história da música européia

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Livro completo sobre a história da música Européia.

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    Jacques Stehman

    Histria da Msica Europia

    das origens aos nossos dias

    DIFUSO EUROPIA DO LIVRO, LDA. RUA BENTO DE FREITAS, 362-6."SO PAULO

    Nascido em Bruxelas em 1912, Jacques Stehman fez os seus estudos de msica no Conservatrio Real desta cidade. De 1933 a 1939 integra-se num grupo de jazz, participa nas atividades de um cenculo literrio, publica duas revistas musicais, organiza recitais de piano. Terminada a guerra, retoma a atividade, distribuindo-se pela crtica e pela composio. Algumas das suas obras mais conhecidas: Sinfonia de Algibeira, Concerto de Piano, Suite para Cordas, msica de bailado (O Baile dos Embaixadores) e de cena (Cristvo Colombo, de Ch. Bertin). Em 1953 distinguido com o Prmio Itlia. Atualmente professor de Harmonia Prtica no Conservatrio Real de Bruxelas e de Histria da Msica na Escola Superior de Artes Decorativas e no Instituto dos Jornalistas da Blgica, Jacques Stehman exerce tambm os cargos de vice-presidente da Juventude Musical Belga e da Sociedade Belga de Musicologia

    NA CAPA: A Tocadora de Alade-(Sculo XVI, coleo particular) -

    Matre ds Demi-Figures. Mais detalhes sobre a figura: http://eunjangdo.net/g_gallery/16/jf.htm A obra original foi Publicada em francs com o ttuloHistorie de la

    Musique europenne pelas ditions Gerard & C.ie.", Verviers Blgica Maquetas dos extratextos de Yvan Rolen * Traduo de Mana Teresa Athayde * Reviso tcnica de Fernando Cabral

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    1964 by ditions Grard ir C", Verviers (Blgica). Todos os direitos reservados para a publicao desta obra em Portugus

    (Portugal e Brasil) pela Livraria Bertrand, S. A. R. L., Lisboa. Numerosas histrias da arte apresentam uma lacuna: a de ignorar a

    msica. Por outro lado, existe outra lacuna correspondente em algumas histrias da msica, que isolam o fenmeno musical de um mundo onde, contudo, ele sempre permaneceu, por assim dizer, incrustado. Pois uma obra de arte no se deve apenas ao impulso do seu autor: este obedece, consciente ou inconscientemente, a uma ordem social ou moral, religiosa ou esttica, a determinado estado das idias que o rodeiam e que moldam a alma e a fisionomia de uma poca, de que ele ser simultaneamente testemunha e intrprete. Msicas primitivas ou eruditas, religiosas ou profanas, antigas ou modernas, todas obedecem a estas leis.

    Um dos mais eminentes musiclogos franceses, Jules Combarieu (1859-1915), pde escrever em 1913: Porque ser que em Frana, ainda hoje e em vinte obras assinadas por nomes ilustres, a rubrica "histria da arte" apenas significa histria das artes do desenho? A que lugar inferior ou estranho, a que ordem de estudos abandonam eles a msica, esses que, aps haver adaptado tal atitude, julgam poder ignorar os msicos?

    Verificar-se- que meio sculo no introduziu qualquer alterao nesta situao e que as histrias da arte permanecem divididas em compartimentos. Foi por isso que nos pareceu til, dentro dos limites desta pequena obra, recordar os laos que, em cada poca, unem a msica s outras artes e vida do seu tempo.

    J. S.

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    I DEFINIES O destino europeu da msica

    A histria que vamos aqui evocar a da msica europia. Devemos

    considerar haver nisto qualquer injustia? No, no h; a msica existe em todos os pases no europeus, desde a Antigidade, segundo duas tendncias freqentemente paralelas: ou evoluciona, torna-se erudita, inspirando-se finalmente na tcnica ocidental, ou, fiel s suas tradies religiosas e populares, permanece ritual e primitiva. Um povo no poderia renunciar a esta msica tradicional sem perder a sua alma: a fonte da sua civilizao prpria. Nota-se em muitos pases uma sobrevivncia permanente da msica tradicional (msica folclrica, que os especialistas chamam tnica), enquanto outra msica de inspirao europia liga esses mesmos pases s grandes correntes artsticas que percorrem o mundo. O perigo reside no fato de que essa msica possa tornar-se puramente acadmica e impessoal, limitando-se a decalcar os processos dos grandes compositores ocidentais. Mas o interesse mais evidente que esses compositores tm a possibilidade de criar uma msica erudita, impregnada de elementos tradicionais (ritmos e melodias), onde podem exprimir o autntico caracter do seu pas, numa linguagem universalmente compreendida e ao nvel das maiores obras de arte.

    Observemos a msica popular espanhola ou grega, a msica tradicional rabe, balinesa, ndia do Mxico, chinesa ou japonesa e veremos sempre o mesmo fenmeno: ou assimilou a tcnica e o esprito europeus e perdeu o seu caracter nacional, ou conservou os seus caracteres preservando-se da evoluo. apenas desde h cerca de cem anos, com o aparecimento das escolas nacionais que descobriram o folclore, que este aparece integrado na msica erudita. Mais prximo de ns, foi apenas desde h algumas dezenas de anos que compositores brasileiros, mexicanos, japoneses, negros americanos, etc., conseguiram misturar os mais puros elementos da sua msica com os elementos tcnicos e estticos da nossa cultura musical, criando assim obras interessantes e novas.

    evidente que a msica folclrica, elevando-se ao nvel de uma obra de arte, no pode substituir o elemento funcional que existe em toda a msica tradicional e que a sua sujeio celebrao de um rito. Para citar um

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    exemplo, as mais belas pginas de um Manuel de Falia so obras de arte impregnadas de um profundo caracter nacional, evocando com preciso o que a Espanha; mas em caso algum poderiam substituir o flamenco popular, que, pelo bater de palmas, o martelar de saltos, as melopias e os gritos, traduz, no estado puro, a necessidade, para bailarinos e para aqueles que os rodeiam, de ativamente exprimirem o seu ser profundo. Ainda outro exemplo: os Choros de um Villa-Lobos, no Brasil, ou a Sinfonia ndia de um Carlos Chavez, no Mxico, so estilizaes de concerto, tal como as obras de Bartok ou de outros; exprimem admirvelmente todos os caracteres genunos de uma msica tradicional, que, no entanto, continua a existir sob forma independente.

    O destino da msica, tal como o vamos encarar, , portanto, europeu, porque foi a Europa que produziu esta cultura musical universal e a ensinou ao mundo. Ela substituir, pouco a pouco, os mltiplos sistemas musicais em uso na Antigidade por um sistema codificado que se tornar numa linguagem, e cujas convenes sero admitidas. Uma infinidade de elementos rodeia esse facto e confirma a sua fora: a expanso da Igreja Crist e, consequentemente, do seu canto; o papel de algumas grandes abadias e de algumas grandes cidades, tal como Paris, desde a Idade Mdia, com a sua influncia que se estendeu a todo o Ocidente. A herana grega, e em seguida a romana, transmitiu-se modificada, mas foi ela que serviu de base Europa para explorar infatigvelmente o universo musical e estabelecer uma grande linguagem universal.

    A histria desta msica inseparvel da histria e das vicissitudes da Europa. primeiro religiosa, e separando-se depois, na Idade Mdia, em dois ramos bem distintos: a msica de Igreja e a do povo, segue a evoluo das idias e dos gostos, exprime o estado dos espritos em dado momento, responde s necessidades de uma sociedade (distraes, protocolo, etc), acusa as perturbaes das crises polticas ou morais.

    A partir de um vasto feixe de msicas procedentes da Antigidade Oriental, a Igreja Crist fixar a ateno dos seus fiis sobre uma msica cantada, simples, completamente destituda de sensualismo, e que paralelamente expresso progressiva dessa mesma Igreja vai por sua vez radiar, impregnar as almas, penetrar nos espritos, moldar a inspirao musical. O lento caminhar desta msica permanece ligado ao caminhar da civilizao ocidental. a partir da cantilena gregoriana que surgem as primeiras tentativas de polifonia; por

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    meio das missas e dos motetos que a linguagem musical se ornamenta e enriquece. A cincia musical evoluiu atravs da msica religiosa; e a msica religiosa transmitiu msica profana todo o seu saber.

    Do robusto tronco gregoriano, que foi o primeiro a crescer, brotaram mltiplos ramos, que em seguida se desenvolveram; toda a nossa msica provm desta origem e foi principalmente na Frana, na Itlia e na Alemanha que se operou essa evoluo.

    A essncia da msica

    A msica foi primeiro a linguagem mgica do homem primitivo, a sua

    invocao s divindades. Em seguida, foi cincia, como as matemticas e a astronomia. Durante longos sculos permaneceu orao.

    Finalmente, misturando-se com o mundo profano, tornou-se uma arte, um divertimento tambm, o que lhe trouxe considervel enriquecimento, por vezes puramente material (uma orquestra de sonoridades sumptuosas no ser necessariamente mais rica do que uma melodia isolada intensamente expressiva).

    Mas, a partir do momento em que a msica se torna arte, as leis da esttica vo condicionar a sua evoluo, enquanto anteriormente, desde a Antigidade at Idade Mdia, era apenas regida pelas leis da moral: com efeito, quer seja magia, quer orao, a msica ritual obedece a regras ticas precisas.

    Existem, portanto, duas grandes eras da msica, cada uma englobando uma evoluo de facetas mltiplas, no interior de um domnio bem definido: a era religiosa e a era esttica. A Idade Mdia forma praticamente a charneira entre estas duas fases. Desde as mais rudimentares ou recuadas civilizaes at Idade Mdia, o homem viveu a era religiosa da msica. Desde h oito sculos, vivemos a sua era esttica.

    Se a msica um ritual, a linguagem sagrada do homem mas livre de qualquer referncia realista, j que exprime o mundo do irracional mais direta-mente que a literatura ou a pintura , tambm um fenmeno cujos elementos devem ser conhecidos.

    De que feita a msica, como se manifesta o fenmeno sonoro altamente organizado da nossa civilizao e qual o seu significado? Parece oportuno, em meados do sculo XX, abandonar a definio de Jean-Jacques Rousseau: A

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    msica a arte de combinar os sons de forma agradvel ao ouvido. Emanando de um filsofo cujas opinies neste domnio foram muitas vezes discutveis, esta definio encerra a msica dentro dos limites onde se reconhecem os ditames do estilo galante. Ora a msica amvel apenas um aspecto da msica em geral. Aps esses convencionalismos do sculo XVIII, como formular uma opinio sobre um canto guerreiro da Antigidade, uma mondia gregoriana, uma ria de Monteverdi, uma pgina de Beethoven, Berlioz, Strawinsky ou Bartok? Como apreciar todos esses compositores, cujo alvo no foi serem agradveis ao ouvido, segundo aquele critrio, mas exprimir com intensidade os anseios de uma coletividade, as suas prprias paixes, ou ainda as diversas possibilidades da linguagem ou da arquitetura sonora? Foi contudo graas ao gnio de tais inovadores que o domnio da msica se enriqueceu e alargou. , portanto, impossvel fecharmo-nos dentro de princpios sem dvida claros e tranquilizadores, mas que a vida pode sempre desmentir.

    Conforme a msica seja uma organizao sonora articulada, tal como uma linguagem (frase, pontuao, ritmo, desenvolvimento de uma idia), ou um meio intencional de provocar uma sensao, ela ser intelectual ou sensorial, mas agir sempre sobre a nossa sensibilidade. No primeiro caso, o encanto (fascinao) fsico do som est sujeito a uma ordem esttica e intelectual, no segundo exerce-se livremente. evidente que esta prpria liberdade se move dentro de quadros fixos. Um exemplo familiar ilustrar este fato: sabe-se que a improvisao livre e totalmente inspirada dos instrumentistas de jazz se desenrola de acordo com um esquema harmnico e rtmico muito estrito. O compositor nunca se afasta desse quadro invisvel, sendo este a dar a sua coerncia ao discurso, que, de outra forma, seria apenas desordem e confuso.

    Para esquematizar, poder-se-ia classificar numa categoria intelectual toda a msica clssica, onde a forma impe a sua autoridade e onde o sentimento estilizado, trabalhado: os polifonistas do Renascimento, Bach, Haydn, Mozart, Haendel no sculo XVIII, um Strawinsky, um Hindemith presentemente, etc. Na categoria sensorial poderamos classificar os impressionistas, os romnticos, os expressionistas e alguns dos grandes compositores do sculo barroco. Acrescentar-lhe-emos o jazz, msica de encantamento por excelncia. Aqui voltamos a encontrar as denominaes tradicionais de apolneo e de dionisaco. Para ser completo, necessrio acrescentar uma categoria

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    espiritual, abrangendo a msica ritual dos povos primitivos e o canto gregoriano da liturgia catlica. Aqui os elementos sensoriais e intelectuais fundem-se num s. E se o canto gregoriano, purificado, decantado o reflexo de uma vida espiritual muito elevada, a msica ritual do povo primitivo pode refletir uma mesma exigncia de superao pela f, na sua ingnua mistura de pureza e de ao sobre os sentidos.

    O que o tom? Antes de adquirir qualquer significado, a msica um fenmeno sonoro; foi

    a explorao deste fenmeno e a sua domesticao que produziram os sistemas musicais. A matria sonora , de incio, uma vibrao. Esta vibrao, qualquer que seja a sua origemcorda, pele esticada, tubo produzindo sons, transmite-se ao nosso ouvido. Este constitui um aparelho de recepo minsculo e subtil, reagindo s freqncias (nmero de vibraes por segundo), que vo de cerca de 20 a 20000. Abaixo de 20 vibraes por segundo situam-se os infra-sons, acima de 20 000 os ultra-sons, que, saindo do campo de percepo do ouvido, so, portanto, inaudveis para o homem. No ouvido interno encontra-se o rgo de Corti, receptor das vibraes, que o alcanam aps terem abalado as fibras nervosas e que ele transmite ao crebro por meio do nervo auditivo. Uma cadeia de transmisses fsicas das vibraes transfor-ma-se assim em transmisses fisiolgicas: efetivamente, as fibras auditivas conduzem a uma regio chamada zona auditiva da massa cinzenta, o que explica o fato de transformarmos os sons, recebidos sob forma puramente fsica, em representaes mentais, imagens, pensamentos, recordaes, etc. Neste fato reside a diferena entre o homem e o animal, cuja audio permanece puramente fsica.

    Esta explicao muito esquemtica do fenmeno da audio permite compreender que a msica, ou, antes da msica, o simples som, atinge diretamente um dos nossos centros nervosos mais importantes e, aps ter-nos comunicado uma sensao fsica pura, determina instantaneamente em ns, por um lado e conforme os casos, a excitao ou o entorpecimento e, por outro, os mais coerentes pensamentos ou representaes, se estiver organizada segundo uma ordem intelectual ou afetiva. No caso oposto, uma msica de forma e

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    expresso elementares ou obsessivas provoca em ns a embriaguez fsica. Estas noes so conhecidas, pois todos sabem o que significa a excitao fsica produzida por certos trechos musicais ou, pelo contrrio, a exaltao espiritual originada por outros.

    Mas a recepo do fenmeno sonoro processa-se de tal forma que as mais sublimes expresses da arte mais perfeita atingem-nos primeiro sob a forma de uma simples sensao fsica: o gnio do homem organizou essa sensao e levou-a a participar no exerccio das nossas mais elevadas faculdades. Ao analisar sucintamente o mecanismo da audio musical, observa-se que o som passa pelo ouvido externo (condutor auditivo), o ouvido mdio (tmpano e cadeia de ossculos que transmite as vibraes) e o ouvido interno (labirinto, membrana basilar, que contm 24 000 fibras que reagem s vibraes dos ossculos, e rgo de Corti, fim da transmisso). Sendo a msica uma sensao fsica, essa sensao pode ser deleitvel at ao xtase, ou desagradvel at dor. A msica tem a capacidade surpreendente de poder exercer um efeito hipntico, eufrico ou exaltante sobre os nossos sentidos; se for violenta, pode igualmente revoltar-nos. Todo o significado da mensagem musical, at s suas mais requintadas proliferaes, encontra-se contido neste fenmeno elementar; assim, a msica mais requintada, tal como a mais primitiva, um encantamento que age sobre os nossos sentidos. Num dos casos detm-se nos sentidos, no outro ultrapassa-os e subjuga-os pelo domnio do pensamento. Destes fatos depreende-se uma moral da msica, e foi essa moral que alguns povos das antigas civilizaes tinham compreendido. A nossa poca j no toma estes elementos em considerao na apreciao da obra musical, porque concedeu plena liberdade a obra de arte em geral, de forma a explorar a fundo todas as virtualidades humanas.

    E esta sensao elementar que distingue a msica da pintura ou da literatura. A emoo causada pela leitura de um .texto provm essencialmente da nossa apreciao intelectual; o mesmo sucede com a emoo provocada por uma obra plstica. Nos dois casos a nossa sensibilidade atingida pela beleza de expresso, o encanto da obra, mas a apreciao do nosso intelecto indispensvel para agir sobre a nossa emotividade.

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    Nascimento de uma ordem sonora Pitgoras, filsofo e matemtico grego (582-500 a.C.), defendia a teoria de

    que o princpio de tudo reside nos nmeros. Essa teoria levou-o a estudar as relaes das vibraes dos sons resultantes da diviso de uma corda esticada. Descobriu assim que as principais consonncias (oitavas e quintas) correspondiam diviso simtrica da corda e, portanto, ao nmero de vibra-es. Esta descoberta revelava uma ordem matemtica inerente altura dos sons e indicava que as relaes de consonncia so, antes de mais, relaes matemticas de vibraes e no um princpio puramente arbitrrio de convenincia ou de gosto. Alargando o campo das suas observaes, Pitgoras estabeleceu as relaes que o levaram a percorrer uma escala de sons de vibra-es cada vez mais rpidas, partindo de um som fundamental. Por outras palavras, o total das vibraes do som fundamental, ao subdividir-se, produz uma srie de sons na direo do agudo.

    Uma vez que a diviso regular de uma corda produz a oitava, a quinta e a terceira, o acorde perfeito encontra-se, portanto, contido dentro das ressonncias naturais de um som, tal como a escala de sete sons. Assim s explica por que razo o nosso sistema musical est construdo sobre princpios matemticos e acsticos naturais e o acorde perfeito, base do sistema, uma realidade de ordem fsica. O acorde perfeito provoca uma sensao de plenitude e de repouso; a dissonncia uma impresso de tenso ou de constrangimento. A harmonia da consonncia e o dramatismo da dissonncia so elementos que os msicos tm largamente utilizado, e que exercem uma forte influncia sobre o nosso psiquismo, as nossas reaes nervosas, a nossa imaginao, constituindo um dos aspectos das relaes matemticas exatas ou imperfeitas entre vibraes diversas. A ordem sonora, a ordem musical e, por fim, a ordem esttica foram, portanto, na origem, estabelecidas pela natureza.

    A escala, alfabeto da linguagem musical Da diviso da corda nasce o sistema das escalas, ou seja das sucesses de

    sons dentro de certa ordem, mas por graus aproximados. A escala de Pitgoras (sete sons) serviu de base instituio do nosso sistema musical, depois de

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    passar por numerosas transformaes, de que as mais importantes so, em primeiro lugar, entre a Idade Mdia e a Renascena, o estabelecimento progressivo das escalas ascendentes na msica profana, em oposio s escalas descendentes da msica religiosa; em seguida, no sculo XVIII, instituiu-se o chamado sistema temperado. Em poucas palavras, este sistema consiste na elaborao de uma escala na qual cada som se encontra convencionalmente fixado de acordo com um nmero de vibraes doravante invarivel. Fixado o padro (o l do diapaso que serve de referncia) em 870 vibraes por segundo (muitas orquestras utilizam presentemente um l de 880, portanto ligeiramente mais alto), estabeleceu-se o conjunto das relaes de forma a uniformizar os sons e, portanto, a reunir dois sons quase semelhantes num s: por exemplo, d sustenido e r bemol, r sustenido e mi bemol, mi sustenido e f natural e assim por diante. Por este processo obtm-se uma escala total de doze sons (as teclas brancas e pretas do teclado totalizam doze notas), que constitui o total cromtico do sistema, no qual os sons distam entre si de meio som o intervalo mais claro e mais perceptvel ao ouvido.

    Este sistema temperado (nome que deve a sua origem ao fato de se terem temperado as vibraes, apertando umas e alargando outras, para as trazer s doze alturas convencionais) inspirou a Joo Sebastio Bach o famoso Teclado Bem Temperado (e no cravo, como por vezes se diz), constitudo por doze preldios e fugas nos doze tons do sistema, que era ento uma novidade.

    Um tal sistema, a despeito de reduzir a extenso sonora a doze alturas bem definidas, acusa por um lado arbitrariedade e, sem dvida, imperfeio, pois renuncia s riquezas das alturas sonoras margem. Possui ele, contudo, o merecimento de simplificar o alfabeto musical, reduzindo-o a doze elementos. Na ausncia de um sistema temperado, teria sido necessrio recorrer a um sistema de vinte e uma notas, cada uma destas com a sua altura exata (matematicamente nas relaes de vibraes), o que no teria deixado de tornar tudo mais pesado e complicado, impedindo, por exemplo, a prtica da msica polifnica ou orquestral. Alm disso, pensemos no universo musical que nos legaram os sculos a partir desta escala temperada. Confessemos que ela de forma alguma impediu o desenvolvimento da tcnica e do pensamento artstico.

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    Se por um instante voltarmos s escalas, notaremos que certos povos da Antigidade, tal como os Chineses, os Hebreus e os Japoneses, utilizavam as escalas pentatnicas (de cinco sons). Presentemente estas escalas ainda existem em algumas ilhas do Pacfico. Pouco sabemos das melodias pentatnicas, transmitidas por tradio oral (sem notao). Outros povos, tal como os Gregos, utilizavam a escala de sete sons, dita diatnica (cinco tons e dois meios tons).

    Agrupando os sons, cuja altura praticamente se confunde, obtm-se o

    sistema cromtico atual. Observemos que a escala de sete sons (d, r, mi, f, sol, l, si) pode, neste caso, ser percorrida trs vezes: em bemis (b). em natural e em sustenidos ( # ). S mais tarde que vir a ser intercalado um som intermdio entre cada um destes sons, para assim se obter a escala cromtica (doze meios tons).

    Os sistemas musicais da ndia e da Arbia utilizam escalas que compreendem intervalos menores do que o meio tom, mas impossveis de notar

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    na nossa escrita: o quarto de tom existe ainda em algumas msicas primitivas, que o utilizam inconscientemente por falta de uma organizao sonora racional. Na nossa poca, os compositores tentaram ressuscitar o quarto de tom e reintegr-lo no nosso sistema musical. A experincia no podia deixar de ficar margem, mesmo sendo de natureza a enriquecer a percepo sonora. O quarto de tom pode ser muito expressivo nas vibraes da voz ou de um instrumento, mas necessrio que um ouvido seja bastante sensvel para o perceber, o que parece provar que o sistema temperado corresponde a uma realidade acstica.

    Note-se que o Ocidente teve o merecimento de simplificar os sistemas existentes, no intuito de torn-los universais. Esta tendncia, constante nos povos europeus, tem-se manifestado desde os primeiros sculos da nossa era, prosseguiu na Idade Mdia e ainda hoje se verifica: a Europa prope ao mundo um tipo de linguagem universal. Assim o nosso alfabeto literrio, prtico, espalha-se desde h sculos, ao contrrio do que sucede com os complexos alfabetos orientais. Assim tambm o nosso sistema musical tende, desde os primeiros sculos da era crist, a transformar os diversos sistemas anteriores do mundo oriental numa espcie de sntese. Empobrecida, sem dvida, de certo modo por esta operao, a linguagem musical enriquece-se por outro lado. Por exemplo, se a instituio da barra de compassos (espcie de grade que, nas partituras, marca os tempos e a sua diviso) pe termo arte subtil e rica do ritmo livre e matizado (caracterstica que, nos nossos dias, o canto gregoriano ainda conserva), permite por outro lado a prtica da msica de conjunto, que, de outro modo, seria impossvel. Mesmo a sujeio ao tempo forte, acento instintivo sobre cada primeiro tempo de um compasso, pode introduzir na msica grandes riquezas expressivas e rtmicas. Mas todos estes fatos so a histria da expanso ou da decadncia de um sistema. Ser possvel, contudo, imaginar a impotncia, a confuso e as limitaes que teriam ameaado a cultura musical, se a disperso dos sistemas musicais se tivesse perpetuado...?

  • II - AS PRIMEIRAS ERAS DA MSICA A pr-histria musical Ter existido uma msica anterior a qualquer civilizao? Existiu, sim, e

    necessrio referi-la, pois a msica no surgiu subitamente um belo dia no de-curso da histria. Se nada sabemos, praticamente, sobre a pr-histria musical, podemos pelo menos observar um fato: to longe quanto possamos retroceder na histria e imaginar, encontramos a msica, ou pelo menos, certa msica rude e sumria, cujo papel e funo so j em potncia o que sero ao longo dos sculos.

    De tudo quanto o nosso sculo descobriu sobre as origens do homem e as mais rudimentares condies de vida da humanidade primitiva, sobressai que a msica, assim que se manifesta, de ordem sagrada. A msica o ritual da existncia e, simultaneamente' religiosa e profana, ela que d vida quotidiana o seu sentido sagrado. Os homens das eras mais recuadas, vivendo rodeados de mistrios inexplicveis e de terrores diversos, sem recurso perante a hostilidade da natureza e os enigmas da criao, utilizam, antes mesmo de saberem falar, uma linguagem que representa um meio de comunicao com os espritos ou com as foras que os dominam, ou ainda com as divindades que comandam essas foras.

    Esta linguagem exprime a revolta ou a sujeio, a alegria ou o medo perante a vida, a morte, a doena, os fenmenos da natureza. Os homens danam, gri-tam, batem em si prprios, pintam o rosto e o corpo, ora no intuito de conciliar a proteo dos deuses poderosos, ora de os afastar assustando-os. Desta forma aprendem o poder do ritmo e do grito, os dois elementos fundamentais de qualquer msica. O encantamento, a fascinao hipntica ou exaltante da obsesso do ritmo atingem sem o freio dos mecanismos intelectuais a sensibilidade dos primitivos.

    Estas consideraes partem de um conjunto de fatos verosmeis: a pr-histria musical tem sido objetivo de investigaes cientficas bastante recentes e constitui um vasto captulo da histria da msica. Alm do carter ritual das primeiras manifestaes sonoras, j comprovado, os instrumentos pr-

  • histricos, tais como chifres, ossos, objetos percutveis, etc., fornecem outras indicaes que confirmam as primeiras.

    Eis, portanto, a primeira faceta da msica na aventura da humanidade: a msica existe porque corresponde a uma necessidade fundamental de comunicar com o Alm, com os mortos e os deuses, a uma necessidade intensa e profunda de atingir um segundo estado. Desde a sua origem, a msica , portanto, uma linguagem superior; no a linguagem da razo e da vida quotidiana, mas a das grandes foras misteriosas que animam o homem. Nada existe de mais necessrio o que esta msica, que no luxo nem prazer, mas, pelo contrrio, a voz profunda da humanidade.

    Assim esta pr-msica que podemos imaginar nas sociedades ainda em estado embrionrio; at possvel fazermos dela uma idia bastante exata, se observarmos o papel atribudo msica nas sociedades que ainda permanecem primitivas nos nossos dias ou que, tendo evolucionado, conservaram contudo uma msica de carter religioso primitivo (Bali, ndia, Arbia). Ser, pois, lgico afirmar que a msica primitiva sempre sagrada, porque exprime essencialmente um sentimento, ou instinto, religioso.

    A expresso msica primitiva indica uma msica ritual constituda por cantos e ritmos baseados em motivos simples, repetidos obstinadamente, na maioria dos casos, com o fim de provocar o estado de transe. A msica primitiva, tal como a dana, est carregada de smbolos: determinado ritmo, determinada feio meldica, ou determinado gesto, exprimem uma idia precisa e tornam-se sagrados pela prtica. Primitivo no significa pobre ou sumrio, pois, dentro dos seus limites, a msica primitiva exprime uma grande intensidade de sentimentos e, frequentemente, uma arte sutil da melopia e do ritmo. Em termos mais simples, esta msica no erudita nem elaborada de acordo com as leis estticas. Pensemos na expresso pureza primitiva e sentir-nos-emos mais prximos da verdade.

    Podemos, portanto, reter a seguinte imagem da pr-histria musical: o emprego do ritmo (tambor, tanta, etc.), com o seu poder de sugesto psicolgica; o emprego do grito, de incio grosseiro, em seguida cada vez mais modulado, graduado, a fim de exprimir sentimentos cada vez mais diversos; finalmente o emprego da dana, primeiro como encantamento e trepidao, transformando-se progressivamente em linguagem e arabesco.

  • A Antiguidade Oriental Os primeiros, exemplos de que dispomos sobre a existncia de uma msica

    sujeita e integrada numa ordem social, tica ou religiosa, so os que colhemos na Antiguidade: Egito, Mesopotmia, China, Grcia.

    Treze sculos a.C., a China possui uma cultura musical. Vinte sculos a.C., o Egito utiliza uma msica que consiste em cantos acompanhados por instru-mentos, em danas de luto ou de jbilo, em cantos de cerimnias diversas: adorao do Sol, banquetes rituais, colheitas, etc. Os faras tm os seus cantores e instrumentistas. Um dignitrio, espcie de mestre de capela, est incumbido de tudo quanto diz respeito aos msicos e ao emprego da msica. Harpa, trombeta, flauta, cmbalos e campainhas formam um repertrio instrumental bastante variado.

    Trinta sculos a.C., os Sumrios empregavam flautas de prata e de cana, harpas, liras; a sua msica, exclusivamente religiosa, participava em todas as cerimnias e, segundo estudos muito recentes, sabe-se que a msica desempenhou um papel extremamente importante na civilizao sumeriana.

    A histria ensinou-nos que os Hebreus dedicavam considervel interesse msica; o rei David, poeta e msico, um ilustre exemplo deste fato. Possuam cantos de guerra e de misteres, salmos e cnticos; os seus instrumentos eram igualmente a trombeta, a flauta, a harpa e vrios tipos de tambores.

    Infelizmente apenas temos conhecimento deste imenso repertrio musical por meio de frescos, textos tericos ou ornamentaes de alguns achados, tais como vasos, nforas, etc. Alguns instrumentos foram assim encontrados nos tmulos. Mas como nos falta a notao musical, este precioso patrimnio no pode restituir a presena viva da msica.

    Uma das principais caractersticas da msica da Antiguidade, e que sobrevive at Idade Mdia, a sua forma mondica. Nota-se, efetivamente, que nas civilizaes antigas nunca se fez meno de msica a vrias vozes: os conjuntos vocais, instrumentais ou mistos cantam e tocam em unssono. Pde, portanto, admitir-se como verosmil que a mondia, cuja existncia se estendeu por vrios milhares de anos, foi o nico gnero musical conhecido pelas grandes civilizaes antigas, que, de resto, atingiram na sua prtica um extremo requinte. Mas tal fato no significa que a msica tenha sido mondica de forma

  • sistemtica e sem excepo. Assim, baseando-se na flauta dupla (3000 anos a.C.), capaz de emitir dois sons simultaneamente ( o caso do aulos grego), no rgo antigo (hidrulico), utilizado em Alexandria 300 anos a.C., e no qual dois tubos podiam funcionar ao mesmo tempo, e, finalmente, nas diferenas de registo vocal entre homens, mulheres e crianas, fcil admitir que uma polifonia rudimentar tivesse podido existir muito antes do aparecimento, na Idade Mdia, da polifonia como cincia organizada. As vozes humanas de registo diferente podiam cantar a oitava, em unssono ou ainda a outros intervalos (terceira, quinta), inconscientemente. Outras formas elementares de polifonia podiam ter sido, por exemplo, o acompanhamento de uma nota de baixo contnuo durante o canto; ou um tocador de lira podia entregar-se a diversas variaes sobre a linha meldica do cantor: notas mais graves ou mais agudas, ritmos contrastantes, etc. Considerando, contudo, as teorias da Antiguidade, assim como a msica que esta nos legou, temos de admitir que tais polifonias, verossimilmente limitadas a duas vozes, fossem utilizadas sem que tivesse surgido a idia de estabelecer uma teoria ou de regular o seu uso. Eram sem dvida acidentais e em nada prejudicavam o princpio da mondia.

    Tal como na Pr-Histria, observa-se em todas as civilizaes da Antiguidade que os acontecimentos da vida quotidiana de uma coletividade, as suas manifestaes religiosas ou guerreiras, os seus mltiplos ritos so acompanhados de msica. No existe cerimnia onde ela no tenha o seu lugar. Dessa forma alcana uma importncia considervel na ordem social: o seu uso no se limita prtica do canto ou de um instrumento, imas faz parte da formao moral do cidado. Exprime os sentimentos da comunidade e no os de um indivduo, a linguagem do grupo que assim atinge a sua unidade espiritual. Foi confiada aos sacerdotes, aos msicos e aos poetas, que se incumbiram de traduzir o sentimento comum.

    Durante estes milnios e at Idade Mdia, a _ msica no considerada como uma arte; esta noo s comear a manifestar-se a partir do momento em que a msica se libertar do seu papel puramente ritual. As transformaes da Idade Mdia aparecimento da notao musical e, em seguida, da polifonia, o desenvolvimento da msica profana e erudita, os instrumentos

  • inditosdaro msica um aspecto e um significado totalmente diferentes do que haviam sido no decurso dos sculos anteriores.

    Ao descobrirmos a intensa vida musical que impregnou as civilizaes no europias da Antiguidade, no podemos deixar de pensar nesse passado que continua a viver, por vezes de forma surpreendente, nos seus monumentos, frescos, desenhos, estaturia e objetos, enquanto a sua voz se extinguiu e a sua msica permanece muda, manifestando-se apenas por sinais e enigmas. O nico esforo que podemos fazer decifrar esses enigmas, dar uin sentido a esses sinais e tentar imaginar, sem poder ressuscit-la, uma msica que hoje apenas uma lngua morta.

    A Antiguidade Greco-Romana J anteriormente evocamos a Antiguidade Greco-Romana; voltemos apenas

    por alguns instantes a esse mundo, bero da msica ocidental.

    Grcia: tocadora de citara (cerca de 500 a.C.)

    Egipto: tocadora de lira (cerca de 1500 a. C.)

  • justo dizer que foi a Grcia que nos legou a msica, visto que imps, alm do seu sistema musical pitagrico, uma potica musical que se tornou um modelo. O que foi possvel reconstituir, pelos raros documentos que chegaram at ns, permite afirmar que:

    1. A msica grega essencialmente vocal; os instrumentos desempenham apenas um papel de acompanhamento.

    2." A funo da msica simultaneamente religiosa e social, constituindo o ritual da vida coletiva.

    3. O emprego da msica encontra-se estritamente regulamentado; o sistema musical compe-se de sete modos; cada um destes modos possui um carcter bem determinado, cujo uso est fixado por lei.

    4." A msica mondica; quando um instrumento a acompanha em unssono.

    A escala grega diatnica (as teclas brancas do nosso teclado). Os Gregos conheciam igualmente o gnero cromtico, que comportava intervalos menores que o diatnico, mas apenas em determinadas alturas da escala. Se a escala uma sucesso de notas, o modo a maneira de dispor essas notas. Cada nota da escala dava origem a um modo diferente. Para imaginarmos a importncia dos modos, lembremos que a nossa poca emprega, desde a Renascena, apenas dois: o maior e o menor, o que, portanto, empobreceu as possibilidades de modificao das escalas. Os nossos modos so ascendentes, enquanto os modos gregos eram descendentes; ainda se encontram vestgios dos modos gregos nos modos de igreja, que deles so originrios, bem como na msica popular espanhola ou na msica rabe. A explicao deste fato simples: alheia ao movimento de evoluo da msica erudita na Europa Ocidental, a msica popular ou religiosa da bacia mediterrnea, tendo conservado as suas tradies, permanece ainda hoje igual ao que era h dois mil anos, enquanto a msica europia se afastava em busca de novos caminhos.

    A msica grega, que possua, sem dvida alguma, um repertrio muito vasto, deixou-nos pouca coisa: um fragmento de um coro para a Orstia, de Eurpides, dois hinos a Apoio (sculo n a.C.), o Hino ao Sol, de Mesomedes de Creta, um hino cristo de Oxyrhinchos. Os Gregos possuam igualmente um sistema de notao sumrio, constitudo por letras; juntamente com os escritos dos tericos, este elemento permite reconstituir um conjunto que deve ter sido

  • muito rico e do qual o canto da Igreja Crist nos d uma idia, uma vez que praticamente todo o seu repertrio descende dele.

    Se os documentos materiais no so numerosos, sabemos, em contrapartida, que a cultura grega deve muito msica e sua influncia sobre os costumes. Se as obras musicais so raras, sabemos que a formao moral do cidado se apoiava na msica e parece ser evidente que a espiritualidade grega foi fecundada pela msica. Plato professa, na sua Repblica, que a msica deve guiar a juventude para a beleza e a harmonia espiritual. Aristteles preconiza a purificao pela msica, no obstante reconhecer que esta pode ser um divertimento, como por exemplo depois do trabalho. Se os cultos de Apoio e de Dionisos tm os seus fiis, apenas os dissolutos celebram o deus do prazer nos seus banquetes, com melodias e ritmos, cantos e danas incitando licenciosidade. Mas ningum se ilude e a verdade surge nos filsofos e na mitologia.

    O teatro tem os seus coros e os seus intermdios instrumentais, que acompanham a tragdia; as Panateneias, festas em honra de Atenas, so dotadas de cantos e de danas nobres; os Jogos Pticos evocam a luta de Apoio e do monstro Pito, com o auxlio de uma msica descritiva. Cerimonias religiosas, cortejos, festas profanas, estes acontecimentos no se realizam sem msica. Os aedos, poetas-cantores discpulos de Orfeu, subjugam a multido com as suas grandes obras de carter pico, acompanhadas pela ctara ou a lira.

    Esta descrio conduz-nos aos instrumentos, cujo domnio mais conhecido: alm do fato de estes instrumentos terem sido frequentemente reproduzidos em efgie, encontrou-se um grande nmero deles. Por outro lado, certo que o princpio da ressonncia dos instrumentos foi sempre o mesmo desde as pocas mais recuadas. Os considerveis aperfeioamentos introdu-zidos nos instrumentos musicais desde h alguns sculos no trouxeram qualquer modificao neste captulo. To longe quanto possamos retroceder, a percusso o sopro e a corda tm constitudo os trs tipos de ressonncia: bater numa superfcie vibrante, soprar num tubo ou ferir uma corda, so os trs processos de que o homem mais primitivo pde ter conhecimento. Da corda tensa nasceu a harpa, a ctara, a lira (cordas pinadas) ou o ravanastron (Ceilo, 5000 anos a.C.), primeiro instrumento de arco. Do tubo surgiu a siringe, a flauta, o aulos (espcie de obo, que os Gregos consideravam como

  • dionisaco), a trombeta, a buzina, etc. Quanto percusso, deu origem s casta-nholas, aos diversos tipos de tambores e tantas. Certos instrumentos em nada evolucionaram desde a Antiguidade, exceto nos pormenores. Outros, tais como as madeiras ou a famlia dos violinos, adquiriram novos meios tcnicos desde h apenas trezentos anos.

    Quando o Imprio Romano sucedeu s repblicas gregas, absorveu uma grande parte da sua msica e inspirou-se na ordem e na beleza helnicas. Durante muito tempo msicos gregos tomaram parte na vida artstica romana, verossimilmente ensinado ou, pelo menos, introduzindo o seu exemplo e as suas tradies. Privada, contudo do esprito que comandava a sua existncia e da sua antiga fora espiritual, a msica romana torna-se mais prosaica, mais dura, mais exterior; exaltando a glria militar e a grandeza dos csares, vulgariza-se: a tuba, a trompa, o rgo, a buzina, instrumentos de maior potncia sonora, acompanham os combates dos gladiadores.

    A decadncia, helnica dilui-se no poderio romano: os vestgios da msica pertencentes ao apogeu da civilizao grega vm morrer num mundo regido por uma escala de valores diferentes. No primeiro sculo da nossa era, a msica em Roma destina-se ao povo, msica de folguedo, de circo, de dana, que se tornar rapidamente trivial ou libertina.

    Em suma, ao passar da Grcia para Roma, a msica degenera; perde o seu sentido e a sua nobreza. , contudo sob esta forma que vai penetrar no Ocidente, pois ser nos amplos fundos legados pelas civilizaes antigas que os cristos iro colher os cantos que lhes serviro de senha. de resto atravs destes cristos, bom como das tradies conservadas em certos meios patrcios, que poder sobreviver uma msica superior.

  • Os instrumentos antigos vistos por um musiclogo do sculo XVIII (Ensaio sobre a Msica Antiga e Moderna, de Laborde)

  • III - A MSICA CRIST A poca gregoriana (sculos III a XI) Posto que os informes sobre a msica nos princpios do cristianismo sejam

    escassos, sabe-se, contudo que esta aparece associada liturgia desde as primeiras manifestaes do ritual cristo. Acompanha os primeiros gestos rituais do partir do po (a ceia) e as reunies culturais. Assim nascem os salmos mondicos, destitudos de qualquer artifcio; assim a sublimao dos arrebatamentos espirituais dos participantes se exprime por meio de uma simples linha meldica cheia de sentido. Os cnticos e as longas melopias dos primeiros sculos da era crist constituem uma orao cantada, cuja pureza vai acentuar-se constantemente. Originrio das tradies judaicas (salmos e cnticos do Antigo Testamento), gregas e pags, o canto de igreja est edificado sobre os modos descendentes da Antiguidade; a sua melodia flexvel alia-se ao texto segundo um ritmo livre (cantocho, oposto ao canto medido, que far a sua apario pelo sculo XIII). Na sua simplicidade, o canto de igreja representa, ao longo da histria e a despeito das considerveis transformaes da msica erudita, um exemplo de perfeio, de equilbrio exato entre a expresso e os meios pelos quais se exterioriza. A melodia, ou melhor, a mondia religiosa, basta-se a si prpria, sem necessidade de recorrer harmonizao ou instrumentao; exprime, com supremo requinte, as menores graduaes do texto. Assim a orao cantada da Igreja Crist representa j um dos pontos culminantes da espiritualidade.

    Esta liturgia das primeiras pocas, sntese de um patrimnio legado pela histria, foi marcada pela personalidade de um homem: Santo Ambrsio, bispo de Milo no sculo IV. A msica que o precede pode ser chamada msica crist primitiva. Santo Ambrsio introduziu na sua diocese antfonas e hinos vindos do Oriente, integrando na missa os modos do rito bizantino, derivados dos modos gregos, subtis e eruditos: estes impregnaram o rito ambrosiano de cantos vocalizados extremamente flexveis, onde abundam os pequenos intervalos, que produzem uma expresso mais sensual. Esta expresso ser combatida pelos neopitagoristas, que reclamam para a Igreja um canto menos efeminado segundo o seu critrio. Os chefes da Igreja, inquietos por verem

  • que os fiis se afastam de uma liturgia que lhes estranha (e demasiado eru-dita, acrescentam eles), tentaro regressar aplicao dos modos gregos clssicos, isto , diatnicos1 .

    Em 387 Ambrsio efetua o batismo de Agostinho de Hipona, o futuro Santo Agostinho (354-430). Este vai propagar o salmo ambrosiano e redigir o tratado De Msica, de grande importncia para a teoria do canto de igreja e surge como um dos primeiros grandes pensadores e tericos do canto litrgico.

    Aproximemos do seu nome o de Bocio (475-526), nobre romano, autor do tratado De Institutione Musica, smula dos conhecimentos tericos do mundo greco-romano. Esta obra, caracterstica de uma tendncia ento espalhada, considera a msica unicamente como uma cincia, dentro da tradio pitagrica. Sabe-se que este conceito influenciar a evoluo da msica at Idade Mdia.

    Voltemos a Santo Ambrsio, que, por sua iniciativa, difunde a liturgia ambrosiana na Glia. Ao espalhar-se, contudo, esta liturgia tem tendncia a transformar-se. Na Provena, na Alemanha, na Espanha, desenvolvem-se liturgias locais, que empregam associaes de modos e de lnguas: com efeito, a lngua vulgar aparece frequentemente, alterando o texto e a melodia. Pouco a pouco manifesta-se uma espcie de vasta anarquia, inconsciente, que ameaa tornar-se heresia, conduzir aos cismas e at, por fim, fazer ruir a estrutura da prpria Igreja, fragmentando-a em tantas liturgias e depois igrejas , quantos ritos locais existam. A abundncia de liturgias pe em jogo nada menos do que a unidade da Igreja. A ausncia de notao favorece esta disperso: o impulso vigoroso que os chefes da Igreja tentam transmitir atravs da Europa, perde a sua fora ao chegar aos confins da cristandade, em terras longnquas onde o temperamento dos homens, o clima, os gostos, tendem a dominar. Torna-se necessrio efetuar uma enrgica reforma, pois na Alemanha triunfa o ritual gelasiano, fundado por Gelaso I, e que sobreviver at ao sculo IX. Em Espanha reina o rito morabe, associao de cantos gregos, romanos e

    1 Podemos imaginar uma comparao exacta na essncia, seno no pormenor: a melodia

    cromtica sensual, suaviza os contornos, lnguida. A melodia diatnica serve melhor a expresso viril, os contornos ntidos, o sentimento so. Beethoven utiliza o diatonismo, Wagner o cromatismo.

  • orientais, em uso nas comunidades crists misturadas com os conquistadores rabes. Este rito ainda existir na Renascena em alguns pontos do territrio.

    Em diversas ocasies, Carlos Magno v-se forado a chamar a ateno dos bispos para a necessidade de observncia do rito romano. Uma ordem sua nesse sentido ficou clebre: Revertimini vos ad fontem sancti Gregorii, quia manifeste corruptistis cantum. (Voltai s fontes de So Gregrio, pois estais manifestamente a corromper o canto). Quem este So Gregrio, a quem a cristandade solenemente convidada a referir-se? Papa no sculo VI, Gregrio I, tal como os seus predecessores, testemunha do desenvolvimento rico mas inquietanteda liturgia romana, das transformaes do rito ambrosiano, da vitalidade dos ritos bizantinos, clticos, morabes. Aplica-se ento a reprimir esta enorme proliferao e a estabelecer a unidade da liturgia romana atravs da Europa. E assim que o repertrio do canto religioso depurado das cantilenas de carter oriental, que numerosos intervalos meldicos so corrigidos e se regressa a uma severa disciplina de expresso, que rejeita tudo quanto possa ser chamado lirismo. Alm disso, este canto, estabelecido num tipo gradual (o Antifonrio, coletnea dos cantos da Igreja romana), imposto a toda a cristandade; enviam-se missionrios a todas as dioceses, a fim de ensinar o canto de igreja.

    Esta reforma, que fixa definitivamente o rito, comporta sem dvida o perigo de impedir qualquer evoluo ou enriquecimento eventuais; em contrapartida, desenvolve a intensidade da sua expresso, a sua exaltante austeridade. Foi assim que este canto, doravante chamado gregoriano, adquiriu essa simplicidade luminosa, essa gravidade apaziguadora e, talvez possamos acrescentar, essa suavidade romana que s nele se preservou enquanto desaparecia sua volta, e graas qual sobrevive intacto desde h treze sculos.

    No bem conhecida a obra verdadeira de Gregrio, mas pode razoavelmente atribuir-se-lhe o merecimento da reforma do canto religioso; lcito supor que, se no foi o nico a agir nesse sentido, foi pelo menos ele que, tanto pelos seus prprios trabalhos, como pela sua autoridade, reuniu os escritos dos tericos seus predecessores e contemporneos.

    O gregoriano iria, portanto, ser doravante o canto oficial da Igreja Crist. Contudo, no sculo XIX, julgou-se necessrio efetuar uma nova reforma e

  • desta vez foram os beneditinos da Abadia de Solesmes, em Frana, que ligaram o seu nome paciente reviso do repertrio litrgico. A Edio Vaticano, verso oficial do canto gregoriano aps esta reviso, foi publicada em 1908.

    oportuno notar que as mondias gregorianas conservam a sua pureza nos ofcios divinos dos conventos beneditinos, mas na nossa poca esto harmonizadas e so acompanhadas pelo rgo na maioria das igrejas. Este sistema, de prtica to corrente que os fiis nem reparam nele, est contudo em contradio com o esprito da mondia, que se basta a si prpria. Alm disso, o estilo das harmonizaes encontra-se muito frequentemente em oposio com toda a estrutura modal destas mondias.

    O canto gregoriano p ncleo de toda a msica ocidental: tal facto explica-se facilmente. A cano popular da Idade Mdia, que annima, tem a sua fonte na igreja, pois a vida do povo permanece estreitamente ligada das comunidades religiosas. O povo rene-se em volta das igrejas ou das abadias e conventos. A msica sacra a nica a que ele tem acesso e inconscientemente que ele cantarola o que ouviu nos ofcios, transformando, ornamentando, alterando ou ritmando segundo a sua fantasia os cantos rituais ou inventando melodias inspiradas nestes.

    As mais antigas canes que possumos so testemunhos surpreendentes desse mimetismo entre a melodia religiosa e a profana: assim, as canes de misteres, baseadas em ritmos funcionais (gestos de ofcio, etc.), reproduzem contornos meldicos prprios do canto gregoriano. Pouco a pouco a cano separar-se- deste completamente, mas conservar, no obstante, a escala descendente, que evoca com preciso o canto de igreja.

    A primeira fase da histria da msica na era crist pode situar-se entre os sculos I e X, isto , no decurso de um perodo em que o canto litrgico se estabelece, aps algumas hesitaes, e se torna no servidor imutvel da estabilidade da Igreja. Simultnea e progressivamente desenvolve-se o canto popular, segundo os legtimos anseios do povo, que deseja folguedos. O final desta primeira poca situa-se no momento em que esses folguedos adquirem tal importncia que so rejeitados pela Igreja e em que, ao mesmo tempo, os progressos da teoria musical do lugar, .por um lado, notao e, por outro, ao nascimento da polifonia.

  • Instrumentistas egpcias tocando flauta dupla, alade e harpa (fresco tumular de um sacerdote de Amon, cerca de 1600-1800 a.C.;

    Tipos de instrumentos gregos, no sculo V a.C.: o aulos, obo duplo, era utilizado nas bacanais e nas festas profanas (taa tica)

  • Comea ento uma segunda fase da histria da msica. Verificaremos,

    efetivamente, que a evoluo da vida social na Idade Mdia introduz notveis modificaes nas festas religiosas: diversos elementos profanos (cantos e danas), assim corno a lngua vulgar, so integrados como intermdios nos ofcios divinos. Estes elementos vo intensificar-se at desfigurar o aspecto da cerimnia religiosa, tanto mais que no desprezam os temas de atualidade, nem os de inspirao libertina. Em breve se produz o rompimento inevitvel entre estes dois gneros inconciliveis e a Igreja rejeita do seu seio tudo quanto exterior cerimonia propriamente dita. Assim regressa pureza primitiva, restitui a missa o seu sentido real e apenas autoriza as representaes profanas no adro das igrejas. Desta atitude resultar para o espetculo profano a

    A ctara acompanhava os cantos e a poesia lrica (terracota beociana)

    Vaso para refrescar, do sculo V a. C. A lira era o atributo da poetisa Safo e do poeta Alceu

  • possibilidade de se desenvolver livremente, provocando assim o nascimento do teatro. Estas representaes, jogos, ou mistrios, como lhes chamavam, meio religiosos, meio profanos, ilustram, ora a Paixo, ora a histria de Ado e Eva, ora qualquer outro tema tirado das Escrituras onde, por vezes, figuram aluses crnica da poca.

    A poca gregoriana encontra-se mais ou menos contida entre o sculo III e o sculo XI. Mas no momento em que, sob o impulso das foras profanas, a missa se dilata desmedidamente e se torna ela prpria meio profana, no momento em que ocorre a separao entre a orao e os divertimentos que tinham tentado associar-se-lhe, nesse momento termina a poca gregoriana, isto , a longa sucesso de sculos durante os quais o estilo gregoriano dominara a arte musical.

    Quando se examina a histria deste perodo, verifica-se que a msica escapou regra geral da evoluo que marca tanto o destino dos homens como o das suas criaes artsticas. A que atribuir esta fixidez? Ao fato de a msica, sendo essencialmente religiosa, ritual, atingir plenamente o seu fim ao participar na orao. Estranha vida do sculo, no afetada pelas leis da evoluo: no exterior, os homens agitam-se e a vida transforma-se; no seio da Igreja, a msica permanece contemplao e adorao.

    Mas esta imobilidade vai terminar no sculo XI; associada ao ritmo da vida e s aspiraes dos homens, a msica profana vai, de certo modo, recuperar o atraso, seguir o movimento das idias, responder poesia e pintura.

    Haver doravante uma msica religiosa e uma msica profana e esta ltima dividir-se- em breve em msica popular e em msica erudita. Estes trs tipos, gerados em graus diversos pelo canto gregoriano, constituem toda a msica desde h dez sculos.

    A notao musical Um dos problemas mais rduos que o homem teve de resolver na histria da

    msica foi o da notao. Foram necessrios sculos de pesquisas para encontrar uma forma de fixar por meio de um sistema de escrita os dois dados fundamentais de uma notao musical: a altura e a durao dos sons. Tais pormenores, que nos parecem simples, representaram durante muito tempo

  • uma incgnita para os investigadores. Ora a msica padeceu certamente desta falta de notao, visto que o essencial das criaes musicais da Antiguidade caiu no esquecimento e que, por outro lado, tal ausncia alterou, sem dvida numa medida por vezes considervel, cantos deformados pela tradio oral.

    Os Gregos e os Romanos designavam as notas por meio de letras do alfabeto. A ndia e a China empregavam igualmente uma notao, mas deve observar-se que nenhum sistema antigo pde impor-se Europa, uma vez que a escala modal de sete notas e os intervalos utilizados nas melodias nada tinham de comum com os sistemas musicais antigos e orientais. Julga-se que Bocio foi o primeiro a designar os sons estabelecidos por Pitgoras por meio de letras latinas, substituindo assim as letras gregas usadas at ento.

    Contudo desenvolveu-se um sistema, cujos primeiros documentos se situam cerca do sculo VII. Este sistema, inteiramente emprico, baseava-se na analogia entre o ouvido e a vista e iria tentar desenhar a linha meldica com o auxlio de linhas e de pontos, reproduzindo os seus contornos com maior ou menor fidelidade. Impreciso na origem, iria, ao aperfeioar-se, dar nascena nossa escrita musical e revelar-se apto a notar a msica nos seus mltiplos pormenores. Este sistema a notao neumtica. Os neumas consistiam numa espcie de taquigrafia, correndo por cima do texto religioso e indicando, pelas diversas formas dos sinais utilizados, as subidas, descidas, ornamentos e paragens do canto. Efetivamente, a nica utilidade dos neumas, nesta fase to primitiva, era a de auxiliar a memria do cantor na igreja. Mas iriam desenvolver-se de forma inesperada; nas abadias e nos mosteiros, os clrigos procuravam infatigavelmente um processo para dar forma a este velho sonho: fixar no papel um fenmeno de pura imaterialidade como o som, com as suas particularidades secundrias. Tantos esforos no foram vos: surgiu a idia de dispor os neumas em volta de uma linha traada ao longo do texto, encontrando-se o primeiro som da melodia fixado sobre esta linha. Desta forma precisava-se a identificao dos intervalos. Depois traaram-se duas linhas de referncia, em seguida trs e, finalmente, quatro; sobre e entre estas linhas (o seu afastamento designava o intervalo de terceira) dispunham-se os neumas, doravante muito mais precisos quanto altura. As quatro linhas (chamadas pauta) permaneceram associadas escrita do cantocho de igreja, enquanto a

  • msica profana utiliza a pauta de cinco linhas, dada a extenso da escala sonora que percorre.

    Estando a altura dos sons praticamente definida pelo sistema de linhas (com um som sobre cada linha e um som entre cada uma destas, os sete sons da escala eram notados sobre quatro linhas e trs entrelinhas), tornava-se ainda necessrio indicar a durao destes sons. Diferentes formas convencionais forneceram uma primeira apreciao. Foi assim que se elaborou pro-gressivamente um sistema de sinais em forma de quadrados ou de losangos, dispostos sobre e entre as linhas, cada um representando um som. A sua dimen-so, a maneira de agrup-los ou de lhes associar um trao vertical, indicavam uma srie de duraes diferentes. No sculo XIII surge a notao proporcional, estabelecida a partir da notao quadrada. Temos aqui um exemplo, que nunca mais se modificar, da escrita musical utilizada para os cantos da missa gregoriana; ser apenas por intermdio da msica profana que esta escrita evolucionar ainda para a notao redonda, a pauta de cinco linhas e as divises binrias dos valores das notas (uma semibreve vale duas .mnimas, ou quatro semnimas, ou oito colcheias, ou dezasseis semicolcheias, etc.).

    Dois tericos da Idade Mdia deixaram os seus nomes ligados histria da notao musical: o monge Hucbaldo (840-930), professor, autor do tratado De Harmonia Institutione, que verosimilmente estabeleceu a pauta de quatro linhas; e o beneditino italiano Guido d'Arezzo (980?-1050), que efetuou um importante trabalho de fixao das cantilenas litrgicas e passa por ter completado a pauta de quatro linhas. Foi ele tambm que atribuiu aos sons os seus nomes definitivos, mas de uma maneira inesperada, onde o acaso desempenhou um papel; sucede que o canto de um hino a So Joo Baptista concebido em escada, o que quer dizer que cada verso comea num grau mais alto que o precedente.

  • A progresso da notao musical entre os sculo X e XV:

    1. Neumas franceses do sculo X 2. Notao de um canto litrgico na

    pauta, no fim do sculo XII 3. Pgina de cantocho de um livro de missa do sculo XIII, pauta de quatro linhas 4-Antifonario do sculo XV, com notao proporcional, pauta de cinco linhas.

  • Fragmento com neumas do manuscrito 239 de Laon, Metz, escrito por volta de 930.

    Laon 239 de Metz (cerca de 930) nos d um pouco mais de informao quanto melodia

  • Pauta de 4 linhas

    Pautas de 4 linhas

  • O texto o seguinte: Ut queant laxis, Resonare fibris, Mira gestorum,

    Famuli tuorum, Solve polluti, Labii reatum, Sancte Johannes, o que significa: A fim de permitir que ressoem nos coraes as maravilhas das tuas aes, absolve o erro dos lbios indignos do teu servo, So Joo.

    Sucede tambm que o primeiro verso ut queant laxis comea pela nota

    tradicionalmente chamada C, segundo o hbito adquirido no momento do aparecimento dos neumas, e que designava os sons fixos da escala sonora pelas sete primeiras letras do alfabeto. O hino a So Joo comea, portanto, por C: Chamar-Ihe-o Ut. O segundo_comea por D, chamar-lhe-o R, e assim por diante. Restam dois pontos que se torna necessrio explicar: Por que motivo a denominao assim elaborada compreende dois nomes, Ut e D para a mesma nota? Porque o primeiro verso comea sobre Ut e o regresso do Ut, oito graus mais acima, recai sobre a oitava deste som, onde o cantor termina dizendo Domino. De onde provem o nome Si para o stimo grau? Das iniciais Sancte Johannes, o J confundindo-se com o I.

    Eis portanto, a escala de sete notas estabelecida a partir do som Ut. Este desnvel de duas notas em relao escala antiga de L (A) estabelece simultaneamente o tipo de escala maior em D, tal como a conhecemos hoje. Por meio de uma srie de modificaes subtis e pelo emprego de graus elevados ou abaixados, o sentido (tonal vai desenvolver-se durante a Idade Mdia e fazer recuar pouco a pouco o sentido modal, que havia prevalecido desde a Antiguidade, e se conservar no canto de igreja.

  • A msica tonal, a escala ascendente, embries de todo o nosso sistema musical profano, abriro caminho merc dessas descobertas e teorias, que alargaro as fronteiras que limitavam a msica desde h cerca de dez sculos.

    Guido d'Arezzo e um discpulo (miniatura do sculo XII)

  • IV - A IDADE MDIA Por volta do sculo X, a fisionomia da sociedade europia modifica-se pro-

    gressivamente: O Ocidente organiza as suas estruturas feudais e divide-se em vilas burguesas, em castelos e em conventos. Os castelos dos suseranos so os centros do poder e da autoridade militar, que se estendem s regies vizinhas. Nesses tempos em que os nobres guerreiam permanentemente entre si, os con-ventos so o refgio da vida espiritual, mas at estes nem sempre escapam s devastaes que por vezes os arruinam. As vilas esboam-se, centros econmi-cos e sociais que prefiguram as grandes cidades futuras.

    No que respeita msica, deu-se uma grande transformao desde o tempo em que o gregoriano reinava sozinho sobre a Igreja e o povo. Num movimento constante, lento mas irreprimvel, a msica profana, como j vimos, invadiu a Igreja, sendo em seguida rejeitada por esta, e assistimos separao destes dois gneros por volta do sculo X. Doravante vai operar-se a associao da msica erudita e da msica popular, ambas profanas. Quando qualquer delas tiver ad-quirido fora autnoma, separar-se-o por sua vez.

    Dissemos mais acima que o canto religioso no evoluciona; exato. Teri-cos, copistas, professores, protegeram a cantilena litrgica de qualquer agres-so exterior. Por outro lado, os compositores (o que, na Idade Mdia, significa os mestres de canto) pretenderam enriquecer o gregoriano, conferir-lhe maior variedade expressiva ou decorativa; com a polifonia, vo adorn-lo de vestes sumptuosas. Mas primeiramente desenvolveram um gnero que assumiu gran-de importncia: o tropo. Amplificao do canto litrgico, o tropo uma impro-visao de vocalizes. O tropador, precursor dos trovadores, um trouver1 na acepo medieval. D livre curso sua inspirao quando chega palavra ale-luia: ornamentando-a, prolongando-a, acabar por conferir-lhe tal amplitude que o tropo tornar-se- numa verdadeira pea separada. Transformar-se- na sequncia, trecho original que perdeu as suas ligaes com a Aleluia, e que se cultiva em todos os conventos europeus, sobretudo em Saint-Martial de Limo-ges e em Saint-Gall. Neste ltimo, o monge Notker (830-912) deixou diversos modelos de sequncias. 1 Do francs trouver achar, encontrar significando, portanto, aquele que encon-tra. (A1, da T.)

  • A sequncia chama-se igualmente jubilus (canto alegre). Longnquo ante-passado dos vocalizos ornamentais e expressivos do bel canto, o jubilus desig-na qualquer improvisao sobre a Aleluia, improvisao que exprime jbilo espiritual. Esta alegria da alma no conservar sempre a sua pureza de inten-es: o jubilus representa uma tentao para a virtuosidade, o prazer sensual da voz e da expresso.

    Este gnero, que se conservar do sculo VII at ao sculo XIV aproxima-damente, ser condenado pelo Conclio de Trento (1545-63), devido aos exces-sos que origina. O tropo e a sequncia desaparecem ento da cena, mas j se haviam introduzido na msica profana e desempenhado um papel eminente no estmulo da criao musical da Idade Mdia, de que foram um dos fermentos ativos. Sem tais elementos, a msica religiosa teria estagnado numa tradio que recusava absorver qualquer idia nova. A este propsito, ser interessante fazer notar que tal tradio, firmemente mantida atravs de vinte sculos, s conseguiu sobreviver graas a um equilbrio harmonioso e prudente, constan-temente discutido, entre os princpios intangveis do estilo religioso e certa infuso de sangue novo cuidadosamente controlada.

    Os legisladores da Igreja conseguiram sempre repelir riquezas que pudes-sem asfixiar a pureza do gregoriano e que assim iam manifestar-se margem dos ofcios divinos. , contudo, este movimento de enriquecimento do canto religioso que vai caracterizar a Idade Mdia, provocar o nascimento da polifo-nia, favorecer o desenvolvimento dos grupos instrumentais e, finalmente, ori-ginar a florao polifnica, que atingir o seu apogeu no sculo XVI.

    Trovadores (sculos X-XIII) Duas correntes opostas, mas igualmente vigorosas, iro marcar a Idade M-

    dia: as correntes religiosa e profana. Como se desenvolve a msica profana? De duas formas, uma popular e outra aristocrtica. O povo canta e dana, ela-borando um inteiro repertrio de melodias ritmadas conforme as necessidades do trabalho (canes de ofcios), e impe um quadro simtrico a estas melodi-as. A simplicidade do ritmo e da melodia necessria no canto popular para facilidade de compreenso e de memria. Assim se explica a existncia de es-tribilhos e coplas curtos, repetidos em textos diferentes, e de frmulas rtmicas

  • e meldicas impressionantes e sugestivas. Desta forma, a cano popular intro-duz na msica um elemento do qual ela nunca mais conseguir libertar-se: a barra de compasso. Esta permitiu notveis progressos na escrita e, por exem-plo, a possibilidade de execues coletivas. Mas, ao mesmo tempo, impede a liberdade, a flexibilidade e as subtilezas do ritmo, tal como aparece no gregori-ano e de que s ele conservou o segredo (excetuando algumas msicas rituais do Oriente).

    Trovadores

    Gile de Vile Mariont

    Marcabru

  • A cano aristocrtica permanece ainda estreitamente ligada ao gregoriano

    at cerca do sculo XIII, fazendo uso restrito da simetria rtmica. Esta cano aristocrtica o apangio dos trovadores, cuja obra considervel, em Frana, a partir do sculo XI at ao sculo XIII. Poetas lricos em lngua de oil, ento falada ao norte do Loire (onde se chamavam trouvires), ou em lngua de oc, empregada ao Sul (troubadours), so na sua maioria nobres letrados que escre-vem eles prprios os poemas e as msicas das suas canes; os assuntos esco-lhidos vo das Cruzadas adorao da Virgem, passando pela stira, a Prima-vera e o amor corts.

    Nessa poca cria-se o hbito de prestar homenagem platnica a uma dama, cantando-lhe ou enviando-lhe uma cano de amor. Amor corts e cavalhei-rismo vm suavizar os costumes muito rudes de uma sociedade inteiramente

  • preocupada com aces guerreiras. Realizam-se reunies poticas e musicais, chamadas cortes de amor, onde cantores e declamadores se defrontam em despiques apaixonados.

    As canes eruditas dos trouvires e dos troubadours (troveor: trouvre, trobador: troubadour) exerceram grande influncia no desenvolvimento das formas musicais; existem histrias cantadas de forma livre, mas tambm can-es de coplas e estribilhos ou onde se emprega repetidamente um motivo do-minante. Existem canes-tipo, que do origem a um repertrio inteiro sobre o mesmo assunto: a cano do pano, que acompanha a fiao e tecelagem; a cano da alvorada, contando a separao dos amantes ao nascer do dia; a pastourelle, cano de pastora frequentemente dialogada, tal como o jeuparti, cano para vrias personagens. Finalmente, as canes corteses, que evocam as alegrias e tristezas do amor.

    Na maioria dos casos a cano molda-se sobre uma forma potica, sendo as-sim que a balada, o rondo, o lai e o virelai devem os seus nomes e a sua estru-tura ao exemplo literrio que seguiram. Todas estas formas so de coplas e estribilhos. Devem acrescentar-se as canes de carcter poltico (sirventes) ou satrico, assim como o planh (planctus), lamentao fnebre.

    No plano instrumental salienta-se tambm um gnero que se espalhou con-sidervelmente: a estampida, dana tocada na flauta e ritmada pelo tambor, ou, mais tarde, acompanhada por um contraponto na viola. Por vezes a estampida, cujos ritmos se inspiram no domnio popular e se desenrola numa sucesso muito simples de motivos breves, acompanhada de palavras.

    Salvo raras excepes, os trovadores inspiraram-se no canto gregoriano; a-lm disso, associaram o canto religioso e o canto popular, as suas fontes de inspirao. O seu repertrio musical, de que apenas um dcimo chegou ao nos-so conhecimento, devia representar perto de dois mil cantos.

    No devemos deixar de referir igualmente um aspecto importante da arte dos trovadores: o aspecto social. Viajando eles prprios, a fim de irem decla-mar e cantar os seus poemas e canes nas cortes vizinhas, os trovadores fa-zem-se tambm, por vezes, representar por menestris e jograis pertencentes sua casa e que atuam em seu nome, percorrendo as estradas de Frana, indo de castelo em castelo, de vila em vila e, em breve, de provncia em provncia. Nas praas pblicas, nas salas de armas, ou seja onde for que os acolham, relatam

  • as proezas do seu senhor. Cantam evidentemente o repertrio que este lhes ensinou, mas como pelo caminho vo vendo inmeras coisas que se apressam a repetir, este repertrio alarga-se medida que eles prprios inventam canes, parodiando melodias ouvidas nas suas digresses. Acabam por misturar de tal forma as criaes do seu senhor com as da sua prpria autoria, que nem sempre se consegue saber a quem de fato pertencem.

    Estas personagens errantes, e por vezes famlicas, percorrem as estradas, tanto no Vero como no Inverno, munidas da sua pequena harpa porttil ou de uma sanfona. Menestris (cantores-poetas) e jograis (distraidores), ambos por vezes fundidos num s, tocam sem suspeitar de uma influncia que ultrapassa a sua humilde atividade: as suas idas e vindas atravs da Europa tecem uma am-pla rede de crnicas e de informaes, contribuindo para um contnuo inter-cmbio de idias. Estes portadores de notcias difundem a lrica romnica no interior de um territrio cuja extenso nos deixa hoje estupefactos, consideran-do os meios rudimentares de que dispunham para se deslocar. A rede dos tro-vadores cobre, nos sculos XII e XIII, toda a Europa: Frana, Alemanha, Pases Baixos, Sua, Itlia, Hungria, ustria, Portugal, Espanha, Inglaterra e Irlan-da...

    Estes poetas so todos franceses? Sim, na maioria dos casos. De entre os trouvres podemos citar Adam de la Halle (Arras 1240 Npoles? 1287), Blondel de Nesles (Picardia, sculo XII), Thibaut de Champagne (rei de Navar-ra, Troyes, 1201-1253); de entre os troubadours, Guilherme IX de Aquitania, o mais antigo de todos os conhecidos (1071-1127), Bernard de Venta-dour ou Bernard de Ventadorn (Limousin, sculo XII), Jeanroy Marcabru (Gasconha, sculo XII), etc.

    Existem igualmente trovadores italianos no sculo XII. Quanto Alemanha, sofreu este pas intensamente a influncia desse movimento potico e musical, que se manifesta pelo aparecimento dos Minnesnger (cantores de amor), de que Walter von der Vogelweide um dos mais famosos representantes no s-culo XIII, e dos Meistersnger (mestres-cantores), de entre os quais a histria reteve sobretudo o nome de Hans Sachs (Nuremberga, 1494-1576), graas homenagem prestada por Wagner, tanto ao homem, como sua corporao.

  • Os Meistersnger so posteriores aos Minnesnger; existem do sculo XIV

    ao sculo XIX aproximadamente, e esta sobrevivncia at nossa poca expli-ca-se pelo fato de que os mestres-cantores, contrariamente ao que sucedeu com os Minnesnger ou os trovadores, organizaram-se em corporaes, editaram regras de admisso muito severas, estabeleceram uma hierarquia e conservaram ciosamente as suas tradies. Beneficiando dos privilgios e da prosperidade dos comerciantes, artfices e burgueses, a arte destes mestres-cantores e a sua atividade manteve-se, pois, dentro de um campo bastante limitado e escolsti-

    A msica na Alemanha no sculo XIV. Da esquerda para a direita: tambor, flauta, flauta de cana, viles, saltrio e gaita de foles.

    (Manuscrito de Manesse, por volta de 1300)

  • co; em contrapartida, tiveram o merecimento de conservar viva uma tradio musical e potica onde numerosas geraes iro colher a inspirao.

    Resumindo, verificamos que a importncia do repertrio dos trovadores, a variedade dos seus temas de inspirao, a influncia da sua arte potica e musi-cal nos gostos, nos costumes e nos espritos, a sua difuso atravs da Europa feudal, todos estes fatores fazem deles os arautos de um poderoso movimento lrico que durante mais de dois sculos inspira o Ocidente. Foi graas a eles que a msica profana alcanou grande popularidade.

    Consideremos, por exemplo, a apresentao do Jeu de Robin et Marion, de Adam de La Halle: no cheio de novidade, de frescura? Trata-se de um en-saio de teatro cantado. O amor de dois jovens e as inmeras peripcias que o contrariam so evocadas com o auxlio de rias em voga e de cantilenas ins-piradas no gregoriano, segundo uma sucesso de monlogos e de dilogos (-rias e duetos) em que o agradvel se associa ao enternecedor. Esta obra pode ser considerada como a primeira pera cmica. A fbula cantada Aucassin et Nicolette, cujo autor no foi identificado, conta uma bela e longa histria de amor, cheia de situaes a que hoje chamaramos melodramticas. A forma destas obras simples: em primeiro lugar, canta-se, depois um instrumento (flauta, vile) proporciona um intermdio e os solos e os duetos alternam, por vezes acompanhados em unssono. Esta ingenuidade, esta simplicidade, carac-teriza muitas produes da mesma poca. A par das grandes epopias, dos can-tos ou das crnicas, elabora-se tambm uma msica destinada a deleitar ou a divertir.

    Finalmente, uma ltima observao: a msica dos trovadores geralmente mondica. Os acompanhamentos instrumentais intervm em unssono; s mui-to raramente (no caso de Adam de La Halle, entre outros) assumem uma forma polifnica, por vezes simplesmente a duas vozes.

    A polifonia Contraponto provm de ponto contra ponto (punctum contra punctum),

    aluso s notas, chamadas pontos na Idade Mdia. O contraponto uma es-crita de vrias linhas (ou vozes), primeiro nota contra nota, em seguida combi-nando os valores (ou duraes). A diferena, por vezes confusa, entre contra-

  • ponto e polifonia simples: o contraponto a tcnica de escrita que produz a polifonia. A escrita contra-pontstica, em que evolucionam diversas linhas me-ldicas mais ou menos diferenciadas em contornos e duraes, levar vrios sculos a atingir uma flexibilidade total, uma liberdade perfeita.

    Harpista. Pormenor do livro de tropos de Saint-Martial de Limoges (seculo XI)

    Alegoria medieval da msi-ca, com carrilho, viola e saltrio (portal oeste da Catedral de Chartres, scu-lo XIII)

  • Um episdio do romance de cavalaria Renaud de Montauban. Em primeiro plano uma harpa porttil (miniatura de Loyset Li det, sculo XV)

  • Precisemos que a polifonia pode existir sem contraponto: uma srie de acor-

    des, cada um deles colocado sobre as diferentes notas de uma melodia (num coral religioso, por exemplo), pertence escrita harmnica (encadeamento de acordes fixos), mas forma uma polifonia, uma vez que contm vrias vozes. Para simplificar, podem-se resumir assim os trs termos:

    Polifonia: vrias vozes. Harmonia: vrias notas agrupadas em acordes. Contraponto: vrias linhas meldicas simultneas.

    Sculo XV, expanso da polifonia. No primeiro plano: Saltrio, flauta e rgo porttil; no segundo: trombeta, viola, tambor e harpa (frontispcio do livro de salmos de Ren de Lorraine)

  • Podemos encontrar a primeiraou pelo menos uma das primeiras manifestao da polifonia no sculo X no Msica Enchiriadis, de Hucbald, no qual est anotada uma Rex Coeli, Domine Maris ( Rei do Cu, Senhor do Mar) a duas vozes, a inferior fornecendo a melodia, a superior seguindo o desenho meldico a uma distncia de quarta. Este processo, muito rudimentar, constitui na realidade o incio da polifonia, chamado organum. (A etimologia, bastante complexa, pode resumir-se assim: o termo latino que deu origem palavra rgo instrumento provm do grego organon que significa rgo vocal, voz). O organum, primeiro ensaio da arte polifnica, , portanto, constitudo por um contraponto paralelo a duas vozes, tambm chamado diafo-nia.

    Note-se que a polifonia faz a sua apario no momento em que a notao musical se aperfeioa e a msica profana se desenvolve. Ainda neste caso, os progressos da tcnica evolucionam paralelamente ao aparecimento de ideias novas.

    As duas vozes do organum primitivo vo em breve adoptar outra tcnica: o movimento contrrio. Este simples achado enriquecer considervelmente as possibilidades da polifonia, que assim se aventurar a acrescentar uma terceira e, em seguida, uma quarta voz melodia principal, e por fim a variar as dura-es e os ritmos dessas diversas vozes. Ser ento que o contraponto encontra-r as suas mais belas aplicaes e que a escrita musical se .tornar numa cin-cia minuciosa e precisa. O que assim se resume numa frase representa, contu-do, uma evoluo lenta e difcil, que levar, desde o incio at atingir a plenitu-de, cerca de seiscentos anos...

    Poderia perguntar-se por que motivo aparece a polifonia no decurso da Ida-de Mdia. Porqu numa determinada poca em vez de outra? Por que motivo ningum tinha pensado na polifonia anteriormente? Pode admitir-se, contudo, que ela no surgiu devido a um simples acaso. Seguindo paralelamente a evo-luo da msica, bem como o grau de evoluo social, a polifonia manifesta-se no momento em que se procura aumentar o poder expressivo das melodias dos ofcios religiosos, onde a sua nudez e a sua singeleza j no pareciam suficien-tes.

    A associao de uma voz voz que canta a melodia provm desse desejo de ampliar as possibilidades do gregoriano, mas, simultaneamente, representa um

  • ato audacioso, correspondendo a uma audcia geral que marca os espritos, a uma vasta corrente de progresso que a nossa poca nem sempre reconheceu como devia. Na verdade, mencionam-se com mais frequncia as trevas da Idade Mdia do que as suas claridades.

    O movimento polifnico espalha-se porque corresponde ao gosto e curio-sidade da poca. o gregoriano que serve de base aos primeiros ensaios de polifonia e, assim, ser o canto de igreja que vai amparar a nova msica. No sculo xi, por exemplo, surge o discantus, improvisao livre em movimentos paralelos e contrrios ao canto litrgico, que se experimenta nomeadamente na Catedral de Chartres.

    Uma palavra, de que os sculos modificaram totalmente o sentido, permane-ce ligada aos comeos da polifonia: tenor. Proveniente de tenere (sustentar), o tenor uma melodia cantada em valores longos, sobre a qual se desenrola o discantus em valores mais breves. O tenor sustenta assim a melodia principal, em volta da qual se tecem floreios diversos; o cantor a quem se confia esta voz torna-se uma espcie de protagonista. Foi nesse sentido que o termo transitou para a linguagem profana.

    O primeiro balbuciar da polifonia d origem a diferentes gneros, que mais tarde desaparecero, mas que lhe trazem novas formas e definies: o gymel ingls, acompanhamento do canto terceira inferior em movimento paralelo; o f-bordo, ou falso-baixo, a voz terceira superior cantando-se na oitava infe-rior (ainda hoje um cantor pode enganar-se na oitava e cantar abaixo de uma melodia que dobra julgando cantar acima); o conductus, pea litrgica ou pro-fana, que consiste num canto ornamentado por uma segunda voz. livre.

    At aqui a msica tinha sido annima: tanto os cantos rituais como os popu-lares no tm autores. To longe quanto possamos retroceder na histria, am-bos pertencem criao coletiva (ou individual, imediatamente transmitida coletividade), cuja origem permanece inevitavelmente misteriosa. Mas a partir do momento em que a msica se desenvolve noutras direes, os nomes dos tericos e dos compositores vo permanecer ligados sua evoluo.

    J pudemos citar os nomes de Ambrsio e de Gregrio, os primeiros a exer-cer sobre o canto religioso uma influncia reconhecida pelos seus contempor-neos. Mais tarde, entre outros, bastante escassos, encontramos Hucbald e Gui-do d'Arezzo, pois ento existiam poucos tericos ou compositores que se tor-

  • nassem conhecidos. No esqueamos que o trabalho dos monges, voluntaria-mente humilde e obscuro, favoreceu o anonimato. Quanto aos trovadores, os seus nomes ficaram ligados histria porque se tratava de nobres ou haviam conquistado a fama por outros motivos.

    Ao mesmo tempo em que a msica se desliga do canto religioso coletivo, sai, portanto, do anonimato. Caminha para certa individualizao do sentimen-to e tambm da tcnica; a marca do msico criador poder doravante manifes-tar-se; ao, princpio modesta e muitas vezes involuntria, em breve se afirmar com uma audcia sempre crescente.

    Na cena musical vo aparecer msicos especializados, tericos ou composi-tores. Em Notre-Dame de Paris, o organista Lonin (sculo XII) escreve uma srie de msicas para rgo, algumas a duas vozes. O seu sucessor, Protin, dito o Grande, considerado como um dos primeiros grandes compositores da histria e o pai da msica polifnica. Deixou organa, discantus, conductus, peas a quatro vozes, que, executadas por coros ou rgo, deviam produzir nos fiis uma profunda impresso de novidade.

    Imaginemos o que devia representar para o homem do sculo XII a audio simultnea de duas ou vrias melodias - surpresa para a qual os espritos esta-vam to pouco preparados como os ouvidos - e conviremos que os primeiros ensaios da polifonia - a despeito da sua desajeitada rigidez, que nos parece cheia de encanto arcaico - devem ter suscitado grande curiosidade. A segun-da voz e, em seguida, as outras que se lhe agregaram introduziram um elemen-to de colorido e de calor completamente estranho austera tradio gregoriana.

    Protin, que, no o esqueamos, organista numa catedral, afirma a f ro-busta dos seus construtores e do seu povo. Entre 1180 e 1232 aproximadamen-te, Protin cria um novo estilo musical que hoje seria classificado de vanguar-da. Para coroar os seus trabalhos, utiliza por fim o processo itnitativo, que es-trutura as peas pela repetio dos .motivos principais, respondendo entre si de uma voz outra. Este processo, de que os polifonistas da Renascena faro uso at s suas mais extremas possibilidades e que dar origem fuga, continua a empregar-se atualmente como um dos elementos constitutivos da forma musi-cal.

    Desta vez a tradio greco-romana foi completamente abandonada. O mun-do feudal da Idade Mdia um meio activo, corajoso, poderoso, onde circulam

  • e se desenvolvem numerosas idias novas. Os homens deslocam-se; Paris j um local de encontro para os clrigos. Estudantes de vrios pases vm a esta cidade para assistir aos cursos da universidade que Robert de Sorbon acaba de fundar e que usar o seu nome. Notre-Dame de Paris um ponto de reunio dos fiis e a msica nova e ousada que ali se toca repercutir-se- longe. Tam-bm viro jovens msicos estrangeiros, que aprendero os mistrios da polifo-nia com mestre Protin. O rei Filipe Augusto, cognominado o Construtor, favo-rece em Paris o progresso social e econmico; grandes catedrais comeam a cobrir a Frana, a literatura e a msica desenvolvem-se. Em 1235 compe-se a primeira parte do Romance da Rosa; o romance do amor corts, que os tro-vadores continuam a difundir por toda a Europa. Assiste-se ao despertar de um mundo novo, onde as criaes do esprito adquirem cada vez mais importncia e lanam os alicerces da civilizao artstica do Ocidente. ento que a msi-ca, que havia sido uma cincia no estudo dos fenmenos sonoros e, desde sem-pre, um ritual, comea a transformar-se no que ser doravante: uma arte. ento tambm que, juntamente com a literatura e a pintura, ela se torna num dos elementos fundamentais da cultura europia.

    A Ars Nova (sculo XIV) Como vimos, a polifonia nasceu de necessidades novas: de acordo com uma

    explicao no cientfica, mas simplesmente potica, a alma dos homens, nos primeiros sculos da nossa era, no estando preparada para a msica polifni-ca, no sentia a sua falta. Nesses tempos de grande f e austeridade, no se po-dia conceber ou admitir que qualquer elemento ornamental ou sensual fosse introduzido no canto religioso; como tambm vimos, os chefes da Igreja agi-ram diversas vezes no sentido de se lhe opor.

  • A despeito de, aqui e ali, se manifestarem algumas liberdades, de um modo

    geral a ignorncia e a superstio mantm o povo num estado de absoluta doci-lidade em relao a tudo o que lhe imposto. Esta simplicidade do homem da remota Idade Mdia pouco durar: ser abalada pelas reivindicaes de alguns, pelas correntes de idias, pelas criaes artsticas que pouco a pouco modifi-cam o estado dos espritos e, em breve, o cenrio da existncia.

    Orquestra burlesca, miniatura do Romance de Fauvel

  • A msica na Bomia no sculo XIV. Em cima: harpa de saltrio, carrilho e saltrio. Em baixo: harpa, sistro, vile e saltrio. (Bblia de Velislav, 1340) A sociedade feudal, dos sculos XI a XVI aproximadamente, vive de uma

    determinada maneira, que suscita uma forma e uma expresso artsticas corres-pondentes. mondia gregoriana, na sua pureza e nudez, emanao de um

  • esprito adequado aos primeiros sculos do cristianismo, corresponde a igreja romnica na sua simplicidade. No momento em que decoraes e esculturas comeam a cobrir estas paredes nuas, no momento em que se animam as per-sonagens dos frescos, at ento imobilizadas num hieratismo bizantino, surgem 'tambm os primeiros ornamentos sobre a nudez gregoriana: a polifonia. No domnio da msica, passar do romnico ao gtico significa passar da monodia polifonia. Existe uma estreita correlao entre o sculo e a criao musical.

    Vrios fatos confirmam esta teoria: os trovadores comeam a notar as suas canes, visto que existe uma notao, na verdade reservada ao canto religioso, mas que vai transbordar para o campo profano; os menestris iniciam-se no seu mister nas mnestrandies, escolas criadas em Paris, e onde se ensina a arte de cantar, de falar, de tocar um instrumento, resumindo, de entreter. As mnes-trandies da Idade Mdia podem considerar-se como os humildes e populares antepassados dos nossos conservatrios. Por outro lado, o conjunto dos msi-cos comea a interessar-se pelas canes populares, enquanto anteriormente os monges tericos ou copistas tinham outras tarefas a cumprir nos seus con-ventos do que debruar-se sobre as canes da gente vulgar, que corriam as ruas e os campos. Com inteira boa f no lhes atribuam qualquer importncia e ser mais tarde, na Renascena, que se compreender verdadeiramente o inte-resse desta criao espontnea do povo. Entretanto, pelo sculo XIV, a cano popular integra-se na msica, afirma-se com mais vigor do que anteriormente, no s pelas canes de ofcios fortemente ritmadas, mas tambm por melodias livres cujo texto trata de um assunto de atualidade.

    No domnio da msica erudita, os progressos da polifonia do lugar, no pla-no terico, ao aparecimento de um tratado da nova msica, publicado em 1330 pelo bispo de Meaux, Philippe de Vitry (1291-1361). Trata-se do Ars Nova, que determina os conhecimentos da poca e fixa as regras da escrita polifnica. O que Vitry prope por esse meio aos seus contemporneos um programa de vanguarda: os modos eclesisticos, por exemplo, j no so considerados como os nicos aceitveis, e a nota sensvel (stimo grau elevado) de uma escala, processo inteiramente moderno, vai favorecer e fortificar a escala maior que hoje conhecemos. A tcnica da notao aperfeioa-se e Vitry codifica assim numerosas aquisies recentes.

  • O estilo proveniente do Ars Nova e que usar o seu nome, vai revolucionar o mundo musical e religioso. Aos ofcios litrgicos correspondem j as danas e canes populares, por um lado, e, por outro, as danas, canes e divertimen-tos das cortes e dos castelos. Eis que surge um tratado importante, devido a um eminente terico, alm disso, homem de igreja, que defende a causa do enri-quecimento da msica por diversos processos e encara resolutamente uma m-sica de futuro.

    A Ars Nova estende a sua influncia a um perodo de cerca de sculo e mei-o; ela representa uma fase de evoluo da polifonia, mas inscreve-se num en-cadeamento que no podemos, sem arbitrariedade, dividir em captulos. Se a histria da msica estabelece tradicionalmente esses captulos, unicamente por esprito de ordem e de classificao, pois os contemporneos de Philippe de Vitry, por exemplo, prosseguem a obra de um Protin e dos seus sucessores; introduzem-lhe novidades, audcias, liberdades que, por sua vez, vo dar lugar ao nascimento da grande arte polifnica da Renascena. Para maior clareza do exposto, situemos a Ars Nova nos sculos XIV e XV, na esteira de Vitry.

    A personalidade de um compositor marcou o perodo da Ars Nova: Guil-laume de Machaut (1300-377). Aps uma juventude aventurosa, em que, na qualidade de secretrio, seguiu Jean de Luxembourg por toda a Europa, tornou-se cnego de Reims. Homem culto, frequentador das cortes (Carlos de Na-varra, o duque de Berry), tanto cultiva a poesia como a msica. Esprito auda-cioso e fecundo, deixou numerosas obras profanas: baladas, virelais, ronds; contudo, a obra mais importante da sua carreira a Missa a Quatro Vozes, es-crita, ao que se julga, para a sagrao de Carlos V em Reims, em 1364. A no-vidade fundamental da obra reside no facto de que as suas di