a liberdade de consciência. O homem nasce para a filosofia e para a virtude; não

deve ser forçado a adquirir estes bens sem ser pelas suas disposições naturais e pelos cuidados

atentos da educação. Thomas More proíbe a propaganda de ideias que considera más, mas

permite aos crentes a discussão. Mais vale mudar os homens e os costumes que as instituições.

Mais vale reformar a vida interior do que a vida pública. Por conseguinte, More indica, sugere e

descreve. Neste aspeto, não há dúvida, que o método descritivo da utopia é bem escolhido. More

procura arrastar os espíritos no seu encalço. Quanto mais protegido estiver pela sua maneira de

se exprimir, mais longe pode chegar. De facto, Henrique VIII nem os seus conselheiros se

preocuparam com a Utopia.

As ideias políticas de Thomas More: é difícil distinguir as ideias políticas de Thomas More

das que professava acerca da família e da propriedade, embora entre estas se verifique uma

curiosa ausência de harmonia. Dá a impressão de ter sido atraído por Platão durante algum

tempo, ao ponto de admitir a comunidade de mulheres. Em contrapartida, a sociedade utópica

assenta na família e numa moral muito tradicional que, no fundo, nada tem de utópico. A

república ideal da Utopia alicerça-se inteiramente sobre a célula familiar e sobre uma conceção

patriarcal. Alarga esta autoridade de maneira a que tudo se regule e ordene no seio da família e

que só se apele à justiça pública quando a enormidade do crime exija o recurso ao Estado. Não

condena absolutamente o divórcio nem, ao que parece, o casamento do padres. Em

contrapartida, é muito severo quanto ao adultério, o único crime privado que deve ser punido

com a morte. A partir destas premissas familiares, seria muito fácil compreender que Thomas

More edificasse uma defesa da propriedade e procurasse tornar proprietários todos os seus

utopianos. Mas, a posição de More é completamente diferente. O povo da utopia é um povo de

amigos; ora, segundo a fórmula platónica, «entre amigos tudo deve ser comum». Aquilo que

Platão considerava um ideal entre amigos deve sê-lo, a fortiori, entre cristãos. A fraternidade

cristã deve levar à comunidade cristã. Por esse motivo abandona a posição tradicional dos

Aristotélicos e dos escolásticos, para quem a propriedade individual era um elemento capital da

liberdade, preferindo-lhe as teses de A República. «Preto plena justiça a Platão, e já não me

surpreende que ele tenha desdenhado fazer leis para os povos que recusam a comunidade de

bens. Aquele grande génio tinha previsto facilmente que o único meio para organizar a felicidade

pública era a aplicação do princípio da igualdade. Ora, a igualdade é impossível num Estado onde

a posse é solitária e absoluta, pois cada um arroga-se aí de diversos títulos e direitos para chamar

a si o mais que pode, e a riqueza nacional, por um maior que seja, acaba por cair na posse de um

pequeno número de indivíduos que só deixam aos outros indigência e miséria… O único meio de

distribuir os bens com igualdade e justiça, e de constituir a felicidade do género humano, é a

abolição da propriedade.» De modo a satisfazer o seu ideal de amizade e fraternidade, Thomas

More imagina então um sistema comunitário em que todos trabalham e cada um trabalha pouco.

Só ficam isentas da obrigação do trabalho quinhentas pessoas que, após seleção, se entregam à

metafísica. Naturalmente, a partir do momento em que existe comunidade de bens, a vida tem

de ser severamente regulamentada, a fim de evitar abusos. Sobre a cidade da Utopia, onde a

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História das Ideias Políticas, Marcel Prélot e Georges Lescuyer

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大象城堡

regulamentação da vida atinge especial rigor, e onde reaparecem os escravos, na forma de

condenados ou prisioneiros de guerra, exerce-se uma autoridade que pode ser classificada de

“democrática”, apesar de ser amplamente eletiva. As famílias, em grupos de trinta, elegem

anualmente um chefe, designado por Filarco ou Sifogrante. Dez Sifograntes, tendo sob a sua

alçada 300 famílias, designam anualmente um Protofilarco ou Traníboro. Os 200 traníboros

constituem Senado. Trata-se, pois, de um sistema escalonado: chefes de família, chefes de grupo

e seus representantes; estes constituem o Senado que, de uma lista de quatro cidadãos

apresentada pelo povo, escolhe um Adamo, ou príncipe dos utopianos. Para evitar que os Filarcos

se constituam em oligarquia podem ser renovados todos os anos. Dois filarcos acompanham à

vez os debates do Senado. Além disso, todos os Filarcos podem reunir-se em comissão. Se od

acontecimentos o exigirem, interrogam os chefes de família. Eventualmente, poderá haver

consulta popular. Este conjunto, que forma um regime piramidal, é de estrutura democrática,

embora atenuada pela existência de um poder espiritual. Há sacerdotes eleitos, que presidem às

coisas divinas, mas tratam também de coisas humanas e desempenham as funções que, na

Antiguidade, cabiam aos censores da Cidade. Zelam pelos bons costumes e podem excluir um

utopiano da comunidade religiosa, o que constitui a maior desgraça. Os sacerdotes, tal como os

Traníboros e o Adam, são escolhidos entre os letrados, que não constituem uma casta ou classe

propriamente dita, uma vez que o seu recrutamento é aberto e há sempre a possibilidade de

devolver à procedência aquele que anda a marcar passo na metafísica. Finalmente, uma

aristocracia por seleção serve de estufa às funções religiosas e públicas. De democrático, o regime

torna-se aristocrático, devido à exigência de recrutamento no quadro dos letrados. A eleição é

livre, sem manobras e sem candidatura. Enfim, as leis são simples, fáceis de compreender e de

aplicar. «De resto na Utopia todos são doutores em direito, pois as leis são em muito pequeno

número e a sua interpretação mais tosca e mais natural é aceite como a mais razoável e justa».

A Utopia como método político: o êxito da obra foi enorme. Atualmente há quem pense

que a Utopia se não é a melhor das Repúblicas, é a melhor das Utopias». Muitas das razões da

popularidade de outrora surpreendem-nos, mas a amplitude do contributo do autor é digna de

apreço. Em primeiro lugar, foi criada um palavra nova, que se tornará e permanecerá corrente.

Poder-se-ia muito simplesmente ter traduzido “Utopia” por “A ilha Inencontrável”. De facto, o

termo utopia tornou-se substantivo comum. Depois, sob o céu da ficção, Thomas More dotou a

política de subtis instrumentos de discussão e prospeção. As características essenciais do método

utópico consistem em dourar alhures, com um pressuposto otimista, tudo aquilo que por cá se

deplora, com um pressuposto crítico, cético ou pessimista. Têm todos uma só ideia: fugir ao

imediato, ao quotidiano, ao limitado, ao repetido. Não há política sem imaginação. Esta é

necessária para pressentir o futuro, para superar o real. Não há obra de doutrina sem alguma

antecipação e, por conseguinte, sem um grão de utopia. Os utopistas são os que, por princípio,

deixam à rédea solta ou, mais exatamente, sistematizam aquilo que imaginam dando-lhe a

consistência do real.

OS REFORMADORES E OS REFORMADOS

Martinho Lutero

Dos humanistas católicos aos reformadores protestantes: segundo a tradição, é costume

chamar a Thomas More e ao seu migo Erasmo “humanistas cristãos”. Mas em breve a palavra

“cristãos” passará a designar os que se separam de Roma. Ora, Erasmo, embora pregue a filosofia

de Cristo, a religião do espírito, embora reprove vivamente o relaxamento dos costumes e a

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materialização de certas atividades eclesiásticas, embora seja a favor de uma disciplina mais

liberal, não deve ser considerado, como alguns desejariam, um percursor do liberalismo, e ainda

menos do livre pensamento. É essencial compreender que, com Erasmo e More, as críticas se

movem exclusivamente no interior do catolicismo romano. Erasmo acha que a condição prévia

absolutamente necessária ao triunfo da filosofia de Cristo é «permanecer no seio da Igreja,

trabalhá-la constantemente a partir de dentro, mas sem brutalidade nem tumulto – e nunca se

apartar ou dela se deixar expulsar por meio de uma rutura violenta…» A atitude de More é

idêntica. Esta razão por que é necessário fazer uma clara distinção, na história das ideias políticas,

entre os humanistas cristãos e aqueles que vão aceitar, se não provocar, a rutura: entre os

reformadores e os reformados.

Etapas de uma rutura: Lutero nasceu em 1483, em Eisleben, na Turíngia, oriundo de uma

família de mineiros pobres. Os seus biógrafos insistiram com frequência no que a sua juventude

teve de triste e infeliz. Apesar disso, conseguiu estudar em Erfurt. Depois, na sequência de

estranhos acidentes e do risco de ser fulminado por um raio durante uma tempestade, professa

nos Agostinhos e em 1507 é ordenado sacerdote. Muito em breve se torna conhecido e passa a

ser professor na nova Universidade de Wittenberga. É ai que recebe o choque da famosa “venda”

de indulgências. Nessa altura, em 1517, mostra o seu desacordo, se não com Roma, pelo menos

com as práticas de Roma, em 95 proposições que afixa à entrada da igreja do Castelo. Em 1520

rompe definitivamente. No dia de Natal, queima a bula do Papa. Banido do Império pela Dieta de

Worms, é obrigado a esconder-se em Wartburg, nos arredores de Eisenach, depois de ter sido

misteriosamente raptado por quatro cavaleiros. Quando a reforma conquista parte da Alemanha,

recupera a liberdade de movimentos. No refúgio tinha traduzido a Biblia, produzindo assim um

dos primeiros grandes textos religiosos em língua alemã. Um pouco contra a sua vontade, nasceu

a doutrina nova, designada por luteranismo a partir do seu nome, mas cuja sistematização, em A

Confissão de Augsburgo. Morre em 1546, ao mesmo tempo triunfante e desesperado. Triunfante

porque a nova Igreja, por ele instituída, está bem implantada na Alemanha; desesperado porque

o seu temperamento angustiado não lhe consente repouso e porque a Igreja que se constituiu

está, sem dúvida, muito longe da que tinha sonhado.

Os escritos políticos: a obra de Lutero é muito extensa. Ao todo, uma verdadeira

biblioteca, a que se juntou outra ainda mais vasta, constituída por tudo oque foi escrito a favor e

de contra Lutero. Nesta massa de escritos, destacar o contributo do escritor propriamente

político não é muito fácil. Pelo menos três causas dificultam a compreensão do seu pensamento

nesta matéria. A primeira é que Lutero não aborda diretamente o problema político. Lutero não

aborda o problema político na perspetiva das relações entre Igreja e Estado. Este só lhe interessa

na medida em que é uma consequência prática das suas posições espirituais. A segunda

dificuldade ao conhecimento do pensamento luterano em matéria política é a ausência de síntese

e, a fortiori, de sistema. Não é um Doutor, nem um teólogo, nem um profeta». O terceiro

obstáculo decorre imediatamente do anterior. Lutero é também um polemista e exprime-se em

textos que, mais do que tratados, são panfletos. Encontramos nele todo o ardor da disputa,

acompanhado do verdor da língua e do estilo. É evidente que lhes junta a ciência, o trabalho e a

erudição, mas distinguir entre o que é contingente e o que é duradouro é tão difícil como

diferenciar o que é político do que o não é. Contudo, Lutero é protagonista do poder civil. De um

modo indireto, mas não menos eficaz, acabará praticamente por exaltar o Príncipe e o poder civil.

«Outrora o Papa e os clérigos eram tudo, dominavam tudo, dirigiam tudo, como Deus no mundo,

e o poder civil jazia nas trevas, oprimido e desconhecido. Tenho a glória e a honra pela graça de

Deus – agrade ou não a Satanás e às suas “escamas” (sequazes) – que desde o tempo dos

Apóstolos, nenhum doutor, escritor, jurista ou teólogo tenha tão magnifica e claramente

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História das Ideias Políticas, Marcel Prélot e Georges Lescuyer

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instruído a consciência dos poderes seculares, nem tão bem os tenha consolado.» Se, ao exprimir-

se assim, peca contra a modéstia, não se pode dizer que peque contra a verdade. Com efeito, o

poder civil foi por ele tão bem instruído da sua importância e de tal maneira «consolado» que

acabou por tornar-se uma causa de aflição para outros.

A exaltação do poder civil: quando se gaba de ter dado à autoridade civil o sentimento

do seu ofício chega lá por duas vias: uma via direta que é a exaltação do poder civil, e uma via

indireta, que é a liquidação do poder religioso ou eclesiástico em matéria civil ou mista. O

primeiro itinerário vem indicado, designadamente, num ópusculo de começos de 1523, Da

autoridade Secular, e até que ponto se lhe deve obediência. Como todos os escritores cristãos,

Lutero faz referência à Biblia, à epístola de São Paulo aos Romanos e à de São Pedro, em que se

afirma o dever de obediência dos súbditos ao príncipe. Já os comentários são próprios dele e

trazem a marca da sua conceção do mundo terrestre e do mundo celeste. Entende que a

autoridade é necessária, já que os filhos de Adão se separaram em duas partes, aliás, muito

desiguais: os que pertencem ao Reino de Deus e os que Têm o Espirito Santo no coração, por isso

o seu comportamento não pode deixar de ser virtuoso Mas há outros que estão votados ao

pecado. A visão de Lutero é, à sua maneira, tão pessimista como a de Maquiavel. O mundo em

que vivemos «é um albergue onde o Diabo manda juntamente com a patroa». A corrupção é

natural neste mundo, por ser consequência do pecado original. Por sua vez, gera como

consequência a existência do poder. Um povo de santos, um povo de eleitos, não precisaria de

autoridade. Viveria na anarquia, sem autoridade. Pelo contrário, o estado de pecado, em que se

rebola a maior parte da humanidade, exige que um Príncipe imponha ao mal, como faz o domador

ao animal selvagem e mau. Neste ponto, a conceção de Lutero opõe-se claramente à dos tomistas.

Também para eles, o Estado ou o Príncipe são uma necessidade natural, mas em São Tomás a

coerção fica em segundo plano; o poder político é um poder de direção que visa o bem comum

temporal. Para Lutero, o Estado é essencialmente um poder de repressão. Num mundo

corrompido, é inevitável um elemento coercivo. Este deve estar bem armado e, em caso de

necessidade, bater com força. É por isso que Lutero prefere falar do “gládio”, e não do Estado ou

do Príncipe.

O gládio único: A Idade Média usou constantemente a imagem simbólica dos “dois

gládios”. Para Lutero já só há um, que está inteiramente nas mãos do poder civil. E é no gládio,

instrumento de repressão e castigo, que, se resume o poder. O uso da força, o uso da espada,

parece-lhe absolutamente indispensável. Pode até dizer-se que não lhe causa apenas um deleite

sombrio, mas um certo entusiasmo na maneira de encarar o papel do verdugo. «Archeiros,

verdugos, juízes, advogados são os instrumentos da força e do gládio.» Longe de condenar a sua

ação, é preciso exaltá-la, contra os pecadores. Há uma espécie de cadeia infinita de pecados e

sanções, de sanções e pecados: o crime atrai o castigo, o mal atrai o arrependimento. Se o

Príncipe é um tirano, se é cruel e sanguinário, a culpa é do povo. Os homens têm os príncipes que

merecem. O Príncipe é o instrumento das vinganças divinas não só junto do seu povo, mas

também junto dos vizinhos com quem entra em guerra. Crimes coletivos exigem sanções

coletivas. Considera a guerra divina. Lutero faz dela uma punição divina que deve ser conduzida

com vigor, se não com ferocidade. Os valetes que saqueiam Roma mais não fazem que castigar a

grande prostituta pela sua luxúria e cupidez.

A desinstitucionalização do poder religioso: Ministro do castigo, o Príncipe estende o seu

domínio aos corpos e bens. Em contrapartida Lutero reclama a liberdade da alma. Sobre a alma,

Deus não pode nem quer deixar reinar ninguém além dele. E o reformador dirige-se ironicamente

aos senhores laicos e eclesiásticos: «Os nossos donzéis, príncipes e bispos, devem saber quão

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História das Ideias Políticas, Marcel Prélot e Georges Lescuyer

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loucos são ao tentarem obrigar as pessoas a acreditar forçar ninguém a acreditar. Por isso, Lutero

clama: os sentimentos não passam na alfândega. Ao proclamar a rigorosa independência das

almas, Lutero deveria afirmar a impossibilidade de uma Igreja de Estado; no entanto, o

luteranismo levará à sua formação. O que ele combate com especial vigor na Igreja católica é um

poder espiritual organizado segundo o protótipo temporal. A sua obra consiste numa espécie de

sublimação do poder religioso, numa desencarnação deste. São numerosas as passagens do

Evangelho que pode invocar a seu favor. «O meu reino não é deste mundo», repete

frequentemente Cristo aos discípulos, que não compreende por aí além o que quer ele dizer. Mas

Lutero compreendeu A Igreja não pode ser outra coisa senão uma sociedade exclusivamente

espiritual, um «Corpo Místico» segundo a teologia pauliana. Não deve encarnar, sob pena de

modificar a sua natureza ao formar uma sociedade humana hierarquizada. Por aqui se vê o

enorme alcance de uma posição que, no centro, nega a construção medieval e repudia, como

algo contra a corrente, tudo o que a Idade Média pôde erigir como sua obra predileta, a

institucionalização da Igreja, começada à saída das catacumbas e prosseguida com êxito após a

pax Constantini. A esta igreja visível, organizada e hierarquizada, que exerce atribuições públicas

de caráter estatal em várias matérias, a teologia luterana contrapõe uma unidade puramente

espiritual e mística, «um reino do espírito que não pode ter outro chefe além de Cristo, que não

pode ter um soberano de carne, nem príncipes exteriores e formais». Assim, para Lutero, a

sociedade religiosa opõe-se ao Estado, acerca do qual as suas ideias são, aliás, bastante

incompletas. Ela é, por essência, uma sociedade não organizada e não autoritária, onde todo os

fiéis podem ser padres e o sacerdócio é universal. «Os cristão não podem conhecer outro

superiores além de Cristo», e a Igreja é coisa exclusiva de Deus. Nestas condições, acaba por

desaparecer como organização social.

A missão dos Príncipes: mas Lutero não pode impedir que o cristão entre em contacto

com as coisas da cidade. Se os crentes se apresentam à porta da cidade, nessa altura têm de

aceitar as suas leis. Existe, assim, ao lado dessa igreja, sem organização, uma cristandade exterior

que é como que o reverso, e que necessita de uma estrutura. A hierarquia católica conseguira-o:

organizara a cristandade exterior, que era a administração da Igreja. Para Lutero, tal construção

foi um trabalho de corrupção. A Igreja incumbiu-se de funções secundárias que corromperam a

pureza da sua missão. Agora, não se devia recair no mesmo erro através de uma construção nova

e que seja, então, confiada à organização terrestre já existente. Aliás, os Príncipes são

normalmente chamados a esta missão, pois se a Igreja é uma sociedade de almas, sem hierarquia,

não é possível recusar-lhes o direito de fazerem parte dela como os demais cristãos No entanto,

ocupam uma posição preponderante. Através de uma interpretação das declarações de São Paulo

sobre a variedade de graças e funções na Igreja, Lutero entende que os Príncipes estão bem

qualificados para assumir a direção dos assuntos no plano humano. Sendo assim, deve ser-lhes

entregue a organização da vida exterior da Igreja. Esta atitude adquire especial nitidez a propósito

da questão da visita às Igrejas. Por uma preocupação de pureza, a parcela terrestre da atividade

da Igreja é subtraída à sua gestão. Se fosse ela a encarregar-se disso, tornaria a cair no erro

medieval. Por sorte, tem a possibilidade de recorrer aos Príncipes, os quais gozarão de plena

competência quanto às manifestações exteriores do espiritual. «Não há que duvidar do dever,

que cabe aos Príncipes, de punir os crimes públicos, as ofensas públicas, as blasfémias notórias.»

A partir do momento em que uma manifestação do espiritual se torna exterior, cai sob a alçada

do Príncipe. «A autoridade não tem que punir a opinião, mas a autoridade combate a

publicidade.» «O dever da autoridade secular é fazer com que não haja divisão, perturbação ou

revolta entre os súbditos.» Se o Príncipe deve impedir a divisão, perturbação e revolta entre os

súbditos, a partir do momento em que haja duas doutrinas em confronto, terá competência para

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História das Ideias Políticas, Marcel Prélot e Georges Lescuyer

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eliminar uma delas, a fim de evitar a perturbação e pôr termo à divisão. E assim, passo a passo,

se chega à exclusividade do poder do Estado sobre as coisas religiosas, desde que estas adquiram

um aspeto exterior. Ao penetrarem na cidade terrestre, as consciências “pagam taxa alfandegária”

e devem submeter-se exteriormente. Sem dúvida, permanecem livres no seu foro íntimo. Mas

não há liberdade de consciência no sentido jurídico do termo, já que o Príncipe, para prevenir a

divisão, para travar antecipadamente a sedição, pode proibir a expressão de opiniões dissidentes.

É algo que se afigura especialmente grave. A liberdade humana nasceu o dia em que as coisas de

César e as coisas de Deus foram separadas, no dia em que o totalitarismo antigo foi quebrado

pela palavra de Cristo. Ora, Lutero abandona deliberadamente esta grande conquista do

Cristianismo. Em suma, dá a César tudo o que é deste mundo, sem reservar as coisas de Deus;

por causa desse gesto, a sua doutrina põe termo, não só aos excessos do sacerdotalismo, mas

também ao dualismo Igreja-Estado, conceção fundamental do catolicismo romano.

Preferências políticas de Lutero: uma vez afastada a divisão maior entre os poderes é

descabido considerar divisões menores no exercício do poder político. O monarca luterano,

agente executor das vinganças divinas, não aceita que lhe imponham limites. Ao transpor os que

lhe são ditados por uma consciência cristã, está a garantir a repressão do pecado. Por conseguinte,

ainda que a sua conduta, em si, seja condenável, não o é no plano das consequências, justificadas

pelo seu papel quanto à punição das faltas à lei divina. Lutero, apesar de partidário de um poder

forte e monocrático, é adverso aos reis. Discute com Henrique VIII de Inglaterra e Carlos V é seu

inimigo declarado. No entanto, seria errado fazer de Lutero um campeão das teorias

aristocráticas, como em breve o serão os calvinistas. Houve quem as comparasse à sua teoria da

graça. Se a predestinação divide os homens em eleitos e réprobos, os Príncipes serão duplamente

predestinados. Privilegiados por nascimento, conhecerão também as vantagens da fortuna

temporal. Na realidade, o regime que mais agrada a Lutero não é um regime aristocrático no

sentido de uma oligarquia de nascimento. Ele aspira a uma pluralidade de monarquias, a um

particularismos do Príncipe. É arrastado pelo seu ódio ao universalismo medieval e também pelo

facto de terem sido os Príncipes a garantir o êxito da religião formada. Já a sua hostilidade a um

governo do povo é evidente. Quando da revolta dos anabatistas e por ocasião das “jacqueries”

que ensanguentam a Alemanha e parte da Europa Ocidental, reage violentamente. Nenhum

castigo é suficientemente grande para estes tristes indivíduos: «Caros senhores, livrai-nos, ajudai-

nos; salvai-nos; exterminai e que aquele que tem o poder, atue», proclama contra as hordas

homicidas e saqueadores de campónios. «O poder civil, ministério da cólera divina sobre os

maus… não deve ser misericordioso… pois a sua insígnia não é um rosário ou uma flor de amor,

mas uma espada nua, símbolo de cólera, rigor e castigo.» Nenhuma revolta é justa qualquer que

seja o motivo, pois no fim de contas a rebelião é sempre dos homens contra Deus, já que o Senhor

disse «a vingança pertence-me». O mesmo é dizer que a “jacquerie” é um crime de lesa

majestade divina; longe vai o tempo em que «a autoridade secular jazia nas trevas, oprimida e

ignorada». Se formos além destes factos circunstanciais, verificamos que, o fundo, ele ignora o

Estado como comunidade de cidadãos. A sua conceção do Estado é muito parcelar e muito parcial.

Tudo o que ele conhece é a autoridade de um lado e os súbditos do outro. Baseia-se também na

atitude dos primeiros cristãos, que têm pela frente a autoridade externa de César. Uma vez mais,

abandona tudo o que constituíra o precioso contributo da Idade Média e reduz o Estado ao poder

e o poder à repressão. Dos atributos dos príncipes medievais, a mão da justiça e o gládio, só retém

o segundo.

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大象城堡

João Calvino

De Lutero a Calvino: Jean Chauvin, chamado mais tarde Calvinus (109-1575), não passa,

para alguns, de um adaptador feliz de Lutero, um francês que soube traduzir com clareza a

torrente de ideias confusas e profusas do reformador alemão. Na verdade, há diferenças de

tempo, de meio, de temperamento e de estilo, que certamente influem nos desfasamentos entre

as respetivas ideias políticas. Calvino pertence a outra geração. Desenvolve as suas ideias

religiosas no âmbito de uma sociedade política onde o processo de instauração do regime de

Estado já vai bastante adiantado. A estrutura do Sacro Império Romano-Germânico era fraca, tão

fraca que, na altura em que Carlos V se encontrava no auge da sua glória, bastaram quatro

cavaleiros do Eleitor de Saxe para que Lutero lhe escapasse. Ao invés, Calvino acha-se perante a

monarquia francesa, que nos reinados de Francisco I e Henrique II adquire as formas e forças de

um Estado moderno. Esse Estado soube resolver as suas dificuldades com Roma. Lutero é um

planfletário fogoso que se exprime com veemência e se entrega constantemente a ataques

sociais; possui um temperamento de publicista ou de jornalista. Calvino é jurista de formação.

Estudou na Faculdade de Direito de Orleães, onde recebeu lições notáveis de que nunca se

afastará. Ao passo que Lutero se dispersa numa multitude de escritos. Calvino constrói a

Instituição Cristã, livro excecional. O plano segue uma sábia gradação onde cada capítulo,

logicamente ordenado, é também logicamente enquadrado, coisa muito diferente do caos de

prosa em que se debate Lutero.

A Instituição Cristã: a obra é pela publicada pela primeira vez em Latim, em 1536. Calvino

tem apenas 27 anos, acaba de concluir os estudos e de repente apresenta uma exposição se

falhas do pensamento protestante. Na primeira edição, havia um capítulo, o sexto, dedicado à

liberdade cristã, ao poder eclesiástico e à administração civil. De acordo com os usos, Calvino

dirige o livro a um Príncipe. A dedicatória a Francisco I está impregnada de submissão ao Príncipe

legítimo, mas, ao mesmo tempo, isenta daquela espécie de servilismo tão frequente neste género

de escritos: «Ao mui alto, mui poderoso e mui ilustre Príncipe Francisco, Rei de França, mui cristão,

seu Príncipe e soberano senhor, João Calvino»; esta maneira de saudar um Rei é já a de um

homem livre e quase já de um cidadão. «Paz e saúde e Deus, que o Senhor Rei dos Reis queira

assentar o teu trono em justiça e a tua sede em equidade, mui forte e mui ilustre Rei.» A

legitimidade da autoridade real é assim reconhecida. Os Reformados são bons súbditos e só

pedem que os deixem continuar a sê-lo.

Autoridade temporal e liberdade cristã: o equilíbrio entre a autoridade temporal e a

liberdade cristã resulta da distinção previamente feita por Calvino, entre as coisas espirituais

conhecidas pela graça e pelas Escrituras e as coisas terrestres conhecidas pelo entendimento

humano. Na primeira categoria desta encontram-se a doutrina política, depois a maneira de bem

governar a casa e as artes mecânicas, por fim a filosofia e as disciplinas liberais. As realidades

terrestres estão sujeitas à Lei de Deus. O mandamento invocado é o quarto: «Honrarás pai e

mãe.» «É preciso que se faça o mesmo juízo acerca dos nossos príncipes, senhores e superiores.»

Retoma assim o axioma pauliano, «todo o poder vem de Deus», mas junta-lhe uma restrição que

posteriormente terá quase tanta importância como o princípio em si: o poder só existe para

conduzir os homens segundo Deus. Ora, para Calvino já não há Igreja nem cristandade. As

consciências resgatadas pelo sangue de Cristo estão doravante libertas e isentas do poder de

qualquer homem. No entanto, depois de distinguir duas ordens no mundo, ou dois domínios no

homem, um dependente da Bíblia, palavra de Deus, e o outro da ordem das sociedades, Calvino

admite que a liberdade espiritual pode perfeitamente coexistir com a servidão civil. Mas não

extrai daí qualquer condenação da ação social e política. Neste ponto, as suas posições são muito

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História das Ideias Políticas, Marcel Prélot e Georges Lescuyer

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大象城堡

diferentes das de Lutero, reconhece a humildade por fins da sociedade civil. Mas esta

mediocridade não a torna desinteressante para os cristãos. Do mesmo modo, no plano

económico, o calvinismo não desprezará de modo nenhum os negócios. Até se dedicará à

indústria, e o êxito obtido neste domínio será geralmente entendido como um sinal da bênção

divina. A vida pública pode ser considerada necessária e válida em si. Ao analisá-la encontra dois

três elementos:

1. O magistrado é a autoridade fundamentada em Deus, não só pelo Novo Testamento, a

partir da declarações de Cristo e dos apóstolos Pedro e Paulo, mas por toda a Bíblia.

Porém, em relação ao Magistrado, preconiza o lealismo do povo;

2. A lei é por ele definida como o “magistrado mudo”. No entanto, o valor da lei não vem

da autoridade que a promulga: vem da sua conformidade com a vontade razoável de

Deus, que deve ser presumida. Uma vez mais apela ao lealismo, agora temperado por

uma noção de equidade que ganhará uma importância considerável com os seus

sucessores;

3. O povo, sujeito ao magistrado e à lei, é o elemento passivo. Ordena-lhe que obedeça,

não só por temor, mas por consciência e por amor. O Príncipe é, por si, benevolente, e

tudo o que há a fazer no caso de o Rei ser injusto e mal informado, é apelar ao Rei justo

e bem informado.

Retorna a cada instante ao lealismo. Leva-o ao extremo ao proclamar o dever de obediência aos

magistrados, ainda que maus, pois é de presumir que o seu comportamento é bom. Classifica-o

então de “lealismo heróico”.

A Cidade-Igreja: é preciso não ignorar que a instituição genebrina da Cidade-Igreja é tão

importante para Calvino como a Instituição Cristã. No seu perímetro vai gerar-se uma confusão

que não fazia prever: a amálgama entre sociedade política e comunidade religiosa. “Cidade-

Igreja”: imediatamente vem à ideia o regime teocrático de que tantas vezes se fala a propósito

de Genebra. Por um lado, Calvino não é um grão-sacerdote; por outro, não detém qualquer poder

civil. Bibliocracia é a palavra certa. É a palavra de Deus, inscrita na Bíblia – mas traduzida,

comentada e explicada por Calvino – que rege e propulsa toda a vida da Cidade. A princípio, as

instituições ético-jurídicas e as inspirações suscitadas pela leitura de Livro Santo influenciam e

galvanizam de algum modo o corpo pastoral. Depois, por meio do consistório, penetram toda a

cidade. O consistório, um corpo original, é formado por Doutores, quer dizer, por Pastores, e

Antigos, ou seja, notáveis. Os seus poderes são extremamente vastos: prepara regulamentos, zela

pelo culto, estabelece as orações e os jejuns públicos, deteta e sanciona as faltas à unidade de fé

imposta a todos os genebrinos. Para levar a cabo estas tarefas, que lhe dão um direito de controlo

em toda a parte, dispõe de meios poderosos, um dos quais é a recusa da Santa Ceia. Aquele que

não lhe é admitido duas vezes seguidas deixa de pertencer à Igreja, logo à cidade. Os seus órgãos

são democráticos na forma e aristocráticos no fundo. Além disso, à exceção do consistório, não

têm real importância, uma vez que Calvino, pelo facto de interpretar a Bíblia, dirige toda a Cidade.

Há uma espécie de fluido magnético que parte do Profeta e anima o conjunto da magistratura e

do povo. Se alguém entra em desacordo com ele, muito rapidamente é desautorizado pelo povo

em conjunto. A realização da Cidade-Igreja tem grande importância como facto histórico, mas

ainda porque Calvino a apresenta como modelo. Erige-se como uma espécie de «luminária a que

todas as Igrejas erguidas na reforma cristã podem vir buscar exemplo. Também serve de

testemunho aos infiéis da nossa ordem e religião».

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História das Ideias Políticas, Marcel Prélot e Georges Lescuyer

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大象城堡

AS POLÍTICAS CATÓLICAS

A Escola: Vitória e Suarez

Personalidade e originalidade de Vitória: Vitória e Suarez representam a tradição

escolástica no que esta tem de melhor, ao mesmo tempo que constituem glórias da Escola

espanhola de direito natural. Tendo nascido por volta de 1480, na cidade de que adotou o nome,

Francisco de Vitória recebeu formação intelectual francesa. Viveu 16 anos em Paris; foi aluno e

depois mestre no colégio de Santiago. Regressou a Salamanca, onde se tornou professor da

“Cátedra primária” da Teologia. Devido aos estudos franceses, ao apego a Erasmo, às viagens e

contactos pessoais, Vitória revela-se muito aberto aos problemas do seu tempo, aliando com

felicidade a cultura humanista ao pensamento escolástico. Reconduz este às suas origens e aos

seus verdadeiros mestres, incluindo Aristóteles e São Tomás de Aquino, que muitos tinham

deixado de estudar diretamente. Deste modo, substitui a leitura do Livro das Sentenças pela

leitura da Súmula. Por outro lado, acompanha a atualidade. Também pelo método de exposição,

Vitória é um inovador. Os seus antecessores, religiosos ou padres como ele próprio, tendiam a

comportar-se na cátedra de uma universidade quase da mesma maneira como se comportavam

no púlpito da Igreja, proferindo sermões ou homilias. Vitória, dotado de um espírito mais rigoroso,

introduziu o regime dos ditados, que os estudantes de Salamanca acolheram com enorme

progresso. As suas Relectiones Theologiae foram elaboradas com o máximo cuidado, num latim

de humanista que confere à prosa uma medida igual de firmeza e eloquência.

Continuação do Tomismo: Vitória não dá a impressão de grande novidade em relação a

São Tomás de Aquino, importante fonte de inspiração de Vitória. Aí se encontra a afirmação,

proveniente de Aquino, segundo a qual o poder de impor leis a outro homem não pertence a

nenhum homem, e de que os homens são naturalmente livres de atribuir o poder como bem

entendem. Neste aspeto, os dois teólogos fazem coincidir exatamente o nascimento de Estado e

do poder atualizado sem conceberem, ao contrário de Suarez, um período de democracia

primitiva em que o povo, dono do poder, teria podido retê-lo à sua vontade. Apesar disso, não

esconde as suas preferências. Contesta que haja mais liberdades nas repúblicas do que nas

monarquias. Por outro lado, insiste nos argumentos habituais aos escolásticos, o que equivale a

dizer que é favorável à monarquia, única maneira de evitar que a unidade do poder fique à mercê

de dissensões e partilhas entre o governo. No entanto, Vitória entende que a decisão sobre a

forma de poder deve ser maioritária. Vai ao ponto de construir uma teoria da maioria, em que

rejeita a obrigação de unanimidade. Recusa também as decisões que o soberano tomou sem

conselho, designadamente sobre a guerra. Embora ache perigoso que se preste contas dos

assuntos públicos a todo o povo, entende que só com pleno conhecimento de causa, e não sob

pressão, o Príncipe deve tomar uma decisão que poderá vir a ser funesta a tanta gente.

Suarez e a perfeição escolástica: Este jesuíta, espanhol, é um verdadeiro escritor político.

Em São Tomás de Aquino, as tomadas de posição não tinham ultrapassado o nível fragmentário.

Os argumentos teológicos e filosóficos continuavam a entrecruzar-se e a misturar-se

incessantemente. Só se diferenciam e ordenam em Suarez, que, longe de se limitar a enunciados

escolares, como o são geralmente os da Escola, participa a título pessoal nas grandes

controvérsias. Nascido em granada, em 1548, Suarez começa por ser jurista e jurista vai continuar

até ao resto da sua via. Ao tornar-se jesuíta, com entusiasmo mitigado, transformar-se-á numa

das glórias da Companhia. Com uma longa atividade de professor, nomeadamente em Salamanca

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História das Ideias Políticas, Marcel Prélot e Georges Lescuyer

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大象城堡

e Roma, acabará por se retirar para Lisboa. Em 1617, este grande trabalhador alcança finalmente

o repouso que tanto merecia, ao proferir a frase: «Não sabia que era tão bom morrer.» O Papa

Benedito XIV chamou-lhe Doutor eximius, douotor eminente. Segundo Bossuet, vemos nele toda

a Escola. Suarez é o autor de um importante Tractatus de legibus ac Deo legislatore, em que

expõe a sua conceção do Estado na perspetiva da lei. A teoria por ele formulada é muito bem

acolhida e contém já certas observações sociológicas.

O poder segundo Suarez: para Suarez, o Estado é uma «comunidade perfeita». O critério

seguido é a capacidade do Estado para possuir um governo político. A ideia aristotélica renasce

aqui em toda a sua pureza. Necessário à sociedade perfeita, o poder que a governa é, como a

própria sociedade, de direito natural. De acordo com a natureza das coisas esse poder não reside

em nenhum homem em particular, mas sim nos homens em conjunto. Os homens nascem

naturalmente livres; nenhum deles possui naturalmente direito sobre os outros. A jurisdição

estabelecida sobre outrem vai decorrer apenas do direito positivo. Só este institui a jurisdição do

homem sobre o homem. Deste modo, Suarez demarca-se dos teólogos que baseavam a primeira

autoridade no principado de Adão. Com muita clareza e pertinência, explica que Adão recebeu o

poder de chefe de família, mas não de chefe de Estado. Logo, o poder político só começa no

momento em que, ultrapassado o estádio familiar, se atinge o estádio cívico, com várias famílias

a organizarem-se em comunidade perfeita. O poder, que não reside no homem em particular,

reside nos homens considerados coletivamente. Aqui, Suarez distingue dois tipos de ordens, uma

ordem de justaposição, que é puramente material, e uma ordem moral, que é uma ordem de

integração. Logo que a coletividade é integrada ou deseja sê-lo, deve haver uma cabeça, um chefe,

a zelar pelo seu bem estar e a presidir à sua marcha. A coletividade não é uma universalidade de

homens. Suarez admite como um dado da história, aceite pela razão, a divisão do género humano,

que constitui uma massa demasiado extensa para um só governo. A comunidade política pode

ser perfeita sem ser universal. Assistimos ao abandono do tormento do universal, que marcava a

Idade Média, e à aceitação do facto do Estado nacional. No entanto, os homens só por si, não o

compõem plenamente, pois falta a autoridade que vem de Deus. Suarez retoma o provérbio

paulino, nula potestas nisi a Deo, mas distingue a ação de Deus das preparações humanas. O dom

do poder, feito por Deus aos homens, é uma exigência dos elementos humanamente constituídos.

Suarez insiste vivamente no caráter humano da atribuição deste poder. Suarez, que representa a

tradição autêntica da escolástica, reduz à superfície essa intervenção ao mínimo, ao mesmo

tempo que em profundidade leva ao máximo a sua intensidade. O homem tem um papel

importante na preparação do ascenso ao poder e na colação do poder. Inteiramente provindo de

Deus, como um atributo da natureza, essencial à natureza, o poder só ganha existência efetiva se

os homens estiverem previamente unidos e prontos a formar uma comunidade perfeita. Os

homens preparam o corpo político. Deus informa-o, no sentido escolástico do termo,

concedendo o poder. Em termos de teoria geral do Estado, os homens formam o meio político –

território e população – e determinam também as instituições políticas. Mas, entre Deus e os

homens, o princípio do poder vem de Deus. Se os homens não tiverem estabelecido previamente

a comunidade perfeita, não há sociedade política, não se forma Estado e o poder não é conferido.

Suarez compara o Estado ao lar: «Tal como, no casamento, é necessário o acordo prévio das

vontades para que nasça a sociedade e, a seguir, a autoridade marital.»

O proprietário do poder: por conseguinte, a sociedade, criada pelos homens e informada

pelo poder de origem divina, é depositária inicial do poder. Que pode ela fazer? A coletividade

pode conservar o poder que acaba de surgir no seio da sociedade. Mas a retenção do poder pela

coletividade não é suscetível de durar, quanto mais não seja porque, enquanto coletividade, ela

precisa de uma direção unitária. A coletividade pode transferir o poder como bem entender.

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História das Ideias Políticas, Marcel Prélot e Georges Lescuyer

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大象城堡

Assim sendo, o modo de governo não é direito divino, nem de direito natural, ao contrário do

poder, mas de direito positivo. Todo o poder, detido por um ou por vários, consoante o governo

é monárquico, oligárquico ou democrático, vem imediatamente dos homens. «Nenhum rei,

nenhum monarca, tem ou teve, segundo a lei ordinária, o principado político imediatamente de

Deus, ou por ato de uma instituição divina, mas por meio da vontade ou da instituição humana.»

«Segundo a lei ordinária» opõe-se ao caso extraordinário de Israel, que, de acordo com a Bíblia,

recebeu diretamente os seus chefes das mãos de Deus. Por conseguinte, é sempre indispensável

uma intervenção social para a atribuição da autoridade. Suarez concebe dois modos: um a que

chama contratual, e o outro quase contratual (do texto latino: vel contractu aut quasi contractu

humano), Por quase contrato, o consentimento social é dado tacitamente pouco a pouco, de

acordo com o crescimento gradual do povo. O Estado, sociedade perfeita, nasce do aumento do

número de famílias, que faz com que a autoridade paternal deixe de ser adequada. A submissão

filial prolonga-se, mas transforma-se num consentimento cívico, o qual pode ser dado pelo

costume, através do comportamento dos cidadãos. Neste caso, existe coincidência entre o

nascimento do poder real e o nascimento da sociedade perfeita ou Estado. Por contrato, o

consentimento social é dado através de um ato voluntário e explícito. A uma sociedade já

formada, uma sociedade natural, atribui-se um rei. Há, então, uma espécie de pacto social.

A democracia primitiva: esta transferência não é indispensável. A sociedade poderia

guardar o poder para si. Acaso não admite Suarez a existência de uma democracia primitiva que

seria de instituição natural? E não seria esta, por conseguinte, o regime mais próximo do direito

natural? Neste ponto é muito subtil. Distingue entre um direito natural positivo, que prescreve,

e um direito natural negativo, que se limita a conceder, sem prescrever. A situação encarada não

se opõe ao segundo. Mas, quanto ao primeiro, Suarez conclui que a democracia primitiva nunca

se manteve e que em toda a parte houve uma transferência do poder, por parte da comunidade,

para um rei, para nobres ou para magistrados eleitos.

O interesse prático do problema: se a comunidade pode conservar-se ou transferir poder,

também poderá retomá-lo, guardá-lo ou transferi-lo novamente. Jaime II acusa: «Um poder

revogável a qualquer momento seria limitado e instável.» Com grande pertinência, Suarez

responde que o direito positivo não é o mesmo que nada; cria títulos à manutenção do poder tal

como foi atribuído e direitos à sua transmissão; comporta poderes suficientemente vastos. Assim,

o Príncipe pode exercê-lo em condições de plenitude e duração eficazes e salutares. Os direitos

do rei assentam tanto na equidade natural como no pacto. Por conseguinte, embora por natureza

continue a ser proprietária do poder, a comunidade não pode, a partir do momento em que o

confia, retirá-lo sem razões muito válidas. A primeira dessas razões é a extinção da dinastia. Há

então um direito de retorno, que Suarez considera incontestável. O segundo justo motivo

verifica-se quando o ato de fundação, o pacto mutuo, é violado: quando o rei se torna tirano. Não

condena fortemente o tiranicídio, mas trata-se de um extremo detestável. Em primeiro lugar,

deve recorrer-se à resistência, depois à deposição. E uma e outra obedecem a condições

rigorosas:

A resistência deve ser geral. Não deve ser um fenómeno individual. Deve ser

desencadeada pelos órgãos naturais da nação, segundo parecer, devidamente

publicitado, das cidades e dos grandes;

A resistência e a deposição não devem causar males maiores do que os gerados pela

tirania. Deve haver proporcionalidade entre fins e meios. São de excluir os meios

suscetíveis de criar uma situação pior do que a anterior (cláusula propriamente

escolástica e que figura sempre nos moralistas inspirados em São Tomás);

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História das Ideias Políticas, Marcel Prélot e Georges Lescuyer

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大象城堡

Normalemente, Suarez prefere a estes extremos a reforma do poder. Se o poder se altera ou

deixa de corresponder às circunstâncias iniciais do pacto social, deve ser reformado,

designadamente no sentido de dar à nação uma participação mais alargada e direta nos assuntos

públicos. Suarez prefigura assim os dois modos de transformação da monarquia absoluta no

século XIX: a conceção unilateral do monarca (ou outorga) e o acordo entre as duas partes.

Originalidade e importância das teses escolásticas: em que medida Suarez se aproximou

das teorias da Escola do Direito da Natureza e das Gentes e da teoria de Rousseau? No que

respeita ao contrato social, e ao contrário dos filósofos, Suarez considera que:

A natureza, e não a corrupção da natureza, é a inspiração do pacto;

As leis da moral e da justiça são contemporâneas do próprio homem e não do

pacto social;

O conteúdo da convenção não é a alienação total da pessoa e dos seus direitos à

comunidade, mas tão só o compromisso de seguir uma direção comum nos

limites do bem comum, ditados pela razão.

No que se refere à soberania, Jean-Jaques Rousseau pretende que ela seja inalienável, ao passo

que numerosos teólogos defendem a soberania alienável. No fundo, o pensamento de Suarez é

muito mais matizado. O povo, no ato de transmissão, nunca se despoja completamente do poder.

Abandona o poder em ato, in actu, mas conserva-o em princípio ou em potência, in habitu. De tal

maneira que pode recuperar o poder respeitando o direito positivo. Vai buscar esta análise ao

teólogo anterior, o basco Azpilcueta. De acordo com as suas teses, o povo pode conservar

inicialmente o poder; também pode reavê-lo, se a defesa assim o exigir. Ora, do mesmo modo

que nenhum individuo pode renunciar à sua legitima defesa, a fortiori o povo, que é a coletividade,

não pode renunciar antecipadamente à retomada do poder quando o seu interesse vital é posto

em causa. O povo leigo, depois de ceder aos imperadores e reis, apenas quanto ao uso, o exercício

da jurisdição pode eventualmente regressar ao estado anterior. Assim, os representantes da

Escola professam uma hostilidade de raiz ao absolutismo. No entanto, esta teoria católica do

Estado e do poder, formulada de um modo preciso e firme, não impedirá que em França os

espíritos se desviem para a doutrina do direito divino dos reis. Por muito tempo, esta será

considerada a verdadeira doutrina da Igreja, quando, na realidade é completamente diferente

dela. A oposição voltará a manifestar-se com força no século XIX, quando Leão III estabelecer as

bases de uma democracia de inspiração cristã. Nessa altura, a tese de Suarez consagrará a

legitimidade dos regimes republicanos e democráticos.

O ESTADO SOBERANO

JEAN BODIN

O enigmático Jean Bodin: Jean Bodin nasceu em Angers, em1530. Por certo, foi acima de

tudo um jurista; emitiu opiniões ainda hoje plenas de interesse acerca de problemas de direito

público. Além disso, em 1576 e 1577, como deputado, participou nos estados de Blois, onde

desempenhou um papel importante e tomou posições originais e corajosas sobre vários

problemas. As suas intervenções eram eloquentes, e foi mantendo um diário pormenorizado dos

acontecimentos em que esteve envolvido. Aos acontecimentos exteriores da sua vida, juntou

Bodin a sua volubilidade religiosa e, por conseguinte, política. Numa altura em que o apego a uma

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História das Ideias Políticas, Marcel Prélot e Georges Lescuyer

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determinada confissão domina tudo o resto, as suas convicções parecem ter sido muito

flutuantes.

Um autor original: tais variações repercutem-se sore toda a sua obra. Por isso, do ponto

de vista das doutrinas políticas, é muito difícil situá-lo. Havendo nele um pouco de tudo isto: não

é maquiavélico. Não só mantém as distâncias como se empenha em pôr a descoberto a fraqueza

do seu sistema, relatando o fim miserável do herói maquiavélico, César Bórgia. Ao realismo de

Maquiavel opõe um realismo verdadeiro. Não é aristotélico, e chega a ser um detrator de

Aristóteles. Este e Platão foram “tão despachados” nos discursos políticos, que já não há maneira

de fazer uso deles. No formigar de acontecimentos e no fervilhar de doutrinas, considera que os

Antigos estão muito ultrapassados. Por outro lado, e à custa de objeções mal fundamentadas,

entrega-se a uma crítica muito viva da divisão das formas de governo segundo Aristóteles. Por

fim, através de caminhos tortuosos e complicados, acaba por regressar às conceções aristotélicas.

Na verdade, com uma informação muito vasta que a do Estagirita, em matéria de direito e história

comparados, Bodin situa-se, pelo espírito geral da sua obra, na linha aristotélica. Não é tomista,

no sentido de a sua política não resultar de pressupostos de teologia ou de filosofia moral.

Todavia, o seu pensamento liga-se à moral escolástica. A exemplo dela, acredita numa ordem

geral do mundo e, a exemplo dela, encara a política como uma prudência de mandar em justiça

e equidade. Não é utopista, mas a sua imensa erudição leva-o a recorrer a exemplos exóticos e a

referências de aventura. No entanto, o exotismo não é, para Bodin, nostalgia de um país diferente,

mas apenas o recurso a exemplos históricos em vista a apoiar as suas asserções políticas. O que

caracteriza a sua obra é o método histórico. Baseada na experiência pessoal, a sua política assenta

ainda num conhecimento extremamente vasto dos acontecimentos do passado. «É na História

que reside a melhor parte do direito universal.» diz Bodin.

Os seis livros da República: a publicação dos seis livros da República, em 1576, tinha sido

precedida pela publicação de uma outra obra, em Latim, Methodus ad facilem historiarum

cognitionem, que em certos aspetos é uma espécie de introdução metodológica à República.

Trata-se de uma verdadeira politologia, notável não só em extensão, mas também pela sua bela

ordenação. No Livro I, BOdin estuda a soberania em que se assenta a República. No Livro II,

considera a maneira de exercer a soberania, ou seja, as formas políticas. No Livro III ocupa-se da

estrutura administrativa e social da nação. Nos livros IV e V, trata da sua sociologia, estudando as

diferentes fases da vida desse organismo que é a República, as suas condições de equílibrio, as

relações entre as diversas funções e as condições de funcionamento dos regimes. Acrescenta a

estes pontos uma teoria das revoluções e uma teoria dos climas, que fazem lembrar Aristóteles

e preparam Montesquieu. No Livro Vi, considera as finalidades da vida social, a Monarquia ideal,

e expõe certas questões específicas, no tocante à censura, às finanças e à moeda. Apresenta

deste modo a sua noção de República: É o reto governo de vários lares e daquilo que lhes é comum,

com poder soberano. Esta definição comporta especificações que fazem avançar o conhecimento

do Estado e, ao mesmo tempo, o do pensamento do autor:

O reto governo: Bodin afasta, como não sendo República, qualquer comunidade

que não seja governada “retamente”, quer dizer, moralmente. Os membros

desta não são escravos, nem servos. Chama-lhes «Francos súbditos»,

apresentando a fórmula: «domínio de homens livres». Mas estes homens livres

não têm o direito de rebelião. Devem obedecer à lei, ainda que lhes pareça

injusta:

De vários lares: a família é a célula política. «A República, ou tem origem na

família que se multiplica pouco a pouco, ou estabelece-se de repente a partir de

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História das Ideias Políticas, Marcel Prélot e Georges Lescuyer

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大象城堡

uma multidão agrupada, ou de uma colónia saída de outra República, como um

novo enxame de abelhas, ou como um ramo tirado de um árvore.» Bodin critica

Aristóteles por ter separado “o económico”, no sentido do que diz respeito à casa,

po “político”.

Daquilo que lhes é comum: sem base comunitária, não há república. É preciso

que haja um interesse coletivo a unir os lares;

Com um poder soberano, ou absoluto e perpetuo: o Estado caracteriza-se por um

poder permanente, de determinada natureza, ao qual cabe o último recurso.

Esta majestade suprema não pode ser limitada nem pela duração, nem por

pretensões pontifícias, nem sequer pelas leis; não porque não as haja, mas

porque é ela que faz a lei. De um modo energético diz que a «soberania é o poder

de dar e de quebrar a lei.» Por conseguinte, a soberania reside em primeiro lugar

no poder legislativo.

A soberania, base da classificação das formas políticas: esta conceção da soberania como

o poder que decide em último recurso serve de base a uma classificação das formas políticas, que

vem exposta no Capítulo V do Methodus: «Da constituição das Repúblicas», e no segundo livro

da República, onde se coloca o problema de saber quantas espécies de República existem. A partir

de uma noção rigorosa de soberania, Bodin começa por contestar a existência de regimes mistos

na classificação tradicional de Aristóteles. Afasta «a autoridade de grandes personagens». A

opinião destas é «um erro, quer pelas razões quer pelos exemplos que avançaram». «A

combinação das três Repúblicas não faz diferença nenhuma, visto que a junção dos poderes real,

aristocrático e popular cria somente o Estado popular.» Vai ao ponto de tratar o regime misto

pelo absurdo, vendo nele um sistema de turnos. «Num dia a soberania seria do monarca, no dia

seguinte a menor parte do povo teria o senhorio, e a seguir todo o povo.» Cada um teria «por sua

vez, a soberania, como os senadores romanos depois da morte do Rei tinham o poder soberano

por determinados dias e à vez». Três espécies de Repúblicas «que não durariam mais do que um

mau lar onde a mulher manda no marido». O regime misto, a existir, não passaria de uma situação

passageira e até crítica. A partilha da soberania tem sempre como efeitos inevitáveis os conflitos

de poderes, lutas que levam necessariamente ao triunfo de um das partilhantes. Estabelecer a

monarquia com o Estado popular e com os senhores é coisa impossível, incompatível,

inimaginável. Ainda no desejo de se demarcar de Aristóteles, entende que não se deve ter em

consideração as formas corrompidas ou alteradas de governo, que o que importa é a essência e

não a qualidade, dos regimes. «A qualidade não altera a natureza das coisas.» «Se avaliássemos

o estado das Repúblicas em função das virtudes e vícios, nunca mais daí saíamos.» Evidentemente,

se formos a considerar cada regime naquilo que o torna original, sublinhando as suas

características próprias, qualquer classificação se tornaria impossível. Por conseguinte, as

especificações qualitativas devem ser afastadas como critério. O grau de pureza ou de corrupção

da monarquia não é suficiente para lhe «impor um novo nome». Por isso, Bodin, chega a uma

conclusão muito simples. Um governo caracteriza-se pelo seu órgão soberano, isto é, por aquele

que decide em último recurso, que dita e anula a lei. «Se a soberania reside num só princípe,

dizemos que o Estado é monárquico; se todo o povo participa nela, chamamos-lhe popular, se só

comporta a menor parte do povo, consideramos que o Estado é Aristocrático.» Se as explicações

da República ficassem por aqui, não existia dificuldade, mas a complexidade e a mobilidade do

homem impedem-no de ser fiel ao seu critério único de atribuição da soberania e ao propósito

de não avaliar os regimes qualitativamente. E assim acaba por fazer ressurgir os tipos que antes

afastara.

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História das Ideias Políticas, Marcel Prélot e Georges Lescuyer

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Os critérios secundários de classificação: quando o historiador e o comparativista

pretendem abarcar de mais de perto a realidade, Bodin considera duas novas séries de divisões.

Estabelece uma classificação secundária, baseada na atribuição da soberania e o governo a dois

órgãos diferentes. A distinção de Bodin baseia-se numa disjunção entre a soberania e o poder.

«A soberania não é limitada nem em autoridade, nem em competência, nem no tempo.» Em

contrapartida, o poder pode ser temporário ou delegado. Um homem ou um corpo pode ser

depositário e guardião do poder, até que o soberano, o povo ou o príncipe, que continua a ser o

seu proprietário, resolva demiti-lo. Dá o exemplo da ditadura. O ditador tem uma autoridade

absoluta, e todavia o ditador antigo não é soberano. Tem um mandato para fazer a guerra, para

reprimir a sedição, para reformar o Estado, e depois é mandado para casa. «O povo não se

despoja da soberania ao estabelecer um ou vários lugar-tenentes, com autoridade absoluta, por

um período limitado: estes tinham de prestar contas a Deus.» Do mesmo modo, o Rei pode ser

“soberano” e não “autoridade”. É a forma política do “ministeriado” (palavra que Bodin não usa)

que anuncia a monarquia parlamentar, onde “o rei reina, mas não governa”, apesar de aos olhos

de alguns continua a ser soberano. Assim, Bodin acaba por combinar as formas real, aristocrática

e popular, que decorrem somente da soberania, com o governo, também ele real, aristocrático e

popular. Multiplica por três as formas da República, passando a haver monarquia real,

aristocrática e popular, aristocracia oligárquica, real e popular, e democracia popular,

aristocrática e real. Mas isto não é tudo. Propõe ainda outra divisão, baseada desta vez na

maneira de exercer o poder. Esta permite distinguir três espécies de democracia, legítima,

senhorial e turbulenta; três espécies de aristocracia, legítima, senhorial e facciosa; e três espécies

de monarquia, real, senhorial e tirânica.

O Estado popular: a forma de república mais afastada do ideal de Bodin é o Estado

popular, regime «onde maior parte do povo em conjunto manda soberanamente no restante em

coletivo, e em cada um em nome particular»; onde coletivamente a maioria do povo manda na

minoria e individualmente em toda a gente. A República popular exige onde quer que a maior

parte dos burgueses, seja por cabeça, por linhagem ou classe, seja por paróquia ou comuna,

participa na soberania; onde os francos súbditos decidem maioritariamente, seja qual for o modo

de consulta eleitoral. Democracia significa participação de todos os burgueses na soberania. O

Estado popular pode ser:

De governo popular: não faz exceções de pessoas; o regime é igualitário; há

participação uniforme de todos os cidadãos nas funções e nas riquezas; há

aplicação rigorosa da lei a toda a gente, independentemente de qualidades ou

circunstâncias. É um regime «de reta norma e de uma rigidez inflexível.»;

De governo aristocrático: aqui, o pequeno número pode governar. Governa de

direito quando as instituições são aristocráticas; doverna de facto quando na

prática existe predomínio dos notáveis ou das famílias nobres;

De governo real: é o principado, onde a autoridade reside na maioria popular,

como na essimnecia aristotélica ou na democracia cesariana contemporânea.

O Estado Aristocrático: o Estado aristocrático é «a forma da República em que a menor

parte dos cidadãos manda no resto, em geral, por autoridade soberana; em cada um dos cidadãos,

em particular. Nisto é contrária ao Estado popular, onde a maior parte dos cidadãos manda na

menor em nome coletivo». Posteriormente, a aristocracia é definida como a soberania de uma

minoria sem necessidade de uma qualificação particular por virtude ou riqueza. O Estado

aristocrático pode ser:

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História das Ideias Políticas, Marcel Prélot e Georges Lescuyer

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大象城堡

De governo aristocrático: a maior parte dos cargos e empregos estão reservados

à nobreza. A justiça é geométrica. Há desigualdade jurídica, as penas variam

conforme a categoria das pessoas;

De governo real: assinala o caso em que a aristocracia assume a forma de

principado e aponta como exemplo a Alemanha. Império, diz, não é monarquia,

«mas uma pura aristocracia, composta pelos príncipes do Império, pelos sete

eleitores e pelas cidades imperiais.»;

De governo popular: inclui a participação do povo no governo dos Estados

aristocráticos. No entanto, duvida da sua realidade, considera que o elemento

popular – ainda que presente – é eclipsado pelo elemento aristocrático,

preponderante.

O Estado monárquico: é pela terceira forma, o Estado monárquico, que Bodin mais se

interessa. Define-a como «uma espécie de República em que a soberania absoluta reside num só

príncipe». A monarquia é o Estado onde o soberano é um homem e não o povo ou o grupo dos

grandes. Não há monarquia se o Rei não se pronuncia em último recurso, se existe além dele ou

acima dele um tribunal popular ou aristocrático. Também não há monarquia se dois reis

governam em conjunto. A duarquia (ou diarquia) afigura-se-lhe uma espécie de maniqueísmo:

«O mundo tem tanta dificuldade em suportar dois senhores iguais como dois deuses iguais em

poder.» O Estado monárquico pode ser:

De goveno popular: o príncipe atribui os estados, os ofícios e benefícios tanto aos

pobres como aos ricos, aos plebeus e aos nobres, sem exceção nem

favorecimento de ninguém. Neste caso, porém, não existe confusão entre o

Estado popular e a monarquia, incompatíveis entre si, mas exercício da

monarquia com governo popular. Este regime pratica a justa aritmética, principio

dos governos populares. Semelhante monarquia reduz tudo à igualdade e ao

sorteio, e distribui poderes e benesses a todos os cidadãos, indiferentemente;

De governo aristocrático: os Estados e ofícios são atribuídos aos mais nobres, aos

mais ricos ou aos mais favorecidos. A justiça é geométrica. Distribui honras e

riquezas aos que já se encontram bem fornecidos. Além disso, decide por

considerações pessoais;

De governo real: aqui, Bodin propõe uma subdivisão em três formas:

o A monarquia tirânica, como tal não é um reto governo, e encontrava-se

inicialmente fora de República. No entanto, fá-la reaparecer como sendo

aquela em que o monarca, desprezando as leis da natureza, «abusa das

pessoas livres como de escravos e dos bens dos súbditos como dos seus».

A injustiça e a violação das leis divinas e naturais revelam o tirano, isto é,

aquele que por autoridade própria se torna príncipe soberano, sem

eleição, nem direito sucessório, nem sorteio, nem justa guerra, nem

vocação especial para Deus. Existe ausência de título e, por isso, ausência

de reto comportamento;

o A monarquia senhoria, parece ser historicamente a primeira, filha da

conquista e não de eleição, como pretendia Aristóteles. O governo

doméstico e não político; «o Rei respeita os súbditos como propriedade

sua», poupando as pessoas dos vencidos e deixando-lhes certos bens e

liberdades. O príncipe governa os súbditos como o pai de família governa

os membros da família, mais os servos e escravos. Torna-se «senhor de

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História das Ideias Políticas, Marcel Prélot e Georges Lescuyer

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大象城堡

bens e pessoas pelo direito das armas e de boa guerra». Existe não só

soberania, mas também patrimonialidade.

o A monarquia real (ou legitima), difere da tirania pela sua retidão. A

tirania não é legítima, a monarquia sim. Aqui, a legitimidade procede à

conformidade à justiça natural e à lei estabelecida. Não é mera

consequência da acessão ao trono por nascimento. O rei não nasce rei

legitimo, torna-se. É uma qualidade que se adquire, não um dom de

natureza. Assim, à legitimidade não se confunde com a hereditariedade,

e esta não constitui aquela. No entanto, o mais das vezes, acompanha-a.

A monarquia real difere da monarquia senhorial porque «os súbditos

obedecem às leis dos monarcas e o monarca às leis da natureza e porque

se conservam a liberdade natural e a propriedade dos bens dos

súbditos».

Bodin, precursor do absolutismo: em tirânica, nem senhorial, a monarquia real é absoluta?

Ao que parece, Bodin encara uma administração moderada, preocupada em pôr cada um no seu

lugar e em realizar o melhor possível a distribuição de tarefas. O rei sábo «entremistura

brandamente os nobres e os plebeus, os ricos e os pobres, mas com tal discrição que os nobres

possam ter alguma vantagem sobre os plebeus»: Uma alegoria do “Banquete” conclui com um

quadro idílico a descrição do governo real, como «governo harmonioso». Contudo, pelo rigor e

pela lógica postos na sua construção da soberania, Bodin é o pai do governo absoluto. Colocou a

soberania no centro da política e do direito público. Querendo que a soberania fosse una e

indivisível, concebeu-a desde logo monárquica; querendo-a não delegada, afastou a eleição;

querendo-a irrevogável, fundou-a numa doação, ou seja, num ato praticado de uma vez para

sempre; querendo-a perpétua, pensou-a hereditária; querendo-a suprema, entendeu que

nenhum outro poder podia pedir-lhe contas, nem o Papa ou o Imperador, no exterior, nem os

estados ou parlamentos, no interior. No entanto, acerca dos estados gerais considera «que, se é

preciso cobrar rendas, juntar forças e manter o Estado contra os inimigos, isso só pode ser feito

pelos estados do povo e de cada província, cidade ou comunidade». Mas, no seu espírito, não há

aqui matéria para conflito, pois o recurso aos estados representa uma força de apoio, por vezes

um incómodo, mas nunca um entrave. Obcecado pelas desordens das guerras de religião e pelas

ameaças que pesam sobre a unidade do reino, vê na soberania o remédio que permitirá ao Rei

(Filipe, O Belo) permanecer acima das querelas. Mas, uma vez resolvido o problema confessional,

o rei será o gande beneficiário da soberania, pois que, graças a ela, em nada depende do papa,

nem do imperador; o seu poder não é temporário, nem delegado, e ele não é responsável perante

quem quer que seja neste mundo. É por estas ideias que Jean Bodin é o fundador do absolutismo

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História das Ideias Políticas, Marcel Prélot e Georges Lescuyer

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大象城堡

EVOLUÇÃO DO ABSOLUTISMO

O Absolutismo Individualista

A Escola Clássica

A Revolução jusnaturalista: o absolutismo assenta na confusão entre os interesses do

Príncipe e os interesses do Estado. Podemos chamar-lhe antindividualista avant la lettre. No

entanto, é no âmbito do absolutismo que o individualismo começa por se manifestar. Os autores

desta nova orientação são Grotius e Hobbes. Grotius ultrapassa em larga medida o individualismo

absolutista; é um renascentista e, sobretudo, autor de uma nova corrente que terá um papel

determinante. Sem ter um génio tão raro e profundo como Descartes produz na sua esfera uma

revolução quase igual. Esta pode ser analisada em três inovações capitais. A primeira reside na

proclamação da autonomia do direito natural. O direito natural é diferente da moral. Grotius diz

adeus à teologia. Define moral como a dominação das cobiças do homem (o temor e a volúpia),

fazendo-a decorrer de uma propriedade da natureza humana, a de discernir a verdadeira

importância a dar às coisas. A sua esfera pertence à moral privada e não à sociabilidade. O direito

natural é diferente da politica. Esta consiste na sábia regulamentação das condições de ser

próprias ao Estado. O direito natural é diferente do direito positivo. Não deriva de uma autoridade

superior que impusesse as suas leis ou as fizesse executar. Não depende, como o direito positivo,

da autoridade de que emana. Não procede da sanção que a autoridade poderia infligir a quem

desrespeitasse as suas ordens. Extrai a sua existência da sua própria natureza, da sua autoridade

específica sobre as consciências. Há, por isso, um terreno próprio ao direito natural. A esfera

normal de ação do direito natural é a do princípio racional da sociabilidade, de tal modo que

também se poderia chamar-lhe direito racional. A segunda inovação da doutrina de Grotius é o

seu individualismo. Como ponto de partida da sociedade: «o homem é um animal cívico». À

sociabilidade se ia buscar a origem e a essência da sociedade. Depois do Estagirita, quase todos

os autores passaram a ver na sociedade aquilo que em linguagem atual se designa por “dado

objetivo”. Interroga-se sobre a condição que o Estado deve preencher para satisfazer as

exigências naturais do homem individualmente considerado. Grotius traz para primeiro plano o

direito dos indivíduos. A natureza social preocupa-o na medida em que é um atributo, uma

condição essencial e existencial do homem. O homem precisa da sociedade para viver; mas a

sociedade é constituída para o indivíduo. O Estado é um fim da natureza humana. A terceira

inovação radical proposta por Grotius é, em termos sociológicos, a substituição do ponto de vista

societário ao ponto de vista comunitário. A sociedade é voluntária; é constituída ela associação

racional de diversos elementos. A comunidade, pelo contrário, é natural e afetiva. Antes de

Grotius, o Estado é natural, no sentido de ser racional. A sociedade nasceu da vontade razoável

dos homens.

“A maravilha da Holanda”: Hugues Cornet (um seu avô, apaixonado pela filha

burgomestre de Delf, aceitara, como condição para o casamento, que os filhos usassem o nome

da mãe, Grotius), nascido em Delf em 1583, o ilustre Grotius surpreendeu, desde os primeiros

anos de vida, o seu meio familiar, os seus concidadãos, e em breve também o estrangeiro. Na

idade da razão, já traduzia versos para Latim sem um único erro. Aos 14 anos, participa na

embaixada a França Henrique IV avista-se com o jovem sábio, “maravilha da Holanda”, cuja

erudição ultrapassa tudo o que se pode imaginar. Brilha nas artes, nas letras, nas ciências, na

poesia e na política. Em breve se torna advogado geral da Holanda e hóspede de Roterdão, e mais

tarde hóspede de honra da Frísia Ocidental e da Holanda. Mas, por essa altura, os Países Baixos

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História das Ideias Políticas, Marcel Prélot e Georges Lescuyer

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大象城堡

são devastados por discórdias civis e religiosas. Grotius liga-se a Barneveldt, adversário de Nassau.

Barneveldt é condenado à morte e Grotius é metido no forte de Laevestein “para nunca mais da

lá sair”. Refugiado em França em 1621, é acolhido com liberdade. Encontra hospitalidade e tempo

livre para escrever o seu grande livro, De Jure beli ac pacis (Do Direito da Guerra e da Paz). Por

morte do Príncipe de Nassau, Grotius regressa à Holanda, mas como lhe impõem condições

inaceitáveis, é forçado a exilar-se de novo, desta vez em Hamburgo. Farol do direito internacional,

é nomeado embaixador da Suécia junto do Rei de França pelo chanceler Oxenstiern. Em 1664,

depois de uma viagem, desta vez triunfal, ao seu país, regressa à Suécia. De passagem pela

Alemanha, morre de esgotamento em Rostock, na sequela de uma violenta tempestade sobre o

Báltico (1645).

“De Juri belli ac pacis”: a obra fundamental de Grotius divide-se em três livros, libre três

in quibus jus naturale et gentium, item júris publici paecipue explicantur, três livros que explicam

os princípios do direito da natureza e das gentes e especialmente os do direito público. A sua

publicação terá uma importância considerável. A sua obra é, em primeiro lugar, uma obra de

direito internacional. O seu primeiro objetivo é a regulamentação daquilo a que hoje se chama

“relações internacionais”. Estas, na altura em que Grotius escreve, atravessam uma profunda

crise, pois os antigos princípios do direito feudal, os costumes guerreiros da cavalaria e os

regulamentos eclesiásticos deixaram de ter alcance prático e, até, real significação com o

renascimento dos Estados. Colocam-se novos problemas que, doravante, devem ser resolvidos

entre Estados soberanos. Maquiavel quer resolvê-lo pela força, Vitória pela Justiça. Na prática, a

“razão de Estado” guia os políticos do absolutismo. Quanto a Grotius, pretende dar às relações

internacionais uma base de direito. Como este está ainda por criar, não poderá ser o direito

positivo, mas o direito racional ou natural. Como direito racional e natural, aplicar-se-á a toda a

gente e será um direito universal. Assim, para dar bases sólidas à sua construção internacional,

Grotius, vê-se obrigado a colocar de uma maneira nova os fundamentos do direito e do Estado,

aspeto que interessa diretamente às ideias políticas.

Fundamento e amplitude do direito natural: o homem, ser racionalmente sociável, é

impelido por um móbil inato a entrar em sociedade regulada e regular com os seus semelhantes.

A necessidade de viver em sociedade corresponde a necessidades de ordem física, mas acima de

tudo à satisfação de um sentimento moral de bondade para com outros. O que nos move não é

o interesse mas, um sentimento muito mais elevado, a atração por um estado em que podemos

encontrar a satisfação para nós e ao mesmo tempo garantir a dos outos. Da natureza social,

princípio de direito, decorre o direito da natureza. «A mãe do direito natural é a própria natureza,

que nos levaria a procurar o trato com os nossos semelhantes ainda que não tivéssemos

necessidade.» Assim, é um direito que bebe a sua autoridade na própria natureza do homem, de

que provém, abstraindo da intervenção do legislador positivo. Implicado pela existência do

homem, o direito natural é-lhe tão profundamente inerente que Deus, que criou o homem, em

nada pode modificar o direito que decorre da natureza da sua criatura. Assim, o direito natural

tem a sua fonte própria. Grotius não nega a existência de um direito divino, mas torna o direito

natural independente dele. Resultante da natureza do homem, tal como esta é constituída, é

invariável como a própria natureza. Também é universal, aplicável a todos o séculos e a todos os

povos. Para discernir se uma norma é ou não de direito natural, Grotius propõe duas vias, uma

direta ou imediata e a outra indireta ou mediata: a via direta é a constatação da natureza razoável

e social da norma: através do raciocínio, vemos decorrer da natureza humana umas tantas

normas que são as normas fundamentais do direito natural; a via indireta faz decorrer as normas

de direito natural da observação do uso universal das nações (a sua erudição fabulosa e

esmagadora permite-lhe ir buscar exemplos a todos os tempos e países). O terreno do direito

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História das Ideias Políticas, Marcel Prélot e Georges Lescuyer

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natural é determinado pela sua própria definição. Abrange tudo o que na vida humana se rege

pelo princípio de sociabilidade. As normas constituem condições necessárias e inevitáveis de uma

comunidade de vida regular. O seu ponto de partida encontra-se no direito privado. Em primeiro

lugar, o respeito do meu e do teu, o reconhecimento da propriedade; em seguida, o cumprimento

dos contratos; por fim, a indemnização dos prejuízos causados a outrem. Grotius encara, assim,

as penas em que se incorre por infração a estas normas. Depois, para lá da esfera do direito

privado, mas pelos mesmos meios, cria a esfera do direito público.

O Estado, sociedade contratual e perpétua: a obrigação contratual, que é uma

consequência essencial da sociabilidade, serve de fundamento à construção da sociedade civil. O

direito natural prescreve o respeito pelos contratos porque, para a manutenção pacífica de uma

comunidade, é necessário que os homens disponham de um meio que os obrigue mutuamente.

A obrigação contratual, base de todo o direito privado, é, segundo Grotius, também a base de

todo o direito público. Perfeita união de homens livres, através da qual deve cumprir-se aquilo a

que Grotius chama «a lei da natureza», o Estado, sociedade pacífica e regulamentada, implanta-

se a partir de uma decisão voluntária dos homens. Não tendo sobre eles uma autoridade inicial,

adquire-a graças ao contrato pelo qual os cidadãos se submetem à autoridade. «Se um particular

pode alienar a sua liberdade e tornar-se escravo de um senhor, por que razão não poderia todo

um povo alienar a sua liberdade e tornar-se súbdito de um rei?» O individualismo é aqui

acompanhado de um voluntarismo que constitui novidade. O contrato, que Grotius mantém na

ordem do puro direito privado, permite edificar a sociedade civil e determinar as condições de

vida dentro dela. O Estado, sociedade humana de base contratual, concentra em si as relações

do direto público e do poder político. Por isso, embora formado por indivíduos mortais, subsite

depois de eles morrerem. É a teoria da perpetuidade do Estado, que contrapõe os atos do rei aos

atos dos privados. A identidade do Estado e a perpetuidade dos deus direitos e obrigações

fundamentam-se na razão de se tratar de direitos e obrigações do mesmo povo. A obrigação

contraída pelo chefe do poder transmite-se aos sucessores através do povo, já que este está

vincado pelos atos do governo anterior, que é apenas seu representante. O povo transfere

tacitamente a obrigação, que passara a pertencer-lhe, para o chefe seguinte, que ao povo vai

buscar a sua força. Assim Grotius realiza a identificação do Estado com a sociedade. Considera a

nação como Estado e, a seu ver, o Estado em nada se distingue da nação. Os elementos

designados pelas palavras civitas, communitas, coetus e populus são, pare ele, equivalentes. O

objetivo do Estado-sociedade é o gozo comum dos direitos, reciprocamente reconhecidos, e a

utilidade comum. Mas o bem público é a suprema norma a seguir e todos os indivíduos devem

dar-lhe a primazia. À sociedade formada pelo povo pertence um dominium supereminens público

ou estatal. Mas o Estado não pode separar-se desta sociedade e prosseguir objetivos próprios.

Os seus únicos fins são a realização dos fins dos homens individualmente considerados. Para

Grotius, público siginifica somente o que é de utilidade comum para todos, e não algo que

comportaria uma natureza exterior que se impusesse a todos. Assim, Grotius constitui sociedade

com base num contrato voluntário. Por outro lado, esta sociedade, embora permanente, embora

de amplitude e duração superiores às das vidas humanas, não traz, dado o seu caráter voluntário

e contratual, qualquer obrigação suplementar aos que dela fazem parte, nem permite a ninguém

erigir-se em representante de uma coletividade dotada de direitos próprios.

O Leviatã: Thomas Hobbes

Hobbes e as revoluções de Inglaterra: «Se o homem pode ser reduzido à escravatura

privada em proveito de quem muito bem entender, como ressalta da lei hebraica e da lei romana,

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porque razão não se haveria de permitir a um povo, que só depende de si próprio, a submissão a

um indivíduo ou vários, de maneira a transferir completamente para eles o direito de governar,

sem reservar para si qualquer parcela?». A pregunta é feita por Grotius a quem, ao que parece,

não repugnava uma resposta afirmativa. A qual se afigura inevitável a Thomas Hobbes. O infeliz

Hobbes (1588 – 1679) nasceu prematuramente, assiste à conspiração de pólvoras em 1605;

encontra-se em Paris quando do assassínio de Henrique IV, em 1610; é testemunha da execução

de Strafford de LAud, da derrota naval de Naseby em 1645 e da execução de Carlos I em 1649.

Umas vezes vai a França para se proteger de quem está no poder em Inglaterra; outras vezes vai

a Inglaterra para fugir a quem está no poder em França. Por tudo isso o sentimento dominante

em Hobbes é o medo. Almeja para os homens a paz que existe nas coisas. O seu único desejo é

ver a calma e a união asseguradas. Mas não há possibilidade de paz enquanto subsistirem

faculdades de resistência ao poder, sobretudo se a resistência tem móbeis religiosos, porque a

política transporta para o terreno religioso, ou a religião para o terreno político, desencadeia de

todos os lados paixões verdadeiramente irrefreáveis.

Individualista que teve medo: Hobbes busca apaixonadamente a saída para as suas

angústias num absolutismo que dê todos os poderes ao rei, mas a um rei que assegure a paz e a

tranquilidade. Fá-lo desde a sua primeira obra, Elementos do Direito Natural e Político, que

abrange três partes, libertas, imperium, religio. Finalmente, Leviathan sive de materia frma et

potestate curtatis ecclesiastae et ciuiles (1650). Por medo, torna-se o mais feroz dos estatistas.

Busca a salvação na capitulação perante um indivíduo. Mas essa capitulação não subverte as

bases do seu pensamento. O ponto de partida é o mesmo que o de outros autores maiores da

Escola do direito da natureza e das gentes. Também ele deduz a ordem da natureza do ser

humano individualmente considerado. Também ele funda «o Estado civil» no contrato de união

voluntariamente estipulado pelos súbditos. A diferença está em que o individualismo generoso e

confiante de Grotius se transforma, nele, num individualismo pessimista e fechado. O fundo da

natureza humana é o egoísmo, e não a necessidade altruísta de uma vida em comum. Ao procurar

a comunidade, o homem não o faz para se realizar, nem devido a uma inclinação natural que o

impelisse para os seus semelhantes, mas apenas com vista o seu próprio interesse. A sociedade

nasce do medo que os homens têm dos outros homens e não de uma generosidade recíproca.

Pois o estado de natureza em que os homens se encontram antes de se comprometerem entre

si por meio do contrato era essencialmente perigoso e funesto. No estado de natureza, todos os

homens estão em guerra uns contra os outros. Por possuírem um direito igual relativamente a

todas as coisas, todos cobiçam as mesmas coisas e têm um inclinação comum para se

prejudicarem; são uma fonte constante de perigo e de medo uns para os outros. A lei da natureza,

que atua nessas circunstâncias, é egoísta devido ao seu próprio fundo. Visa a conservação de si

próprio. A sua principal injunção é a busca da segurança. Mas no estado de natureza, os

mandamentos da lei natural não são obrigatórios. Grotius tinha-os estabelecido como fonte de

um dever ara com os outros homens; o pessimismo de Hobbes afasta tal segurança. Enquanto

uma pessoa não tiver a certeza de que a outra cumprirá o compromisso que assumiu, satisfazer

o seu próprio compromisso não serve de nada, no que toca à conservação pessoal. A voz das leis

naturais fica sufocada. O único interesse verdadeiro é então sair do estado de natureza, passando

do status naturalis ao status ciuilis.

O Estado, única salvaguarda do indivíduo: os homens unir-se-ão em número considerável,

de modo a formar, por acordo mútuo, uma aliança de garantia contra perturbações da paz. Essa

união é o Estado. Por isso, só quando os homens tiverem abandonado o estado de natureza

surgirá o Direito. Só o Estado pode dar origem à noção de «meu e teu». Na sociedade natural,

ninguém estava garantido, por não haver certeza de reciprocidade. Ora, o único critério do Direito,

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a sua única medida possível, é a utilidade efetiva. O Estado constitui-se para permitir que se tenha

a paz: o homem abandona-lhe o direito ilimitado inerente ao estado de natureza. Total ou

parcialmente, renuncia aos direitos que lhe vinham do estado de natureza, a fim de gozar do

resto. O homem cumpre os deveres naturais de compaixão e reconhecimento, que concorrem

para o objetivo de conservação pessoal. Mas para que exista Estado, não basta um simples acordo

entre homens, é necessária uma união. Os homens têm de deixar de viver como indivíduos

independentes e separados, a fim de formarem uma só vontade. Por conseguinte, não devem

conservar vontade, nem direitos que lhe pertençam. Todos os poderes passam para o Estado,

com a renúncia à resistência, por um lado, e a revogação da delegação assim atribuída, por outro.

E para tal, são necessárias condições à constituição da soberania (summum potestas, summum

imperium). Até agora, tínhamos encontrado dois contratos: o contrato de indivíduos que se

associam entre si e o contrato que os novos associados firmam com aquele em que delegam o

poder supremo. Para Hobbes, só há um pacto: os homens não negoceiam com o soberano, mas

apenas entre eles. Renunciam em proveito do senhor e assumem o compromisso de se submeter

à sua autoridade em absoluto e se condições. Antes da instituição do Estado, só existia a multidão,

que não tinha pela frente nenhuma autoridade com quem tratar; após a sua instituição, a

multidão dissolveu-se por isso mesmo e deixa de existir. A instituição do poder civil vem a ser,

afinal, uma alienação em vez de uma delegação. Já que o soberano é absolutamente estranho ao

ato, e não tem qualquer obrigação porque não assinou nada. Com efeito, este contrato não é

uma limitação do poder absoluto – é precisamente o seu fundamento.

O Leviatã: a consequência deste pacto é fazer da multidão um ser único. Hobbes dá-lhe

um nome extraído da Bíblia, do livro de Job: “Leviatã” ou “Deus mortal”. Um desenho à pena, no

frontispício da obra, representa o corpo do monstro, constituído por uma multidão de indivíduos

microscópicos aglutinados. O conjunto constitui uma personagem medonha que segura nas mãos

o báculo e a espada, atributos do poder espiritual e do poder temporal. Duas séries de símbolos

colocados à frente completam a alegoria. Constituído por uma fusão completa dos indivíduos, o

Estado exerce uma soberania absoluta (imperium absolutum), a que corresponde, naturalmente,

uma monarquia absoluta. A manutenção da paz exige que o soberano disponha de uma

autoridade completa: não deve estar sujeito a nenhuma lei exterior a ele, seja natural ou

eclesiástica. Por conseguinte, o súbdito não tem qualquer direito relativamente ao poder e não

comete falta quando se conforma à ordem do poder. A doutrina de Hobbes dá origem a um

positivismo jurídico radical. Só as leis civis decidem da existência da falta. O adultério não é uma

falta por violar a moral, mas porque o poder interdita «que se tenha trato com uma mulher de

que as leis civis proíbem aproximar-se». As leis civis fixam os requisitos do adultério como lhes

apraz, estabelecendo qual o tipo de relações sexuais que entra essa categoria. Deste modo,

Hobbes retira ao direito e ao Estado toda a dimensão moral. A lei natural, única base em que

fundamenta o direito e amoralidade, não comporta em si qualquer ideia moral. Tudo é dominado

pela necessidade de segurança, pelo instinto físico de conservação pessoal, pela pura lei de

prudência. A política é o domínio do conveniente. Um completo vazio moal cava-se sob as

relações sociais, por sua vez totalmente despojadas dos valores éticos que encerravam. No ponto

de chegada, um poder ilimitado e absoluto sai da união das vontades humanas, mas transcende

essa união. O Estado constitui uma pessoa distinta de todos os indivíduos que reúne em si. A sua

aglutinação não pode ser considerada como constituinte do Estado. Só os que representam o

Estado possuem esse caráter. Há quem pense que se trata de um progresso da teoria do Estado

ao traçar a separação entre o Estado e agregado social. É duvidoso que seja algo de

verdadeiramente meritório. Desligar tão completamente o poder daqueles sobre quem se exerce

tem por resultado dar a esse poder um caráter ao mesmo tempo artificial e ilimitado. Artificial e

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ilimitado: assim é, no fundo, o poder segundo Hobbes. A formação do Leviatã é muito laboriosa.

As cedências seguem-se umas às outras; para pôr termo à guerra de todos contra todos, os

homens aceitam a paz, mas é uma paz concentracionária. Ao homem não resta nada de seu. Não

há recurso possível contra as ordens do Estado, pois tudo o que ele faz também os homens seriam

capazes de fazer. Queixar-se do Estado seria o mesmo que queixar-se de si próprio. Hobbes faz

do soberano o dono da Religião. É um verdadeiro Deus terrestre. O absolutismo retorna às suas

conceções pagãs originárias. Ao reunir na mesma mão o cetro e o báculo, ao confundir o que é

de César com o que pertence a Deus, torna-se totalitário. Hobbes não admite que uma pretensa

autoridade espiritual possa erigir-se como rival do soberano. Ninguém deve servir dois senhores;

há um só poder, o poder civil, que se ocupa de tudo. Aliás, a obediência ao monarca não é

obrigação moral por ser religiosa, mas por ser política. Admitir que as Escrituras são a palavra de

Deus não é ciência, mas fé. Ora a fé nada tem a ver com a política. Mas nem por isso a política se

desinteressa da fé. Apesar disso, Hobbes não se considera intolerante, uma vez que o Estado só

impõe os atos exteriores da religião. Quanto aos corações, só Deus os conhece. Ninguém pede

aos súbditos que acreditem; só têm que obedecer. O que a paz procurada por Hobbes exige não

é a tolerância, é o conformismo. Uma vez concluído o contrato, quando não se depõe o

julgamento próprio e a própria consciência nas mãos do soberano, já não se pode desobedecer.

O ABSOLUTISMO ESCLARECIDO

A Ambiguidade do Despotismo Esclarecido

Características do absolutismo esclarecido: em comparação com um sistema tão bem

construído como é o de Hobbes, o absolutismo esclarecido parece carecer de princípios próprios

e de instituições características. Na prática, as suas particularidades variam bastante de país para

país. Mas a principal dificuldade reside na sua ambiguidade, por ser ao mesmo tempo uma

doutrina de progresso e uma doutrina de resistência. Doutrina de progresso, o absolutismo

esclarecido continua ou ultrapassa o absolutismo clássico:

O absolutismo clássico assinalava um progresso político e administro em relação

ao sacerdotalismo medieval e ao aristocratismo feudal: o absolutismo

esclarecido representa uma nova etapa no reforço e na depuração da autoridade

política, que correlativamente traz uma certa reabilitação da situação do

indivíduo;

O absolutismo clássico era uma doutrina frequentemente dura, e até desumana.

O absolutismo esclarecido, pelo contrário, coloca a humanidade numa posição

elevadíssima;

O absolutismo clássico, muito imbuído da glória das letras e das artes, não se

preocupava por aí além com a instrução popular. O absolutismo esclarecido, pelo

contrário, quer «espalhar as luzes» por toda a parte;

O absolutismo clássico baseava-se na desigualdade; o absolutismo esclarecido

procura fazê-la desaparecer, pois a igualdade civil é a base natural do

desenvolvimento normal da autoridade efetiva do rei;

O absolutismo clássico estava estritamente ligado à religião. O absolutismo

esclarecido reclama a liberdade de acreditar e a de não acreditar.

O absolutismo clássico era rigoroso e cruel nos seus castigos; o absolutismo

esclarecido reclama a suavização do direito penal, o desaparecimento da tortura

e de certas penas ostensivamente sanguinárias.

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História das Ideias Políticas, Marcel Prélot e Georges Lescuyer

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Doutrina de resistência, po muito “esclarecido” que seja, o absolutismo permanece hostil à

divisão e à transferência de poder:

O absolutismo esclarecido permanece um absolutismo do príncipe. O poder

continua a ser relativo à pessoa do príncipe. Embora se verifique um esforço para

dirigir o seu exercício em proveito do povo, este não participa no poder. O

absolutismo esclarecido ao satisfazer certas necessidades e certas reivindicações

populares por meio da assistência material e da instrução generalizada, procura

tornar o Estado mais forte fazendo com que o poder do Príncipe passe a ser mais

eficaz e mais bem aceite;

O absolutismo esclarecido não põe em causa o poder absoluto. Nem corpos

intermédios, nem divisões do poder: tudo continua a girar à volta do príncipe. As

reformas não se fazem contra ele, por uma opinião e por eleitos que lhas

arrancariam. É o próprio Estado a tomar a iniciativa do desaparecimento do

antigo estado de coisas, em que se incluem todas as sobrevivências feudais;

O absolutismo esclarecido comporta o alargamento de estatismo. Para o

absolutismo clássico, o signo manifesto do estatismo tinha sido a integração do

económico na política. O absolutismo esclarecido reforça paradoxalmente o

Estado ao fazer dele, com os fisiocratas, um instrumento da ordem natural. O

Estado passa então a ser dominado pela crença entusiástica e serena nos

benefícios da legislação autoritária.

Dificuldade em distinguir os partidários do absolutismo esclarecido: o absolutismo

esclarecido inspira toda uma série de documentos oficiais e legislativos: a instrução da comissão

a que Catarina II da Rússia encarrega de preparar um código (1768), o édito do Grão-Duque da

Toscânia, o Código Prussiano de 1794, etc. Historicamente, os meios de incubação e de

desenvolvimento do absolutismo esclarecido são constituídos essencialmente por elementos de

vanguarda, do ponto de vista intelectual, economistas e filósofos. Uns e outros querem educar o

Príncipe, ou se já passou a idade de ser educado, aconselhá-lo nas grandes ações. Graças aos

progressos dos métodos, propõem ao príncipe obrigações mais bem definidas e mais alargadas.

Mas o essencial continua a substituir o “príncipe devoto” pelo “príncipe filósofo” ou pelo

“príncipe economista” Os filósofos partidários do absolutismo esclarecido incitam o príncipe a

mostrar-se justo, humano e generoso, de maneira a garantir o esplendor e a segurança do reino;

os economistas pedem-lhe que conheça as leis da economia e que as respeite, de maneira a fazer

a felicidade e a prosperidade do mundo agrícola.

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História das Ideias Políticas, Marcel Prélot e Georges Lescuyer

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IDADE

CONTEMPORANEA

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História das Ideias Políticas, Marcel Prélot e Georges Lescuyer

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大象城堡

O PRÉLIBERALISMO ARISTOCRÁTICO

A crise da consciência europeia

Antes de dominar o século XIX, que se prolonga até 1914, o liberalismo levou um século

a amadurecer e a afirmar-se. Pode, com efeito, situar-se as suas primeiras manifestações por

volta de 1680. Muito antes da morte de Luis XIV, explode a crise da consciência europeia. Esta

ficou a dever-se a fatores históricos deprimentes: a miséria da guerra, a miséria dos invernos

rigorosos e a miséria de uma má política económica e fiscal, que fizeram acreditar numa

reviragem. Mas, no plano das ideias, o que se verifica é um ressurgimento, um segundo

renascimento. Na verdade, o período do absolutismo clássico deixa de ser um esforço, uma

vontade, uma adesão refletida, para se transformar num hábito e num constrangimento, as

tendências inovadoras devidamente preparadas reaparecem prontas a recuperar a força e o vigor;

e a consciência europeia entrega-se de novo à sua eterna busca. Total, imperiosa e profunda, a

retoma, ou continuação do Renascimento, prepara pouco a pouco o século XVIII. Se para falar

com propriedade, se chama “novidade” a uma certa maneira inédita de pôr os problemas ou ao

acrescentar de uma certa tendência, de uma certa vibração. A época da renovação e das

inovações não espera pela passagem do século XVII para o XVIII, pois já desde o fim do século XVII

existem sensíveis transformações. Já em 1705 Leibniz pensa que seria bom que «os príncipes se

persuadissem de que os povos têm o direito de lhes resistir», tratando de definir o Estado como

«uma grande sociedade cujo fim é a segurança comum» e acrescentando que esse Estado deve

dar aos homens a felicidade. Essa felicidade que, em breve, será anunciada como «uma ideia ova

na Europa». Desde a aurora do século XVIII que se vê despontar este culto do indivíduo. Nos

últimos anos do século XVII, começou uma nova ordem. Em política, este novo percurso

manifesta-se por uma rejeição das teses clássicas. Uma oposição geral começa a formar-se:

oposição do alto clero, oposição dos meios esclarecidos, oposição popular; oposição externa. A

primeira é a mais clara, porque, nascendo muito perto do trono e tendo por missão consolidá-lo,

é a única com algumas possibilidades de expressão.

O NASCIMENTO DO LIBERALISMO: LOCKE

Uma influência enorme: a revolução inglesa do século XVII marcou consideravelmente a

ciência política. A luta contra as tendências despóticas de Jaime I e Carlos I de Stuart exprime-se,

em primeiro lugar, através da ação do protagonista da Petição do Direito de 1628, o jurista e

deputado, Sir Edward Coke. A Declaração dos Direitos (The Bill of Rights) de 1689 vai encontrar o

seu defensor na pessoa, muito mais conhecida, do médico-filósofo John Locke. No navio que traz

de volta da Holanda a Greenwich, Maria, Princesa d’Orange e futura Rainha de Inglaterra, tem a

seu lado John Locke, que traz na bagagem dois preciosos manuscritos, os Dois Ensaios sobre o

Governo, ou melhor, sobre o Poder Civil. Os dois livros distinguem-se entre si, embora um seja a

continuação do outro. O primeiro é uma resposta ao Patriarcha de Sir Robert Filmer. O seu autor

defende, baseando-a na origem familiar, a autoridade real. Esta primeira memória tem algum

interesse, mas no futuro terá apenas um papel restrito. O segundo livro é um ensaio sobre a

origem, a extensão e o verdadeiro objetivo do poder civil. Para Locke, as três grandes revoluções

dos século XVII e XVIII – a Revolução Inglesa, a Revolução Americana e a Revolução Francesa –

estavam enraizadas no direito natural. A ação de Loke foi, a contrario, sublinhada pela violenta

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História das Ideias Políticas, Marcel Prélot e Georges Lescuyer

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antipatia que lhe votaram os adversários do liberalismo. Um deles escreve que desprezar Locke

é o começo da sabedoria. “No seu estudo da filosofia, falou tão mal sobre a origem das ideias

como sobre a origem das leis”. Mas pode, sem exagero, ver-se no autor do Ensaio sobre o poder

civil, verdadeira apologia da Revolução que eliminou os Stuart, uma espécie de “anti-Hobbes”.

Incontestavelmente, passa por pensador oficial a partir daquele dia 11 de abril de 1689 em que,

depois de Guilherme d’Orange ter sido coroado em Westminster, se proclama que irá reinar “em

virtude de um direito não diferente em nada do direito de qualquer proprietário a escolher o

representante do seu condado”, e em que aceita o controlo das duas Câmaras, assegurando,

assim, o triunfo do governo parlamentar.

Uma existência apagada: comparada com a importância que têm para a História das

Ideias Políticas, a História da vida de Lock (1632 – 1704) é quase irrelevante. Membro de uma

família puritana, modesta, profundamente religiosa, segue o caminho que a época impunha a

qualquer jovem bem dotado, desejoso de se cultivar e de se qualificar intelectualmente: o

seminário. Embora, a princípio parecesse destinado à teologia, muda para ciências. Torna-se

médico sem ter, ao que parece, acabado o curso. Os seus conhecimentos reais na matéria,

juntamente com a sua constituição doentia e uma certa inaptidão psicológica para constituir

família e seguir uma carreira, vão fazer dele uma dessas numerosas personagens que giravam na

órbita das pessoas importantes o antigo regime e que na vida política contemporânea

acompanham os “ministros”. John Locke exerce, sob o nome de “secretário das apresentações”,

as competências que seriam hoje de um chefe de gabinete. Partilha a fortuna e desgraças de Lord

Asley, que em breve se torna conde. Antes, tinha sido encarregado de uma missão diplomática

junto dos eleitores de Brandeburgo e, mais tarde, fará uma longa estada em França por razões

da saúde e também para adquirir alguma experiência na área económico-social. Mas o episódio

essencial da sua vida ocorre durante o exílio na Holanda. O triunfo provisório de Carlos II faz com

que seja excluído de Oxford. Com a liberdade, se não a vida, ameaçada, alcança o refúgio

continental dos liberais. Aí, as suas ideias vão tornar-se claras e amadurecer num ambiente

particularmente favorável; aí redigirá os grandes livros que lhe hão de trazer glória. De volta a

Inglaterra, permanecerá quase sempre retirado em Oates, publicando dois opúsculos públicos.

Em 28 de outubro de 1704, com 72 anos, morre na sua poltrona, a ouvir Lady Marsham ler para

ele. «A sua morte foi como a sua vida, verdadeiramente piedosa, mas natural, doce e simples»

disse ela.

A liberalização do direito natural: com Grotius, o direito natural moderno substitui a ação

e a vontade pessoal e transcendente de Deus pela ordem imanente à natureza humana. A razão

vê-se confrontada consigo própria, abstraindo de Deus e da revelação. Esta conceção do direito

natural domina durante mais de um século. Parece ser o único direito legítimo, o único possível.

A primeira intervenção decisiva de Locke no desenvolvimento do pensamento político foi tentar

associar o direito natural à liberdade individual. Para isso vai buscar as armas de Hobbes, mas,

desta vez, para as utilizar no sentido da liberdade. A construção dos jusnaturalistas era polivalente.

O estado de natureza e o contrato social são hipóteses que podem servir para vários fins: o estado

de natureza, considerado como estado de guerra, e o contrato social, visto como uma espécie de

capitulação incondicional, conduzem ao absolutismo; mas o estado de natureza, considerado

como estado de paz, e o contrato social, considerado como uma convenção limitada, condicional

e revogável, podem muito bem levar à liberdade. Locke vai ao ponto de achar que são uma

consequência normal da liberdade. «A lei da natureza é de obrigação porque é de liberdade».

O estado de natureza: Locke define o estado de natureza como uma situação dos seres e

das coisas em que não existe sociedade civil, nem sequer uma forma rudimentar. Em que os

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homens são livres e iguais. Trazem em si a luz da razão, que lhes permite distinguir a lei natural e

adaptar-lhes o seu comportamento. Assim, na ausência de uma sociedade civil, existe a família,

com o poder paternal, completamente diferente do poder político. Do mesmo modo, ainda que

não haja sociedade nem poder político, existe o direito de propriedade. É um dos pontos mais

inovadores de Locke, um daqueles em nome dos quais se fez a revolução e que permite a Voltaire

exclamar: «Liberdade e propriedade, eis a divisa dos ingleses!» Este estado de natureza é

considerado por Hobbes como um estado de guerra: «a guerra de todos contra todos». Ao

contrário, Locke, otimista, pensa que é «um estado de paz, de boa vontade, de assistência mútua

e de conservação». Fundamenta a sua convicção no sentimento que cada indivíduo tem da

necessidade da sua própria salvaguarda e na reciprocidade dos comportamentos. Em suma, o

princípio de cada um é a conservação pessoal; o principio de todos, a conservação do género

humano. A diferença fundamental entre o estado de natureza e o estado de sociedade reside

fundamentalmente no facto de as violações do direito natural não serem sancionadas no estado

de natureza, ou, mais exatamente, de o serem de uma maneira anárquica, por iniciativa das

vitimas ou dos seus parentes e amigos. O estado de natureza só conhece a justiça privada. É

precisamente esta ausência de organização duma sanção e, por conseguinte, de salvaguarda

preventiva das pessoas e dos bens, que vai levar ao fim do estado de a natureza. Locke, que pensa

que a América na vasta extensão de terras novas prontas a serem conquistadas, acha que o

estado de natureza é perfeitamente suportável. Com os primeiros elementos da economia liberal,

um outro fator joga a favor da constituição de uma sociedade, desta vez plenamente organizada:

é o uso do dinheiro. Com a sua criação, o homem tende a apropriar-se de bens acima das suas

necessidades. Anteriormente, o homem estava limitado por estas, na impossibilidade e na

inutilidade de conservar o excedente do consumo. Em contrapartida, com o aparecimento do

dinheiro, a poupança e o entesouramento tornam-se possíveis. Por isso, as desigualdades, que a

princípio são diminutas, vão crescendo até que, a certa altura, já não é possível ao homem viver

em paz se a posse dos seus bens não estiver protegida por uma organização adequada, que é

precisamente a organização política. Por outras palavras, os homens têm um interesse evidente

em sair do estado de natureza. Uns por terem doravante problemas de segurança, outros, pelo

contrário, por serem desfavorecidos, todos pensam que poderiam estar melhor. Estariam melhor

se houvesse leis positivas, juízes para as interpretar e um poder executivo para as aplicar. É a

acumulação de riquezas e a desigualdade na sua repartição que explica o desaparecimento do

estado de natureza. Esta análise de Locke nada tem pessimista, porque ele acredita que o

interesse natural que leva qualquer homem a enriquecer não é antissocial. Traduz, assim, uma

ideia que remonta à Reforma e segundo a qual «o sucesso material dos particulares promove o

bem estar público».

O pacto social: uma vez que a lei natural é uma «lei não escrita que só pode encontrar-

se no espírito dos homens», se não houver juiz constituído, «não é assim tão fácil convencer dos

seus erros aqueles que, por paixão ou por interesse, a invocam sem fundamento ou a aplicam

mal». Para escapar ao risco de insegurança, os homens decidem fundar a sociedade política ou

civil. «A fim de evitar os inconvenientes que no estado de natureza perturbam o gozo da

propriedade, os homens entram em sociedade para poder dispor de toda a força pública

destinada a proteger e defender os seus bens e para determinar… as regras fixas que dão a

conhecer a cada um o seu poder natural à sociedade de que fazem parte… Nunca os homens

abandonariam… a liberdade do estado de natureza… se não tivessem de proteger as suas vidas,

a sua liberdade e os seus bens e de assegurar, através de leis relativas ao direito e à propriedade,

a sua paz e tranquilidade.» Assim, existe sociedade civil – e só nestas condições – usando um

certo número de homens se unem de tal maneira que cada um deles renuncia ao seu poder de

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executar a lei natural para o ceder à coletividade. A cláusula fundamental do pacto social está na

renúncia ao direito de reprimir as infrações à lei natural. Para Locke, os homens vivem em

sociedade política porque renunciaram ao direito de reprimir por sua conta infrações e

reconhecem um poder de coação, independente e superior, encarregado de reprimir as violações

à lei. No estado de natureza, cada um faz justiça por suas próprias mãos, e Locke considera que

continua a ser esta a situação da sociedade internacional. Entre os príncipes Luis XIV e Guilherme

III, o único árbitro é Deus. Cada qual faz justiça conforme a força das suas armas. Pelo contrário,

entre dois ingleses, em sociedade política, a coroa ou um funcionário da coroa pronunciar-se-á

sobre o objeto do litígio. E aqui, Locke introduz uma segunda inovação: a sua conceção do estado

de natureza. O poder do corpo político resulta da soma das suas abdicações individuais. O Estado

nasce da renúncia de um certo número de homens que entram em sociedade para constituir um

corpo político. Quando um homem se incorpora ulteriormente numa sociedade política já

estabelecida, tem de aceitar as suas regras, a primeira das quais é não fazer justiça por si. Esta

abdicação não tem, em Locke, uma expressão ilimitada. Nada tem de tirânico, nem de absoluto.

É «um recurso contra a fraqueza e a imperfeição da minoria, uma disciplina necessária à

educação». A fortiori, tendo nascide de um pacto, o poder político só se estende àquilo que é

necessário ao objetivo da sociedade. Ora, entra-se em sociedade para assegurar, graças a um

poder coercivo, independente e autónomo, colocado acima dos indivíduos, o bem estar das

pessoas e a conservação dos bens. Locke não admite que os homens, que deixaram o estado de

natureza, onde não estavam assim tão mal para ficarem melhor, tenham acabado de assinar um

pacto unilateral de submissão ou um contrato que transfere para um homem ou para uma

assembleia um poder absoluto. Por consequência, a formação da sociedade política reduz, mas

não aniquila, as liberdades e as propriedades que existem no estado de natureza. «O poder da

sociedade não pode estender-se para lá do bem comum». Se «a liberdade natural do homem

consiste em não reconhecer na Terra nenhum poder que lhe seja superior, num Estado bem

constituído», que atua no sentido da salvaguarda da comunidade e onde «o poder legislativo é

apenas… confiado para a prossecução de certos fins, povo continua a conservar o direito de

dissolver ou de mudar a legislatura quando se apercebe de que ela atua de maneira contrária à

missão que lhe foi confiada. Porque todo o poder confiado com o objetivo de atingir determinado

fim encontra-se limitado por este». O homem não entra para o Estado com todo o seu ser, mas

só com uma parte deste. Pretende que lhe garantam um certo número de vantagens, em

proporção com o sacrifício que consente. Se não fosse assim, não teria nenhuma razão para

escolher o Estado como forma de vida.

A revolução modelo: esta teoria geral de um Estado limitado fornece-lhe também uma

explicação e uma justificação da época em que vive. Locke liga a revolução inglesa a uma filosofia

política geral. Aquela deixa de ser um simples acidente histórico e perde o seu caráter

evenemencial para adquirir uma ascendência intelectual e um valor universal. O Ensaio sobre o

Poder Civil é, ao mesmo tempo, um texto filosófico e um texto de circunstância. O médico que

acompanha a rainha Maria no seu regresso a Inglaterra é, não só o pai do liberalismo, mas

também o artífice intelectual de uma revolução conseguida. Ele funda filosoficamente a nova

legitimidade. Para que o poder seja legítimo, é preciso que o homem dê a sua adesão à sociedade

civil. Não pode haver sociedade civil sem consentimento dos interessados. Locke não utiliza

termos tão rigorosos como outros autores. Em vez do termo contract, prefere muitas vezes usar

compact ou agreement, que têm um significado menos rígido e um alcance jurídico menos

preciso. O pensamento de Locke adquire um realismo particular. A aceitação, o agreement, pode

ser tácita. A maior parte das vezes adere-se à sociedade política pela simples presença no

território. Esta presença, que equivale a assentimento, é o bastante para obrigar ao cumprimento

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das leis criadas pela comunidade. O meio pacífico de sair da comunidade é aquele que Althusius

tinha formulado: a emigração. A este respeito, Locke, muito ligado a certos lordes que organizam

as deslocações para o ultramar, imagina que o consentimento poderia ser expresso. Aqui não

basta calar e consentir; é preciso manifestar uma vontade positiva. Contudo, não se exige um

consentimento unânime para a criação do Estado. Admite-se uma maioria simples, porque se o

indivíduo pudesse prejudicar os planos do maior número, a sociedade dissolver-se-ia

rapidamente. «Quando um certo número de homens consente em formar uma comunidade ou

um governo, torna-se por isso mesmo independente e constitui um só corpo político em que a

maioria tem o direito de dirigir e obrigar os outros. Se, com efeito, graças ao consentimento de

cada indivíduo, eles formaram uma comunidade, também constituíram esta como um corpo, com

o poder de agir como um só corpo, o que só é possível por vontade e decisão da maioria… É

necessário que o corpo se mova na direção para onde o leva a maior força, quer dizer, o

consentimento da maioria.» Só há, portanto, poder atribuído. Á noção de “mandato” ou de

“delegação”, Locke prefere a noção de trust. Já as Provisões de Oxford, em 1258, se baseavam

na ideia de que o príncipe desempenhava uma missão que lhe fora confiada, com vista a uma

certa finalidade e com a obrigação de atingir um objetivo combinado. O que Locke chama political

trusteeship é, precisamente, um poder confiado dentro de certos limites e com vista a

determinado fim. Além disso, o trust comporta um elemento de confiança recíproca. O

consentimento nunca é dado de uma vez para sempre. É condicional e subordinado ao

comportamento dos governantes, em cujas mãos os governados não abdicaram do poder. A

comunidade permanece soberana. Também os direitos naturais, que são a vida, a liberdade e a

propriedade, continuam a existir no estado social. Os homens apenas abandonaram o direito de

serem eles a zelar pela sua conservação e a punir as infrações.» Enquanto o trustee permanecer

nos limites da sua missão e cumprir as suas obrigações, o pacto mantém-se. Esta conceção da

monarquia – consensual – baseada num pacto, é essencialmente da monarquia inglesa de 1688.

Mas viria ser também a dos Estados Unidos da América. A Revolução Americana é a perfeita

transposição da demonstração de Locke: o Parlamento Inglês tornou-se depositário infiel do trust

que os ingleses de além-mar lhe tinham confiado; cabia então ao povo das treze colónias retirar

o poder ao depositário infiel, através de uma insurreição dirigida contra o Parlamento de

Westminster, e não contra o rei. Um novo governo civil é fundado pela declaração de

independência de 1776.

As instituições que têm a liberdade por objetivo: o terceiro mérito de Locke é acrescentar

ao pacto, baseado na liberdade, instituições que manterão esta liberdade e a tornarão efetiva.

Locke dá às instituições liberais as suas bases técnicas. Encontramos na sua obra o esboço da

monarquia limitada e já os esboços do regime parlamentar e do regime presidencial americano.

As instituições empíricas da monarquia de Guilherme d’Orange transformam-se em instituições

de valor universal para quem desejar estabelecer um governo livre. Primeiro Locke afasta

qualquer hipótese de dominação absoluta. A seu ver, não se trata de um estado social, mas de

um estado de guerra. Se os homens devessem trocar o estado de natureza pelo despotismo, era

bem melhor que permanecessem no estado de natureza. O poder absoluto é, pelo contrário, um

estado social, porque o povo pode colocar à sua frente um soberano ou uma legislatura

permanente, sem reservar para si o direito de ter deputados temporários. «É um erro acreditar

que o poder supremo ou legislativo pode fazer o que quiser, dispor arbitrariamente dos bens dos

súbditos ou tirar-lhes uma parte a seu bel prazer.» O soberano está vinculado pelas cláusulas do

pacto social. Todavia, Locke tem perfeita consciência de que a passagem do absoluto ao arbitrário

é muito fácil, só se houver prescrições exclusivamente morais ou impedimentos puramente

materiais a proibir o absolutismo de resvalar para o despotismo. Por isso, preconiza instituições

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capazes de assegurar, melhor que quaisquer outras, a liberdade. A primeira salvaguarda, e a mais

importante, é a separação de poderes, ou a distinção dos poderes. Mas em Locke a ideia é levada

sensivelmente mais longe; o seu alcance é mais vasto, o rigor maior. O poder divide-se, quanto

ao seu exercício, em três atividades que asseguram a legislação, a execução e a federação. Há,

assim, três domínios de ação: o da lei, a disposição geral; o da aplicação da lei pela administração

e pela justiça; e um terceiro, o das relações internacionais, o poder “federativo”, cujo nome

resume mal o conteúdo, que é o poder de tratar com potências estrangeiras, de declarar guerra,

de fazer a paz ou, de uma maneira geral, de aplicar as regras do direito internacional público ou

privado. Locke não se limita a esta distinção de princípio. Pensa, além disso, que há um enorme

inconveniente, para a liberdade e para o indivíduo, no facto de todas as formas de ação serem

confiadas às mesmas pessoas. É preciso, a todo o custo, separar a elaboração das leis da sua

execução. O poder de fazer as leis deve pertencer a uma assembleia. Ao invés, certos membros

da sociedade, em número reduzido, serão encarregados de aplicar as leis. Os dois poderes serão

diferentes, porque a assembleia que fizer as leis não as executará e os executantes da lei não

participarão na assembleia que as fez, e também porque esta assembleia não será permanente.

O poder legislativo será um poder descontínuo. Um poder temível, porque impõe regras que

obrigam a todos, mas que só se exercerá intermitentemente. A determinação da regra não deve

confundir-se com a sua aplicação, que é da responsabilidade de um poder contínuo. Em

contrapartida, Locke não vê grande inconveniente em que as relações externas – o poder

federativo – se juntem ao poder executivo. Finalmente, a divisão em três poderes ou órgãos,

legislativo, executivo e federativo, reverte a dois, uma vez que a execução no domínio interno e

no domínio externo se encontra num só. No entanto, neste como em muitos outros, Locke, que,

em suma, acaba de criar o liberalismo político, não é inteiramente explícito. Provavelmente, as

suas ideias não teriam atingido tal grau de perfeição, nem uma tão vasta expansão, se não

tivessem sido consagradas por outro génio, ou se graças a outro génio não tivessem sido objeto

de uma “segunda fundação”.

O LIBERALISMO ARISTOCRÁTICO: MONTESQUIEU

As duas fontes de O Espírito das Leis: antes de o superar, Montesquieu começou por ser

discípulo de Locke e do constitucionalismo britânico. No Ensaio sobre o Poder Civil encontram-se

reunidas «a teoria do poder limitado pelas leis fundamentais do bem público e da liberdade

privada, e a famosa repartição de funções, garantia da liberdade». Mas Montesquieu é também

o sucessor do tradicionalismo aristocrático, a que vai buscar uma parte importante das suas ideias.

Assegurando a confluência das duas tendências, Montesquieu é talvez o mais temível adversário

do absolutismo, porque é o mais realista. A melhor maneira de enfraquecer o poder, no interesse

da liberdade individual, não é transferi-lo, mas partilhá-lo. Ora, a partilha pode ocorrer de duas

maneiras: pode realizar-se no sentido vertical, por interposição, entre o poder e os súbditos, de

corpos intermédios que serão, segundo a tradição aristocrática, depositários de uma parcela do

poder; ou no sentido horizontal, com o reconhecimento de um poder legislativo, de um poder

executivo e de um terceiro poder que, para Locke, era “federativo”, mas que, para Montesquieu,

será “judicial”; três poderes que, colocados lado a lado, servirão mutuamente de contrapeso.

Montesquieu, magistrado, viajante e escritor: oriundo da antiga nobreza, Montesquieu

nasceu em Bréde, perto de Bordéus, em 1689. Faz tão bons estudos clássicos que às vezes quem

o lê pensa encontrar-se perante uma tradução dieta do latim. Em seguida estudará direito, que

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não o satisfaz por aí além, pois o que procura já em cada texto é o “espírito das leis”. Em 1714

torna-se conselheiro do Parlamento de Bordéus, e depois, a partir de 1716, presidente. É bom

magistrado, correto e trabalhador; mas, mais ainda do que as suas funções, gosta dos tempos

livres que elas lhe deixam para se dedicar à leitura e à escrita. «Tenho a mania de escrever livros»,

dirá. Também apresenta comunicações à Academia de Bordéus sobre matérias científicas. A sua

primeira obra, Cartas Persas (1721) traz-lhe fama graça a frases como esta: «A monarquia é um

estado violento que degenera sempre em despotismo ou em república; o poder nunca pode ser

igualmente partilhado entre o povo e o príncipe, o equilíbrio é muito difícil de conservar.» Graças

também, sem dúvida, ao tem de irreverência e ironia desprendida que transparece em algumas

expressões que utiliza: acerca do rei, diz que prefere um homem que o dispa ou lhe estenda a

toalha, a outro que conquiste cidades ou ganhe batalhas; sobre o papa, pensa que é um velho

ídolo que as pessoas veneram por hábito; e se a nobreza sai mais que arranhada quando escreve

que «o corpo dos lacaios é mais respeitável em França do que noutros sítios: pois aqui é uma

escola de grandes senhores», os parlamentos não saem mais bem tratados, quando afirma que

se «parecem com aquelas grandes ruínas que a gente espezinha». O sucesso leva-o a Paris, onde

os salões lhe abrem as portas. Livre, Montesquieu vai poder viajar. Depois do sucesso das Cartas

Persas e da entrada na Academia, teria podido continuar a escrever, como outros, livros sobre

países nunca vistos. Mas ele tem altas ambições, curiosidades ardentes e grande probidade

intelectual. Antes de abordar os grandes assuntos que o solicitam, sente a insuficiência da sua

preparação. Para remediá-la, faz uma longa viagem de vários anos, que é como que a charneira

da sua existência. De tudo isto, com o imenso talento da sua escrita, Montesquieu poderia ter

tirado imagens coloridas e quadros picantes. Mas, renunciando à facilidade, encerra-se no castelo

de La Brède e deita as mãos à obra para extrair lições das suas viagens, logo recoberta pelas suas

leituras. Em 1734 publica como um capítulo destacado da sua grande obra, Considerações sobre

as Causas da Grandeza e da Decadência dos Romanos, em que aparece o conceito de separação

de poderes: «As leis de Roma tinham dividido sabiamente o poder público num grande número

de magistraturas que se apoiavam, se controlavam e se moderavam entre si.» Depois, ao fim de

vinte anos de esforços O Espírito das Leis é editado em 1748. Em 1750, acrescenta-lhe um

suplemento, uma Defesa do Espírito das Leis. Mas já ultrapassou os sessenta anos e este trabalho

demasiado intenso, arruinou-lhe a saúde; morre em 1755, em Paris, durante uma das suas

habituais viagens.

Dificuldades de O Espírito das Leis: O Espírito das Leis é uma obra imponente, mas

também é uma obra de acesso difícil. O próprio Montesquieu se apercebeu do esforço exigido ao

leitor «por causa da extensão e do peso das matérias». Pensou que era necessário ler tudo e

extrair excertos copiados, uns a seguir aos outros, de volumosos registos. Esta obstinação em

nada deixa de perder, aliada à impossibilidade de se reler, explica a ausência de um plano de

construção do conjunto e a desordem de certas passagens. Também é possível que haja em

Montesquieu uma parcela de desordem deliberada. Procurava, assim, obter um efeito artístico.

E até é possível que tenha agido assim por prudência. Todos os escritores do período absolutista,

a não ser que glorifiquem o Príncipe, precisam de andar com pezinhos de lã. Montesquieu possui

uma grande coragem moral, mas a bravura física não é o seu forte.

Montesquieu politólogo: deve ser esta mesma prudência que impede Montesquieu de

intitular claramente a sua obra de A Política. Abrindo magistralmente o capítulo I do primeiro

livro com uma fórmula que se tornou célebre: «As leis, na sua significação mais extensa, são as

relações necessárias que derivam da natureza das coisas». Todavia, à exceção do título do livro e

de algumas passagens do princípio, é quase exclusivamente ao estudo dos governos que

Montesquieu se consagra. Logo no capítulo II do Livro I, aparece este título: Da natureza dos três

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diferentes governos. A partir daí, a definição dos governo e a determinação da sua natureza e do

seu princípio são fundamentais na trama do texto. As “leis” que, segundo o título genérico, seriam

o objetivo da obra, acabarão por ser apenas consequências e derivações. O índice mostra que a

análise das foras de governo rege todo o desenrolar da obra. O Livro II, com que ela começa

verdadeiramente, procede à diferenciação dos governos e ao estudo da sua natureza. O Livro III

examina os seus princípios. O Livro VIII estuda a sua corrupção. Os Livros VI a XIII extraem as

consequências da existência de diversas formas de governo; consequências quanto à educação

(Livro IV), quanto à legislação (Livro V), quanto à simplicidade das leis civis e penais; quanto à

forma dos julgamentos; quanto ao estabelecimento de penas (Livro VI); quanto às leis

sumptuárias: quanto ao luxo e quanto à condição das mulheres (Livro VII); quanto à força

defensiva e ofensiva (livro IX e X) quanto à liberdade política (Livro XI); quanto às liberdades

individuais (Livro XII); quanto aos impostos (Livro XIII). Aqui e ali, alguns capítulos ou fragmentos,

mais ou menos importantes, analisam as relações entre os governos e os costumes (Livro XIX);

entre governos e o comércio (Livro XX); e entre o governo e a população (Livro XXIV).

Natureza, princípios e formas de governo: o próprio Montesquieu limita com precisão o

seu tema. As formas pré-estatais podem ter interesse, mas não passam de uma introdução à

ciência política. Põe-nas de lado. Diz que não cabem no seu objetivo as sociedades que não têm

um poder supremo definido e constituído. Não considera os povos bárbaros, os povos selvagens,

os povos de caçadores e os povos de pastores; só examina formas acabadas, consideradas hoje

como estatais no sentido próprio do termo. Para as organizar, Montesquieu adota a classificação

utilizada geralmente no seu tempo. Não segue, embora a conheça perfeitamente, a vulgata de

Aristóteles, mas prefere juntar “democracia” e “aristocracia” sob o nome de “República”, como

Estados com várias formas de governo, e dividir o governo de um só em “monarquia” e

“despotismo”. Faz assim progredir consideravelmente a análise política, introduzindo duas

noções novas que distingue com cuidado: a natureza e o princípio. A natureza do governo é o que

faz que ele seja o que é; por outras palavras, a natureza do governo traduz a sua estrutura e o

seu mecanismo. O “princípio” é o que faz agir o governo, a mola que põe em marcha os cidadãos

e modela o espirito geral. Uma vez determinada a natureza e fixado o princípio, Montesquieu

deduz, para cada forma de governo, uma série de consequências rigorosas. Da “natureza” do

governo derivam as “leis políticas”, quer dizer, aquelas que tendem para a organização

governamental. Por outras palavras, da natureza do governo procede o direito constitucional. Do

“princípio” do governo provêm as leis civis e as leis sociais. Estas visam a manutenção de um certo

equilíbrio e a tomada de certas orientações, cujo princípio modela o direito geral público.

As Repúblicas: segundo esta terminologia, os regimes que Montesquieu considera

Repúblicas são, para a Antiguidade, Roma, Atenas e Esparta; e Veneza e Génova para a Idade

Média e os Tempos Modernos. Nestes exemplos, Montesquieu inclui sob o mesmo rótulo a

democracia e a aristocracia, porque naquelas cidades famosas viu-se, em geral, uma e outra

sucederem-se constantemente. Por isso, não as separou. No entanto, a natureza e os princípios

destas duas repúblicas não são os mesmos:

1. A República Democrática: é, por natureza, aquela em que a soberania está

nas mãos do povo que é, em certos aspetos, soberano e, noutros, súbdito.

Como monarca, obedece aos seus desígnios próprios, que exprime através

do sufrágio; como súbdito, obedece a magistrados por ele nomeados. Analisa

muito bem a sua subdistinção entre “democracia direta” e “democracia

representativa”. «O povo detentor do poder soberano deve fazer por sua

própria iniciativa tudo o que pode. Quanto ao resto, tem de fazê-lo por

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História das Ideias Políticas, Marcel Prélot e Georges Lescuyer

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大象城堡

intermédio dos ministros.» O princípio da República é a virtude. Parece que,

neste ponto, o próprio Montesquieu teve algumas hesitações. Num aviso em

que se nota ainda uma prudência em tanto temerosa clarifica o seu

pensamento. «Não se trata de uma virtude moral, nem de uma virtude cristã,

é uma virtude política.» A virtude republicana consiste no civismo. Este

reconhece-se por uma maior preferência dada ao interesse público do que

ao próprio interesse, e pelo amor às leis e à pátria. A virtude implica ainda a

igualdade e a frugalidade. O amor à igualdade limita a ambição exclusiva do

desejo, exclusiva da honra, de prestar melhores serviços à pátria do que os

outros cidadãos. «O amor à frugalidade limita o desejo de ter às necessidades

exigidas pela família, ficando o supérfluo para a pátria.» A virtude republicana,

portanto, o amor às riquezas, do qual resultaria um poder que um cidadão

não pode usar em seu próprio favor. Porque esta virtude «numa república é

uma coisa muito simples…, o amor da República…, é um sentimento e não

uma série de conhecimentos», a corrupção raramente começa pelo povo.

Mas se esta virtude deixar de existir, «a República torna-se um despojo; e a

sua força mais não será que o poder de alguns cidadãos e a licenciosidade de

todos». Daqui decorrem os traços principais da legislação de uma república:

as leis devem manter a igualdade; também devem conservar a pureza dos

costumes. O regime implica, assim, uma situação algo medíocre, relacionada

não só com o pequeno número, mas com o comportamento dos habitantes.

A República, tanto para Montesquieu como para os homens do seu tempo, é

um regime que só serve para Estados de pequenas dimensões, Estados-

Cidade;

2. A República aristocrática tem por natureza o facto de a soberania popular

estar nas mãos de alguns. Só uma parte do povo tem o poder soberano; a

outra parte está, para os que governam, como estão, numa monarquia, os

súbditos perante o soberano. A eleição de magistrados faz-se por escolha e

não por sorteio; estabelece-se um senado para regular os assuntos que o

corpo de nobres não é capaz de resolver. O princípio do regime republicano

aristocrático também se baseia na virtude, mas esta já não é o civismo; é a

moderação que o substitui, porque, se assim não fosse, uma República

aristocrática não duraria muito. A moderação por parte dos poderosos

deixará ao povo uma parcela de influência; será preciso criar inquisidores ou

controladores que, se necessário, recorrerão à violência para restabelecer a

liberdade do Estado; será preciso compensar o excesso de poder dos

magistrados com a brevidade do seu mandato; será preciso, enfim, devolver

a justiça ao povo. Se as leis não tiverem estabelecido o tribuno do povo, é

preciso que elas próprias sejam um tribuno.

As monarquias: Esta designação engloba a monarquia propriamente dita e o despotismo.

1. Quando se fala da monarquia, Montesquieu só considera os grandes Estados

contemporâneos. A natureza da monarquia é que o poder soberano esteja

nas mãos de um só homem, que governa através de leis fixas e

preestabelecidas. «O monarca é a fonte de todo o poder político e civil, mas

não absorve toda a autoridade, pois também é da natureza da monarquia ter

poderes intermédios, subordinados e dependentes, que impedem os desejos

momentâneos e caprichosos de um só individuo e asseguram a continuidade

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História das Ideias Políticas, Marcel Prélot e Georges Lescuyer

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大象城堡

e o caráter fixo das leis fundamentais.» Assim, o poder intermédio mais

conveniente é o do clero; o mais natural é o da nobreza; um terceiro poder

é dado a um corpo de magistrados que conserva o registo das leis e as

recorda aos príncipes. O princípio da monarquia reside na honra, ou melhor,

nas honras. Considera-as um móbil bizarro e filosoficamente falos, mas na

realidade omnipotente. «Pode levar ao objetivo do governo, como a própria

virtude. Salvaguarda, em todo o caso, a dignidade e a obediência. A honra,

com efeito, dita-nos que jamais o príncipe deve exigir uma ação que nos

desonre, porque ela nos tornaria incapazes de o servir.» Por conseguinte, a

monarquia implica também a desigualdade e privilégios. As leis zelarão por

isso;

2. O despotismo completa a descrição e a análise em profundidade dos regimes

políticos. Montesquieu dá como exemplo o regime dos turcos e de certos

países do Norte da Europa, em particular da Rússia. A natureza do regime é

que o monarca reina sem lei e segundo a sua vontade e os seus caprichos.

Aliás, muitas vezes, o soberano não manda porque não tem tempo; distrai-

se no serralho – quer dizer harém – e deixa os assuntos sérios para um

ministro. O princípio do regime é o medo, com os reflexos que gera. «Para

educar um animal, é preciso evitar cuidadosamente que ele mude de dono,

de lição e de passo. Deve atingir-se-lhe o cérebro com duas ou três ordens e

não mais.» Naturalmente, Montesquieu é muito severo com o despotismo.

«Quando os selvagens da Luisiana querem fruta, cortam a árvore pelo pé e

colhem os frutos. Eis o governo despótico.» Depois desta série de

observações, não se pode negar que Montesquieu tenha ido mais longe no

estudo dos governos do que os autores que o procederam. Com a introdução

das noções de “natureza” e de “princípio”, pela lógica assim conferida às leis

que daí decorrem, fornece uma explicação completa dos governos.

O seu único fim é fixar os perfis dos governos, examinar as suas realizações na história, enumerar

e especificar as condições morais e físicas da sua vigência, instalação, grandeza e declínio. A coisa

política deve ser estudada tal como é, explicada e não julgada. «Eu não justifico os usos, mas

descubro-lhes as razões.»

Os regimes que têm a liberdade por objetivo: contudo, o ato do nascimento da ciência

moderna da sociedade é apenas a primeira face do destino histórico de Montesquieu. A outra é

feita da teoria política que o autor explicou em O Espirito das Leis. Há uma rutura nas intenções,

que corresponde a uma viragem na sua vida. A dado passo da sua obra, o observador torna-se

doutrinário. Surge um ideal político ao qual subordinar a sua investigação. À primeira classificação,

que permanece descritiva, sucede uma segunda, dominada por uma “ideia-mãe”: a da liberdade.

Montesquieu é um observador; procede a investigações no local; ouve testemunhos orais;

examina testemunhos escritos. A sua epígrafe tem, portanto, um sentido esotérico que ele lhe

atribuía no círculo dos íntimos. A “mãe” que não participou no nascimento de O Espírito das Leis

é a Liberdade. Montesquieu escreveu num país onde ela não existia. A sua obra nasceu sem mãe.

No entanto, esta liberdade, mãe das leis justas, descobriu-a nas margens de Além-mancha. E este

encontro tornou-se matéria de deslumbramento. Em Paris, a monarquia desagrada-lhe

profundamente. A que conhece é a monarquia da Regência, «onde a arte de governar mais não

é que a arte de corromper». Ao iniciar a sua grande viagem está inclinado a escolher para modelo

as Repúblicas da Antiguidade. Mas quando visita Génova e Veneza, a sua deceção é completa.

Reencontra à beira do grande canal a corrupção que tinha deixado nas margens do Sena. Em

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História das Ideias Políticas, Marcel Prélot e Georges Lescuyer

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contrapartida, a Inglaterra representa para ele o regime por excelência da liberdade. É a grande

viragem da sua obra, o famoso capítulo VI do Livro XI, sobre a constituição inglesa, escrito, sem

dúvida, depois de 1734. Montesquieu abandona a posição de observador imparcial e toma

partido vigorosamente. A primeira consequência da admiração pela Constituição Inglesa é o

abandono dos pontos de vista tradicionais e a proposta de uma nova classificação com a liberdade

por critério. As Repúblicas não são Estados livres por natureza. A inaptidão da República para

trazer liberdade se deve ao facto de ser um regime socialmente indiferenciado, um regime

igualitário, um regime de massas em que todas as partes são homogéneas. Os elementos são

justapostos e não hierarquizados. Satisfaz a igualdade, mas não a liberdade. A monarquia não

tem necessariamente a liberdade por objetivo. Pode visar apenas a glória do Estado ou do

Príncipe. Nesse caso, afasta-se cada vez mais da liberdade, e separa-se cada vez mais da liberdade,

e separa-se dela completamente quando degenera em despotismo. Mas a monarquia torna a

liberdade possível. Sociologicamente é o regime em que a divisão do trabalho social vai mais

longe. A sua estrutura social é diferenciada pela multiplicidade de ordens funções e condições;

uns fazem as leis, outros aplicam-nas, uns governam, outros julgam. Ninguém pode afastar-se da

sua função, nem imiscuir-se na de outrem. As classes moderam o poder do monarca. Os órgãos

do corpo social moderam a autoridade real e moderam-se uns aos outros. A separação de

poderes não se aplica só aos órgãos do governo. É um princípio de ordem geral: a monarquia está,

assim, predisposta a ser um regime liberal. Pode vir a sê-lo acidentalmente; também o pode ser

deliberadamente. Não bastam os obrigações da consciência ou os conselhos da razão. O pode

terá de ser partilhado. Haverá liberdade política, porque de cima abaixo serão mantidos «os

escalões intermédios»; e no topo estabelecer-se-á uma separação de poderes. «A liberdade só

se encontra nos governos moderados.» Mas nem sempre existe nos Estados moderados: só

quando não se abusa do poder. Para que não se possa abusar do poder, é preciso que o poder

trave o poder, segundo uma máxima fundamental d’O Espirito das Leis. Montesquieu começa por

retomar a trilogia de Locke: poder executivo, federativo e legislativo. Depois, sem se explicar

claramente escamoteia o poder federativo. Substitui-o pelo poder judicial, que por sua vez fará

desaparecer, tornando-o invisível e nulo. Restam o poder executivo e o poder legislativo,

repartindo-se este por duas Câmaras. «Eis, portanto, a constituição fundamental de que falamos.

Sendo o corpo legislativo composto por duas partes, cada uma acorrenta a outra pela faculdade

mútua de impedir. As duas estarão ligadas pelo poder executivo, e este, por sua vez, pelo poder

legislativo.» Feitas as contas é do Parlamento inglês que se trata: Câmara dos Comuns, Câmara

dos Lordes e Rei. «Estes três poderes deveriam estar em repouso ou inativos; mas como, pelo

movimento necessário das coisas, são obrigados a agir, terão de o fazer concertadamente.»

A SOBERANIA POPULAR: JEAN-JACQUES ROUSSEAU

O Cidadão de Genébra

Saída de Genébra: na segund ametade do século, a opinião pública desvia-se de Londres

e volta-se para Genébra, ao encontro de Jean-Jacques Rousseau. Sem dúvida, esta cidade é bem

diferente da Cidade-Igreja de Calvino, embora conserve dela certos hábitos, nomeadamente o de

fechar as portas à noite. Este fechar de portas terá uma influência decisiva na via do autor do

Contrato Social. Filho de um pai caído em desgraça e extravagante e de uma mãe que morreu ao

dá-lo à luz, uma escapadela entrega-o à sua carreira errante, à vagabudagem familiar, profissional

e intelectual que marcará o seu espírito e a sua obra. Para evitar uma sanção, Rousseau refugia-

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História das Ideias Políticas, Marcel Prélot e Georges Lescuyer

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大象城堡

se na Sabóia. Em 1741, parte para Paris com quinze luíses na algibeira. É bem recebido nos meios

mundanos, onde se impõe pelos seus conhecimentos musicais. É graças à música que Diderot o

contrata para colaborador da Enciclopédia, apesar de Rousseau, com mais de 35 anos, ainda não

ter escrito nada. O tema do concurso proposto pela Academia de Dijon incita-o a pegar na pena:

«A contribuição do restabelecimento das letras e das artes para melhorar os costumes.» Esta

questão atua no seu espírito como um catalisador que provoca a cristalização dos seus

sentimentos esparsos e dos seus pensamentos incertos. Diderot orgulha-se de lhe ter dado a

ideia. Mas já estava presente na sua vida. Rousseau, a caminho de Vincennes, é possuído por um

deslumbramento. Uma iluminação revela-lhe a própria filosofia da sua existência. Corrompido

pela sociedade, atribui-lhe um papel corruptor. No Discurso sobre as Ciências e as Artes (1750)

denuncia a sua má influência, colocando-se, assim, em oposição às ideias recebidas.

O período das grandes obras: neste momento, com uma lógica que raramente porá nos

seus atos, Rousseau retira-se do mundo. Recusa as honras e proveitos com que poderia ter sido

cumulado. A sua retirada depressa o levará ao Ermitage (1756) e depois a Montmonercy (1758),

onde desenrola a parte mais fecunda, se não a mais feliz, da sua vida. Dois anos antes, Rousseau

tinha publicado o seu primeiro texto político, o artigo “Economia Política” da Enciclopédia. Este

tema traduz o seu interesse pelas questões sociais, e também a competência que devia ser-lhe

reconhecida na matéria. O Discurso sobre a Origem da Desigualdade entre os Homens, tema

igualmente proposto pela Academia de Dijon não trouxe recompensa a Rousseau. Talvez por se

tratar de uma verdadeira declaração de guerra à sociedade existente: «Vê-se o que se deve

pensar da desigualdade que reina entre todos os povos civilizados, uma vez que é

manifestamente contra a lei da natureza… que uma criança mande num velho, um imbecil

conduza um homem sábio e um punhado de gente se encha de coisas supérfluas, enquanto a

multidão carece do necessário.» A condenação é tão violenta que seria caso para perguntar

porque razão o homem não deixa a sociedade para regressar ao estado de natureza, se na última

parte da obra não houvesse já o esboço de uma construção racional ulterior, o Contrato Social,

onde Jean-Jacques anuncia os problemas que irá abordar, assinalando as suas dificuldades e o

seu interesse. Dois pequenos textos de importância secundária mostram a persistência da suas

preocupações políticas e a intenção de em breve esclarecer estas questões: Juízo sobre a

Polissinodia do abade Saint-Pierre e Juizo sobre o projeto de Paz perpétua d abade Saint-Pierre.

Enfim, em 1761, Rousseau acaba e publica o Contrato Social, que apresenta como um simples

fragmento das “Instituições Políticas” que teria desejado escrever. Assegura que não está

plenamente satisfeito. Mais tarde chega a considerar o Contrato como um livro a reescrever,

embora «já não tenha força, nem tempo».

A vida errante: a condenação do Émile pelo Parlamento de Paris obrigou Jean-Jacques a

fugir para a Suíça. Começou, então, para o autor do Contrato Social, uma vida errante. Jean-

Jacques julga-se perseguido. Efetivamente, os enciclopedistas perseguem-no com um ódio tenaz.

Para fugir dos inimigos, entre 1764 e 1768, não pára de viajar. Em Val Travers, acaba as Cartas

Escritas da Montanha (1764), em que o aspeto suíço e genebrino da sua obra política se acentua

em proveito da imaginação. As suas últimas obras são Considerações sobre o Governo da Polónia

e Seu Percurso e Reforma, redigida a pedido de um magnata polaco, e Cartas a Madame Butta

Foco, projeto de Constituição para Córsega. Mas ficaram ambas inéditas, só tendo conhecido

depois da sua morte. Morre em 2 de julho de 1778, em Ermenoville. Conforme desejava, foi

enterrado na ilha dos Peupliers (choupos), no meio do parque. Em 1794 as suas cinzas foram

transferidas para o Panteão.

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História das Ideias Políticas, Marcel Prélot e Georges Lescuyer

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大象城堡

Rousseau, discípulo da Escola do Direito Natural: Jean-Jacques Rousseau presta

homenagem a Montesquieu, mas não está de acordo nem com as suas conceções, nem com o

seu método. Retoma, de outra maneira, a crítica dos partidários do absolutismo esclarecido. Na

sua opinião, Montesquieu ficou a meio caminho. «O direito político está ainda por nascer».

Montesquieu – que teria podido criá-la – não se preocupou em traçar-lhe os princípios,

contentou-se «em tratar de direito positivo dos governos estabelecidos». Esta atitude objetiva é,

pelo contrário, condenada por Rousseau, como uma fraqueza fundamental: «Não há nada no

mundo tão diferente como estes dois estudos.» Jean-Jacques pretende dizer o que deve ser e

não o que é. Nele, ganha a maior importância a oposição entre a politologia dogmática e a

politologia positiva, entre o que se poderia chamar a política “especulativa” e a política

“experimental”. Apesar da sua falsa reputação, o Contrato Social é um livro de direito. O subtítulo,

mais exato que o título, mas menos sonoro, é Princípios do direito público. Jean-Jacques utilizou

largamente todas as suas leituras. Não só conhecia as obras destinadas a um público vasto, como

as de Hobbes, de Locke ou de Montesquieu, e ainda textos mais técnicos dos mestres e dos

divulgadores da Escola do direito da natureza e das gentes, expressão com que na época se

denominava a ciência do direito. A sorte de Rousseau foi que, em vez de escrever um livro escolar

num latim pesado ou cheio de ornatos, como fez Grotius, pôs numa obra literária a substância de

um tratado de direito positivo.

O estado de natureza: ao intitular o seu livro Contrato Social, Rousseau prefere

simplesmente um título evocativo a um título neutro. Mas, no fundo, esta escolha segue a

tradição. Toda a Escola do direito da natureza e das gentes – e antes dela a Escolástica – admite

a existência inicial de um “contrato social”, fundador da sociedade civil. Hobbes disse que o

estado de natureza era perigoso, um estado a abandonar, um estado do qual se deve fugir o mais

depressa possível quaisquer que sejam as condições, como se foge de uma casa em chamas

invadida pela peste. Locke, depois dele, acha que o estado de natureza não é necessariamente

bom, nem fatalmente mau. Tanto pode ser superior como inferior ao estado de sociedade. Pensa

que só se sai do estado de natureza para melhor e não para pior, contrariamente a Hobbes;

sobretudo, considera que não se sai a qualquer preço. O “contrato social” funda uma sociedade

de participação limitada. Montesquieu, por sua vez, atém-se às realidades da observação. Afasta

do seu campo de estudo os povos em estado selvagem e só considera o estado social. Para

Rousseau, estado de natureza é o estado de bem aventurança. É a sua utopia, ou melhor, o seu

anacronismo. «Eu vejo o homem saciando a fome debaixo de um carvalho, dessedentando-se no

primeiro regato do caminho, fazendo a cama ao pé da árvore que lhe deu de comer… Os únicos

bens que conhece no universo são o alimento, uma fêmea e o repouso. Os únicos males que teme

são a dor e a fome, não precisa dos seus semelhantes para nada e não reconhece nenhum

individualmente.» O estado de natureza, o verdadeiro e puro estado de natureza é, assim, o

estado selvagem, no qual os homens foram criados e viveram durante milhares de anos.

Caracteriza-se pelo isolamento vagabundo, pela ausência de qualquer linguagem, de qualquer

relação regular, pelo sono da razão e a ignorância da moralidade. Em contrapartida, o homem no

estado de natureza é robusto, são e ágil. Como encontra facilmente o pouco de que precisa, é

completamente feliz. Rousseau pede «que lhe expliquem qual pode ser o tipo de miséria de um

ser livre, cujo coração está em paz e o corpo de boa saúde». No entanto, «para sua mais completa

felicidade e depois para sua infelicidade os homens possuem duas faculdades, a liberdade de

concordar ou resistir e a faculdade de aperfeiçoar». Ajudadas por circunstâncias fortuitas, elas

encaminham o homem para relações com os seus semelhantes, embora conservando a sua plena

independência. Ele quer saborearas alegrias da família, encontrar melhor e mais depressa o que

lhe é necessário, aceder a uma certa moralidade. Há, assim, para Rousseau, um segundo período

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História das Ideias Políticas, Marcel Prélot e Georges Lescuyer

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do estado de natureza em que os homens ainda são mais felizes do que no primeiro. «Embora se

tenham tornado menos resistentes e a compaixão natural já tenha sofrido alguma alteração, este

período de desenvolvimento das faculdades humanas, mantendo um justo equilíbrio entre a

indolência do estado primitivo e a petulante atividade do nosso amor-próprio, deve ser a época

mais feliz e mais duradoura.» A humanidade sai dela por um funesto acaso: a invenção da

metalurgia e da agricultura. Estas duas formas de trabalho vão gerar a propriedade individual do

solo, a desigualdade, a riqueza e a miséria, as rivalidades, as paixões e as mais desordens temíveis.

Os conflitos e as rixas explodem. Vítimas da fatalidade que faz com que um estado anterior,

depois de abandonado, não possa ser reencontrado, devem doravante, para escapar à destruição

material, associar-se em vez de se combaterem. O Discurso sobre a Desigualdade descreve as

três fases de instalação da sociedade civil. A primeira situação de desigualdade foi criada pela

diferença entre ricos e pobres («o primeiro que tendo cercado um terreno, se apressou a dizer:

isto é meu, e encontrou gente bastante simples para acreditar nele, foi o verdadeiro fundador da

sociedade civil»). A segunda situação surge com a distinção entre governantes e governados,

imposta pelos ricos, que querem que as suas propriedades sejam defendidas pelo aparelho

coercivo de um governo. A terceira situação sobrevém quando, em virtude de os governantes se

terem tornado déspotas, se estabelece a distinção entre senhores e escravos. Tudo isto lembra

os temas caros aos estoicos e aos primeiros cristãos; haveria uma falta misteriosa ou pecado

original. Propriedade privada, escravatura e governo são outras tantas punições. A sociedade civil

é furto de uma evolução infeliz. Esta é natural ao homem, mas da mesma maneira que a

decrepitude do idoso e as muletas do doente. Este do mal-o-menos é, inevitável, dada a

irreversibilidade das transformações sociais.

O liberalismo de Rousseau: no estado social, o problema consiste em saber como salvar

a liberdade primitiva. Renunciar-lhe seria renunciar à qualidade de homem, aos direitos da

humanidade e, por isso mesmo, aos deveres que ela impõe. Como conciliar, então, as

necessidades de associação e a manutenção da liberdade natural, que não deve ser alienada?

Como fazer com que, simultaneamente, ninguém tenha de suportar um senhor e ninguém tenha

o direito de impor a sua vontade aos outros? À primeira vista, trata-se de exigências atagónicas,

mas Rousseau julga-se em condições de dar uma resposta válida. Na realidade, deu duas

respostas diferentes. Estas divergências explicam-se facilmente. Jean-Jacques começou por

descrever a sociedade existente, descoberta pelo pequeno-burguês calvinista acabado de chegar

de Genebra. E é a isso que ele se dedica por inteiro, Haverá alienação da liberdade pessoal ao

corpo social, mas a soberania do corpo social, em que cada participa, fará com que cada um,

obedecendo-lhe, obedeça apenas a si próprio. Rousseau quer a liberdade, mas à maneira dos

antigos, o que quer dizer que a vê assegurada pela participação na determinação do

comportamento da coletividade, ao passo que a liberdade dos modernos é a do comportamento

individual, tal como tinha discernido perfeitamente Montesquieu, que a deu por objetivo ao

governo constitucional. É uma encruzilhada do liberalismo, em que se abrem dois grandes

caminhos para eliminar o absolutismo do príncipe:

O primeiro consiste em partilhar o poder. É a solução do tradicionalismo

aristocrático, assim como a do liberalismo nascente;

Um segundo caminho faz passar o poder do príncipe para a coletividade: para o

povo, com Rousseau.

Em ambos os casos, é o fim do poder absoluto. No primeiro, a unicidade, condição do absolutismo,

rompe-se; no segundo, há transferência do poder pessoal para a coletividade, que para Rousseau

é o povo reunido. Uma parte dos liberais concluirá que a transferência do poder para o povo não

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História das Ideias Políticas, Marcel Prélot e Georges Lescuyer

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assegura a liberdade e, pelo contrário, pode até criar um novo absolutismo. Rousseau, pelo

contrário, acha que obedecer a todos não é obedecer a ninguém, quando se é membro do todo.

A solução reside na desnaturação da liberdade e da igualdade naturais. A cláusula fundamental

do contrato social é a de uma sociedade formada com base na «alienação total de cada associado,

com todos os seus direitos, à comunidade». Mas esta alienação não suprime a liberdade e

igualdade: «desnatura-as». Tratando-se da liberdade, cada um compromete-se com todos, mas

não se entrega a ninguém em particular; o indivíduo não fica sujeito a quem quer que seja, e só

obedece a si próprio. Tendo contratado apenas consigo próprio, é tão livre como anteriormente.

No que respeita à igualdade, a alienação é idêntica para cada um, que «adquire sobre cada um

dos outros exatamente o mesmo direito que lhe cede sobre si.» Liberdade e igualdade são assim

mantidas, mas à liberdade natural sucedeu a liberdade civil, a do cidadão, enquanto a igualdade

natural foi substituída pela igualdade civil, muito diferente daquela espécie de anarquismo que

percorria do Discurso sobre a Desigualdade. Rousseau diz: «Cada um de nós põe em comum a

sua pessoa e todo o seu poder sob a suprema direção da vontade geral; e recebemos um corpo

cada membro como parte indivisível de todo.» Esta soberania do corpo social é indivisível,

pertence ao todo e não à parte. A vontade é geral ou não é vontade. Pertence ao povo no seu

todo. O pacto, que funda a sociedade no consentimento dos indivíduos e substitui legitimamente

a liberdade natural pela soberania do corpo social, não pode limitar esta. «Para que o pacto social

não seja uma fórmula vã contém tacitamente um compromisso, o único que pode dar força aos

outros: aquele que recusar obedecer à vontade geral será forçado a fazê-lo por todo o corpo

social.»

A vontade geral: esta vontade geral manifesta-se pela voz da maioria. «Nem sempre é

necessário que seja unânime, mas é necessário que todos os votos sejam contados. Toda a

exclusão formal rompe a generalidade.» O soberano que vai determinar a vontade geral é o

conjunto do povo. É formado pelos particulares que o compõem. «Suponhamos que o Estado é

composto por dez mil cidadãos. Cada membro do Estado tem pela sua parte um décimo milésimo

da autoridade suprema.» Devido a esta conceção atomística ou individualista da soberania, «será

necessário adicionar todas as parcelas para a reconstituir por inteiro. Mas ao proceder assim, não

se corre o risco de que haja uma vontade geral da maioria, por um lado, e uma vontade

minoritária, por outro? Seria compreender mal o que é, «a vontade geral». O que a maioria

escolheu é deveras a vontade geral, mas o que a minoria, por sua conta, reteve, é só uma falsa

ideia da vontade geral. Quando a maioria se pronuncia, a minoria deve inclinar-se e aceitar que a

verdade está na vontade expressa pela maioria. A vontade geral não pode ser confundida com a

vontade de todos. Há aqui um ponto em que Rousseau, muitas vezes difícil de compreender, é

frequentemente mal entendido. A vontade geral é, na verdade, aquilo a que os escolásticos

chamavam «o bem comum». A vontade geral é um instituto que Rousseau atribui ao ser moral e

coletivo que é o corpo político e a que se liga à comum conservação e ao bem-estar geral.». Então

«o bem comum mostra-se nitidamente em todo o lado, só pedindo bem senso para ser visto».

Cada um quere-o no que lhe diz respeito, e pode dizer-se que cada vontade é geral pelo seu

objetivo. Por isso, o corpo funciona por si e os comportamentos conformam-se naturalmente ao

bem público. Trata-se, enfim, de uma conceção moralista, mesmo que se considere o Contrato

Social uma obra de direito. Moralmente, o que é melhor para a comunidade é também melhor

para cada um dos seus membros, individualmente considerado. A vontade geral é a faculdade

que permite ao homem social querer o interesse geral contra o seu interesse particular.

A democracia direta: mas para haver manifestação da vontade geral, há uma condição

absoluta: é preciso que seja o corpo político a proceder à sua descoberta. Só diretamente

consultado é que ele pode fazer leis. Aqui se revela a primeira consequência política prática do

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História das Ideias Políticas, Marcel Prélot e Georges Lescuyer

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sistema de Rousseau, a exclusão da representação em matéria legislativa. «A soberania não pode

ser representada, pela mesma razão por que não pode ser alienada. Consiste essencialmente na

vontade geral e a vontade geral não se representa. É a mesma ou outra, não há meio-termo. Os

deputados do povo não são nem podem ser seus representantes: são apenas comissários; não

podem concluir nada definitivamente.» Se o povo não intervém para deliberar por si, haverá pelo

menos um referendo de aceitação: «Qualquer lei que o povo não tenha ratificado pessoalmente

não é uma lei.» E eis que uma diatribe bem conhecida. «O povo inglês pensa que é livre, mas está

muito enganado. Só o é durante as eleições dos membros do parlamento; logo que eles são

eleitos torna-se escravo, passa a não ser nada. Nos curtos momentos de liberdade, merece perdê-

la pelo uso que faz dela.» «A ideia de representantes é moderna: vem do governo feudal, desse

iníquo e absurdo governo com o qual a espécie humana se degradou e onde o nome do homem

se desonrou. Nas antigas repúblicas e mesmo na monarquia, nunca o povo teve representante.

Não se conhecia tal palavra» O exercício da soberania não só deve pertencer inicialmente ao

conjunto do povo, mas permanecer aí. Assim, de um ponto de partida bastante difícil de discernir,

com a distinção, muitas vezes imprecisa, entre a vontade de todos e a vontade geral, Rousseau

tira conclusões de uma clareza ainda mais perfeita por se apoiarem na Antiguidade, por um lado,

e na Suíça, por outro. O exercício do poder legislativo pertence ao povo. Por conseguinte, o

governo ideal é o da cidade antiga e da «maior parte dos governos antigos, mesmo monárquicos,

como os dos Macedónios e dos Francos». O povo reúne-se e estatui. Se não puder, os que

legislam em vez dele não serão seus representantes, mas apenas encarregados, o que quer dizer

que o trabalho que fazem é preparatório e que as suas decisões, ad referêndum, só serão

definitivas depois da aceitação pelo povo. A segunda consequência, quase tão importante como

a primeira, é que o monopólio de fazer as leis é reservado ao corpo social, excluindo-se qualquer

partilha. «Os nossos políticos, não podendo dividir a soberania no seu princípio, dividem-na no

seu objetivo: dividem-na em força e em vontade; em poder executivo e poder legislativo; em

direito de tributação, de justiça e de guerra; em administração interna e poder de tratar com o

estrangeiro. Fazem do soberano um ser fantástico e formado por peças cosidas umas às outras…»

E acrescenta: «Os charlatães do Japão despedaçam, diz-se, uma criança à vista dos espectadores;

depois, atirando ao ar, um a um, os seus membros, fazem cair a criança viva e inteirinha. São

assim, pouco mais ou menos, as aldrabices dos nossos políticos; depois de terem desmembrado

o corpo social por meio de um prodígio digno de feira, juntam as peças não se sabe como.» Por

isso, só pode haver uma soberania legítima, a do corpo social: a soberania democrática. Nestas

condições, nem a monarquia, nem a aristocracia ou a oligarquia parecem caber no sistema de

Jean-Jacques Rousseau.

Variedades de governo: contudo, ele admite a existência de diversas formas de governo.

A diferença entre o Estado e o governo, entre a constituição do poder e a do governo, não é nova.

Já no século XVI, Bodin não as confundia e até explicava qual era o critério da soberania: «o poder

de fazer e desfazer as leis». Quanto ao governo é o órgão que aplica as leis; Rousseau sublinha:

«Chamo governo ou suprema administração ao exercício legítimo da autoridade executiva e

chamo príncipe ou magistrado ao corpo encarregado desta administração.» Para ser legítimo, o

governo deve obedecer ao soberano, de que é o ministro. O governo recebe a sua função

somente do povo e não de um povo, de um rei ou de um aristocrata. O povo concede mandatos

regulares e sempre revogáveis ao príncipe ou ao magistrado, «simples funcionários que exercem

em seu nome o poder de que o povo soberano os fez depositários e que não pode limitar,

modificar ou retomar quando lhe apetece; sendo a alienação dum tal direito incompatível com a

natureza do corpo social e contrária ao objetivo da associação...» Se a posse da soberania é

absoluta nas suas prescrições, na medida em que representa a própria essência do Contrato

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História das Ideias Políticas, Marcel Prélot e Georges Lescuyer

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Social, pelo contrário, a escolha do tipo de governo é relativa, Rousseau retoma a classificação

tradicional de Aristóteles dos governos democrático, aristocrático e monárquico.

O governo democrático: até aqui, admite, em relação a este ponto, a influência das

circunstâncias e introduz elementos de relatividade: terreno, população, clima. Aceita que se

façam comparações e que haja discussão. Contrariamente ao que se poderia presumir não é

partidário do governo democrático. Teoricamente, seria o governo ideal «Quem faz a lei sabe

melhor do que ninguém como ela deve ser executada e interpretada. A melhor constituição é

aquela em que o poder executivo está ligado ao legislativo.» «Se houvesse um povo de Deus,

governar-se-ia democraticamente.» Mas dizer que um governo democrático é feito para um povo

de Deus é, ao mesmo tempo, considerar que não é feito para um povo de Deus é, ao mesmo

tempo, considerar que não é feito para os homens, o que leva Rousseau, depois de encarar a

hipótese desse regime, a relega-lo para um Olimpo constitucional. Primeiro, por uma razão

material: não se pode imaginar o povo sempre reunido para tratar exclusivamente dos negócios

públicos. Se o povo tivesse que ser ao mesmo tempo o autor da lei e o agente da sua execução,

deveria reunir permanentemente. Depois, se o conjunto do povo governasse, o poder legislativo

reabsorveria o executivo. Se o soberano, quer dizer o legislador, e o príncipe, quer dizer o

executivo, fossem a mesma pessoa coletiva, o conjunto do povo formaria, por assim dizer, um

governo sem governo. Esta distinção traz vantagens. As duas vantagens Às vezes estão de acordo

e outras vezes opõem-se. Do seu esforço combinado, da sua concordância ou do seu conflito

depende o funcionamento de toda a máquina. Enfim a confusão entre o legislador e o executivo

obrigaria o corpo político a descer ao pormenor. Ora, a ideia está subjacente a qualquer obra, o

perigo está no peculiar. Se o povo fosse executivo e legislativo ao mesmo tempo «desviaria a sua

atenção da perspetiva geral para a dedicar a objetivos particulares», quando a lei deve ser

expressão da vontade geral, não só na origem, mas também no objetivo. «Tomando o termo na

sua aceção rigorosa , nunca existiu verdadeira democracia e jamais virá a existir. E contra a ordem

natural que o grande número governe e o pequeno seja governado.» Pois que semelhante

governo pressuporia «um Estado muito pequeno onde fosse fácil reunir o povo e onde cada

cidadão pudesse facilmente conhecer todos os outros; em segundo lugar serie necessária uma

grande simplicidade de costumes para prevenir a acumulação de problemas e de discussões

espinhosas; depois teria de existir uma igualdade nas categorias e nas fortunas…; enfim pouco ou

nenhum luxo…[que]corrompe ao mesmo tempo o rico e o pobre, a um pela posse e ao outro pela

cobiça… retirando ao Estado todos os seus cidadãos para os sujeitar uns aos outros e todos eles

à opinião». É precisamente por «não haver governo tão sujeito à guerras civis e às agitações

intestinais como o democrático ou o popular, porque não há nenhum outro que tanto e tão

continuadamente tende a mudar de forma, nem que exija mais vigilância e coragem para manter

a que lhe pertence…», que a conclusão se impõe: «um governo tão perfeito não convém a

homens».

O governo monárquico: reconhecida a impossibilidade de recorrer a um governo

democrático, deve, então, preferir-se a monarquia, entendida no sentido de poder executivo

individual? Jean-Jacques admite-o, na condição de a monarquia ser aceite pelo conjunto do povo,

isto é, de, na prática, ser eleitoral. Nesse caso, torna-se legítima. Rousseau designa-a «a

monarquia republicana». «Chamo república a todo o Estado regido por leis, seja qual for a sua

forma de administração.» A administração republicana pode ser monárquica. Este tipo será

realizado pela constituição que em breve irá desabrochar do outro lado do Atlântico. Com um

presidente eleito, o regime americano pode ser qualificado como “monarquia republicana”. A

partir desse momento, a conceção clássica dos homens do século XVIII, para quem a República

era o governo da muitos vais ser substituída pela noção de República como equivalente de

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democracia. Quando um príncipe, pessoa física, dispõe do poder executivo, «não pode haver

governo com mais vigor», mas «também não há nenhum em que a vontade particular exerça

mais influência». E eis que desponta em Rousseau uma certa inquietação: o governo tende

sempre a reforçar-se, ao passo que a soberania tende sempre a abrandar. A assembleia destinada

a fazer as leis reunirá de tempos a tempos, mas o executivo terá caráter permanente. Se for muito

concentrado, se estiver nas mãos de um só, arrisca-se progressivamente a invadir o terreno do

soberano e, finalmente, a aniquilar a democracia.

O governo aristocrático: Rousseau prefere uma forma governamental intermédia e, por

fim, pronuncia-se a favor de um governo aristocrático, quer dizer, um Estado democrático em

que o Governo pertence a um pequeno número de homens. Em primeiro lugar a aristocracia

permite distinguir o poder executivo do poder legislativo. Em segundo lugar, o sistema

aristocrático, ao escolher os membros do governo entre um pequeno número de personalidades,

assegura praticamente uma seleção, e daí o elogio espantoso que faz da eleição. Mas Rousseau

é incompreensível se não se distinguir claramente entre o que diz a propósito da soberania e o

que afirma acerca do governo Pode ter sobre o governo uma posição diametralmente oposta à

que tinha sobre a soberania. Enfim, a vantagem de uma oligarquia de governantes é permitir uma

melhor discussão dos assuntos, que serão resolvidos com maior ordem e diligência, dano do

Estado uma credibilidade mais firme. O melhor e mais natural é que sejam os mais sábios a

governar a multidão. Ora, de acordo com o que disse anteriormente, a escolha feita pelo conjunto

do povo será necessariamente uma escolha sábia.

Genebra reencontrada e proibida: a construção de Rousseau não tem, portanto, nada de

irrealista. O seu sistema confia a legislação à assembleia popular. Ora, esta combinação de

aristocracia e democracia, no seio de um regime republicano, é simplesmente uma transposição

e uma idealização do sistema genebrino por parte de um homem que acrescenta ao seu nome o

título de “cidadão de Genebra” e gosta de recordar que «nasceu cidadão de um Estado livre e

soberano». Ainda hoje, espíritos muito diferentes estão de acordo sobre este ponto: Rousseau

projetou no plano eterno as instituições da minúscula República de Genebra. Mas em 1762, a

própria Genebra condena o Contrato Social e obriga o autor a renunciar a uma cidadania que lhe

era tão cara. «Só me resta sofrer ou morrer… quando deixei a França quis honrar com a minha

presença o Estado da Europa que mais estimava e tive a simplicidade de acreditar que me

agradeceriam pela escolha. Enganei-me: a culpa é minha, não se fala mais nisso…» Havia, com

efeito, razões para ficar inquieto, quanto mais não fosse por causa da exaltação da comunidade

a que leva a vontade geral. É que, doravante, o Rousseau anarquizante do Discurso louvará os

benefícios do estado social. Não deverá o cidadão «bendizer sem cessar o feliz instante que o

arrastou para sempre (ao estado de natureza) e que, de um animal estúpido e limitado, fez um

ser inteligente e um homem»? Mas, como «tratar separadamente a política e a moral» é «não

compreender nada nem de uma nem de outra», esta espécie de entusiasmo platónico pela

comunidade é ainda mais preocupante porque, longe de se ater ao plano moral donde partiu a

ideia, tem a sua tradução política no absolutismo. O verdadeiro soberano é, na realidade esta

infalível vontade geral, inalienável e indivisível, outros tantos aspetos que equivalem a dizer que

é absoluta.

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O LIBERALISMO PURO: BENJAMIN CONSTANT

A era liberal: no interior francês, o liberalismo dominante provém da segurança burguesa,

tal como esta se instala depois da Restauração para durar até 1914. Por certo, essa tranquilidade

ser atravessada por duas breves mas violentas tempestades: as Jornadas de Junho e a Comuna.

No exterior, o liberalismo clássico mergulha nesse clima europeu e já largamente realizado, aos

olhos de Benjamin Constant. «A própria divisão da Europa em vários Estados é, graças ao

progresso das luzes, mais aparente do que real. Ao passo que cada povo formava outrora uma

família isolada, inimiga nata das outras famílias, existe agora uma massa de homens com nomes

diferentes e diversas formas de organização social, mas homogénea na sua natureza.» Guerras

breves e limitadas não modificarão durante cem anos esta situação.

O inventor do liberalismo: Émile Faguet atribui a invenção deste a Benjamin Constant. No

entanto, a palavra “liberal” é anterior. Constant, pelo seu lado, prefere designar-se

“independente”. Aliás, não se pode atribuir a um só homem a honra de ter sido o inventor de

uma doutrina que não deixou de evoluir depois da contestação do absolutismo. Mas Benjamin

Constant tem o mérito de a ter libertado de outros elementos que se lhe colavam. Com ele, o

liberalismo puro assume contornos claros e impecáveis. Constant, que nunca soube o que queria,

sempre soube dizer exatamente o que pensava. Conserva, entre todas as mentiras do coração, a

sinceridade do espirito. Devorado pela atividade e sempre febril, gira à volta dos poderes

impaciente por lá entrar. Conselheiro ou oponente acaba por nunca entrar no governo. Em

compensação, é um mestre entre os escritores políticos. A sua frase é perfeita, a sua discussão é

cerrada, a sua argumentação límpida. E como, no fundo, dá uma interpretação relativamente

simples de um mundo complexo, atinge sem dificuldade aquela sedutora claridade que é própria

dos clássicos. Entre os ideólogos que o precedem e os sociólogos que o seguem, Constant tem o

privilégio de ser suficientemente dotado de ideias gerias para agradar ao público culto, a quem

desagradaria um excesso de tecnicismo, e de possuir experiência bastante para escapar ao vazio

dos argumentos artificiais. Não sendo historiador, meditou muito sobre o passado; não sendo

investigador, viajou bastante; não tendo governado, esteve muito próximo do poder e conheceu

as assembleias a ponto de ser mais do que um curioso e amador.

As duas liberdades: qualquer esclarecimento começa com distinções. A primeira a ser

trazida por Constant é a dos dois sentidos que a palavra “liberdade” ganhou ao longo da história.

É a famosa oposição Da liberdade dos antigos comparada com a liberdade dos modernos. «O

objetivo dos antigos era a partilha do poder social entre todos os cidadãos de uma mesma pátria.

Era a isso que chamavam liberdade. O objetivo dos modernos é a segurança nos gozos privados;

e chamam liberdade às garantias dadas pelas instituições para esses gozos.» Incontestavelmente,

é para a liberdade dos modernos que vai a predileção de Constant, porque ele é individualista

antes de ser liberal. O ideal de Costant é o «de assegurar ao homem a disposição e a expansão

de si próprio, onde quer que esteja, por ser homem. Professa «o isolamento orgulhoso e cioso

do individuo na fortaleza dos seus direitos» e formula «o sistema de individualismo mais ousado

e mais extremo concebido por um homem inteligente». «Por liberdade, entendo o triunfo da

individualidade, tanto sobre a autoridade que quer governar pelo despotismo, como sobre as

massas que reclamam o direito de a maioria subjugar a minoria.» As liberdades políticas nada são

«se não houver por detrás delas esses direitos individuais e sociais que são o fundo e a própria

substância da liberdade». Por conseguinte, o indivíduo é proprietário de todas as forças que

vivem nele, dando ao Estado apenas o mínimo de que este necessita para existir e subsistir.

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História das Ideias Políticas, Marcel Prélot e Georges Lescuyer

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O Estado minimalitário: o Estado liberal denominar-se-ia assim Estado “minimalitário”,

por oposição antecipada ao Estado totalitário. Claro que Constant usa uma linguagem demasiado

pura para empregar um tal neologismo. Repugna-lhe até usar o termo “Estado”. Em

contrapartida, determina com precisão o sentido que deu à ideia de mínimo de governo. Este não

consiste no menor governo possível. Na sua esfera própria, não poderia existir demasiado

governo. Por isso, é essa esfera própria que deve ser reduzida ao mínimo. O governo achar-se-á

acantonado nas únicas funções que se constituem o seu direito. Aí, a sua força deve ser completa;

para lá desse ponto, a sua força deve ser nula. A determinação da esfera própria do governo não

pode ser obra da lei. Há leis opressivas, leis tirânicas, leis maléficas. Uma outra ilusão, propagada

por Rousseau, consiste em acreditar que a participação do indivíduo no estabelecimento das leis

é um seguro contra todos os riscos. Uma parte da pessoa humana deve, por necessidade, manter-

se individual e independente. «Quando transpõe esta linha, a sociedade é usurpadora, a maioria

e facciosa… Ainda que (a autoridade) fosse a nação inteira, menos o indivíduo que ela oprime,

não seria por isso mais legítima.»

O constitucionalismo: é preciso, portanto, que as instituições sejam estabelecidas e

funcionem de tal maneira que tenham, conforme o desejo de Montesquieu, diretamente «a

liberdade por objetivo». Constant interroga-se acerca dos diversos regimes. O despotismo puro?

Tornou-se impossível num tempo de comércio e de luzes. A aristocracia? É a opressão e o

privilégio, uma reserva feita por uma parte da força social em proveito duma classe, à custa do

indivíduo. A democracia? É a vulgarização do absolutismo. Só há um modo de governo bom,

aquele em que ninguém é soberano e onde tudo é regulado pela constituição. Assim, com

Constant, reforça-se e torna-se exclusiva a ideia de que esta se limita aos regimes que têm a

liberdade por objetivo ou, como diz mais concretamente a declaração de 1789, que asseguram a

separação dos poderes e a garantia das liberdades. Não há liberdade sem constituição e,

reciprocamente, não há constituição sem liberdades. A constituição é o meio essencial pelo qual

a liberdade é assegurada. O próprio regime constitucional é normalmente monárquico. Além da

tradição que representa, só a monarquia constitucional permite o funcionamento do «poder

neutro». O funcionamento concorde dos poderes é atribuído por Constant ao único homem

colocado por via do nascimento em posição eminente, o Rei, que… «ser à parte… nunca pode

fazer parte da cndição comum» Contudo Benjamin Constant aceita a República, se ela for

constitucional. «Entre a monarquia constitucional e a República, a diferença está na forma. Entre

a monarquia constitucional e a monarquia absoluta, a diferença está no fundo.» O «poder

moderador», o terceiro pilar institucional destinado a intervir em caso de crise, quer decidindo a

dissolução da assembleia, quer demitindo o governo.

A democracia constitucional: a República Constitucional, que não é, evidentemente, a

República democrática. Hostil à democracia absoluta, também é inimigo da democracia direta.

Não concebe governo que não seja representativo e só reconhece direitos políticos a quem é

capaz de os exercer. «É indispensável um certo ócio para a aquisição das luzes e para a retidão

do julgamento. Só a propriedade, assegurando o ócio, torna os homens capazes do exercício dos

direitos políticos.» Devemos ver aqui uma conceção deliberadamente e definitivamente

oligárquica ou, para retomar os próprios termos de Benjamin Constant, a liberdade dos antigos

deve ser recusada aos modernos? Para ele, há dois absolutismos igualmente deploráveis: um

monárquico e o outro democrático. O primeiro não se altera se for simplesmente transferido; o

segundo, lá por ser popular, não é melhor. Mas os meios empregados para limitar o absolutismo

de um só indivíduo podem ser eficazes para reduzir os riscos do absolutismo coletivo, que

resultam de uma extensão progressiva do sufrágio. Assim, pode conceber-se um

constitucionalismo democrático. Embrionário na obra de Benjamin Constant, terá de sofrer uma

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longa evolução interna e de enfrentar vitoriosamente os assaltos das doutrinas antagónicas, para

se tornar a vulgata ocidental do século XX. Mas, sem esperar glória póstuma será chamado pelo

Imperador, durante os Cem Dias, para redigir o Ato Adicional às Constituições do Império. E

poderá invocar fidelidade às suas ideias: «Defendi durante 40 anos o mesmo princípio: liberdade

em tudo, na religião, na filosofia, na literatura, na indústria e na política. E, por liberdade, entendo

o triunfo da individualidade, tanto sobre a autoridade que quer governar pelo despotismo, como

sobre as massas que reclamam o direito de a maioria subjugar a minoria.»