história das ideias: diálogos entre linguagem, cultura e história
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Bakhtiniana, São Paulo, 8 (1): 275-280, Jan./Jun. 2013. 275
ZANDWAIS, Ana (org.). História das ideias: diálogos entre linguagem,
cultura e história. Passo Fundo-RS: Editora Universidade de Passo
Fundo, 2012. 312p.
Márcia Dresch*
* Professora da Universidade Federal de Pelotas – UFP/RS - Pelotas, Rio Grande do Sul, Brasil;
276 Bakhtiniana, São Paulo, 8 (1): 275-280, Jan./Jun. 2013.
História das ideias: diálogos entre linguagem, cultura e história é uma
coletânea de 12 textos escritos por linguistas e analistas do discurso e tem na linguagem
sua matriz. O que caracteriza a obra é, de um lado, a expansão da reflexão para os
campos da história, da filosofia, da linguística e do discurso, e, de outro, a reunião de
textos que tematizam os estudos linguísticos na Rússia e na União Soviética do final do
século XIX até meados do século XX, ou que se debruçam sobre noções e fundamentos
teóricos da obra de Bakhtin e Voloshinov.
Nesta resenha, divido a coletânea em três blocos, que, ainda que não reflitam a
sequência proposta pela organizadora, em muito dela se aproxima.
No primeiro bloco estão os textos de Patrick Sériot (Universidade de Lausanne,
Suíça), Craig Brandist (Universidade de Sheffield, Inglaterra), Mika Lähteenmäki
(Universidade de Jyväskylä, Finlândia), EkaterinaVelmezova (Universidade de
Lausanne, Suíça) e Vladimir Alpatov (Instituto de Estudos Orientais, Moscou). Esses
textos permitem tomar contato com teorias e discussões acerca da linguagem que
acompanharam o final do século XIX, o advento da revolução russa e seus
desdobramentos ao longo do século XX e, sobretudo, com o contexto em que essas
teorias e discussões se desenvolveram. Grandes momentos de ruptura política são
acontecimentos históricos e discursivos que instauram um intenso trabalho de dizer o
mundo de outra forma. Mais do que a história dos estudos russos e eslavos sobre a
linguagem, esses textos situam pontualmente o papel da língua naquele processo
revolucionário, que se tornou, pela própria conformação da URSS – diversidade étnica,
alto índice de analfabetismo e pobreza –, primeira pauta do socialismo soviético.
No texto de Patrick Sériot, o autor assinala que, de 1920 a 1930, quando a União
Soviética passa por um processo de organização e consolidação do novo regime, por
trás de ações que buscavam erradicar o analfabetismo e normalizar línguas de
literalização recentes, havia um projeto de caráter antropológico. Trata-se de período de
questionamento sobre a relação entre língua e sociedade, língua e espaço político, bem
como sobre o poder das instituições linguísticas. Ele salienta o movimento de
representações que se desloca em direção à unidade e à homogeneidade, justamente
numa sociedade com camadas temporais que coexistiam – antigas classes, antigos
modos de produção, novas forças produtivas. Ou seja, para se fundar, o socialismo tinha
de apagar as diferenças.
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Craig Brandist sustenta em seu texto que a revolução bolchevique trouxe
condições para o desenvolvimento de uma forma insipiente de sociolinguística na
Rússia, muito antes de estudos similares no Ocidente. Alega que a fusão dos estudos
linguísticos e literários numa mesma disciplina de filologia permitiu que linguistas
estivessem atentos às dimensões sociais da linguagem. Seu texto permite compreender
como a linguística soviética se desenredou da psicologia, dando lugar a uma visão
sociológica da linguagem. Ele analisa os estudos linguísticos na Rússia desde o século
XIX, quando sob influência da psicologia, até chegar ao outro extremo, a teoria
dialógica de Bakhtin.
Em seu texto, Mika Lähteenmäki distingue temporalmente as produções de
Voloshinov, no final da década de 20 e início da de 30, e de Bakhtin, no início dos anos
30 até o início dos anos 50. Marxismo e filosofia da linguagem, publicado na Rússia em
1929, foi relegado ao esquecimento após sua publicação e retomado apenas quarenta
anos depois, já fora do contexto original de sua produção. A obra foi escrita antes do
marrismo se estabelecer como doutrina linguística oficial e numa época em que ainda se
debatia o que é uma linguística marxista. Prevaleceu, porém, a partir de uma
compreensão equivocada das ideias de Voloshinov, uma visão marxista vulgar,
sustentada pela postura teórica determinista apoiada por Marr. Lähteenmäki discute, a
partir da noção de ideologia, a concepção dialógica da linguagem, a questão da
interação e do signo linguístico em Voloshinov.
O trabalho de Nikolai Jakovlevitch Marr (1865-1934), principal linguista da
União Soviética dos anos 20 e 30, cujas teorias foram muito contestadas por seus
colegas contemporâneos, é abordado especificamente em dois textos da obra em análise.
No primeiro texto, Ekaterina Velmezova reconhece a crítica feita a Marr, todavia afirma
que sua teoria tem de ser estudada como qualquer outra. Em seu artigo, propõe-se a
analisar as noções de povos e línguas eslavas na Nova teoria da linguagem, de Marr, e a
responder por que Stalin interviu contra o marrismo. O outro texto é de Vladimir
Alpatov, que se pergunta por que razão de tempos em tempos retorna o interesse pelos
estudos de Nicolai Marr na Rússia. Ele identifica a revitalização do autor entre 1950 e
1980 mais como contestação à política stalinista do que a uma questão teórica
linguística. E, se na década de 90 ele aponta o ostracismo de Marr, ultimamente, afirma,
cresce o interesse entre linguistas jovens pelo autor. Implacável, Alpatov diz que, por
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sua personalidade e sua formação, Marr poderia ter sido profeta, revolucionário, menos
intelectual. As perguntas que ficam são do próprio autor: O alvo continuaria sendo
Stalin? Seria sua luta contra a ciência positivista? Ou a volta de Marr é decorrência da
instalação de uma crise das ciências humanas na Rússia?
Ao começar o segundo bloco, rompo com a sequência original do livro, e passo
ao texto de Beth Brait (PUC de São Paulo/Universidade de São Paulo), que aproxima o
primeiro grupo de textos, de teóricos estrangeiros, e os demais textos brasileiros que
formam a coletânea. Esse texto reconstitui a chegada do pensamento de Bakhtin ao
Brasil no final dos anos 60 e nos anos 70, quando pesquisadores, professores, estudantes
de pós-graduação, poetas e tradutores ligados à área de Letras e Linguística começam a
ter contato com as obras de Bakhtin e dos demais membros do Círculo. A singularidade
do texto está na tomada de depoimentos daqueles que participaram ativamente dessa
história, seja como alunos, no caso de Carlos Alberto Faraco, que viria a ser um dos
maiores estudiosos brasileiros da obra de Bakhtin, Sírio Possenti e Wanderley Geraldi;
seja como professor no curso de Pós-Graduação da Unicamp, no caso de Carlos Vogt.
Tanto a fala da autora quanto os depoimentos que compõem o texto sugerem que El
signo ideológico y la filosofia del lenguaje – edição argentina, traduzida do inglês, que
chegou ao Brasil em 1976 – para além da descoberta de perspectiva linguística que
incluísse o social, o sujeito e a ideologia, representou também uma forma de resistência
à arbitrariedade do regime militar.
Neste bloco, encontram-se os textos de Amanda Eloina Scherer (Universidade
Federal de Santa Maria, RS) e de Ana Zandwais (Universidade Federal do Rio Grande
do Sul), que discutem a questão da homogeneidade da língua; e ainda os de Maria
Cristina Hennes Sampaio (Universidade Federal de Pernambuco) e de Maria do Socorro
Aguiar de Oliveira Cavalcante (Universidade Federal de Alagoas), que discorrem sobre
as ideias que fundam a filosofia da obra de Bakhtin-Voloshinov.
Scherer, que se coloca nos campos teóricos da análise do discurso e da história
das ideias linguísticas, analisa três instrumentos de ensino de língua implantados em
diferentes épocas – Basic English, na Inglaterra, 1923-1927; Français élémentaire, na
França, 1949-1960; e Português fundamental do Brasil, final de 1960-início de 1970. A
autora se pergunta de que maneira tais instrumentos apontam para as formas de
constituição, institucionalização e circulação de políticas linguísticas em diferentes
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momentos sócio-históricos. As reflexões que faz ao longo do texto sobre as designações
para língua (universal, internacional, artificial, etc.) sustentam sua análise sobre esses
instrumentos que, entre outras coisas, buscam fugir da babelização e estão à procura da
língua transparente, controlada, descritível e universal. Em seu artigo, Zandwais discute
a utopia indispensável da homogeneidade da língua em diferentes formas de
organização humana. O texto retoma o ideal da Antiguidade, de uma língua homogênea
e universal, cuja origem pode ser vista na narrativa bíblica sobre o “sonho de Babel” e,
aprofundando a questão, estabelece analogia entre a organização tribal primitiva e a
chegada ao Estado de Direito do século XIX. Salienta que, quando o Estado transforma
o pluri em monolinguismo, o que só se faz por meio de uma língua de cultura
inacessível à maioria, formam-se contingentes de falantes linguisticamente
desaparelhados. A reflexão se fundamenta nas noções de monoglossia, heteroglossia e
refração de Bakhtin-Voloshinov.
Maria Cristina Sampaio, por sua vez, estabelece um diálogo entre as filosofias
de Bakhtin, Heidegger e Lévinas. A questão que ocupa a autora são os fundamentos do
pensamento ético, por isso retoma questões comuns a esses filósofos e Bakhtin: relações
ser-ente, homem-existência, humanismo, ser-autoridade-responsabilidade. Na análise
dessas questões, a ética só pode ser pensada por meio de um ato individual e único em
relação a um sujeito pesquisador, em relação de alteridade com outros pensamentos e
contextos. Ainda no campo da filosofia, o texto assinado por Maria do Socorro
Cavalcante desenvolve a relação entre o materialismo histórico e noções centrais na
análise do discurso de orientação pecheutiana. Além de Pêcheux, o texto dialoga com
Lukács, Bakhtin e Leontiev, teóricos que fornecem contribuições para pensar a língua a
ideologia e o sujeito. Com Lukács e Leontiev, a autora elabora a questão da consciência.
Entendo que o texto toca em um ponto que pode embaraçar uma fatia da AD francesa:
esse sujeito sobredeterminado ideologicamente é, portanto, absolutamente previsível e
desprovido de liberdade? A essa questão, a autora responde com Bakhtin e Lukács: o
sujeito faz escolhas e se marca subjetivamente frente à realidade objetiva tal qual se
apresenta a ele.
No terceiro bloco, reuni os textos de Maria Inês Batista Campos (Universidade
de São Paulo) e Carme Regina Schons (Universidade de Passo Fundo, RS), que têm em
comum o fato de apresentarem importante trabalho analítico.
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A partir do texto O autor e a personagem na atividade estética, escrito por
Bakhtin na década de 20, Campos analisa as noções de proximidade, distância e
excedente de visão estética nos dois epitáfios do romance Macunaíma, de Mário de
Andrade. Em discussão estaria a questão da relação autor-personagem no processo de
criação estética. Após explorar as noções teóricas, a autora passa à análise dos epitáfios,
desvelando o trabalho de pesquisa de Mário de Andrade, realizado a partir de textos de
viajantes estrangeiros, mitos, lendas e aspectos do folclore brasileiro. O resultado da
obra é um personagem-herói que, no olhar distanciado, se aproxima do povo brasileiro.
O texto que apresento ao final desta resenha, de Carme Shons, vai se debruçar
sobre a formação e organização da classe operária, especialmente dos sindicatos no
Brasil da primeira metade do século XX – 1ª e 2ª Repúblicas. A partir da análise do
discurso, fundada por Michel Pêcheux, a autora analisa a designação sindicato desde
seu surgimento, buscando no interior do que denomina de formação discursiva jurídica
(constituição e leis do período), como sindicato é predicado nas regulamentações. O
texto acompanha o percurso de formação do movimento sindical que, na Primeira
República, é pautado em práticas anarquistas e anarcossindicalistas e associado a uma
imagem de enfrentamento e luta, e, no Estado Novo, no confronto com a formação
discursiva jurídica, passa a um modelo corporativista, tornando-se mero instrumento de
reivindicação de melhorias econômicas.
Resenhar uma coletânea traz a dificuldade de falar de um objeto uno, cuja
composição por natureza é heterogênea. No entanto, o que está a se olhar são histórias
de ideias que fundaram várias das áreas que hoje se agrupam em torno dos estudos do
texto e do discurso, com especial destaque às concepções de língua, sujeito e sentido.
Refiro-me em parte aos preceitos teóricos do Círculo de Bakhtin, mas também aos
acontecimentos históricos e discursivos que foram o advento do marxismo e da
Revolução Russa de 1917. História das ideias dá a dimensão da importância desses dois
eventos no plano do conhecimento, à medida que ecoa discussões e desdobramentos que
passaram o século XX e ainda mobilizam intelectuais, para, longe do ceticismo e da
perplexidade diante do século XXI, pensar as ideias que movem a vida dos seres
humanos.
Recebido em 18/03/2013
Aprovado em 13/06/2013