história da anatomia humana

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HISTÓRIA DA ANATOMIA HUMANA French Print of "Anatomy Lesson in 1826" T© Gianni Dagli Orti/CORBIS Image ID: IH187800 O conhecimento anatômico do corpo humano data de quinhentos anos antes de Cristo no sul da Itália com Alcméon de Crotona, que realizou dissecações em animais. Pouco tempo depois, um texto clínico da escola hipocrática descobriu a anatomia do ombro conforme havia sido estudada com a dissecação. Aristóteles mencionou as ilustrações anatômicas quando se referiu aos paradigmata, que provavelmente eram figuras baseadas na dissecação animal. No século III A.C., o estudo da anatomia avançou consideravelmente na Alexandria. Muitas descobertas lá realizadas podem ser atribuídas a Herófilo e Erasístrato, os primeiros que realizaram dissecações humanas de modo sistemático. A partir do ano 150 A..C. a dissecação humana foi de novo proibida por razões éticas e religiosas. O conhecimento anatômico sobre o corpo humano continuou no mundo helenístico, porém só se conhecia através das dissecações em animais. No século II D.C., Galeno dissecou quase tudo, macacos e porcos, aplicando depois os resultados obtidos na anatomia humana, quase sempre corretamente; contudo, alguns

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HISTRIA DA ANATOMIA HUMANA

French Print of "Anatomy Lesson in 1826"

T Gianni Dagli Orti/CORBIS

Image ID: IH187800

O conhecimento anatmico do corpo humano data de quinhentos anos antes de Cristo no sul da Itlia com Alcmon de Crotona, que realizou dissecaes em animais. Pouco tempo depois, um texto clnico da escola hipocrtica descobriu a anatomia do ombro conforme havia sido estudada com a dissecao. Aristteles mencionou as ilustraes anatmicas quando se referiu aos paradigmata, que provavelmente eram figuras baseadas na dissecao animal. No sculo III A.C., o estudo da anatomia avanou consideravelmente na Alexandria. Muitas descobertas l realizadas podem ser atribudas a Herfilo e Erasstrato, os primeiros que realizaram dissecaes humanas de modo sistemtico. A partir do ano 150 A..C. a dissecao humana foi de novo proibida por razes ticas e religiosas. O conhecimento anatmico sobre o corpo humano continuou no mundo helenstico, porm s se conhecia atravs das dissecaes em animais.

No sculo II D.C., Galeno dissecou quase tudo, macacos e porcos, aplicando depois os resultados obtidos na anatomia humana, quase sempre corretamente; contudo, alguns erros foram inevitveis devido impossibilidade de confirmar os achados em cadveres humanos. Galeno desenvolveu assim mesmo a doutrina da causa final, um sistema teolgico que requeria que todos os achados confirmassem a fisiologia tal e qual ele a compreendia. Porm no chegaram at ns as ilustraes anatmicas do perodo clssico, sendo as sries de cinco figuras medievais dos ossos, veias, artrias, rgos internos e nervos so provavelmente cpias de desenhos anteriores. Invariavelmente, as figuras so representadas numa posio semelhante a de uma r aberta, para demonstrar os diversos sistemas, s vezes, se agrega uma sexta figura que representa uma mulher grvida e rgos sexuais masculinos ou femininos. Nos antigos baixos-relevos, camafeus e bronzes aparecem muitas vezes representaes de esqueletos e corpos encolhidos cobertos com a pele (chamados lmures), de carter mgico ou simblico mais que esquemtico e sem finalidade didtica alguma.

Parece que o estudo da anatomia humana recomeou mais por razes prticas que intelectuais. A guerra no era um assunto local e se fez necessrio dispor de meios para repatriar os corpos dos mortos em combate. O embalsamento era suficiente para trajetos curtos, mas as distncias maiores como as Cruzadas introduziram a prtica de coco dos ossos. A bula pontifica De sepulturis de Bonifcio VIII (1300), que alguns historiadores acreditaram equivocadamente proibir a disseco humana, tentava abolir esta prtica. O motivo mais importante para a dissecao humana, foi o desejo de saber a causa da morte por razes essencialmente mdico-legais, de averiguar o que havia matado uma pessoa importante ou elucidar a natureza da peste ou outra enfermidade infecciosa. O verbo dissecar era usado tambm para descrever a operao cesariana cada vez mais freqente. A tradio manuscrita do perodo medieval no se baseou no mundo natural. AS ilustraes anteriores eram aceitas e copiadas. Em geral, a capacidade dos escritores era limitada e ao examinar a realidade natural, introduziram pelo menos alguns erros tanto de conceito como de tcnica. As coisas eram vistas tal qual os antigos e as ilustraes realistas eram consideradas como um curto-circuito do prprio mtodo de estudo.

A anatomia no era uma disciplina independente, mas um auxiliar da cirurgia, que nessa poca era relativamente grosseira e reunia sobre todo conhecer os pontos apropriados para a sangria. Durante todo o tempo que a anatomia ostentou essa qualidade oposta prtica, as figuras no-realistas e esquemticas foram suficientes. O primeiro livro ilustrado com imagens impressas mais do que pintadas foi a obra de Ulrich Boner Der Edelstein. Foi publicada por Albrecht Plister em Banberg depois de 1460 e suas ilustraes foram algo mais que decoraes vulgares. Em 1475, Konrad Megenberg publicou seu Buch der Natur, que inclua vrias gravuras em madeira representando peixes, pssaros e outros animais, assim como plantas diversas. Essas figuras, igual a muitas outras pertencentes a livros sobre a natureza e enciclopdias desse perodo, esto dentro da tradio manuscrita e so dificilmente identificveis.

Dentre os muitos fatores que contriburam para o desenvolvimento da tcnica ilustrativa no comeo do sculo XVI, dois ocuparam lugar destacado: o primeiro foi o final da tradio manuscrita consistente em copiar os antigos desenhos e a converso da natureza em modelo primrio. Chegou-se ao convencimento de que o mais apropriado para o homem era o mundo natural e no a posteridade. O escolasticismo de So Toms de Aquino havia preparado inadvertidamente o caminho atravs da separao entre o mundo natural e o sobrenatural, prevalecendo a teologia sobre a cincia natural. O segundo fator que influiu no desenvolvimento da ilustrao cientfica para o ensino foi a lenta instaurao de melhores tcnicas. No comeo os editores, com um critrio puramente quantitativo, pensaram que com a imprensa poderiam fazer grande quantidade de reprodues de modo fcil e barato. S mais tarde reconheceram a importncia que cada ilustrao fosse idntica ao original. A capacidade para repetir exatamente reprodues pictricas, daquilo que se observava, constituiu a caracterstica distinta de vrias disciplinas cientficas, que descartaram seu apoio anterior tradio e aceitao de uma metodologia, que foi descritiva no princpio e experimental mais tarde.

As primeiras ilustraes anatmicas impressas baseiam-se na tradio manuscrita medieval. O Fasciculus medicinae era uma coleo de textos de autores contemporneos destinada aos mdicos prticos, que alcanou muitas edies. Na primeira ( 1491) utilizou-se a xilografia pela primeira vez, para figuras anatmicas. As ilustraes representam corpos humanos mostrando os pontos de sangria, e linhas que unem a figura s explicaes impressas nas margens. As dissecaes foram desenhadas de uma forma primitiva e pouco realista. Na Segunda edio (1493), as posies das figuras so mais naturais. Os textos de Hieronymous Brunschwig (cerca de 1450-1512) continuaram utilizando ilustraes descritivas. O captulo final de uma obra de Johannes Peyligk (1474-1522) consiste numa breve anatomia do corpo humano como um todo, mas as onze gravuras de madeira que inclui so algo mais que representaes esquemticas posteriores dos rabes. Na Margarita philosophica de George Reisch (1467-1525), que uma enciclopdia de todas as cincias, forma colocadas algumas inovaes nas tradicionais gravuras em madeira e as vsceras abdominais so representadas de modo realista. Alm desses textos anatmicos destinados especificamente aos estudantes de medicina e aos mdicos, foram impressas muitas outras pginas com figuras anatmicas, intituladas no em latim (como todas as obras para mdicos), mas sim em vrias lnguas vulgares. Houve um grande interesse, por exemplo, na concepo e na formao do feto humano. O uso freqente da frase conhece-te a ti mesmo fala da orientao filosfica e essencialmente no mdica. A Dana da Morte chegou a ser um tem muito popular, sobretudo nos pases de lngua germnica, aps a Peste Negra e surpreendentemente, as representaes dos esqueletos e da anatomia humana dos artistas que as desenharam so melhores que as dos anatomistas.

Os artistas renascentistas do sculo XV se interessavam cada vez mais pelas formas humanas, e o estudo da anatomia fez parte necessria da formao dos artistas jovens, sobretudo no norte da Itlia. Leonardo da Vinci (1452-1519) foi o primeiro artista que considerou a anatomia alm do ponto de vista meramente pictrico. Fez preparaes que logo desenhou, das quais so conservadas mais de 750, e representam o esqueleto, os msculos, os nervos e os vasos. As ilustraes foram completadas muitas vezes com anotaes do tipo fisiolgico. A preciso de Leonardo maior que a de Vesalio e sua beleza artstica permanece inalterada. Sua valorizao correta da curvatura da coluna vertebral ficou esquecida durante mais de cem anos. Representou corretamente a posio do fetus in utero e foi o primeiro a assinalar algumas estruturas anatmicas conhecidas. S uns poucos contemporneos viram seus folhetos que, sem dvida, no foram publicados at o final do sculo passado. Michelangelo Buonarotti (1475-1564) passou pelo menos vinte anos adquirindo conhecimentos anatmicos atravs das dissecaes que praticava pessoalmente, sobretudo no convento de Santo Esprito de Florena. Posteriormente exps a evoluo a que esteve sujeito, ao considerar a anatomia pouco til para o artista at pensar que encerrava um interesse por si mesma, ainda que sempre subordinada arte. Albrecht Drer (1471-1528) escreveu obras de matemtica, destilao, hidrulica e anatomia. Seu tratado sobre as propores do corpo humano foi publicado aps sua morte. Sua preocupao pela anatomia humana era inteiramente esttica, derivando em ltimo extremo de um seu interesse pelos cnones clssicos, atravs dos quais podia adquirir-se a beleza. Com a importante exceo de Leonardo, cujos desenhos no estiveram ao alcance dos anatomistas do sculo XVII, o artista do Renascimento era anatomista s de maneira secundria. Ainda foram feitas importantes contribuies na representao realista da forma humana (como o uso da perspectiva e do sombreado para sugerir profundidade e tridimensionalidade), e os verdadeiros avanos cientficos exigiam a colaborao de anatomistas profissionais e de artistas.

Quando os anatomistas puderam representar de modo realista os conhecimentos anatmicos corretos, se iniciou em toda Europa um perodo de intensa investigao, sobretudo no norte da Itlia e no sul da Alemanha. O melhor representante deste grupo Jacob Berengario da Capri (+1530), autor dos Commentaria super anatomica mundini (1521), que contm as primeiras ilustraes anatmicas tomadas do natural. Em 1536, Cratander publicou em Basilia uma edio das obras de Galeno, que inclua figuras, especialmente de osteologia, feitas de um modo muito realista. A partir de uma data to cedo como 1532, Charles Estienne preparou em Paris uma obra em que ressaltava a completa representao pictrica do corpo humano.

A. VERSALIUS Uma das primeiras e mais acertada soluo para uma reproduo perfeita das representaes grficas foi encontrada nas ilustraes publicadas nos tratados anatmicos de Andrs Veslio (1514-1564), que culminou com seu De humanis corpori fabrica em 1453, um dos livros mais importantes da histria do homem. Veslio nasceu em Bruxelas em 1514, no seio de uma famlia muito relacionada com a casa de Borgonha e a corte do Imperador da Alemanha. Sua primeira formao mdica foi na Universidade de Paris (onde esteve com mestres como Jacques du Bois e Guinter de Andernach), e foi interrompida pela guerra entre Frana e o Sacro Imprio Romano. Veslio completou seus estudos na renomada escola mdica de Pdua, no norte da Itlia. Aps seu trmino comeou a estudar cirurgia e anatomia. Aps alguns trabalhos preliminares, em 1543, com a idade de 28 anos, publicou seu opus magnun, que revolucionou no s a anatomia como tambm o ensino cientfico em geral. As ilustraes da Fabrica destacam-se precisamente pela sua estreita relao com o texto, j que ajudam no entendimento do que este expressa com dificuldade. Supera a pauta expositiva usada por Mondino, e cada um dos sistemas principais (ossos, msculos, vasos sangneos, nervos e rgos internos) representado e estudado separadamente. As partes de cada sistema orgnico so expostas tanto em conjunto como individualmente e mesmo assim so consideradas todas as relaes entre essas estruturas. Veslio comprovou tambm que no so iguais em todos os indivduos.

Veslio relatou sua surpresa ao encontrar inmeros erros nas obras de Galeno, e temos que ressaltar a importncia de sua negativa em aceitar algo s por t-lo encontrado nos escritos do grande mdico grego. Sem dvida, apesar de Ter desmentido a existncia dos orifcios que Galeno afirmava existir comunicando as cavidades cardacas, foi de todas as maneiras um seguidor da fisiologia galnica. Foram engrandecidas as diferenas que separavam seu conhecimento anatmico do de Galeno, comeando pelo prprio Veslio. Talvez pensasse que uma polmica era um modo de chamar ateno. Manteve depois uma disputa acirrada com seu mestre Jacques du Bois (ou Sylvius na forma latina), que foi um convencido galenista cuja nica resposta, ante as diferenas entre algumas estruturas tal como eram vistas por Veslio e como as havia descrito Galeno, foi que a humanidade devia t-lo mudado durante esses dois sculos. Veslio tinha atribudo o traado das primeiras figuras a um certo Fleming, mas na Fabrica no confiou em ningum, e a identidade do artista ou artistas que colaboraram na sua obra tem sido objeto de grande controvrsia, que se acentuou ante a questo de quem mais importante, se o artista ou o anatomista. Essa ltima foi uma discusso no pertinente, j que bvio que as ilustraes so importantes precisamente porque juntam uma combinao de arte e cincia, uma colaborao entre o artista e o anatomista. As figuras da Fabrica implicam em tantos conhecimentos anatmicos que forosamente Veslio devia participar na preparao dos desenhos, ainda que o grau de refinamento e do conhecimento de tcnicas novas de desenho, tambm para os artistas do Renascimento, excluem tambm que fora o nico responsvel. At hoje discutido se Jan Stephan van Calcar (1499-1456/50), que fez as primeiras figuras e trabalhou no estdio de Ticiano na vizinha Veneza, era o artista. De qualquer maneira, havia-se encontrado uma soluo na busca de uma expresso pictrica adequada aos fenmenos naturais.

No sculo XVII foram efetuadas notveis descobertas no campo da anatomia e da fisiologia humana. Francis Glisson (1597-1677) descreveu em detalhes o fgado, o estmago e o intestino. Apesar de seus pontos de vista sobre a biologia serem basicamente aristotlicos, teve tambm concepes modernas, como a que se refere aos impulsos nervosos responsveis pelo esvaziamento da vescula biliar. Thomas Wharton (1614-1673) deu um grande passo ao ultrapassar a velha e comum idia de que o crebro era uma glndula que secretava muco (sem dvida, continuou acreditando que as lgrimas se originavam ali). Wharton descreveu as caractersticas diferenciais das glndulas digestivas, linfticas e sexuais. O conduto de evacuao da glndula salivar submandibular conhece-se como conduto de Wharton. Uma importante contribuio foi distinguir entre glndulas de secreo interna (chamadas hoje endcrinas), cujo produto cai no sangue, e as glndulas de secreo externa (excrinas), que descarregam nas cavidades. Niels Steenson em 1611 estabeleceu a diferena entre esse tipo de glndula e os ndulos linfticos ( que recebiam o nome de glndula apesar de no formar parte do sistema). Considerava que as lgrimas provinham do crebro. A nova concepo dos sistemas de transporte do organismo que se obteve graas s contribuies de muitos investigadores ajudou a resolver os erros da fisiologia galnica referentes produo de sangue. Gasparo Aselli (1581-1626) descobriu que aps a ingesto abundante de comida o peritnio e o intestino de um cachorro se cobriam de umas fibras brancas que, ao serem seccionadas, extravasavam um lquido esbranquiado. Tratava-se dos capilares quilferos. At a poca de Harvey se pensava que a respirao estimulava o corao para produzir espritos vitais no ventrculo direito. Harvey, porm, demonstrou que o sangue nos pulmes mudava de venoso para arterial, mas desconhecia as bases desta transformao. A explicao da funo respiratria levou muitos anos, mas durante o sculo XVII foram dados passos importantes para seu esclarecimento. Robert Hook (1635-1703) demonstrou que um animal podia sobreviver tambm sem movimento pulmonar se inflssemos ar nos pulmes. Richard Lower (1631-1691) foi o primeiro a realizar transfuso direta de sangue, demonstrando a diferena de cor entre o sangue arterial e o venoso, a qual se devia ao constato com o ar dos pulmes. John Mayow (1640-1679) afirmou que a vermelhido do sangue venoso se devia extrao de alguma substncia do ar. Chegou concluso de que o processo respiratrio no era mais que um intercmbio de gases do ar e do sangue; este cedia o esprito nitroareo e ganhava os vapores produzidos pelo sangue. Em 1664 Thomas Willis (1621-1675) publicou De Anatomi Cerebri (ilustrado por Christopher Wren e Richard Lower), sem dvida o compndio mais detalhado sobre o sistema nervoso. Seus estudos anatmicos ligaram seu nome ao crculo das artrias da base do crebro, ao dcimo primeiro par craniano e tambm a um determinado tipo de surdez. Contudo, sua obsesso em localizar no nvel anatmico os processos mentais o fez chegar a concluses equvocas; entre elas, que o crebro controlava os movimentos do corao, pulmes, estmago e intestinos e que o corpo caloso era assunto da imaginao.

BIBLIOGRAFIA PETRUCELLI, L. J. Histria da Medicina Editora Manole 1997.

EPISDIO MACABRO NO ENSINO DE ANATOMIA No sculo XVIII, Edinburgh, na Gr-Bretanha, era um grande centro de estudos anatmicos. Na Universidade, a ctedra de Anatomia foi ocupada pela dinastia dos Monro por trs geraes. O primeiro deles, Alexander Monro primus lecionou de 1720 a 1758, tendo sido substitudo por seu filho Alexander Monro secundus, que se destacou como autor de quatro importantes obras de Anatomia, numa das quais, publicada em 1797, descreveu o chamado "buraco de Monro". Sucedeu-lhe seu filho, Alexander Monro tertius, que no possua as qualidades do pai, e o ensino de Anatomia na Universidade entrou em declnio. Na poca, era permitido o ensino paralelo em escolas e cursos privados. Para o ensino de anatomia destacava-se o curso extracurricular dirigido por John Barclay, anatomista de grande renome e prestgio internacional. Barclay convidou para ser seu assistente ao Dr. Robert Knox, que se tornou um dos personagens do episdio que vamos narrar. Antes, precisamos saber quem era Robert Knox. Robert Knox (1791-1862) era natural de Edinburgh, onde foi educado. No colgio fora um aluno brilhante, tendo sido premiado por seu desempenho nos estudos e conduta exemplar. Graduou-se em medicina em 1814, ingressando no ano seguinte no Exrcito como cirurgio-auxiliar. Uma de suas primeiras atuaes foi a de atender feridos da batalha de Waterloo. Em 1815 foi promovido a cirurgio-assistente, indo servir na frica do Sul, onde permaneceu durante trs anos. Durante sua estada na frica do Sul interessou-se por estudos de anatomia comparada, antropologia e caractersticas tnicas dos povos africanos. Retornando a Edinburgh em 1821 licenciou-se do Exrcito e foi estagiar em Paris com Cuvier, um dos grandes anatomistas da poca. De volta a Edinburgh aceitou o convite de Barclay para ser seu assistente no curso de anatomia. Entre 1821 e 1823 Knox publicou vrios trabalhos cientficos no Edinburgh Medical Journal e em dezembro de 1823 foi eleito membro da Royal Society. Barclay possua uma grande coleo de peas anatmicas, que ele doou ao Royal College of Surgeons de Edinburgh para instalao de um museu de anatomia e, em 1825, Knox foi indicado para Conservador do museu. Este museu foi enriquecido com outra grande coleo de anatomia e anatomia patolgica adquirida pelo Colgio, em Londres, de Charles Bell. Knox encarregou-se de organizar o museu, catalogando todas as peas. Paralelamente a essas atividades, Knox firmou-se como professor de anatomia na escola de Barclay. Suas aulas eram muito apreciadas pelos alunos por seu contedo, exposio didtica e, sobretudo, pelas demonstraes prticas em disseces de cadveres. Em agosto de 1826 Barclay faleceu e Knox assumiu a direo da escola, que contava, naquele ano, com 300 alunos matriculados. Na ocasio, o ensino prtico de anatomia era dificultado pela falta de cadveres para disseco. A disseco s era legalmente permitida em corpos dos criminosos condenados ao patbulo, pois fazia parte da pena de morte negar ao criminoso sepultamento digno em terreno santificado pela Igreja. O nmero de criminosos condenados morte era insuficiente para prover as necessidades do ensino de anatomia. Em conseqncia, surgiu o mercado negro de cadveres, os quais eram exumados por ladres no cemitrio, logo aps o sepultamento, e vendidos s escolas mdicas. Os cadveres deviam ser recentes, pois no havia os mtodos de conservao atuais. Os ladres de cadveres passaram a ser chamados de ressurreccionistas. As famlias dos mortos, para se defenderem dos ressurreccionistas, costumavam proteger o tmulo com grades ou pagar vigias noturnos. Alguns cemitrios foram cercados de muros ou dispunham de torres de observao e policiamento contnuo. Mesmo assim, os ladres de cadveres conseguiam ludibriar toda a vigilncia. Curiosamente, os ressurreccionistas, quando acusados, no eram condenados, por falta de amparo legal, pois no havia lei prevendo este tipo de crime e a violao da sepultura no se enquadrava como roubo, j que o cadver no propriedade de ningum. Foi nesse ambiente que ocorreu o episdio macabro que abalou a opinio pblica, no somente na Inglaterra, como em todo o mundo. Dois irlandeses, William Hare e William Burke, que residiam em Edinburgh, cometeram uma srie de assassinatos com o fim de vender os corpos das vtimas para disseco nas aulas de anatomia. William Hare residia em uma penso, cujo proprietrio, Mr. Log, veio a falecer. Hare casou-se com a viva, Margaret, passando da condio de hspede a dono da penso. William Burke e sua amante, Helen Mc Douglas, foram residir na referida penso como inquilinos. Hare e Burke costumavam beber juntos e tornaram-se amigos. Em 29 de novembro de 1827, um dos pensionistas, de nome Donald, aposentado que vivia s, morreu subitamente, deixando uma dvida para com a penso. Hare teve a idia de vender o cadver para disseco, com o fim de se ressarcir do prejuzo. Com a ajuda de Burke simulou o sepultamento, colocando no caixo um peso equivalente ao de uma pessoa. Hare tencionava vender o corpo para Alexander Monro, na Universidade, porm foi informado por um estudante que a escola de anatomia do Dr. Knox pagaria um preo melhor. O corpo foi vendido para o Dr. Knox por 7.1 libras. Encorajados com o sucesso da operao, perceberam ambos que a venda de cadveres era um negcio muito lucrativo. Em lugar de violar sepulturas no cemitrio, o que era trabalhoso e arriscado, idealizaram um processo mais fcil de obter o cadver, que puseram em prtica. A estratgia consistia em atrair para a penso pessoas desamparadas, pedintes de rua, cuja morte no seria notada pela comunidade, passando despercebida. A vtima era embriagada com whisky e, a seguir, morta por asfixia, comprimindo-se com um travesseiro ou almofada seu rosto, impedindo-a de respirar. Esse mtodo no deixava vestgio da causa da morte. Burke se encarregava da execuo e Hare de negociar a venda do corpo. Os estudantes do curso de Anatomia do Dr. Knox passaram a desconfiar de que algo estranho estaria ocorrendo, dada a quantidade de corpos disponveis para disseco, todos em bom estado, ao contrrio da escassez habitual. Dois corpos chegaram a ser identificados por alguns estudantes: o de uma prostituta, de nome Mary Paterson, e de um homem popular conhecido por Daft Jamie. Comunicaram o fato ao Dr. Knox, que no o levou em considerao, e os corpos foram imediatamente dissecados. Durante o ano de 1828 pelo menos 16 corpos foram vendidos escola de anatomia do Dr. Knox. A ltima vtima foi de uma irlandesa de nome Mary Docherty, que desapareceu da penso de um dia para outro, levantando suspeitas entre os demais hspedes, especialmente do casal Gray, que encontrou o corpo debaixo de uma cama. A polcia foi avisada, porm quando chegou penso j o corpo no se encontrava no local. Alguns vizinhos, contudo, relataram ter visto dois homens carregando uma grande caixa de madeira. A polcia, j ciente da suspeita que pairava na escola de anatomia do Dr. Knox, para l se dirigiu, onde encontrou e identificou o corpo da vtima. Em 24 de dezembro de 1828 foram presos Hare e sua mulher e Burke com sua amante. Na impossibilidade de obter uma prova concreta de que se tratava de assassinato, visto que no havia ferimentos ou sinais de violncia no corpo da vtima, a polcia props a Hare que, se ele confessasse, somente Burke seria julgado pelo assassinato de Mary Docherty. Hare contou toda a verdade e foi posto em liberdade juntamente com sua mulher. Burke foi julgado e condenado forca. Sua amante, Helen Mc Donald, acusada de cumplicidade, foi absolvida por falta de provas. Antes de sua morte, Burke confirmou que havia matado, ao todo, 16 pessoas, porm negou que jamais houvesse violado uma sepultura para roubo de cadver. Sua execuo, na forca, ocorreu no dia 28 de janeiro de 1829 e foi assistida por uma multido de milhares de pessoas, de todas as classes sociais, que se acotovelavam para ver de perto o criminoso. Fazia parte da sentena que o seu corpo fosse publicamente dissecado pelo Prof. Alexander Monro tertius, o que foi feito. Durante a disseco, em presena de estudantes e de curiosos, houve um tumulto e a maior parte da pele do criminoso, que j havia sido retirada, desapareceu. Tempos depois apareceram venda, livros encadernados com a pele curtida de Burke. Um de tais livros pode ser visto no museu da Universidade, assim como o esqueleto de Burke. Dr. Knox foi apontado como receptador dos corpos das vtimas assassinadas e levantou-se contra ele a suspeita de que teria conhecimento da procedncia dos cadveres. Como no se comprovou sua culpabilidade, ele no foi processado, porm caiu em desgraa perante a opinio pblica. O seu curso de anatomia, que chegou a ter 504 alunos matriculados nos anos de 1827 e 1828, esvaziou-se progressivamente. Em 1831, sentindo-se constrangido e alvo de desconfiana e de ataques, Knox deixou o cargo de Conservador do museu e em 1842 mudou-se definitivamente para Londres, onde viveu os ltimos anos de sua vida. Hare fugiu para Londres, onde terminou seus dias como indigente. Ignora-se o destino de Margaret Hare e Helen McDouglas. Os fatos ocorridos em Edinburgh repercutiram intensamente no Parlamento britnico, que promulgou, em 1832, o Anatomy Act, segundo o qual passou a ser permitido o uso de cadveres no reclamados por familiares para o ensino de anatomia. Com isto extinguiu-se na Gr Bretanha o mercado negro de cadveres e a prtica de roubo de corpos nos cemitrios. Este macabro episdio ficou marcado na histria da lngua inglesa pela criao do neologismo burkism e do verbo to burk, com o sentido de sufocar, matar algum para venda do cadver, assassinar sem deixar vestgio

A OBSESSO DE JOHN HUNTER John Hunter viveu na Inglaterra de 1728 a 1793. Era o caula de 10 irmos, um dos quais, William Hunter, famoso anatomista e cirurgio, foi seu preceptor em anatomia. John Hunter desde cedo demonstrou grande habilidade na sala de disseces, tendo feito algumas descobertas importantes em anatomia. Era um trabalhador infatigvel a quem bastavam quatro a cinco horas de sono e que se aborrecia com a especulao terica, muito em voga na poca, sobre doutrinas e conceitos, sem nenhuma base experimental. Foi o fundador da cirurgia experimental e a ele se deve a descoberta da circulao colateral nos casos de aneurisma, permitindo a ligadura da artria logo acima do saco aneurismtico. Descobriu os canais lacrimais, descreveu o choque, a flebite e a intussuscepo intestinal e foi o primeiro a utilizar a sonda nasogstrica para alimentar o paciente. Considerava a maioria das operaes como mutilaes que apenas atestavam a imperfeio da medicina e advertia a seus colegas cirurgies para no agirem como um "selvagem armado". Estabeleceu a diferena entre o cancro mole e o cancro duro e para dirimir a dvida se a blenorragia e a sfilis eram uma s ou duas doenas, inoculou em si mesmo, no tecido subcutneo, o pus recolhido de um paciente com blenorragia. Apresentou todas as manifestaes primrias e secundrias da sfilis, o que o convenceu de que se tratava de uma nica doena. Lamentavelmente, fora de dvida que ele se auto-inoculou com material que continha tanto o gonococo como o Treponema pallidum. Alm de anatomista e cirurgio, John Hunter era um colecionador, tendo organizado em sua casa um verdadeiro museu de Anatomia, Patologia e Histria Natural. No somente coletava e preparava pessoalmente os espcimes destinados sua coleo, como os adquiria de terceiros, gastando todas as suas economias no contnuo enriquecimento do museu, que chegou a possuir 13.000 peas. No dispondo de espao suficiente em sua residncia, adquiriu uma pequena rea nas cercanias de Londres, onde construiu a sede de seu museu e onde mantinha animais vivos para observar-lhes os hbitos e para seus estudos de cirurgia experimental. Certa vez conheceu Hunter um irlands de grande estatura, um verdadeiro gigante, de nome Byrne e desejou possuir o esqueleto dele para o seu museu. Ao saber das pretenses de Hunter, Byrne no somente recusou-se a fazer a doao de seu esqueleto, em caso de morte, como deixou instrues precisas para que seu corpo fosse colocado em um caixo de chumbo e jogado ao mar. Hunter no desistiu de seu intento e a idia de se apropriar do esqueleto de Byrne tornou-se verdadeira obsesso. Passou a acompanhar os passos de Byrne que, amedrontado, fugia sempre de encontrar-se com seu perseguidor. O destino favoreceu a Hunter. Byrne veio a falecer e Hunter conseguiu subornar os responsveis pelo seu sepultamento, adquirindo o corpo do gigante pela elevada soma de 500 libras esterlinas, importncia que ele no possua e teve de tomar emprestada. O esqueleto do gigante hoje um dos espcimes mais famosos do Hunterian Museum, em Londres. Hunter faleceu aos 65 anos de idade de modo dramtico. Sofria insuficincia coronariana com crises de angina do peito e chegou e prever o seu fim com as seguintes palavras: "minha vida est nas mos de qualquer canalha que queira me aborrecer e contrariar". Em uma reunio da Diretoria do Hospital St. George em que se discutia quem seria o seu sucessor no Hospital, teve uma discusso acalorada com seus interlocutores e caiu fulminado por um infarto agudo do miocrdio.

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