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História Ambiental e Migrações

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História Ambientale Migrações

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História Ambientale Migrações

Eunice Sueli NodariJoão Klug

(Orgs.)

2012

OI OSE D I T O R A

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© Dos autores – [email protected]

Editoração: Oikos

Capa: Juliana Nascimento

Revisão: Luís M. Sander

Arte-final: Jair de Oliveira Carlos

Impressão: Rotermund S. A.

Conselho EditorialAntonio Sidekum (Ed. Nova Harmonia)Arthur Blasio Rambo (UNISINOS)Avelino da Rosa Oliveira (UFPEL)Danilo Streck (UNISINOS)Elcio Cecchetti (ASPERSC)Ivoni R. Reimer (PUC Goiás)Luís H. Dreher (UFJF)Marluza Harres (UNISINOS)Martin N. Dreher (IHSL e CEHILA)Oneide Bobsin (EST)Raúl Fornet-Betancourt (Uni-Bremen e Uni-Aachen/Alemanha)Rosileny A. dos Santos Schwantes (UNINOVE)

Editora Oikos Ltda.Rua Paraná, 240 – B. ScharlauCaixa Postal 108193121-970 São Leopoldo/RSTel.: (51) 3568.2848 / Fax: [email protected]

Catalogação na publicação:Bibliotecária Eliete Mari Doncato Brasil – CRB 10/1184

H673 História ambiental e migrações / Organizadores Eunice Sueli Nodarie João Klug. – São Leopoldo: Oikos, 2012.

202 p.; il.; 16 x 23cm.

ISBN 978-85-7843-238-6

1. Meio ambiente. 2. Recursos naturais – História. 3. Impactoambiental. I. Nodari, Eunice Sueli. II. Klug, João.

CDU 504

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Sumário

Apresentação ....................................................................................... 7

Imigração e privatização dos recursos naturais na Áfricadurante o colonialismo alemão (1884-1914) ........................................ 15

Sílvio Marcus de Souza Correa

“Mata Branca”: o uso do machado, do fogo e da motosserrana alteração da paisagem no Estado de Santa Catarina ........................ 35

Eunice Sueli Nodari

Agricultura e impactos ambientais no Planalto do Rio Grande do Sul . 54Paulo A. Zarth

História ambiental e transformação da paisagem: metabolismo socialde três sistemas produtivos históricos do Estado do Rio de Janeiro....... 77

Rogério Ribeiro de OliveiraJoana Stingel Fraga

La historia ambiental y los sistemas complejos en el estudio delos procesos de construcción territorial en las cuencas hidrográficas.Casos de estudio en la provincia de Buenos Aires. República Argentina .. 103

Marina Miraglia

Fontes alternativas de energia: agrocombustíveis a partirde recursos genéticos vegetais ............................................................ 117

Lido BorsukRubens Onofre Nodari

A Exposição Nacional do Rio de Janeiro (1875) e os seus impactosna produção agropecuária e nas ciências naturais .............................. 139

João Klug

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Relação corpo, natureza e organização sociopolíticano Medievo: revelação, ordem e lei ................................................... 151

Aline Dias da Silveira

Sociedade, natureza e território: contribuição para ahistória ambiental ............................................................................. 167

Haruf Salmen Espindola

Sobre os autores ............................................................................... 199

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História Ambiental e Migrações

Apresentação

Os dilemas ambientais têm se ampliado cada vez mais, fazendo comque haja um engajamento maior dos historiadores para um melhor enten-dimento dos processos históricos que se encontram na origem desses dile-mas. Sendo uma história que amplia os horizontes para além das institui-ções humanas, novos atores entram em cena. As formas de interação hu-mana com o meio ambiente acabam refletindo nos ecossistemas, trazendo-os ao palco principal da história. Assim, a História Ambiental não oferecesomente novos caminhos para pensar sobre a história, mas também novasformas de pensar e agir não sobre, mas com a natureza. Partindo dessa pre-missa, nos dias 13 a 15 de setembro de 2010, foi realizado na cidade de Flo-rianópolis (SC), o primeiro Simpósio Internacional de História Ambiental eMigrações, com diferentes momentos compostos de apresentação de traba-lhos científicos, discussão de resultados de pesquisas e de (auto)crítica doscaminhos trilhados nos últimos anos pelos pesquisadores em História Am-biental. E, acima de tudo, se constituiu em uma ocasião especial para a dis-cussão do estado da arte da pesquisa em História Ambiental no Brasil, emconexão com as tendências internacionais neste campo historiográfico. Oevento foi importante para ampliar a rede de pesquisadores/as cujos temase objetos de pesquisa têm inovado os campos de investigação em HistóriaAmbiental e áreas afins. Nesse sentido, a interface com a temática das mi-grações demonstrou o quanto a sociedade e o ambiente dependem das mi-grações tanto humanas, quanto de animais, microrganismos e de plantas.

A Interdisciplinaridade, uma das marcas da História Ambiental, ficouevidente com a apresentação dos trabalhos; alguns deles, publicados na pre-sente obra, mostram a importância de diferentes áreas do conhecimento. Oevento contribuiu, inegavelmente, para abrir caminhos de pesquisa, reflexãoe debate de novas abordagens e métodos, assim como estimulou a continui-dade de intercâmbios interinstitucionais em nível nacional e internacional.

Atualmente vários Programas de Pós-Graduação em História, assimcomo em áreas afins, estão criando linhas de pesquisas com ênfase em te-mas ambientais. Na Universidade Federal de Santa Catarina, o Programa

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Apresentação

de Pós-Graduação em História abriga uma linha de pesquisa denominadaMigrações, Construções Socioculturais e Meio Ambiente e no Programade Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas existe uma áreade concentração sob o título Sociedade e Meio Ambiente.

No hemisfério Sul, a questão ambiental tem sua relevância redimen-sionada por outras questões imbricadas como a desigualdade social, a ga-rantia e o reconhecimento dos direitos humanos, entre outros. Evidente-mente, a devastação do patrimônio ambiental e o (ab)uso dos recursos na-turais nos países latino-americanos, africanos e asiáticos são temas canden-tes. Ao escolhermos os temas dos simpósios temáticos do Simpósio Inter-nacional de História Ambiental e Migrações tivemos a preocupação emtrazer para a pauta das discussões aspectos que são históricos na constitui-ção da América Latina, como “o clima e suas implicações na história”, quevai desde a adaptação dos imigrantes ao meio até as mudanças socioam-bientais decorrentes. Já no que se refere à “agricultura, à pecuária e aosimpactos ambientais”, temos tantas similaridades quanto diferenças no con-tinente latino-americano que mereciam ser discutidas, pois esta temática,geralmente era abordada na História Agrária ou Econômica não havendograndes discussões sobre os impactos ambientais causados pelo setor pri-mário. No terceiro simpósio temático “a flora, a fauna e os humanos emmovimento” foram apresentados e discutidos trabalhos que contemplavamaspectos como: migrações humanas e suas implicações ecológicas, ecologicalpush e migrações humanas, introdução (in)voluntária de animais e plantasem novos biomas, a invasão biológica de espécies animais e vegetais e suarelação com a biodiversidade. No simpósio temático sobre “comunidadestradicionais e unidades de conservação”, foram debatidos temas sobre ahistória de populações tradicionais, especialmente sua interação com o am-biente e as relações estabelecidas com outros grupos étnicos, como colonose imigrantes europeus. Além disso, foi discutido o papel das comunidadestradicionais nos projetos de criação de novas unidades de conservação am-biental, na manutenção e gestão das unidades existentes e em experiênciasde uso sustentável e compartilhado dos recursos naturais. Foram feitos ain-da debates sobre as migrações humanas motivadas pela instalação de unida-des de conservação, por conflitos dela decorrentes ou por políticas públicasvoltadas à proteção ambiental. Ao propormos o simpósio sobre “recursosenergéticos”, no período de realização do evento, o assunto estava na pauta

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diária dos noticiários nacionais e internacionais; sabíamos que havia poucaspesquisas na História Ambiental e queríamos com isto dar mais visibilidadeao assunto. A apresentação de trabalhos, tanto dos que tratavam sobre épo-cas passadas quanto aqueles que analisaram o tempo presente, encontravam-se dentro das seguintes questões: exploração florestal e obtenção de biomas-sa, colonização e desmatamento, recursos hídricos e energia, água e migra-ções humanas, consumo de combustíveis fósseis e poluição ambiental, con-flitos pelo acesso e controle das fontes de energia, repercussões socioambien-tais de políticas públicas voltadas para o setor energético, tecnologias limpase energias renováveis, acesso à terra e produção de agrocombustíveis, indus-trialização, urbanização e demanda energética.

Além das mudanças econômicas, políticas e culturais que têm impli-cações na relação entre sociedade e meio ambiente, a História Ambientaltem ampliado o conhecimento através da análise dos discursos, ideias epercepções sobre o meio ambiente ao longo dos séculos. O simpósio temá-tico “discursos, ideias e percepções sobre o meio ambiente” acolheu traba-lhos que tratavam destas elaborações discursivas sobre a natureza ou sobreas mudanças ambientais, especialmente aquelas provocadas pela ação hu-mana, direta ou indiretamente. O debate sobre a influência de concepçõesreligiosas ou científicas e de interesses políticos e/ou econômicos dos dis-cursos elaborados por diferentes atores, bem como as críticas ou defesaselaboradas por eles sobre a relação entre sociedade e meio ambiente, per-mitem uma melhor compreensão das matrizes históricas dos discursosambientalistas da atualidade.

A realização do Simpósio expressa o significado das pesquisas deHistória Ambiental e de Migrações no Brasil e na América Latina. A dis-cussão ambiental e a questão relativa à sustentabilidade tornou-se uma pautaobrigatória em praticamente todos os setores. A História Ambiental brindaa sociedade com uma perspectiva temporal para o debate sobre as relaçõesentre os homens e a natureza, tornando possível perceber a historicidade denossas práticas, assim como a possibilidade de transformá-las. E, uma pe-quena parte do que foi discutido, está sendo apresentado na presente obra,que se encontra dividida em 9 capítulos.

De autoria de Silvio Marcus de Souza Correa, o texto que abre opresente volume, traz um novo olhar sobre a história da África durante ocolonialismo alemão (1884-1914). O autor aponta para uma visão pragmá-

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Apresentação

tica que orientou a exploração econômica nas colônias alemãs e na qualvários minérios, animais e vegetais foram considerados “recursos naturais”.Destaca ainda a competição ecológica entre adventícios e nativos, promo-vendo não apenas mudanças sociais e econômicas em várias localidadescomo também impactos ambientais. Durante o colonialismo, houve umaredução da biodiversidade e mesmo extinção de espécies nativas em deter-minadas regiões, além de poluição do solo, dos rios, etc. Acrescenta-se ain-da uma série de novas pragas, além da invasão biológica de espécies exóti-cas no rol dos problemas ecológicos relacionados à História Ambiental daÁfrica colonial. Com base em fontes diversas, notadamente biblio-hemero-gráficas, é demonstrado pelo autor como foram privatizados os recursosnaturais em regiões tropicais e subtropicais do continente africano duranteo colonialismo alemão.

Em outra área subtropical, agora no Brasil, temos uma discussão so-bre áreas de florestas que foram ocupadas por imigrantes e descendentes dealemães e italianos. No capítulo “Mata Branca”: o uso do machado, do fogo eda motosserra na alteração da paisagem no Estado de Santa Catarina, EuniceSueli Nodari discute a Floresta Estacional Decidual (FED), no Oeste doEstado de Santa Catarina. A autora observa, através da análise da docu-mentação, a possibilidade de deduzir que, até a metade do século XX, aabundante oferta de espécies madeiráveis, fez com que os colonos, e mes-mo as serrarias, deixassem de lado as espécies, na época, menos valiosas;entretanto, a situação mudou no decorrer das décadas seguintes e hoje seestima que a FED seja um dos ecossistemas mais devastados do Brasil,com o agravante de que no Estado de Santa Catarina não existe nenhumareserva legal desta tipologia.

O capítulo de Paulo A. Zarth tem como tema a Agricultura e impactosambientais no Planalto do Rio Grande do Sul, no qual mostra as transforma-ções que acontecem na região, a partir dos anos 1800, quando novos con-tingentes humanos oriundos de outros continentes, com diferentes concep-ções de natureza e uso do território, inauguraram uma nova fase histórica,gerando grandes impactos ambientais. O século XIX é um momento histó-rico fundamental na história do Planalto do Rio Grande do Sul. A conquis-ta definitiva desse espaço pelos novos grupos teve um período de transição,entre a paisagem encontrada pelos primeiros europeus e a devastação dafloresta pela agricultura intensiva, protagonizada pelo processo de coloni-

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zação desde o final do século XIX. O texto tem como foco principal o perío-do transitório no qual se estabelece uma luta entre os diferentes grupossociais em torno da ocupação do território, mas também em torno da con-cepção de seu uso, quebrando práticas historicamente constituídas a partirdas condições ambientais.

No capítulo seguinte temos a discussão de outra região que sofreuenormes impactos ambientais, segundo Rogério Ribeiro de Oliveira e Joa-na Stingel Fraga, em História Ambiental e transformação da paisagem: metabo-lismo social de três sistemas produtivos históricos do Estado do Rio de Janeiro. Osautores partem da análise do termo metabolismo social como uma ferra-menta para se compreender os processos de (in)sustentabilidade(s) de umasociedade em uma determinada época, para, em seguida, compararem trêsdiferentes sistemas agrário-industriais do Estado do Rio de Janeiro, do sé-culo XVII ao XIX, sob a ótica do seu metabolismo social. Como conclu-são, mostram que a transição socioeconômica e o término dos três empreendimen-tos nas suas respectivas áreas permitiram a retomada da floresta e a geração de umcontingente humano que vivia nas suas áreas que, em grande parte, migrou para ascidades em busca de condições de sobrevivência. Esta transição reconfigurou toda asociedade, transformando completamente seus metabolismos sociais.

Marina Miraglia, em seu texto La historia ambiental y los sistemas com-plejos en el estudio de los procesos de construcción territorial en las cuencas hidro-gráficas. Casos de estudio en la provincia de Buenos Aires. República Argentina,tem como seu objeto as bacias hidrográficas das Lagunas Encadenadas, doOeste da Província de Buenos Aires, no âmbito rural e a bacia do Rioda Reconquista no Noroeste da região metropolitana de Buenos Aires, emum âmbito urbano. Dentro do período estudado, a autora considera quatroetapas históricas de construção territorial, ou seja, que deram sentido à trans-formação ambiental e socioeconômica territorial: entre 1880 e 1930, co-nhecida como fase agroexportadora; de 1930 a 1976 quando predominou omodelo de sustentação das importações; de 1976 a 1991, houve a imple-mentação de um modelo neoliberal e políticas de ajuste do Estado; e entre1991 e 2000, com a implementação de um sistema político econômico trans-cendental, altamente globalizado.

A sofisticação tecnológica permitiu a disposição de diferentes fontese formas de energia, para além dos combustíveis fósseis, e a ampliação deseu consumo. Consome-se energia para alimentação, vestuário, aquecimen-

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to, refrigeração, movimentação de máquinas e equipamentos, transporte eiluminação, entre outros. Tanto a geração quanto o uso podem provocarmudanças socioambientais profundas a ponto do estado dos ecossistemasterem evidentes ligações com a geração, o consumo e a conservação deenergia. No capítulo Fontes alternativas de energia: Agrocombustíveis a partir deRecursos Genéticos Vegetais, de autoria de Rubens Onofre Nodari e LidoBorsuk, são abordados diferentes tópicos relacionados aos recursos energé-ticos e alimentares, em particular as iniciativas brasileiras, até os riscos as-sociados à produção e o consumo de energia gerada pelas plantas. A ener-gia da biomassa é a fonte mais antiga utilizada pelo homem, sendo que13% do abastecimento mundial de energia primária ainda é biomassa: nospaíses desenvolvidos 3% das necessidades energéticas são supridas pela bio-massa, enquanto que no continente africano a taxa varia entre os 70-90%.Neste capítulo são discutidas também a grande escalada na produção e asprincipais implicações socioambientais de agrocombustíveis, o que permitequestionar sua postulada relação com a sustentabilidade.

Na segunda metade do século XIX, as grandes exposições mundiaisproliferaram na Europa. Para os países participantes eram, simultaneamente,uma espécie de “peça publicitária” e um espetáculo da modernidade. Osvários países apresentavam o que de mais significativo tinham em termosde recursos naturais, indústria e potencialidades. Também eram o espaçopara apresentar o exótico e/ou “curiosidades”, quer do mundo animal, ve-getal ou mineral. O Brasil iniciou sua participação a partir da ExposiçãoMundial de Londres em 1862. As exposições nacionais no Brasil tiveraminício em 1861 sendo que até 1889 foram promovidas seis edições. Dentrodeste contexto João Klug analisa em seu trabalho A Exposição Nacional doRio de Janeiro (1875): uma avaliação do potencial de recursos naturais do Império.O autor mostra como na Exposição Nacional de 1875, realizada na capitaldo Império, Rio de Janeiro, as várias províncias se apresentaram, com quaisprodutos, e a avaliação dos mesmos com vistas à sua utilização industrial/comercial no futuro. O documento, base para a análise, é o texto de JoséSaldanha da Gama, intitulado Estudos sobre a Quarta Exposição Nacionalde 1875, publicado em 1876.

No texto Relação Corpo, Natureza e Organização Sociopolítica no Medie-vo: revelação, ordem e lei, a autora Aline Dias da Silveira, reflete sobre a im-portância da busca de um entendimento da concepção de natureza na His-

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tória, imprescindível no estudo da relação entre o ser humano e o meioambiente, pois a forma desta relação está diretamente relacionada às per-cepções de si (microcosmo) com o todo (macrocosmo). O estudo da per-cepção e compreensão de natura na cristandade latina medieval ofereceindícios para a análise de comportamentos que formaram a sociedade oci-dental, como é demonstrando através das fontes escolhidas. No ensaio, de-monstrou as bases de uma compreensão da natureza que permeou diversas áreas doconhecimento na Idade Média em diferentes setores da sociedade. Analisou, princi-palmente, como os escritos que pretendiam uma explicação da organização social epolítica fundamentaram-se na relação corpo (microcosmo), natureza (macrocosmo)e sociedade.

No capítulo sob o título Sociedade, Natureza e Território: contribuiçãopara a história ambiental, Haruf Salmen Espindola, apresenta algumas con-tribuições para o desenvolvimento da História Ambiental produzida noBrasil. Segundo o autor, o ponto de partida são preocupações relacionadasà utilização das fontes e produção da escrita da história, especialmente asquestões que envolvem a narrativa, entendida tanto como a forma de orde-nar os eventos do passado numa explicação historiográfica, como o modode articulação da experiência temporal pelas instituições e pessoas. Em se-guida, contrapondo-se ao discurso binário sociedade-natureza, mas antesde se desenvolver uma problemática relacional, apresenta um jogo narrati-vo com a história regional do Vale do Rio Doce. De acordo com Haruftrata-se apenas de um exercício superficial, todavia suficiente para mostrarcomo é possível construir narrativas diferentes modificando-se o enredo. Ahistória torna-se muito diferente quando vista em seu contexto ambiental,abrindo múltiplas possibilidades para a investigação interdisciplinar e in-corporação de novos tipos de fontes, diferentes das habitualmente usadaspelos historiadores.

O livro que ora apresentamos, fruto do Simpósio, com suas diferen-tes abordagens e temáticas relacionadas à História Ambiental e Migratória,pretende ser uma contribuição para os pesquisadores da área e um estímulopara aqueles que estão enveredando por essa promissora senda do laborhistoriográfico.

Profa. Dra. Eunice Sueli NodariProf. Dr. João Klug

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Imigração e privatização dosrecursos naturais na África durante o

colonialismo alemão (1884-1914)1

Sílvio Marcus de Souza Correa

Introdução

No século XIX, milhões de alemães migraram para várias partes domundo, inclusive para regiões tropicais e subtropicais. De 1871 a 1914, apopulação da Alemanha passou de 41 milhões para 60 milhões (WESSE-LING, 2002, p. 204). Em torno desse mesmo período, quase 3 milhões dealemães deixaram a Alemanha.2A África foi o destino de alguns milhares,sendo que a maioria se instalou no sudoeste africano. Durante o colonialismoalemão, houve uma série de controvérsias sobre o devir da imigração alemãem áreas tropicais e subtropicais, principalmente nas novas colônias naÁfrica (Togo, Kamerun, Deutsche Südwest-Afrika, Deutsche Ost-Afrika). Alémdessas colônias no continente africano, um enclave portuário na China eilhas no Pacífico (Samoa, Nova Guiné, Arquipélago Bismarck, etc.) fize-ram parte dos territórios ultramarinos do II Reich.3

Em regiões tropicais e subtropicais, as colônias alemãs entraram emcompetição ecológica com comunidades locais, o que promoveu não ape-nas mudanças na economia tradicional de várias localidades, como tam-

1 O presente trabalho é resultado de um projeto de pesquisa intitulado Germânias Tropicais,realizado junto ao Laboratório de Imigração e História Ambiental (www.labimha.ufsc.br) comauxílio financeiro do CNPq. Uma versão preliminar desse artigo foi apresentado no SimpósioInternacional de História Ambiental e Migrações, Universidade Federal de Santa Catarina, 13a 15 de setembro de 2010, Florianópolis – SC.

2 Die Auswanderung nach überseeischen Ländern. Kolonie und Heimat in Wort und Bild, Berlin,26.02.1911.

3 Para uma síntese histórica das colônias alemãs no Ultramar, ver GRÜNDER, Horst. Geschichteder deutschen Kolonien. 5. Aufl. Paderborn: Schöningh, 2004.

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bém impactos ambientais. Durante o colonialismo, as mudanças antrópi-cas na natureza tropical e subtropical foram responsáveis pela redução dabiodiversidade e pela extinção ou redução de espécies nativas em determi-nadas regiões, além de poluição do solo e dos rios, etc. Acrescenta-se aindauma série de novas pragas e a invasão biológica de espécies exóticas no roldos problemas ecológicos relacionados à história ambiental da África colo-nial.

Com base em fontes hemerográficas comoWindhoekerAnzeiger, Lüde-ritzbuchter Zeitung, Swakopmunder Zeitung, Deutsch-Südwestafrikanische Zeitung,Deutsch-Ostafrikanische Zeitung e também de revistas como Kolonie und Heimatou Der Tropenpflanzer, busca-se demonstrar a seguir como foram privatiza-dos os recursos naturais em regiões tropicais e subtropicais do continenteafricano durante o colonialismo alemão. Tal apropriação não se reduz auma lógica econômica do capitalismo, mas também traduz uma forma dedominação da cultura (alemã) sobre a natureza (tropical e subtropical). Cabeainda salientar que a apropriação dos recursos naturais foi justificada na im-prensa metropolitana e colonial de língua alemã, que também atribuía aosalemães certo protagonismo enquanto “pioneiros da civilização” (Pioniereder Kultur). Desse modo, o colonialismo alemão transferiu para a África umavariante da dicotomia ocidental entre cultura e natureza.4 Para o caso euro-peu, essa antítese germânica foi tratada por Norbert Elias no primeiro capítu-lo do seu livro intitulado “Sobre o processo civilizatório” (ELIAS, 1939).5

Para o caso africano, a nova historiografia alemã tem cotejado o projeto de“domesticação da natureza tropical” por meio de medidas adotadas pelasautoridades coloniais, inclusive pautadas pela medicina tropical.6 Os efeitos

4 Sobre a visão colonial da natureza, ver ADAMS, William M. Nature and the Colonial Mind.In: ADAMS, W.; MULLIGAN, Martin (eds.). Decolonizing Nature: Strategies for Conservationin a Post-Colonial Era. London, 2003, p. 16-50.

5 Outros escritores alemães trataram, igualmente, da relação entre cultura e natureza, como, porexemplo, o naturalista Curt Grottewitz (1866-1905). GROTTEWITZ, Curt. Der Mensch alsBeherrscher der Natur. Berlin: Der Bücherkreis, 1928.

6 WÄCHTER, H. Jürgen. Naturschutz in den deutschen Kolonien in Afrika (1884-1918). Berlin: LITVerlag, 2008; STRANDMANN, Hartmut Pogge von. Imperialismus vom Grünen Tisch: DeutscheKolonialpolitik zwischen wirtschaftlicher Ausbeutung und “zivilisatorischen” Bemühungen.Berlin: Ch. Links-Verlag, 2009; ISOBE, Hiroyuki. Medizin und Kolonialgesellschaft: DieBekämpfung der Schlafkrankheit in den deutschen Schutzgebieten vor dem Ersten Weltkrieg.Berlin: LIT Verlag, 2009.

CORREA, S. M. de S. • Imigração e privatização dos recursos naturais na África... (1884-1914)

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dessa domesticação da natureza foram catastróficos, e alguns exemplos (ex-tinção de espécies, degradação de biomas e ecossistemas, etc.) serão trata-dos a seguir.

A imigração alemã na África tropical e subtropical

Poucas semanas depois do término da Conferência de Berlim, o Dr.Rudolf Virchow (1821-1902) fez um discurso no Reichstag que causou gran-de impacto entre os parlamentares favoráveis à expansão colonial.7 O mé-dico e deputado duvidava da possibilidade de aclimatação dos alemães emregiões tropicais (LORENZ, 2008, p. 34). Outros médicos e cientistas acre-ditavam que as condições mesológicas dos trópicos concorriam para a de-generescência dos europeus. No entanto, a Conferência de Berlim haviaassegurado vantagens à participação da Alemanha na “Partilha da África”.Cabe ressaltar que muitos médicos alemães, como Ernst Below (1845- 1910)e Robert Koch (1843-1910), aderiram ao projeto colonial do II Reich e de-fenderam a expansão germânica em zonas tropicais.8

A Sociedade de Colonização Alemã recorreu ao parecer de médicospara tratar das possibilidades de instalação dos alemães na América, Áfri-ca, Ásia e Oceania. Chegou-se a formar uma comissão de especialistas paratratar do assunto, cujo parecer recomendava cuidados à saúde dos imigrantesalemães em clima tropical. Em 1889, outra comissão, sob a direção do Dr.Virchow, também elaborou um parecer semelhante (LORENZ, 2008, p. 34).

Uma série de fatores favorecia, no entanto, a expansão colonial doimpério alemão. Para isso, a medicina tropical se constituiu numa ciênciainstrumental do colonialismo (ECKART, 1990). Do final do século XIXaté os primeiros anos do século XX, Robert Koch e outros médicos ale-mães participaram de várias expedições pela África para estudar doençastropicais, como cólera, malária e a doença do sono. Mas, apesar de todo o

7 VIRCHOW, R. Rede vor dem Reichstag. Sten. Bericht des Reichstags. Bd. 82, Sitzung vom16.03.1885, p. 1855-62.

8 Às vésperas da Conferência de Berlim, 250 médicos faziam parte da Deutscher Kolonialverein(DKV). Em 1903, o número deles ultrapassou 1.500 junto à Deutsche Kolonialgesellschaft,instituição que sucedeu a DKV. Cf. ECKART, Wolfgang. Die Medizin und das “GrössereDeutschland”: Kolonialpolitik und Tropenmedizin in Deutschland, 1884- 1914. Berichte zurWissenschaftsgeschichte, v. 13, p. 129-139, 1990.

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investimento em medicina tropical, o governo alemão jamais logrou con-tingente significativo de imigrantes alemães para as colônias na África. Emjaneiro de 1911, por exemplo, ainda se discutiam as condições mesológicasda colônia de Kamerun para a imigração alemã, pois havia restrições àsregiões de florestas tropicais, especialmente devido à malária.9 Além daimigração alemã em área subtropical do Brasil, discutia-se também na im-prensa em língua alemã as possibilidades da imigração para regiões altasna África Oriental.10

Além de charcos, pântanos e florestas em áreas tropicais e do desertoou estepes de áreas subtropicais, as cidades portuárias também apresenta-vam problemas para a saúde dos alemães. Desde os primeiros anos do colo-nialismo alemão na África, cólera, malária, febre amarela e tripanossomía-se africana eram algumas doenças tropicais que preocupavam as autorida-des coloniais, soldados, comerciantes, missionários e colonos.11 Campanhasde saneamento, divulgação de informações de higiene tropical e expedi-ções científicas para o estudo de doenças tropicais foram realizadas nascolônias alemãs.

A falta de médicos nas colônias também foi tema dos jornais.12 NaÁfrica oriental, por exemplo, a entrada oficial de médicos alemães se deujunto com a expedição do comissário imperial Hermann von Wissmann

9 Über die Frage der Besiedlungsfähigkeit von Kamerun. Kolonie und Heimat in Wort und Bild.Berlin, 22.01.1911, p. 14; Über die gesundheitlichen Zustände in Nord-Kamerun. Kolonie undHeimat in Wort und Bild. Berlin, 29.02.1911, p. 14.

10 Ver, por exemplo, artigos do Dr. Wilhelm Lehmann, Südbrasilien als Ziel deutscherAuswanderung, Kolonie, Santa Cruz, 23, 26 e 28 de janeiro de 1909, e os artigos do sanitaristaDr. Däubler, Die Ansiedlung von Deutschen in tropischen Hochländern, Deutsch-OstafrikanischeZeitung, Dar es Salaam, 6 de agosto de 1911; Die Ansiedlung von Deutschen in tropischenHochländern (II), Deutsch-Ostafrikanische Zeitung, Dar es Salaam, 9 de agosto de 1911; artigodo Dr. Th. Förster, Die Ansiedlung von Deutschen in tropischen deutschen Kolonien, Deutsch-Ostafrikanische Zeitung, Dar es Salaam, 13 de setembro de 1911; ainda os artigos Die EignungDeutsch-Ostafrikas als Ziel für die deutschen Auswanderung, Deutsch-Ostafrikanische Zeitung,Dar es Salaam, 7 de outubro de 1911; Die Besiedlungsmöglichkeit Ostafrikas, Kolonie undHeimat in Wort und Bild, Berlin, 05.02.1911, p. 14.

11 Os europeus trouxeram suas doenças fatais, como a tuberculose, para o continente africano.Cf. ILIFFE, John. East African Doctors: A History of the Modern Profession, CambridgeUniversity Press, 1998, p. 10.

12 Por exemplo: Die Ärzteorganisation und die Kolonialärzte, Deutsch-Ostafrikanische Zeitung, Dares Salaam, 18 de junho de 1910.

CORREA, S. M. de S. • Imigração e privatização dos recursos naturais na África... (1884-1914)

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em 1889. A princípio, a missão dos médicos era cuidar da saúde dos ale-mães e não a dos nativos.13 No entanto, já havia hospitais e lazaretos dosmissionários que se ocupavam também com a saúde dos habitantes locais.Em Dar es Salaam, as autoridades coloniais tentaram sanear a cidade des-de a epidemia de cólera no final do século XIX. Em relação à malária e àdisenteria, endêmicas em Dar es Salaam, também medidas de higiene tropi-cal foram decretadas e mesmo plantação de coqueiros para drenar o solo foirealizada pelas autoridades coloniais (SEIDEL, 1898, p. 19). Diante de epi-demias, muitas cidades portuárias passaram por reformas urbanas orienta-das por preceitos científicos de higiene. Porém, a rede de transporte cada vezmais expandida deixava as cidades portuárias mais expostas às doenças tro-picais.

Se a saúde dos imigrantes alemães exigia cuidados nos trópicos, aeconomia também tinha seus caprichos. Nesse sentido, geografia, botâni-ca, veterinária e outras ciências foram decisivas para o estabelecimento deuma economia colonial em áreas tropicais e subtropicais no continente afri-cano. Alguns botânicos e geógrafos alemães estudaram as condições meso-lógicas das regiões tropicais e subtropicais, seus diferentes biomas e ecossis-temas, bem como seus recursos naturais, a fim de promover a economiacolonial.

Ferdinand Wohltmann (1857-1919) foi um desses cientistas, e seumanual de agricultura tropical orientou alguns projetos agrícolas durante ocolonialismo alemão.14 Em 1888, ele esteve pela primeira vez na colôniaalemã de Kamerun. Sobre as plantações naquela colônia, Wohltmann es-creveu artigos.15 Um ano depois, fez uma viagem de estudos ao Brasil meri-dional sob os auspícios da Hamburger Kolonisationsverein. Entre 1896 e 1903,Wohltmann fez algumas expedições científicas pelas “Alemanhas tropicais”do Togo, Kamerun, da África Oriental e de Samoa. Leo Waibel (1888-1951)

13 Ibidem, p. 58.14 Handbuch der Tropischen Agrikultur für die deutschen Kolonien in Afrika auf wissenschaftlicher und

praktischer Grundlage. Bd. 1: Die natürlichen Faktoren der Tropischen Agrikultur und dieMerkmale ihrer Beurteilung. Leipzig: Verlag Duncker & Humboldt, 1892.

15 WOHLTMANN, F. Der Plantagenbau in Kamerun und seine Zukunft: Drei Reiseberichte. Berlin:Verlag F. Telge, 1896. Do mesmo autor ver: Bericht über seine Togo-Reise: Ausgeführt imAuftrage der Kolonial-Abteilung des Auswärtigen Amtes im Dezember 1899. Der Tropenpflanzer,Beihefte, Bd. 1, Nr. 5, Berlin, 1900.

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foi outro desses cientistas alemães que esteve nas regiões subtropicais dosudoeste africano e do Brasil meridional, conhecendo in loco a realidade daimigração alemã em ambas as margens do Atlântico Sul.

Além das publicações científicas sobre a agricultura tropical, como arevista Der Tropenpflanzer, outras publicações destacaram a viabilidade do pro-jeto colonial. A revista Kolonie und Heimat in Wort und Bild, editada pela LigaFeminina da Sociedade Alemã de Colonização, trazia em seus números umasérie de matérias sobre a economia colonial e sobre temas como a adaptaçãoao clima ou a prosperidade dos imigrantes nos trópicos, etc. Conforme apropaganda colonial, a África “se germaniza”, especialmente a colônia dosudoeste africano, onde se vivia “quase como no meio rural na Alemanha”.16

A colônia alemã do sudoeste africano, atual Namíbia, foi a colôniaconsiderada ideal para a imigração alemã, malgrado as condições desérti-cas, a escassez de água e outras adversidades naturais. Como o discursocientífico orientava o projeto de colonização alemã a preferir áreas subtro-picais, a imigração alemã para o sudoeste africano foi em maior número doque aquela para as outras colônias alemãs na África.

Além das dificuldades de promover a migração alemã para as colôniasna África, a Sociedade de Colonização Alemã se preocupou com a repro-dução biológica e cultural dos alemães no continente africano. Nesse senti-do, algumas associações na Alemanha se encarregaram de engajar mulhe-res no projeto colonial do II Reich. Entre outras, destacou-se a já mencio-nada Liga Feminina da Sociedade de Colonização Alemã. Ela fez muitapropaganda colonial, principalmente por meio de sua revista já menciona-da, e foi também responsável pelo envio de mulheres brancas para as co-lônias alemãs.17 Um dos seus objetivos era a manutenção do germanismo

16 Kolonie und Heimat in Wort und Bild, Berlin, 21.11.1909.17 Sobre o tema, ver, por exemplo: SMIDT, Karen. “Germania führt die deutsche Frau nach Südwest”:

Auswanderung, Leben und soziale Konflikte deutscher Frauen in der ehemaligen KolonieDeutsch-Südwestafrika 1884-1920: Eine sozial- und frauengeschichtliche Studie. Magdeburg,1997; CARSTENS, Cornelia; VOLLHERBST, Gerhild. “Deutsche Frauen nach Südwest” –Der Frauenbund der Deutschen Kolonialgesellschaft. In: HEYDEN, Ulrich van der; ZELLER,Joachim. Kolonialmetropole Berlin. Berlin, 2002, p. 50-56.; DIETRICH, Anette. “WeißeWeiblichkeiten”: Konstruktion von “Rasse” und Geschlecht im deutschen Kolonialismus.Bielefeld, 2007; TODZI, Kim Sebastian. Rassifizierte Weiblichkeit: Der “Frauenbund derdeutschen Kolonialgesellschaft” zwischen weiblicher Emanzipation und rassistischerUnterdrückung. Universität Hamburg, 2008.

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nas colônias, que parecia esmaecer pelo baixo contingente de mulheres ale-mãs. Além de defender a endogamia entre os imigrantes alemães, a Liga sepreocupava com a reprodução cultural das novas gerações; para isso, acre-ditava-se que a mulher tinha um papel cultural importante no espaço priva-do do mundo colonial, como esposa, mãe e dona de casa. A propósito, opangermanismo e a ideologia colonial valorizavam o papel da mulher en-quanto “portadora da cultura [alemã]” (Kulturträgerin) (WALGENBACH,2005).

Apesar de muito rarefeita nas colônias do Togo e Kamerun e maisexpressiva nas colônias da África oriental (atual Tanzânia) e do sudoesteafricano (atual Namíbia), a imigração alemã foi elementar à economia co-lonial, cujas principais atividades se resumiam à exploração dos recursosnaturais.

Economia colonial e recursos naturais na África tropical

Na África colonial sob domínio alemão, houve uma degradação debiomas e ecossistemas causada pelos processos de privatização da agricul-tura, da pecuária, da mineração, da pesca, da caça, etc. No Togo e Kame-run, o impacto ambiental da pecuária foi menor do que nas colônias alemãsdo sudoeste africano e da África oriental. Na colônia de Kamerun, algumasprojeções de Ferdinand Wohltmann permitem supor alterações profundasna paisagem de algumas regiões, mas seus impactos ambientais não foramconsiderados (WOHLTMANN, 1896).

No Togo, houve desmatamento para algumas culturas de frutos tro-picais, como cacau e banana, na faixa costeira. Em Kamerun, houve o ma-nejo artificial de pastagens em certas áreas do interior, como em Dschang,em terras altas, onde foi instalada uma estação experimental para a pecuá-ria, inclusive com a introdução de gado zebu e cavalos de Adamaua.18 EmDschang não havia a mosca tsé-tsé, o que era importante para o desenvolvi-mento da pecuária.19

Na África Oriental Alemã, a cultura do sisal e de outras plantaçõestambém demandou a derrubada e a queimada de matas, introduzindo téc-

18 Kolonie und Heimat in Wort und Bild, Berlin, 07.11.1909.19 Kolonie und Heimat in Wort und Bild, Berlin, 10.10.1909.

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nicas para o desenvolvimento da agroexportação que não eram usadas pe-los agricultores nativos.20 Além de um imperativo da economia colonial, odesmatamento também atendia medidas de saneamento para a sobrevidados imigrantes alemães.

Mesmo que medidas radicais como o desmatamento e o extermíniode animais selvagens fossem defendidas por eminentes médicos como o Dr.Robert Koch, a “germanização” da paisagem africana não passou de umprojeto desastroso do colonialismo alemão.21

Provavelmente, os imigrantes alemães não faziam ideia de que suasações isoladas teriam o impacto ambiental que tiveram por causa do efeitoagregado de suas intervenções, realizadas para aumentar a produtividadeeconômica de suas atividades em detrimento do meio ambiente.

Essas atividades econômicas foram desenvolvidas, em sua maioria,com investimentos de capital privado e por meio de sociedades autônomasou companhias limitadas. Na África Oriental Alemã, por exemplo, a Deutsch-Ostafrikanische Plantagengesellschaft desenvolveu diferentes culturas agrícolas(tabaco, café, sisal...) de 1886 até 1910. Outras sociedades plantaram café,como, por exemplo, a Usambara-Kafeebau-Gesellschaft, e sisal, como a DeutscheAgaven-Gesellschaft, e ainda outros produtos em diferentes distritos (Usam-bara, Tanga, Pangani...) da África oriental (WAIBEL,1935, p. 179).

Cabe ressaltar que houve um aumento enorme da área cultivada depropriedade de europeus na África Oriental Alemã, isto é, de 8.235 hecta-res em 1902 para 81.831 hectares em 1912, sendo os principais produtoscoco, algodão, sisal e borracha (ibidem, p.180). Do café produzido na Áfri-ca Oriental Alemã em 1912, 57% provinham de propriedades de europeus(ibidem, p. 194). Do cacau produzido em Kamerun em 1912, 85% provinhamde proprietários europeus (ibidem, p. 358). No Togo, apenas 1.443 hectareseram cultivados em propriedades de europeus em 1912 (ibidem, p. 342).

Nas “Alemanhas tropicais”, o desmatamento ocorreu mais para oplantio de culturas de agroexportação ou para o escoamento da produção

20 Wie in Ostafrika eine Plantage entsteht. Kolonie und Heimat in Wort und Bild, Berlin, 27.02.1910,p. 2-3

21 Na colônia alemã de Kamerun, o desmatamento foi proposto pelo médico alemão Dr. Nägele.Cf. BAUCHE, Manuela. Trypanosomen und Tinbeef – Medizinisches Wissen umSchlafkrankheit zwischen Kamerun und Deutschland, 1910-1914. In: SEIFERT, Marc et al.(Hrsg.). Beiträge zur I. Kölner Afrikawissenschaftlichen Nachwuchstagung.

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da hinterlândia.22 Houve também desmatamento na “África alemã” parabeneficiamento e exportação da madeira.

Durante o colonialismo alemão, o transporte ferroviário foi um im-perativo para o escoamento da produção colonial. Para a construção dasferrovias foram derrubadas grandes extensões de florestas em regiões doTogo, Kamerun e em alguns distritos da África Oriental Alemã. A derruba-da das matas ao longo dos trilhos era também vista como uma medida desaneamento para evitar o contágio de algumas doenças tropicais. Com aexpansão das estradas de ferro, o interior da África tropical era integrado àeconomia colonial. Agricultura, pecuária e mineração adentravam o conti-nente africano na medida em que a estrada de ferro garantia o escoamentoda produção até os portos de exportação do litoral.

Economia colonial e recursos naturaisna África subtropical

Talvez a colônia alemã do sudoeste africano (atual Namíbia) tenhasido aquela que mais se aproximou da idealização da propaganda panger-manista do II Reich devido à sua localização em região subtropical. Masuma leitura acurada das matérias sobre as colônias africanas na revista Kolo-nie und Heimat ou nos jornais em língua alemã de Lüderitzbucht, Windhoekou Swakopmund permite perceber a discrepância entre o projeto e a reali-dade colonial.

Assim como as colônias alemãs na África tropical, a colônia alemãdo sudoeste africano se organizou com base no latifúndio e quase queexclusivamente para um mercado externo. Em vez de plantações (cacau,sisal, café, etc.), a economia colonial se orientou basicamente para a cria-ção de gado bovino, de cavalos, caprinos e avestruzes. Cabe salientar quea maioria das raças de cavalos, de gado vacum, de caprinos e avestruzesforam importadas da Europa, da Argentina, da África do Sul e mesmo daAustrália.

22 Imagens das técnicas rudimentares, inclusive com queimadas, para o preparo da terra parao plantio de culturas para a agroexportação foram reproduzidas na matéria “Wie inOstafrikaeinePlantageentsteht”, op. cit.

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A extração de minérios (cobre, diamante, fósforo, chumbo, etc.) tevepapel importante na economia colonial na África subtropical, bem como oextrativismo do guano e a caça ao leão marinho e à baleia. Apesar de ex-portado para a Alemanha, o guano abastecia muito o mercado interno,sendo um fertilizante natural para as fazendas dos alemães e bôeres.

O extrativismo do guano foi uma atividade econômica realizada porsociedade de capital privado.23A serviço da Sociedade de Colonização Ale-mã, um inglês descobriu guano em Cabo Cross em 1894.24 Desde então, aDamaraland Guano Company Limited fazia a extração do guano com mão deobra nativa.25 Essa companhia durou uma década, pois foi dissolvida em1904.26

Na virada do século, eram extraídas anualmente 8 a 10 toneladas emCabo Cross.27 Segundo o jornal de Swakopmund, numa determinada loca-lidade, as aves chegaram a produzir 150 toneladas de guano em 6 anos.28

Em algumas ilhas onde se extraía o guano também se caçava o leãomarinho. A temporada de caça durava, em geral, três meses. Em 1901, ovalor da pele havia sofrido uma queda, sendo que uma boa parte das 3 milpeles do ano anterior ainda estava estocada na Cidade do Cabo.29 Em maté-ria especial sobre a caça ao leão marinho, tem-se a informação de que aspeles dos filhotes e dos animais de até 1 ano de idade tinham mais valor nomercado. No jornal de Swakopmund, tratou-se da caça aos leões marinhoscomo uma promissora atividade econômica, referindo-se às ilhas, à tempo-rada de caça e ao ciclo dos animais.30 O método de caçar e abater os leõesmarinhos foi tema de uma matéria especial do jornal local.31 Mas a caçaaos leões marinhos estorvava as aves em certas localidades insulares onde

23 No jornal de Windhoek há notícias sobre as atividades de extração do guano desde o final doséculo XIX. Cf. Windhoeker Anzeiger, 19.01.1899; Windhoeker Anzeiger, 17.08.1899.

24 Deutsche Südwestafrikanische Zeitung, Swakopmund, 17.08.1899.25 Deutsche Südwestafrikanische Zeitung, Swakopmund, 14.10.1901.26 Deutsche Südwestafrikanische Zeitung, Swakopmund, 20.07.1904.27 Deutsche Südwestafrikanische Zeitung, Swakopmund, 30.10.1901.28 Deutsche Südwestafrikanische Zeitung, Swakopmund, 24.01.1911.29 Deutsche Südwestafrikanische Zeitung, Swakopmund, 11.12.1901.30 Die Robben an der deutsch-südwest-afrikanischen Küste (Teil I), Beilage zur Deutsch-

Südwestafrikanischen Zeitung, 28.09.1907.31 Die Robben an der deutsch-südwest-afrikanischen Küste (Teil II), Beilage zur Deutsch-

Südwestafrikanischen Zeitung, 02.10.1907.

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se extraía o guano.32 A pescaria naquela parte da costa também era conside-rada uma atividade haliêutica promissora, porém a pesca e a caça aos leõesmarinhos pareciam estar em rota de colisão.33

Além do guano, os ovos dos pinguins tiveram uma certa procura, aomenos na África do Sul, de onde eram exportados como délicatesse pararestaurantes londrinos, segundo notícia do jornal de Swakopmund.34

Na costa do sudoeste africano, entre as atividades haliêuticas, houveainda a caça à baleia por duas sociedades baleeiras, ambas fundadas em 1912(SCHMIDT, 2001, p. 55). Já em 1911, especulava-se sobre uma sociedadehamburguesa interessada em caçar baleias nas águas da África austral.35 Tam-bém uma empresa baleeira de Durban demonstrou interesse em se estabe-lecer nas proximidades de Swakopmund.36

Aliás, o empreendimento baleeiro foi considerado um importanteincremento para o desenvolvimento da economia colonial do sudoeste afri-cano.37

32 Deutsche Südwestafrikanische Zeitung, Swakopmund, 23.03.1907.33 Deutsche Südwestafrikanische Zeitung, Swakopmund, 12.06.1907.34 Deutsche Südwestafrikanische Zeitung, Swakopmund, 21.07.1911.35 Lüderitzbuchter Zeitung, Lüderitzbucht, 17.06.1911.36 Deutsche Südwestafrikanische Zeitung, Swakopmund, 02.08.1912.37 Eine neue Industrie für Lüderitzbucht. Swakopmunder Zeitung, Swakopmund, 23.05.1912.

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Mas se houve a exploração de certos recursos marinhos, os recursosminerais foram, sem dúvida, aqueles que mais suscitaram a possibilidadede enriquecimento rápido, especialmente depois da descoberta de diaman-tes nas proximidades de Lüderitzbucht, primeiro bastião do colonialismoalemão na África.38 Aliás, se não fosse a exploração de diamante, o povoa-do de Lüderitzbucht seria um lugar mais ermo, pois, ainda no início doséculo XX, um navio-pipa da Cidade do Cabo fazia regularmente o abaste-cimento de água potável.

Além do diamante, o mármore também foi explorado por sociedadede capital privado numa área total de 80.000 hectares.39 Da região de Kaokoo mármore era exportado para a Alemanha.40 Aquela região era rica emoutros minérios, como ferro. Expedições buscavam ainda minas de cobre echumbo. Em 1911, havia planos de se procurar naquela altura da costadiamante, fosfato e guano.41

Em relação à pecuária, as pastagens naturais do sudoeste africanoeram insuficientes para o pastoreio dos grupos nativos (hereros e namas) emestiços (como os de Rehoboth) e ainda para o gado dos fazendeiros ale-mães e bôeres. A pecuária introduzida pelos alemães e seus vizinhos bôeresfomentou uma competição ecológica com grupos nativos em várias regiõesafricanas. Não apenas as melhores pastagens foram privatizadas pelos fa-zendeiros brancos, como houve também o confisco do gado de pastoresnativos endividados. Houve também a peste bovina no final do século XIX,responsável por uma drástica redução dos rebanhos dos pastores nativos, eainda outros problemas decorrentes da introdução de uma “pecuária mo-derna”. Essa crise ecológica acirrou a tensão nas relações étnicas no su-doeste africano, que redundaram na guerra colonial (1904-1907).

Mas além da disputa pelas pastagens e pelo controle do território,havia a concorrência pelas escassas fontes de água. Para o engenheiro ale-mão Theodor Rehbock, a colônia do sudoeste africano dependia de uma

38 Bilder von Diamantenfelder in Südwest. Kolonie und Heimat in Wort und Bild, Berlin, 16.09.1910;Auf den Lüderitzbuchter Diamantenfeldern. Kolonie und Heimat in Wort und Bild, Berlin,19.02.1911.

39 Marmorvorkommen in Südwest. Nachrichtenbeilage zu Kolonie und Heimat, Nr. 11, p. 2,Berlin, 13.02.1910.

40 Deutsche Südwestafrikanische Zeitung, Swakopmund, 30.10.1901.41 Deutsche Südwestafrikanische Zeitung, Swakopmund, 30.05.1911.

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solução hidráulica para o desenvolvimento de sua economia (REHBOCK,1900). Se na África tropical a floresta era o maior obstáculo natural, naÁfrica subtropical era o deserto. Nesse sentido, a ferrovia foi fundamentalpara o transporte de cobre, mármore, diamante, guano, gado, etc. A ferro-via foi considerada um símbolo da vitória da civilização sobre a naturezainóspita do deserto do sudoeste africano, como apareceu ilustrado em ma-téria da revista Kolonie und Heimat.42

Em 1914, a colônia alemã do sudoeste africano foi ocupada por tro-pas sul-africanas sob comando britânico. O fim do colonialismo alemão naÁfrica subtropical não significou, contudo, o término da exploração dosrecursos naturais da forma como estava estruturada desde o final do séculoXIX, ou seja, com a participação do capital privado de sociedades autôno-mas ou companhias limitadas. Cabe destacar que algumas atividades, comoa caça ao leão marinho e o extrativismo do guano na costa do sudoesteafricano, já tinham a participação dos ingleses, assim como havia a presen-ça dos bôeres na pecuária e na mineração.

Extinção de espécies nativas einvasão biológica de espécies exóticas

A introdução de animais e plantas exóticas foi marcante na paisagemafricana durante o colonialismo alemão. Porém, a invasão biológica de al-gumas espécies comprometeu a sobrevida de espécies nativas. Afinal, a agri-cultura e a pecuária praticadas pelos imigrantes alemães e seus descenden-tes foram atividades econômicas que exigiram desmatamento, manejo depastagens artificiais e a introdução de animais e plantas exóticas que com-petiam com as espécies nativas pelos sempre limitados recursos naturais.Por outro lado, as derrubadas e as queimadas destruíam o hábitat de ani-mais selvagens.

A caça praticada pelos imigrantes alemães também foi responsávelpelo forte decréscimo e mesmo extinção de certas espécies de animaisselvagens na África. Além dos colonos alemães, oficiais e soldados daSchutztruppe, comerciantes e funcionários da administração colonial caça-

42 Der Sieg der Kultur. Kolonie und Heimat in Wort und Bild, n. 11, Berlin, 12/02/1910, p. 8.

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vam. O troféu de caça era muito cobiçado pela cultura colonial. A decora-ção de residências coloniais, salas de hotéis, restaurantes, clubes e associa-ções era marcada por elementos da caça (animais empalhados, ou cabeçasde animais como troféus, ou simplesmente peles ou chifres). Além da caçaesportiva, havia a caça comercial, sobretudo aquela orientada para o mer-cado de plumas, peles e marfim.

Na África Oriental Alemã houve ainda a matança por ordem expres-sa do governo colonial. Em 1910, o governador Rechenberg ordenou o ex-termínio de vários animais selvagens nas proximidades do Kilimandjaro afim de proteger o gado dos fazendeiros de uma eventual contaminação, jáque a peste bovina teria sido detectada na vizinha colônia britânica. Assim,o “cordão sanitário” foi realizado em detrimento de milhares de animaisselvagens. Alguns naturalistas alemães, como Paul Matschie e Carl GeorgeSchillings, chegaram a chamar de escândalo civilizatório (Kulturskandal) amatança promovida sob as ordens do governador Rechenberg (CORREA,2011).

É escusado lembrar que a ideia de civilização nos trópicos molduravaum pensamento científico em prol do desenvolvimento das colônias e emdetrimento da vida selvagem. Já em 1908, no mesmo ano em que passou avigorar a nova ordenança de caça na África Oriental Alemã, o eminentebacteriologista e prêmio Nobel de medicina Dr. Robert Koch (1843-1910)propôs o extermínio de algumas espécies da fauna bravia para erradicar adoença do sono em certas regiões, já que havia sido comprovado que amosca tsé-tsé se alimentava também do sangue de certos animais selvagens(KOCH, 1908).

Apesar da matança, o interior da África Oriental Alemã se mostravainóspito à colonização alemã. Além das doenças tropicais, as distâncias e omeio geográfico dificultavam a interiorização do colonialismo. Mesmo queas terras altas fossem visadas pelos poucos imigrantes alemães pelas condi-ções mais favoráveis de adaptação ao clima, a revolta Maji-Maji havia ini-bido os projetos de colonização. Nesse sentido, a paisagem da hinterlândiada África Oriental Alemã foi pouco alterada pelo colonialismo, resumin-do-se a uma estrada de ferro, uma estação missionária, uma fazenda aqui,outra acolá. Porém, em termos ambientais, a introdução de plantas exóti-cas provocou invasão biológica, novas pragas e a redução da biodiversida-de, sobretudo pelo desmatamento preliminar às culturas de agroexporta-

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ção, como a da borracha, inclusive com plantas do norte do Brasil.43 Cabesalientar que a plantação de seringais de origem brasileira na África OrientalAlemã data do final do século XIX (WOHLTMANN, 1898).44 Além daseringueira brasileira, outras plantas, como a agave mexicana, foram intro-duzidas nas colônias alemãs, sobretudo na África Oriental Alemã (WAIBEL,1935, p. 186).

Em relação ao cacau, os alemães experimentaram várias espécies emsuas plantations na África tropical, como cacau das ilhas da Guiné, de Trini-dad e um híbrido da América Central. Além do cacau, outras plantas tropi-cais exóticas foram introduzidas na “África alemã”. No centro e sul dacolônia de Kamerun, imigrantes alemães com experiência agrícola em Su-matra introduziram o tabaco (ibidem, p. 361). Na colônia alemã do sudoes-te africano, o tabaco também foi introduzido pelos imigrantesalemães.45Assim, em diferentes partes do império alemão eram adaptadasplantas com a finalidade de desenvolver a economia colonial. Para isso, o

43 Anzapfen eines Kautschukbaumes. Kolonie und Heimat in Wort und Bild, Berlin, 13.03.1910, p. 14.44 Sobre três tipos de borracha de origem brasileira, ver também Kautschuck-Kultur. Deutsche

Ostafrikanische Zeitung, Dar es Salaam, 07.04.1900.45 Neues von Tabakbau in Südwest. Kolonie und Heimat in Wort und Bild, Berlin, 13.03.1910, p. 6.

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know-how adquirido na prática de agricultura tropical numa colônia pode-ria servir para a introdução de novas culturas alhures. Além da cultura dotabaco em Kamerun, esse foi o caso também da plantação de cacau em Sa-moa, introduzida por imigrantes alemães com experiência africana.46

Do lado do Atlântico, as paisagens africanas do Togo, Kamerun eNamíbia foram modificadas pelo colonialismo alemão, assim como acon-teceu em outras áreas do Índico e do Pacífico, como demonstra a coletâneade imagens das paisagens coloniais de Ferdinand Wohltmann (WOHLT-MANN, 1904).

Na África Oriental Alemã, o potencial dos recursos florestais já eradiscutido pela imprensa local no início do século XX. É escusado lembrarque a imprensa fazia a apologia da imigração alemã ao designar os alemãescomo “pioneiros da civilização” (Pioniere der Kultur), ou seja, como gentecapaz de transformar a natureza selvagem em paisagem cultural.47

A economia colonial diante das pragas

A história da África colonial sob domínio alemão foi marcada porpragas e catástrofes. Nos jornais da imprensa colonial em língua alemã, háuma quantidade enorme de matérias sobre as pragas que acometiam a agri-cultura. Assim, bactérias, fungos e insetos eram combatidos com o auxílioda indústria química de agrotóxicos.

Métodos contra cupins e formigas também eram compartilhados pe-los alemães de diferentes lugares. Na revista Kolonie und Heimat, por exem-plo, um alemão de Erfurt fez sugestão aos compatriotas na colônia alemãdo sudoeste africano para combater a praga de cupins e formigas.48 Já nojornal de Lüderitzbucht, foi publicada uma notícia sobre um meio eficaz decombater as formigas no Sul do Brasil.49 No jornal de Dar es Salaam, algu-

46 Der Kakao: Seine Kultur und Verarbeitung. Kolonie und Heimat in Wort und Bild, Berlin,12.02.1911, p. 2-3.

47 Die Holzschätze unsererKolonie und ihre Ausnutzug. Deutsche Ostafrikanische Zeitung, Dar esSalaam, 14.09.1901.

48 Ein Mittel gegen die Termiten- und Ameisenplage? Nachrichtenbeilage zu Kolonie und Heimat,p. 3, Berlin, 27.02.1910.

49 Vermischte Nachrichten. Lüderitzbuchter Zeitung, Lüderitzbucht, 18.10.1922.

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mas matérias sobre cupins tratavam desses insetos como pragas em planta-ções de tabaco.50

Outras pragas atacavam as lavouras. Além de uma nova praga noscafezais, um possível fungo teria sido o responsável pelos prejuízos nas plan-tações de sorgo na África Oriental Alemã.51 No sudoeste africano, umamatéria do jornal de Lüderitzbucht tratou da praga no algodão causada porum fungo (Kräuselkrankheit).52

Na África Oriental Alemã, as pragas não eram só relacionadas à agri-cultura. Os jornais chegam a mencionar uma “praga de leões”.53 Inclusive,jornais em língua alemã do Sul do Brasil também falaram sobre os leõesque “infestavam” as cercanias de Dar es Salaam.54

É importante ressaltar que algumas atividades econômicas, como aextração mineral (diamante, cobre, mármore, etc.), a agroexportação dasplantations (cacau, sisal, algodão, etc.) e a pecuária extensiva, criaram con-dições favoráveis para o aumento de pragas, de epidemias e de novas zonasendêmicas. O aumento da circulação de animais, de trabalhadores nativose mercadorias pelos portos das colônias e a interiorização do colonialismocom a ampliação da rede ferroviária por vários biomas e ecossistemas favo-receram a dispersão de doenças como a peste bovina, a malária e a doençado sono.

Considerações finais

A adesão de Bismarck ao colonialismo suscita controvérsias na his-toriografia alemã. Porém, a sua posição favorável à participação do capitalprivado no projeto colonial é consenso entre os historiadores. Por meio deconcessão às companhias ou sociedades de comércio, os custos com a ges-tão e administração das colônias não ficariam sob a responsabilidade doImpério alemão. As companhias ou sociedades de comércio deveriam man-

50 Deutsche Ostafrikanische Zeitung, Dar es Salaam, 17.02.1900; Deutsche Ostafrikanische Zeitung,Dar es Salaam, 31.03.1900.

51 Zwei neue Kulturschädlinge. Deutsche Ostafrikanische Zeitung, Dar es Salaam, 9.11.1901.52 Ein Mittel gegen die Kräuselkrankheit der Baumwolle. Lüderitzbuchter Zeitung, Lüderitzbucht,

24.02.1912.53 Vermischtes. Deutsche Ostafrikanische Zeitung, Dar es Salaam, 7.09.1901.54 Afrika. Fortschritt, Santa Cruz, 09.01.1904.

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ter a ordem colonial em troca do direito concedido de um certo monopóliocomercial sobre determinados territórios. A participação do governo seriamais de proteção diplomática e militar, se necessária (WESSELING, 2002,p. 216). No entanto, essa política de concessão não obteve os resultadosesperados, e o II Reich acabou tendo que arcar com os custos da gestão eadministração colonial na África. Assim, a dificuldade em atrair investi-mentos para o projeto colonial foi uma constante durante os 30 anos deexperiência colonial alemã (1884-1914). Todavia, a privatização dos recur-sos naturais da África tropical e subtropical foi uma política deliberada des-de o início do colonialismo alemão.

Apesar da reserva de Bismarck em onerar os cofres públicos com aadministração colonial, as colônias alemãs na África se tornaram uma rea-lidade a partir de 1884, mas o número total de imigrantes alemães em todasas colônias não ultrapassou os 20 mil em 30 anos. Em termos econômicos,as colônias representavam menos de 1,0% do comércio exterior da Alema-nha em 1914 (WESSELING, 2009, p. 263).

Apesar disso, os imigrantes alemães lograram modificar radicalmen-te a paisagem colonial em três décadas. Tal modificação na paisagem nãoocorreu sem impactos ambientais. Um balanço crítico dos efeitos ecológicosdo colonialismo na África ainda está por ser feito pela história ambiental.

Em termos de ecologia humana, por exemplo, um dos maiores im-pactos da colonização alemã se deu sobre a população nativa. Na Áfricacolonial, a “disputa ecológica” entre os nativos e os adventícios teve suasparticularidades.O colonialismo alemão não logrou atrair um contingenteexpressivo de colonos europeus para o continente africano. Assim, o traba-lho dos africanos era imprescindível à economia colonial. Apesar disso, odiscurso imperial do II Reich enfatizava a imigração alemã, mesmo quemínima, para que fossem cumpridos os papéis preestabelecidos de uma so-ciedade colonial de estrutura hierárquica entre adventícios e nativos. Semimigração alemã, mesmo que em pequeno número, não haveria os “donosdo poder” na África colonial sob domínio alemão.

Durante o colonialismo alemão, a imigração e a privatização dos re-cursos naturais na África tropical e subtropical contribuíram, no entanto,para fundar as bases do capitalismo, sobre as quais outros grupos de capitalestrangeiro – notadamente ingleses e sul-africanos – continuariam a explora-ção dos recursos e a degradação do meio ambiente no período post-bellum.

CORREA, S. M. de S. • Imigração e privatização dos recursos naturais na África... (1884-1914)

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“Mata Branca”: o uso do machado,do fogo e da motosserra na alteração

da paisagem de Santa Catarina

Eunice Sueli Nodari

A floresta é maravilhosa. [...] Árvores preciosas de inúmeras qualidades,especialmente o cedro. Desse caminho estreito e cheio de empecilhos, rara-mente se lobriga um pedaço de céu. As árvores são tão altas e tão emaranha-das em suas comas pelos liames das sarmentáceas e trepadeiras, que vedama visão do firmamento (COSTA, 1929, p. 29).

A descrição em epígrafe a respeito das florestas do oeste de SantaCatarina no ano de 1929 mostra uma paisagem da qual resta muito pouconos dias atuais.

Gradativamente a região foi sendo alterada através da ação humanacom o uso de diferentes tecnologias, passando pelo uso do machado, dofogo e pela motosserra e reduzindo “o mundo natural a ‘paisagem’, entor-nos domesticados, aparados e moldados para se adequarem a algum usoprático ou à estética convencional [...]” (DEAN, 1996, p. 24).

Estamos cientes de que grupos étnicos têm formas distintas de intera-gir com o ambiente e que suas ações modificam ecossistemas, com impac-tos de curta, média e longa duração. Assim, escrever uma história das alte-rações antrópicas da paisagem na região da Floresta Estacional Decidualimplica uma avaliação dos efeitos dos grupos adventícios num bioma hos-pedeiro, tal como a floresta em estudo.

A Floresta Estacional Decidual (FED) anteriormente era denominadade Floresta Subtropical do Rio Uruguai e conhecida pelos colonos como “MataBranca”, para distingui-la da “Mata Preta”, a Floresta Ombrófila Mista (FOM),onde existiam araucárias. A FED abrange as florestas das porções médias esuperiores do Vale do Uruguai e da maior parte da vertente sul da Serra Gerale de áreas dispersas pelas bacias dos rios Jacuí, Ijuí e Ibicuí, atingindo umasuperfície aproximada de 47.000 km2 (LEITE; KLEIN, 1990, p. 128). Estende-se ao longo do curso médio e superior do rio Uruguai, em altitude mínima de200 metros, e sobe seus múltiplos afluentes, até uma altitude de 600 a 800metros. Esta região entra em contato com as matas dos pinhais no oeste do

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Planalto Ocidental Catarinense e Extremo Norte do Rio Grande do Sul, esten-dendo-se para o leste dos vales formados pelo Rio Uruguai até aproximada-mente o entroncamento dos rios Pelotas e Canoas. Em Santa Catarina, a áreada FED cobria uma área de 9.196 km2, perfazendo 9,6% da cobertura florestaldo Estado (CAMPANILI; PROCHNOW, 2006, p. 45).

A FED apresenta várias descontinuidades subtropicais situadas na ver-tente sudeste do Planalto das Araucárias, sobretudo nos divisores dos grandesrios, como Peperi-Guaçú e rio das Antas, onde a largura da abrangência chegaaos limites máximos de até 50 km e os divisores do rio Chapecó e rio Irani,onde a largura se restringe a um cordão marginal de apenas de 2 a 3 km2. AFloresta do Alto-Uruguai (FED), assim designada por Rambo e por Klein,constitui um prolongamento da pujante Floresta do Rio Paraná, vindo atravésda Província de Misiones, República da Argentina, uma vez que é separadadas matas do Vale do Rio Iguaçu pelos bosques de pinhais, que se estendem aolongo das Serras da Fartura e de Capanema, até a Província de Misiones.

A obra de Warren Dean, A ferro e fogo: a história e a devastação da MataAtlântica brasileira, é uma obra importante para quem trabalha com a MataAtlântica, pois o autor fez uma análise sobre o tema que cobre o períododesde 1500 até os nossos dias (DEAN, 1996). O livro pode ser alarmista emvários aspectos, mas tem inúmeros méritos, e talvez o mais importante sejaque o seu autor foi o primeiro historiador ambiental a alertar para os pro-blemas que ocorriam e ocorrem em relação à devastação da Mata Atlânti-ca, servindo de referencial para quem trabalha com o tema.

Através da análise da documentação, pode-se deduzir que, até a meta-de do século XX, a abundante oferta de espécies madeiráveis fez com que oscolonos e mesmo as serrarias deixassem de lado as espécies, na época, menosvaliosas. Entretanto, como os estoques florestais das espécies de maior valorse reduziram rapidamente devido à extração sem controle e à progressivademanda por madeira, as espécies de menor importância na primeira faseforam paulatinamente valorizadas. Estima-se que a FED seja um dos ecos-sistemas mais devastados do Brasil, com o agravante de que no Estado deSanta Catarina não existe nenhuma reserva legal desta tipologia.

Levantamentos feitos no final da década de 1990 indicaram que res-tam menos de 3%, na forma de fragmentos de tamanho muito reduzido esob constantes pressões antrópicas que ameaçam a totalmente destruir es-ses remanescentes da FED. A derrubada da mata pelo machado seguida dequeimadas e a introdução indiscriminada do uso da motosserra, aliadas à

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falta de conscientização por parte das pessoas, foram as principais respon-sáveis pela situação reinante. Na Figura 1 observa-se a localização dos frag-mentos da Floresta Estacional Decidual, do Alto Rio Uruguai, sul do Bra-sil, incluindo o Parque do Turvo, o maior fragmento restante do ecossiste-ma, na divisa com a Argentina, e cinco pequenos fragmentos (CCO, SOL,BRO, TIG, SVA) em Santa Catarina, distantes 20 a 50 km do Parque doTurvo (RUSCHEL; MOERSCHBACHER, NODARI, R. O., 2009).

Figura 1: Localização dos fragmentos da Floresta Estacional Decidualdo Alto Rio Uruguai

Fonte: RUSCHEL, A.R.; MOERSCHBACHER, B.M.; NODARI, R.O. The genetic statusof Sorocea bonplandii in the highly fragmented forest of Southern Brazil. Scientia Forestalis(IPEF), v. 37, p. 151-161, 2009. (Adaptado de: SOS Mata Atlântica, 1998).

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A localização da Floresta Estacional Decidual (FED) pode ser obser-vada na Figura 2; a maior parte da mesma se encontra na divisa com oEstado do Rio Grande do Sul, o que significa uma continuidade da florestanaquele Estado, tendo como divisor somente o rio Uruguai. Exatamenteesta proximidade do rio fez com que a devastação nestas áreas fosse maisrápida, comparadas com locais mais afastados.

Figura 2: Mapa Fitogeográfico de Santa Catarina – Domínios da MataAtlântica

Fonte: KLEIN, R. M. Mapa Fitogeográfico do Estado de Santa Catarina. – Herbário “BarbosaRodrigues” – Itajaí-SC, 1978/ Universidade Federal de Santa Catarina – Florianópolis-SC.1978, p. 22.

A Floresta e o processo de colonização

A ocupação sistemática das terras do oeste catarinense ocorreu entreas décadas de 1920 e 1960. Após o acordo conhecido como a “Questão doContestado”, assinado entre os governos do Paraná e de Santa Catarina em1917, esse último estabeleceu uma organização administrativa na região do

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Contestado, pela criação de quatro municípios, entre eles Chapecó, cujaárea de 13.958 km2 incluía os atuais municípios localizados a oeste.

O governo, para garantir a posse definitiva das terras, entregou a colo-nização às companhias colonizadoras, pertencentes, em sua maioria, a em-presários do Rio Grande do Sul. Competia às colonizadoras pôr em prática aopção de uma migração dirigida a grupos específicos, imigrantes alemães eitalianos e descendentes destas etnias estabelecidos no Rio Grande do Sul,onde já haviam demonstrado a sua capacidade de colonizar e haviam se mos-trado ordeiros e trabalhadores. Essas etnias são as principais responsáveispelo povoamento do oeste de Santa Catarina e pelas mudanças sociais, eco-nômicas e culturais que aconteceram (NODARI, E.S., 2009).

Antes da chegada destes colonos, a região era ocupada por caboclose indígenas, numa densidade demográfica rarefeita. Quanto aos últimos, senão viviam numa relação harmoniosa com a natureza, como se tem idea-lizado, pelo menos conviviam de forma mais sustentável com o meio am-biente (CARVALHO, 2010, p. 39).

Todas as terras ocupadas pelos migrantes eram lotes de pequena emédia propriedade. Um fenômeno que se iniciou com a vinda desses colo-nos, no aspecto econômico, foi o ciclo de extrativismo vegetal, em que asmadeiras nobres eram extraídas pelas companhias colonizadoras ou pelospróprios colonos, dependendo do tipo de contrato existente. As coloniza-doras agiram permitindo a instalação e a implantação do modo de vida doscolonos migrantes na “nova” região e tiveram um papel fundamental naimplantação, no oeste catarinense, de um modo de se relacionar com omeio ambiente. Num primeiro momento as florestas eram vistas como umagrande dificuldade a ser superada e, mesmo, um empecilho para a constru-ção de estradas, casas e o cultivo das lavouras.

As florestas também se constituíam em motes de propaganda das colo-nizadoras para atrair colonos e madeireiros. A Sociedade Territorial Mosele,Eberle, Ahrons & Cia., responsável pela colonização de Concórdia e outrasáreas que fazem parte da FED, no enunciado de sua propaganda, chama aatenção dos migrantes para a “colônia de terra fertilíssima coberta de matobranco1, louros, cedros, angicos e outros”.2 Na própria propaganda eram

1 Grifo dos autores.2 Propaganda publicada no Jornal Stafetta Riograndense em 22 de janeiro de 1929.

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anunciadas as principais espécies madeiráveis, que acabaram sendo, desde oinício da colonização, as mais exploradas: cedro, louro, cabreúva e pinheiro(araucária). Estas foram extraídas inicialmente, sobretudo, em áreas de fácilacesso à ferrovia ou ao rio Uruguai, onde as toras formavam balsas que eramtransportadas rio abaixo rumo à Argentina. A exportação por via fluvial de-pendia da natureza, pois era necessária uma enchente do rio Uruguai paraque isto acontecesse. Inúmeras são as notícias nos periódicos regionais sobreo assunto, como esta de abril de 1941:

Com as chuvas torrenciais caídas na Quarta e Quinta feira passada, a en-chente do Rio Uruguai atingiu o ponto de balsa, isto é, passou de quatrometros e meio acima do nível normal. Anteontem e ontem regular quantida-de de madeira desceu para a República Argentina.3

Foi também graças à atividade madeireira que algumas colonizado-ras não faliram, devido à diminuição da venda de lotes. O relato de MariaRohde, uma das pioneiras da colônia Porto Novo, no extremo oeste, apon-ta a alternativa encontrada pela Sociedade União Popular Católica (Volks-verein) para contornar a crise econômica:

Devido à paralisação de muitos anos da imigração durante o período daGuerra, a situação financeira da empresa era extremamente crítica, porquea escassa venda de terras quase não trazia nenhum recurso. [...] Desta for-ma, a administração da colônia, por iniciativa da direção da caixa central daVolksverein, decidiu continuar vendendo (temporariamente) só terras nas quaisse encontravam troncos de cedros exportáveis. E, num comércio de madei-ras, exportar estas toras para a Argentina, para com este produto adminis-trar, pelo menos em parte, a necessidade financeira da empresa4 (ROHDE,1996, p. 160).

A existência de grande quantidade de árvores para serem derrubadasera um dos grandes trunfos dos agentes das colonizadoras ao fazerem propa-ganda das terras existentes. Mas de nada adiantariam estas matas se não hou-vesse um mercado comprador interessado. Esta combinação de matéria-pri-ma, da instalação das serrarias e da existência de um mercado consumidorfazia com que a região se tornasse um polo de atração dos colonos.

3 Notícia publicada sob o título: RIO URUGUAI. A Voz de Chapecó, 29 de abril de 1941, n. 42,p. 4.

4 Os textos da autora (ROHDE) utilizados no presente trabalho foram traduzidos pelo doutoran-do Marcio José Werle.

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A Volksverein, já citada anteriormente, foi uma das colonizadoras queatuou na região abrangida pela FED. A análise do livro de memórias deMaria Rohde mostra aspectos do cotidiano da Colônia Porto Novo (Itapi-ranga) nas décadas de 1920 a 1940 que ajudam a entender o processo ma-deireiro na região.

Nos meses de inverno enxergavam-se por toda parte os colonos descobrindosuas grandes toras de madeira de lei para que dispusessem de madeira paraas futuras e melhores moradias, ampliações dos currais, postes de cerca parapotreiro, etc. Muitas árvores de madeira nobre apareceram e revelaram seuvalor. Quanto mais fundo se penetrava no mato, tanto mais se evidenciava amonstruosa riqueza desta zona. Infelizmente as preciosas madeiras aprovei-táveis, como cedro e louro, dos terrenos localizados à ribeira, foram ampla-mente roubadas (ROHDE, 1996, p. 121).

A autora também nos dá pistas de como se deu a evolução de umadas áreas que faziam parte da Floresta Estacional Decidual:

Atualmente a colônia conduz seu próprio comércio de madeiras. Como aregião já está colonizada até sua última fronteira e cultivada, aparece tam-bém a monstruosa riqueza de madeiras desta floresta. Muitos colonos hoje,depois de terem construído sua moradia, instalações e galpões com madei-ras tiradas de sua terra, podem ainda vender belas toras e conseguir comisso um bom dinheiro extra. Em toda parte na floresta trabalha-se “na ma-deira”. Ao lado das estradas das margens dos rios veem-se muitas pilhasgrandes de toras com enormes circunferências prontas para serem amarra-das e ajuntadas em balsas. Com cada cheia do rio estas belas toras saídasdas próprias florestas seguem em gigantescas balsas em direção à Argentina(ROHDE, 1996, p. 123).

Segundo Maria Rohde, a exploração da madeira deveria ser conduzi-da sistematicamente, pois representará “sempre uma fonte de renda paraos colonos da floresta, desde que eles não exerçam nenhuma cultura exausti-va e nas partes de mato derrubado façam uma nova plantação, que com osanos crescerá por si só e se transformará novamente em riqueza” (ROHDE,1996, p. 123).

A autora não esboça preocupações ambientais, preservacionistas, esim econômicas, como era o pensamento da época. A riqueza natural pare-cia interminável, como escreve a autora: “Também no futuro o comérciode madeira em Porto Novo ainda desempenhará um importante papel,principalmente para os novos imigrantes na terra ainda disponível no in-terior, onde toda riqueza natural ainda intocada está à mão” (ROHDE,1996, p. 123).

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O processo gradativo de devastação da Floresta

Em pesquisa realizada na região do extremo oeste de Santa Catarina,nos municípios de Descanso, Iporã do Oeste, São João do Oeste e Itapiran-ga, por uma equipe composta por Ademir Ruschel, Eunice Sueli Nodari eRubens Onofre Nodari, foram obtidos dados inéditos que permitem fazeruma análise histórica de como se deu o processo de devastação da FED.Foram feitas pesquisas nos arquivos da região, assim como nos periódicosregionais, e levantamento iconográfico, além de uma série de entrevistas.Estas últimas ajudaram a suprir a escassez de fontes em alguns aspectosda pesquisa. O total de entrevistados na região foi de 41 pessoas, assimdistribuídas: madeireiros (13), ex-madeireiros (8), colonos e seus descen-dentes (20).

Os questionários aplicados continham perguntas dirigidas, mas comespaços que permitissem respostas abertas; além disso, as questões eramdiferentes para os três grupos compostos por primeiros colonos, ex-madei-reiros e madeireiros dos municípios de Itapiranga e Descanso. Entre outrosaspectos que serão discutidos no decorrer do texto, estes questionários per-mitiram observar e analisar, conforme a Tabela 1, as principais espéciesmadeiráveis existentes na região, e que acabaram complementando algu-mas fontes escritas e iconográficas da época estudada.

O madeireiro J. M. R., entrevistado por Ademir Ruschel, migrou paraa região em 1949, proveniente do Rio Grande do Sul, e descreve: “O louro,o cedro, a grápia, o angico, a caroba e a canela-loura foram as espécies demadeiras serradas com o maior valor comercial, sendo que o diâmetro mí-nimo das madeiras exploradas variou entre 20 e 40 cm”.5 O ex-madeireiroR. S., oriundo de São Leopoldo-RS, que migrou para Lajú, distrito de Ita-piranga, em 1941, aponta: “A espécie de madeira mais procurada, bem comoa mais frequente foi a canela-loura, sendo que a maior parte da comerciali-zação das madeiras se deu para o Rio Grande do Sul, principalmente PortoAlegre, sendo que pouco vendia para colonos”.6

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5 Questionário aplicado por Ademir Ruschel ao ex-madeireiro, Sr. J. M. R.6 Questionário aplicado por Ademir Ruschel ao ex-madeireiro, Sr. R. S.

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Tabela 1: Densidade (em percentagem) das espécies de valor madeirávelde maior ocorrência em floresta nativa do Ecossistema do Alto Uruguai,SC, pelo método de questionários aplicados para Colonos (Col.), Ma-deireiros (Mad.), Ex-Madeireiros (Ex-Mad.) e por região

Nome CategoriaComum Provável espécie Col. Mad. Ex- Itapi- Des- Total

Mad. ranga canso

Grápia Apuleia leiocarpa Macbride 100 100 100 100 100 100

Angico- Parapiptadenia rigida (Benth.) 95 100 100 95 100 98vermelho Brenan

Guatambú Balfourodendron riedelianum Engl. 85 92 88 90 86 88

Açoita-cavalo Luehea divaricata Mart. 80 85 88 90 76 83

Canela-loura Nectandra megapotamica (Spreng.) 75 92 75 90 71 81Hassler

Guajuvira Pataganula americana L. 70 92 75 95 62 78

Alecrim Holocalyx balansae Mich. 80 69 63 80 62 71

Canela-pinha Ocotea diospyrifolia (Meissner) Mez 60 92 38 70 62 66

Cabreúva Myrocarpus frondosus Fr. Allem. 70 69 50 60 71 66

Canjerana Cabralea Canjerana (Vell.) Mart. 75 38 75 65 62 63

Cedro Cedrela fissilis Vell. 55 77 63 65 67 59

Maria-preta Diatenopteryx sorbifolia Radalk. 65 46 38 60 48 54

Canafístula Peltophorum dubium Taub. 40 62 63 65 38 51

Rabogios7 Papilionoideae 30 69 50 60 38 49

Canela- Lauraceae 30 69 25 40 43 41amarela8

Pessegueiro- Prunus sellowii Koehn. 30 38 63 20 52 37brabo

Vassourinha Chrysophyllum marginatum Radlk. 25 31 63 40 24 32

Quase a totalidade dos entrevistados afirmou que o diâmetro míni-mo para a exploração da madeira estava entre 20 e 40 cm, conforme a

7 Denominadas vulgarmente de rabogio (Mchaerium paraguariensis, Lonchocarpus muhlbergianusHassler e Lonchocarpus campestris Benth.).

8 Canela-amarela, principalmente Nectandra grandiflora Nees & Mart. Ex, Ness. e Nectandra lan-ceolata Ness.

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própria citação de J. M. R, sendo que, na medida em que ocorria a escas-sez das madeiras, o diâmetro daquelas a serem exploradas foi diminuin-do, caracterizando a prática predatória na região.

Os questionários aplicados aos primeiros colonos e descendentes ti-nham como uma das perguntas: Quais as dificuldades encontradas no iní-cio da colonização? A derrubada do mato e a falta de estradas aparecemcomo as principais respostas. Como exemplo, citamos o colono A. A. T.,natural de São Leopoldo – RS, que migrou para Linha Aparecida, distritode Itapiranga, em 1944, que aponta como principal dificuldade da coloni-zação “a derrubada de mato, que foi feita de forma manual”.

A derrubada das matas fazia parte do processo de colonização, umavez que, junto com os colonos, rapidamente foram instaladas serrarias, ge-ralmente pertencentes a pessoas ou grupos que já tinham atuado no ramomadeireiro no Rio Grande do Sul. A exportação de madeira para a Argen-tina já acontecia no Rio Grande do Sul e, mesmo, em algumas partes dooeste de Santa Catarina. Esse era um objetivo colocado desde o início pelasempresas colonizadoras quando se estabeleceram na região, pois, sabendoque parte dos lucros seria proveniente do aproveitamento das riquezas flo-restais, montaram serrarias, abriram estradas em locais que lhes interessa-vam e organizaram o transporte das madeiras.

Na região abrangida pela FED, de acordo com os entrevistados eoutras fontes por nós analisadas, o início da extração foi na década de 1930,crescendo gradativamente no decorrer das décadas seguintes e chegandoao auge nos anos 1960 e 1970. Estas duas últimas décadas são apontadaspelos colonos entrevistados, que identificam a maior retirada com a entra-da da motosserra, que facilitava a derrubada das árvores. Outros ainda acres-centam o trator de esteira e a serra-fita. É relevante que um dos entrevista-dos usa um fato histórico e político para lembrar a época: “[...] após a en-trada da motosserra. No tempo do Getúlio Vargas ainda era com o macha-do”.9 Sem dúvida, com o avanço da tecnologia na indústria madeireira cres-ceu rapidamente a extração das madeiras, mas não podemos esquecer aabertura de estradas que facilitavam o escoamento.

As notícias publicadas nos jornais da região, nas décadas de 1930 e1940, referem-se com frequência às péssimas estradas, ou mesmo à falta

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9 Questionário dos primeiros colonos aplicado por Ademir Ruschel ao senhor João Emílio Schröder.

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delas. É o que se constata, por exemplo, nesta notícia publicada no jornal AVoz de Chapecó em 1939:

Itapiranga é um dos mais importantes distritos deste município, no que dizrespeito à produção agrícola, sendo, entretanto, lamentável o péssimo estadoem que se encontra a estrada de rodagem, que vai a Mondaí e sede da comar-ca. – O comércio de Itapiranga está sendo sacrificado pela falta das pontessobre os rios Dourado, Fortaleza e Taipas, há mais de três anos. A estrada, emmuitos trechos, está fechada pela mata, até dos muitos atoleiros que a tornaintransitável.

Além das estradas, havia ainda o problema do rio Uruguai, do qualdependiam para o escoamento da produção, pois o transporte da madeirapor meio de balsas só aconteceria quando o rio atingisse um determinadonível (Figura 3). Em 1940, a enchente esperada do mês de abril não atingiu o“ponto de balsa”:

Com as últimas chuvas caídas nos primeiros dias do corrente mês houveesperança que a enchente chegasse ao ponto de permitir a descida de balsasde madeira para a República Argentina. Tal, porém, não ocorreu. As águasforam subindo, subindo e chegaram até quatro metros.Os madeireiros prepararam-se, planos e projetos foram feitos para a viagem,porque faltava somente meio metro de água, na altura, mas aí a enchenteparou, e depois foi diminuindo, voltando pouco a pouco ao nível aproxima-do do normal.10

Figura 3: Balsas com troncos e toras de madeira no rio Uruguai rumo àArgentina

Fonte: PortoNovo – Brasilien:

Siedlung fürdeutschsprechende

Katholiken amUruguayfluss im

Staate SantaCatharina in

Brasilien. PortoAlegre:

Typographia doCentro, 1933.

10 MADEIRAS. A Voz de Chapecó, 21 de abril de 1940, n. 41, p. 2.

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Uma das justificativas para a derrubada das florestas pelos colonos,nos anos iniciais da colonização, era limpar a área para plantar as suasculturas de subsistência, porque esta era uma das principais razões de suavinda para a região. As técnicas de extração, nas primeiras décadas, eramrudimentares: usavam o machado ou a serra manual. E as toras eram trans-portadas por tração animal, enquanto que as árvores menores que caíamcom o processo de abatimento das maiores, ou na retirada destas, eramqueimadas ou deixadas para apodrecer (vide Figura 4, datada da década de1930, em Itapiranga).

Figura 4: A retirada da madeira e a queima do restante

Fonte: Porto Novo – Brasilien: Siedlung für deutschsprechende Katholiken am Uru-guayfluss im Staate Santa Catharina in Brasilien. Porto Alegre: Typographia do Centro,1933.

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A partir da década de 1940, o transporte para os locais onde haviaestradas transitáveis começou a ser feito com caminhões, conforme podeser observado na Figura 5. Na mesma fotografia, a propriedade rural jáaparece em plena expansão, tendo parte da Floresta Estacional Decidualcomo cenário.

Figura 5: Transporte de madeira em Itapiranga, na década de 1940, coma Floresta Estacional Decidual como pano de fundo

Acervo: Museu Comunitário “Almiro Theobaldo Muller”, Itapiranga, SC.

A preservação da “Mata Branca”:preocupações do passado e do presente?

A preocupação com a preservação da floresta era mínima entre oscolonos na primeira metade do século XX, e, mesmo havendo leis em vigordesde a década de 1930, não eram respeitadas na maioria dos casos. Exis-tem alguns registros nos jornais da região oeste de Santa Catarina revelan-do a preocupação com o reflorestamento da região, como neste artigo pu-

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blicado pelo jornal A Tribuna, que, ao mesmo tempo em que reconhece aimportância do governo ter um Código Florestal, revela que, na prática,poucas regiões têm efetivamente se preocupado com esta causa, conformevemos a seguir:

De outros municípios de nosso Estado nos chegam notícias auspiciosas, emrelação ao trabalho de reflorestamento que nos mesmos se vem desenvol-vendo. Cruzada admirável essa, que tem por objetivo a guarda das nossasreservas florestais. Campanha digna dos maiores elogios, nascida da açãoclarividente do govêrno da República, que nos legou o Código Florestal,síntese do resultado de muitos anos de experiência e de vários projetos. Emnosso município, ao que consta, apenas uma ou outra zona está fazendo odevido reflorestamento. É tempo de se acabar, de uma vez para sempre, como rotineiro sistema das derrubadas e queimadas.11

Havia, além da legislação federal, a estadual; exemplo disso é o De-creto-Lei n. 132, de 11 de julho de 1938, do Governo de Santa Catarina,que determina providências para a defesa do patrimônio florestal. Nos arti-gos 3 a 6 observa-se a preocupação com florestas rentáveis:

Art. 3 – São consideradas florestas de rendimento aquelas nas quais houverou possa haver ainda exploração de madeira para quaisquer fins industriais.Art. 4 – É obrigatório o replantio das florestas de rendimento de composi-ção heterogênea, povoadas de essências de valor econômico, como imbuia,canela, pinho, cedro, peroba, óleo vermelho, arariba e outras que venham aser declaradas.Parágrafo único – Far-se-á o replantio na proporção de 1:1.Art. 5 – O corte das árvores far-se-á de modo a não abrir clareiras na massaflorestal.Art. 6 – As árvores abatidas serão substituídas por mudas da mesma espécieou de outra essência florestal, julgada conveniente, devidamente seleciona-da e com o espaçamento que a técnica exige (SANTA CATARINA, 1938).

O artigo 8 do mesmo Decreto-Lei refere-se as colonizadoras, exigin-do que “as companhias, empresas ou sociedades existentes ou que aindavenham a se organizar no Estado, para venda ou arrendamento de lotesrurais, ficam obrigadas a manter viveiros de mudas destinadas ao replan-tio”. Em pesquisas realizadas nos arquivos, encontramos indícios da insta-lação desses viveiros pela Companhia Territorial Sul Brasil, que também

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11 Esta notícia foi publicada no Jornal A Tribuna no dia 10 de agosto de 1941. O referido jornalera impresso em Joaçaba e tinha repercussão regional.

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atuava na região da FED, com um projeto implantado em 1968, com mu-das de arvores exóticas (Pinus elliottii) (COMPANHIA TERRITORIAL SULBRASIL, 1969).

A mesma colonizadora, em seus contratos de compra e venda, a par-tir da década de 1960, coloca como cláusulas obrigatórias a necessidade dereflorestamento pelo proprietário e a reserva dos pinheiros, cedros e lourosexistentes na propriedade para a colonizadora.

Observa-se que, mesmo havendo legislação tanto em nível nacionalquanto estadual, esta não era obedecida da forma como deveria. Havianotícias nos periódicos alertando a população sobre o futuro, como a publi-cada em 1948:

[...] O ano de 1948 tem corrido propício, as enchentes foram diversas, paracompensar os períodos em que as águas permanecem baixas.As serrarias trabalham incessantemente, os pinheiros são abatidos, os pi-nhais desaparecem, vão desaparecendo a pouco e pouco.Sim, está muito bem, no presente, mas os senhores madeireiros, serradores,exportadores, deviam corresponder à proteção divina, fazendo a replanta-ção das árvores abatidas, o reflorestamento das matas extintas.Se não há necessidade de pensar nos filhos, porque estes ainda terão abun-dância, convinha pensar nos netos, bisnetos, nas gerações de amanhã.Deviam pensar, é, mas, pensarão?... Estamos quase duvidando.12

Considerações finais

Estas constatações nos levam ao final do século XX e aos questioná-rios aplicados aos primeiros colonos ou seus descendentes e às suas preocu-pações, ou não, com a preservação ou reflorestamento com árvores nativas,que seria uma forma de reconstituir a FED, assim como a sua biodiversidade.

Quando foram questionados sobre a possibilidade de reflorestar áre-as de sua propriedade, 11 (26,2%) daqueles que responderam afirmaramque não o fariam, enquanto que três (7,1%) concordaram em fazê-lo e ou-tros três (7,1%) só o fariam com algum incentivo. Entretanto, 59,5% delesfariam o reflorestamento. A outra pergunta se referia à recomposição damata ciliar, sendo que quatro dos entrevistados (9,5%) concordaram com a

12 ENCHENTE do Rio Uruguai. A Voz de Chapecó, 07 de novembro de 1948, n. 208, p. 2.

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sua importância e, caso houvesse incentivo, fariam a recomposição, seis(14,3%) concordaram em recompor sem imposição alguma, sendo que doiso fariam com plantas exóticas e um com exóticas e nativas. Já na questãoque não envolve a sua propriedade, todos os que responderam (16) concor-daram quanto à importância da criação de uma reserva florestal pública.

A consciência da necessidade de que algo precisava ser feito pela re-constituição da floresta estava presente na maioria dos entrevistados, desdeque não acontecesse em suas propriedades, pois implicaria a diminuição desuas áreas de cultivo e de criação de animais. Em relação à questão doplantio de árvores nativas, foi repassado por muitas décadas por técnicosagrícolas, agrônomos e mesmo por órgãos do governo, assim como pormeio da imprensa, que as espécies exóticas teriam um melhor rendimento eum crescimento em menor tempo. Se persistirem estas ideias, e as fontesestão indicando para isto, dificilmente teremos mais do que pequenos frag-mentos da Floresta Estacional Decidual, principalmente com a aplicaçãoda Lei nº 14.675, de 13 de abril de 2009, que institui o Código Estadual doMeio Ambiente, e a aprovação do novo Código Florestal Brasileiro, que seencontra em discussão no Congresso Nacional. Ambos favorecem mais odesmatamento do que a preservação ou manejo sustentável da vegetação.O agravante é que as atividades ou empreendimentos com elevada polui-ção ou que ferem as normas ambientais atuais, agora denominadas de áre-as consolidadas, serão de agora em diante legais, não necessitando de qual-quer adequação ambiental.

As áreas de florestas brasileiras, com exceção da Floresta Amazôni-ca, perderam a sua identidade original no decorrer da história, uma vez quea intervenção humana fragmentou e degradou os ecossistemas. Emborapresente, a sucessão florestal está ocorrendo nos fragmentos; porém, istonão é suficiente para recuperar a fisionomia original da região. A evoluçãoflorestal é um processo dinâmico, o qual envolve tempo-espaço e ocorrenuma velocidade imperceptível aos nossos sentidos, que se estende por vá-rias gerações humanas. Isto significa não somente a perda da floresta em si,mas de toda a biodiversidade que dela provinha; assim, observamos quenum futuro bem próximo não saberemos mais descrever toda a riqueza quetínhamos, e nós, seres humanos, fomos os responsáveis por este processo.

O legado histórico demonstra que sempre houve preocupação coma preservação da “Mata Branca”. Tanto pensadores como governantes

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alertaram e propuseram medidas, que, se tivessem sido implantadas, res-taria muito mais do que o pouco mais de 3% de vegetação original daFloresta Estadual Decidual. É verdade também que os interesses econô-micos de uma minoria se sobrepuserem aos interesses maiores da socie-dade. A pergunta que cabe fazer é: se alertar ou mesmo propor soluçõesnão funcionou, que estratégias deveriam ser adotadas? Certamente a res-posta deve ser construída por todos os que habitam aquela região, consi-derando que quem participa da construção de uma proposta ou soluçãocertamente se compromete com seu alcance. O processo participativopoderia ser uma estratégia eficaz.

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História Ambiental e Migrações

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Agricultura e impactos ambientaisno Planalto do Rio Grande do Sul

Paulo Afonso Zarth

Introdução

O século XIX foi um momento histórico fundamental na história doPlanalto do Rio Grande do Sul. Depois de milhares de anos sem grandesmudanças na paisagem, essa região começaria a se modificar radicalmente.Até então, era uma imensa floresta na qual duas plantas se destacavam nahistória desse território: a erva-mate (ilex paraguariensis) e o pinheiro (arau-caria angustifolia). Campos nativos também ocupavam uma extensa área dessaregião, habitada por povos indígenas durante séculos. A partir dos anos1800, novos contingentes humanos oriundos de outros continentes, comoutras formas de uso do território e outras concepções de natureza, inaugu-raram uma nova fase histórica, que geraria grandes impactos ambientais.Embora europeus circulassem pela região desde o século XVI, foi nos anos1800 que uma ocupação estrangeira efetiva da floresta começou a se conso-lidar.

A conquista definitiva desse espaço pelos novos grupos passou porum período de transição entre a paisagem encontrada pelos primeiros euro-peus e a devastação da floresta pela agricultura intensiva, protagonizadapelo processo de colonização a partir do final do século XIX. O texto focapreferencialmente esse período transitório, no qual se estabelece uma lutaentre os diferentes grupos sociais em torno da ocupação do território, mastambém em torno da concepção de seu uso, quebrando práticas historica-mente constituídas a partir das condições ambientais. Baseamo-nos nas di-ferentes visões que chegaram até o presente, reveladas por documentos erelatórios oficiais, textos de viajantes e cronistas e, mais recentemente, pe-las pesquisas arqueológicas.

Novos temas, métodos e problemas emergiram nos últimos tempos eocuparam espaço na historiografia. Entre os temas emergentes na atualida-

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de, destaca-se a história ambiental, com forte tendência de consolidação noBrasil a partir dos programas de pós-graduação em História. Se considerar-mos que a pesquisa histórica sofre interferência das tensões políticas e cul-turais correntes na sociedade, a história ambiental se enquadra num mo-mento de efervescência, na medida em que a questão ambiental ultrapassaos movimentos ambientalistas há muito atuantes e com forte influência naspolíticas públicas. Tais interferências, no início da história ambiental norte-americana, são apontadas por Worster em seu texto clássico:

A história ambiental nasceu de uma forte preocupação moral, podendo aindater alguns compromissos de reforma política, mas à medida que amadurecia,tornava-se um empreendimento intelectual que não tem qualquer agenda moralou política simplista ou única para promover (WORSTER, 1991, p. 2).

Mesmo que, como sugere o autor, os historiadores ambientais tenhamse isentado das agendas políticas e sociais, o fato é que a destruição e aexploração das florestas e, por extensão, as formas de agricultura e de pecuá-ria são hoje questionadas pela sociedade, reunida em torno dos movimen-tos ambientalistas, de populações tradicionais e de camponeses em buscade uma agricultura agroecológica (Instituto, 2009). Os povos indígenas outradicionais, que até então eram vistos como atrasados, movimentam-sepoliticamente e tentam demonstrar que justamente eles é que garantiram adiversidade biológica ao longo dos séculos (Diegues, 2000). É importanteconsiderar esse último aspecto, pois contraria radicalmente a tradição dostextos produzidos pelos historiadores que trataram da história da agricultu-ra e dos agricultores do Sul.

Até recentemente, a história da agricultura era analisada através daideia de progresso, que implicava a destruição da floresta e a introdução demodernas técnicas europeias, em substituição aos supostos métodos arcai-cos dos povos nativos e populações tradicionais. Agora essa posição estásob forte crítica acadêmica, tanto da história ambiental como da históriaagrária, com as respectivas nuances metodológicas. Ao mesmo tempo, acentralidade dos humanos nas pesquisas históricas começa a abrir espaçopara elementos não humanos, considerando que o meio ambiente constituihoje objeto de grande preocupação. A reflexão de Eunice Nodari ao estu-dar o Oeste Catarinense parece oportuna nesse sentido:

Temos de prestar atenção ao fato de que povos diferentes escolheram for-mas distintas de interagir com o ambiente circundante e que suas escolhastêm ramificações não somente na comunidade humana, mas também no

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ecossistema maior. Ao escrever uma história de tais relações, trazemos aopalco principal um conjunto de personagens não humanos, que geralmen-te, ocupam, quando muito, as margens da análise histórica (NODARI, 2009,p. 136).

Esses novos textos revelam um passado em que os seres humanosviveram por séculos no território do atual Brasil com uma relação consi-deravelmente melhor com a natureza, do ponto de vista ecológico. Nesseraciocínio, os saberes das comunidades indígenas ou tradicionais teriamsido violentados pelos conquistadores europeus. Esse enfoque propõe a pes-quisa e a retomada dos conhecimentos tradicionais que foram abandona-dos em favor das tecnologias oriundas da Europa e não adequadas ao am-biente brasileiro. Tal concepção teórica e de método de pesquisa implicareconsiderar aquilo que se escreveu a respeito da história da agricultura doSul do Brasil. A visão ainda marcante de uma floresta virgem à espera decolonizadores europeus ávidos de progresso já não é mais suficiente.

1 Os indígenas e as araucárias

Os migrantes europeus e seus descendentes que se aventuraram a seestabelecer no Planalto do Rio Grande do Sul nas primeiras décadas doséculo XIX encontraram um território ocupado há séculos pelos povos in-dígenas. Esses povos se utilizavam da extração de recursos naturais e daformação de pequenas roças pelo sistema de rotação de terras com pousiolongo. Schmitz, referindo-se aos povos indígenas que ocuparam a florestacom araucária, que cobre grande parte do território, atribui-lhes uma rela-ção sustentável do ponto de vista ambiental ao longo de séculos:

O planalto das Araucárias foi semeado por corpos que sucumbiram na lutapela vida e na defesa do território que, por catorze séculos, foi seu domínio,sem jamais destruir a mata, que era seu refúgio e produzia seu sustento.Acreditamos que, pelo contrário, através de um manejo consciente ou in-consciente, sua mata se adensou e o pinheiral se expandiu (SCHMITZ, 2009,p. 53-54).

As diferentes parcialidades indígenas disputaram entre si as araucá-rias, que lhes serviram de base alimentar, gerenciando seu manejo. Os pi-nheirais, de acordo com as obervações do engenheiro Alphonse Mabilde,que conviveu com os índios Coroados entre 1836 e 1838, eram “repartidose divididos em territórios correspondentes, em tamanho, ao número de in-

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divíduos que compunham as tribos”. Os limites de cada território eram“assinalados na casca de um pinheiro que serve de marco de divisa. A cascaé cortada com um machado de pedra para fazer a marca de cada tribo”(MABILDE, 1983, p. 126).

Os conflitos decorrentes da quebra das regras dessa divisão, com fre-quência violentos, causavam mortes entre os habitantes, mas preservavamo ambiente. Mabilde descreve os motivos dos conflitos, entre eles a invasãoou quebra das regras de divisão dos pinheirais entre os grupos: “a invasãode outra tribo para esse fim é motivo para uma guerra de extermínio para aqual são convocadas todas as demais tribos” (MABILDE, 1983, p. 127). Osconflitos pela disputa da araucária entre os indígenas revelam, por outrolado, a ampla dimensão espacial utilizada por eles no manejo do território.Tal situação revela a centralidade das araucárias na organização espacial,social e política dos antigos habitantes do tronco linguístico Jê, que seriamdenominados, no século XIX, de Kaingang. A organização do espaço, apartir da presença das araucárias, indica a força dessas árvores na organiza-ção social e política dos povos indígenas. Não é a ideia de propriedade daterra que prevalece nesses casos, mas sim o direito à coleta nos pinheirais.Consequentemente, os pinheiros é que orientavam o uso do território eimpediam qualquer outra utilização que os prejudicasse. A noção de pro-priedade individual era inexistente, e a terra e os recursos ambientais eramde uso coletivo pelas parcialidades.

A fauna variada permitia a caça relativamente abundante. Mabildefaz referências aos animais que serviam de alimento dos Coroados e eramassados inteiros diante da falta de instrumentos para trinchá-los, segundoobserva o autor. Entre os animais citados, com as respectivas identificaçõescientíficas feitas pelo próprio autor, encontramos o porco do mato (Tayassutajacu), a anta (Tapirus terrestris), o coati (Nasua narica), o macaco (gêneroSimia), o bugio (gênero Alouatta), a paca (coelogenis paca), o tatu (dasypus), acapivara (hydrochoerus capybara). Entre as aves, Mabilde cita a preferênciapelo papagaio (MABILDE, 1983, p. 123/125). Esses animais seriam gra-dativamente eliminados pelo avanço da colonização, sendo subtraídos dadieta alimentar indígena. Além da caça e da coleta do pinhão, o cardápioindígena incluía milho, feijão, abóboras e a mandioca, plantada em peque-nas roças. “No tempo do pinhão, a caça de aves era preferida, mas, duranteo resto do ano, quando não havia pinhão para colher e as roças não esta-

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vam maduras, os indivíduos e os grupos ficavam longo tempo caçando nosmatos, pescando e colhendo mel e larvas” (SCHMITZ, 2009, p. 53).

A forma de interação dos indígenas com o ambiente foi abruptamen-te quebrada quando os primeiros colonizadores foram fechando os espa-ços, desorganizando o manejo do território de coleta de pinhão e restrin-gindo o acesso às demais dádivas da floresta. “O sistema desfez-se na medi-da em que as frentes de expansão colonizadora penetraram no território ese apossaram dele, confinando os Kaingang nas reservas, onde os recursosambientais vão se tornando mais pobres frente ao crescimento populacio-nal” (SCHMITZ, 2009, p. 54).

As reservas indígenas, criadas após uma série de acordos com o go-verno em meados dos anos 1800, caracterizam o fim de uma forma de usodo território e de interação com a natureza. O confinamento dos povosindígenas remanescentes os salvou do extermínio, mas destruiu definitiva-mente todo um sistema de interação entre os humanos e o meio ambiente.Em espaços reduzidos, essa população não poderia mais prosseguir domesmo jeito que andou por séculos e séculos. As araucárias não tiverammelhor sorte. Depois de alimentarem os indígenas por séculos com seusfrutos, foram derrubadas pelos europeus, mais interessados em sua madei-ra do que em suas pinhas. Algumas áreas de araucárias nativas foram pou-padas em poucas unidades de conservação. Estabelecidos e consolidadosos acordos de paz e a delimitação de reservas indígenas, um imenso territó-rio florestal ficou livre para ocupação por outros grupos.

Os campos e os novos animais

Um dos impactos da maior relevância no meio ambiente do Planaltoocorreu quando os sacerdotes europeus da Companhia de Jesus introduzi-ram gado vacum, muar, cavalar e ovinum a partir do final do século XVI.Parte do Planalto era coberto por campos nativos propícios para a criaçãode gado; diante da abundância de pastagens, os animais se multiplicaramrapidamente. Com a destruição das primeiras reduções jesuíticas, no sécu-lo XVII, pelos bandeirantes paulistas, o gado vacum foi abandonado à pró-pria sorte e os animais se incorporaram ao ambiente, formando a famosaVacaria dos Pinhais.

Diante da nova conjuntura política do século XVIII, que pôs fim aodomínio dos jesuítas na região, a possibilidade de arrebanhar e criar esses

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animais nos campos do Planalto trouxe um nova onda de imigração depessoas ligadas ao mundo europeu. Os campos foram apropriados por umgrupo social poderoso, com respaldo do governo português e, depois, brasi-leiro, que estabeleceu estâncias pastoris e assumiu o poder político e militarregional. Coube a esses criadores de gado a introdução de trabalhadores deorigem africana, aprisionados naquele continente e submetidos à escravi-dão nos estabelecimentos pastoris. Muitos deles fugiam para a floresta, ondede alguma forma interagiam com os indígenas e demais habitantes de ori-gem europeia, transformando-se em camponeses.

Do ponto de vista da ocupação do espaço, as estâncias de gado de-ram origem a latifúndios pastoris. O pastejo sistemático de milhares de va-cuns e muares expulsou ou reduziu a área dos animais nativos, ocupantesdo campo. Ocorreu uma substituição dos animais nativos utilizados comoalimentos, citados anteriormente, por animais trazidos da Europa e criadosde forma domesticada e organizada. Essa mudança tem significados enor-mes do ponto de vista ambiental, mas também na estratégia alimentar.William Cronon destaca esse fenômeno como de fundamental importân-cia para analisar as diferenças entre os nativos e os colonizadores europeusna Nova Inglaterra. A relação dos indígenas com os cervos, alces e castoresera muito diferente da relação dos europeus com suas vacas, ovelhas e por-cos. Enquanto os índios “tinham que contentar-se com a queima da flores-ta, concentrando sua caça nos meses de outono e inverno, o inglês procu-rou total e muito mais controle durante todo o ano sobre a vida dos seusanimais” (CRONON, 1983, p. 128).

Além dos animais de pastoreio citados, os colonizadores europeustrouxeram várias outras espécies, entre as quais o porco, que merece desta-que pois assumiria um lugar fundamental nas áreas de colonização forma-das sobre a floresta. Os colonos que derrubaram as florestas ao longo dosséculos XIX e XX fariam da banha de porco o principal item de comercia-lização com o mercado (ROCHE, 1969).

2 Os ervateiros e a erva-mate

A erva-mate é a planta-chefe de uma nova fase de ocupação da flores-ta por novos grupos de imigrantes e de reorganização do espaço florestal,tanto do ponto de vista político-institucional como ambiental. A Ilex para-

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guariensis (SAINT-HILAIRE, 1823) crescia em forma de manchas esparsasno interior da floresta, que deram origem aos chamados ervais, assim des-critos por um engenheiro em missão de reconhecimento do território em1859: “A erva se apresenta em ceboleiras ou manchas (como vulgarmentese diz) em toda essa extensão, e onde essas ceboleiras são maiores e maispuras, isto é, onde predomina quase exclusivamente a árvore do mate tor-na-se um erval” (Miranda, 1859). Além dos ervais propriamente ditos, ca-racterizados pela densidade significativa da planta, ela crescia de formaesparsa em diversos locais.

O mate ocupava, em meados do século XIX, o segundo lugar emimportância econômica para a Província de São Pedro, logo abaixo dosprodutos da pecuária. Uma rede intensa de comércio de mate com os paí-ses do rio da Prata foi estabelecida, e milhares de arrobas saíam anualmen-te dos engenhos da região, rumo a Buenos Aires, Montevidéu e outros mer-cados da região da campanha rio-grandense. O mate foi a alternativa eco-nômica para milhares de lavradores pobres, que foram invadindo gradati-vamente as matas, descobrindo ervais e estabelecendo roças de subsistênciapor toda parte. Um relatório de 1859 indica a condição de lavrador pobredo coletor de erva-mate: “[...] e porque no seu fabrico ela não exige capitalalgum, visto a árvore apresentar-se silvestre e não necessitar de trabalhado-res de cultura, ela atrai de preferência a população pobre dos municípiosonde existem ervais” (MIRANDA, 1859).

Os ervateiros ocuparam o território de forma mais ou menos espon-tânea, seguindo uma tradição de livre circulação pelas florestas do país.Hemetério Velloso da Silveira, cronista que viveu na região, nas décadas de1850 e 1860, escreve sobre a descoberta e exploração dos ervais do CampoNovo, nas proximidades do rio Turvo, dando uma ideia do que eles signifi-cavam na época. O autor observa que os primeiros aventureiros “ficaramdeslumbrados com a grande quantidade de erva-mate e deram-se, sem des-canso, ao trabalho de colher e transportar quanta puderam” (SILVEIRA,1979, p. 327). Em seguida, diante da fama dos ervais da localidade, ocorreuforte migração: “Começou também a vir da fronteira, para onde era vendi-da essa erva, uma emigração, que de ano em ano quase duplicava. Nacio-nais, estrangeiros (europeus, asiáticos e de todas as procedências) aí vinhamlevantar suas tendas e carijos, indo vender seus produtos para o rio da Pra-ta” (SILVEIRA, p. 328).

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É interessante, para a compreensão do tema, destacar a importânciaalimentar da erva-mate. Descoberta pelos povos indígenas, consumida comochá na dieta diária dos Guarani, foi amplamente disseminada em todo oterritório da bacia do rio da Prata e, mais tarde, foi adotada pelos portugue-ses e espanhóis, atingindo o Chile e o Peru. Temístocles Linhares, em seuclássico estudo sobre a história do mate, escreve:

Perdendo-se na noite da pré-história americana, o que se sabe, portanto,com segurança, é que ele era elemento básico da alimentação dos guaranis,cuja tribo se espalhava pelo vasto território banhado, sobretudo, pelos riosParaná, Uruguai e Paraguai. Outras tribos, porém, em cujas terras a plantanão medrava, realizavam ativo comércio de troca com a bebida, cujo trans-porte era feito por milhares de quilômetros, através de difíceis caminhos,que atravessavam muitas vezes os Andes para chegar à Bolívia, ao Peru e aoChile (LINHARES, 1969, p. 3).

Ervais de uso comum

O mais importante em relação ao acesso aos ervais era sua condiçãode terra pública, de uso comum, de “servidão coletiva” (NASCIMENTO,2009; ZARTH, 1997). O regulamento das câmaras municipais dos municí-pios da região ervateira estabelecia legalmente essa condição, pois permitiao acesso aos ervais por parte desses camponeses pobres da região. Colhererva-mate era uma das poucas possibilidades de obter renda para compraros produtos necessários à sobrevivência, para além da mera alimentaçãoque poderia ser obtida de suas pequenas lavouras. O artigo 41 do Código dePosturas do município de Santo Antônio da Palmeira expressava claramenteo caráter comum dos ervais estabelecidos pelo costume: “São consideradoscomo públicos todos os ervais deste município que estiverem descobertos oupossam se descobrir em terrenos devolutos, onde se poderá colher a erva-mate em comum” (grifo nosso) (CÓDIGO, 1875). Outras fontes tambémconfirmam essa condição (SILVEIRA, 1979; CASTRO, 1887).

A condição camponesa dos coletores de mate está explícita no Códi-go de Posturas através de uma série de artigos que exigem cuidados com asroças de subsistência localizadas próximo aos ervais. Considerando que atradicional agricultura de coivara era corrente na região, os riscos de incên-dios eram frequentes. Para evitar esse problema, os lavradores deveriamisolar a roça do erval através de uma área limpa (aceiro), impedindo a pro-pagação do fogo: “É proibido fazer roças contíguas a ervais, ou em matos

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onde tenha erva e queimá-las sem ter feito um aceiro pelo menos de setemetros bem limpos para impedir incendiar-se o erval. Entende-se por lugarcontíguo ao erval, distante da roça ao menos quinhentos metros” (CÓDI-GO, 1875).

Como forma de estímulo aos ervateiros, o artigo 50 dava preferênciade utilização do erval para quem observasse plenamente o regulamento:“Toda pessoa que tiver e possa conservar limpos ervais nos matos devolu-tos tem especial preferência no fabrico da erva-mate, de conformidade como disposto nos artigos 42, 43, 44, 45 e seus parágrafos do presente código”.

Os ervais nativos foram descritos detalhadamente em diversas fon-tes. O relatório do engenheiro Francisco Nunes de Miranda (1859) é umdos mais claros documentos sobre a condição, localização e problemas ine-rentes ao extrativismo. Nele está confirmada a condição pública de usocomum desses ervais, forma com que o autor não concorda, pois crê que aprivatização resolveria os problemas de degradação. Ele era da opinião deque os ervateiros seriam os responsáveis pela ruína dos ervais, pela falta decuidado com as regras estabelecidas para preservar a integridade da planta.Entretanto, o relatório admite que essa forma coletiva e de livre acesso erauma das poucas possibilidades de trabalho e renda para a população pobre.

A roça de coivara foi uma das principais características desse grupo,seguindo a tradição brasileira (DEAN, 1996). Esse sistema de cultivo, numaperspectiva histórica, é comum em diversas partes do mundo (MAZOYERe ROUDARF, 2010). A produção agrícola limitada aos níveis de subsistên-cia e a relativa abundância de terras permitiam sem grandes transtornos aadoção do sistema de rotação de terras, com aproveitamento da fertilidadenatural do solo. Durante quase todo o século XIX, essa forma de ocupaçãoe uso das terras seguiu com certa normalidade. Derrubar mato, queimar,plantar, colher e, depois de poucos anos, deixar em pousio até que a florestase recuperasse constituía a fórmula tradicional de fazer lavoura na região.

O extrativismo da Ilex paraguariensis

O extrativismo exigia uma série de cuidados para um manejo ade-quado. Para tanto, o já citado Código de Posturas regulamentou o extrati-vismo, com especial cuidado às condições da planta. Não se sabe exata-mente a origem do código, mas ele revela que os autores tinham grandeconhecimento sobre o ciclo vegetativo da planta e as suas exigências para

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aguentar os efeitos da poda. Ao mesmo tempo, revela os cuidados com oentorno do erval, onde eram implantados roçados de subsistência. É prová-vel que o manejo do erval tenha sido um conhecimento passado dos povosindígenas para os camponeses ervateiros por meio de inúmeras formas decontato entre as duas culturas, lembrando que parte dessa população des-cendia diretamente daqueles. Um cronista local confirma essa ideia: “Oervateiro, que vive unicamente do fabrico de erva-mate pelo sistema primi-tivo transmitido pelos guaranis, é um homem sem nenhuma instrução; nageneralidade indolente, cultivando algum milho e feijão” (grifo nosso) (CAS-TRO, 1887, p. 228). Demersay, em seu estudo sobre a erva-mate do Para-guai, observa que “os procedimentos seguidos na fabricação do mate noParaguai, como nas províncias brasileiras do Rio Grande e do Paraná, sãoquase idênticos” (1867, p. 16).

O processo de preparo da erva em plena floresta ainda indicava co-nhecimento ambiental e a estreita relação do extrativismo com a mata. Ocarijo, uma instalação para a secagem do mate, era todo construído median-te o uso de produtos da floresta ou adjacências. Quatro esteios e um estradode madeira com uma cobertura de capim eram suficientes para montar ainstalação. Escolher as madeiras certas para aguentar o calor do fogo e aslenhas para fazer o fogo era uma tarefa de “experts” no assunto: “No fogo,que deve ser lento, empregam-se madeiras verdes e grossas como: a taru-mã, guabirobeira, a pitangueira do mato, a cerejeira, a cabriúva, o araçazei-ro e o guabeju para que a fumaça deixe a erva impregnada de um cheiroagradável e gosto menos amargo” (SILVEIRA, 1979, p. 140). Os cestos detaquara, usados para transporte da erva até os engenhos, também se basea-vam nos taquarais nativos e na habilidade para trançar cestos.

Manejo dos ervais e da floresta

Os ervateiros foram duramente criticados pelo fato de queimarem afloresta, utilizando o tradicional sistema de coivara. “É de lastimar ver-sederrubar matas de madeira de lei para roças, inclusive os pinhais que tantafalta vão fazer às gerações futuras” (CASTRO, 1887, p. 231). Da mesmaforma, eram criticados por arruinarem os ervais por não seguirem as regrasdo regulamento. De fato, as fontes indicam inúmeras fraudes e descuidoscom os ervais. A existência do regulamento com suas sanções indica quepráticas predatórias eram comuns e precisavam ser controladas. No entan-

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to, é de se pensar que o antigo extrativismo indígena obedecia à tradição decolher e depois deixar descansar o erval por anos e anos, até recuperar suacondição de produção. A inserção do extrativismo no mercado do mate fezcom que os camponeses e, inclusive, muitos indígenas exaurissem os ervaispara dar conta da demanda.

O cultivo da erva, organizado por empresas e proprietários em terre-nos privados, delimitados a partir de planejamento de médio e longo prazo,seria algo novo e estranho às práticas locais. Os indígenas, de certa forma,planejavam em longo prazo, mas numa dimensão espacial muito maior esem as pressões econômicas do mercado, deixando a natureza se encarre-gar de revigorar o erval. Tais práticas eram as mesmas das roças: perdida afertilidade natural, abria-se uma nova roça em novo local, e assim sucessi-vamente.

O esgotamento dos ervais nativos pelo manejo inadequado afetou aprodução e o comércio. Castro observou que “a erva-mate foi e ainda é oramo de maior exportação do município e chegou atingir uma cifra enor-me, de milhares de arrobas anualmente, mas a imperfeição no fabrico e omau acondicionamento fez decair este produto” (CASTRO, 1887, p. 76).Outros documentos e opiniões de cronistas informam que a Província doParaná instituiu novas tecnologias e novas formas de inserção nos merca-dos da bacia do Prata, superando os ervateiros da região Noroeste do RioGrande do Sul (COUTY, 1880). Os mesmos cronistas anunciavam a neces-sidade de cultivo da erva-mate, mas tais iniciativas só seriam colocadas emprática tempos mais tarde.

Os ervateiros e o mercado dos camponeses ligados ao extrativismode mate não estavam isolados do mercado nacional ou internacional. Osregistros históricos e informações de cronistas revelam uma rede intensa decomércio entre a região produtora e países do Prata. A presença de empre-sários estrangeiros europeus era comum na região. Para os camponeses erva-teiros, o mate era uma das poucas possibilidades de adquirir mercadorias.Roupas, ferramentas de trabalho e alimentos eram comprados com recur-sos da venda do mate. No inventário post mortem do francês Luís Perié,proprietário de um engenho de erva-mate e de uma casa comercial no rioSanto Cristo, percebe-se o consumo desses produtos na lista de devedores.O mate servia como moeda de referência, pois anotava-se em produto ovalor da mercadoria comprada na loja do empresário. O engenheiro Mi-

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randa anotou, em seu relatório, que, “habituados a este gênero de comér-cio, a erva figura muitas vezes nas permutas dos erveiros como meio circu-lante e eles compram os outros gêneros de que necessitam a troca de ervaque hão de fabricar” (MIRANDA, 1859).

As evidências nos documentos indicam que os extrativistas estavamsubmetidos ao controle dos proprietários de engenhos de mate, que finali-zavam o processo de elaboração do produto e o enviavam para o mercado.De qualquer forma, o importante é registrar a dimensão camponesa doextrativista na medida em que sua atividade estava ligada à produção desubsistência da família do ervateiro.

A origem do camponês extrativista de mate é múltipla e decorre dasdiferentes fases de ocupação do território por grupos diferentes. Inicialmente,devemos considerar os habitantes indígenas Guarani e Kaingang, que ocu-pavam a região de longa data. O contato com europeus de origem ibérica seintensificou, no século XIX, com a chegada de soldados para a defesa doantigo território das Missões e com o aumento do comércio de mulas atra-vés das tropeadas para as feiras de Sorocaba, em São Paulo. Os indígenaslocais, depois de décadas de confrontos e resistências, acabaram por fazeruma série de acordos de paz com o governo, dando origem às diversas Ter-ras Indígenas atuais. A bibliografia indica os ervais como área de refúgiopara desertores e fugitivos da justiça. Acrescente-se a presença de milharesde africanos trazidos na condição de escravos para diversas atividades, prin-cipalmente para trabalhar na criação de gado nas grandes propriedades. Osdenominados caboclos podem ser também indígenas destribalizados que seestabeleceram como camponeses independentes.

A roça dos ervateiros

Uma das mais significativas obras a respeito da região foi escrita porEvaristo Affonso de Castro, jornalista que descreve vários aspectos da agri-cultura. A primeira observação se refere ao desmatamento:

Depois que os ervateiros concluem a safra de erva, que comumente é pelaentrada do verão, vão então preparar terras para a cultura de cereais, e, paraesse fim, procedem da maneira seguinte: o que quer fazer uma roça e derru-bada de matos convida a todos seus vizinhos e amigos para um putchirão,em dia determinado para cujo efeito, pelo hábito transmitido a eles pelosguaranis, todos se prestam voluntariamente no dia aprazado e se apresen-tam todos munidos de suas foices de roça e machados, e no dia seguinte de

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madrugada começam o trabalho com afam, trabalhando todos em comum,cada um no seu eito, durante todo o dia, cada qual empenhando-se em dis-tinguir-se dos outros no trabalho; ao por do sol concluem com o putchirão ese dirigem ao paiol, onde os espera uma lauta ceia com bebidas alcoólicas eum carramanchão ornado de muitas moças, para o fandango, acompanha-do de canto em dueto de melodias melancólicas usadas pelos sertanejos (CAS-TRO, 1887, p. 278).

Na sequência, o cronista do século XIX descreve o sistema de cultivodos ervateiros da seguinte forma:

O nosso agricultor, depois de derrubar a maxado e foice o mato, deixa-nosecar e então prendem-lhe fogo, logo que caem as primeiras chuvas, fazem aplantação, cavando a terra com um pau chamado saraquá, depositam nesseburaco a semente que trazem consigo no embornal a tiracolo, que chamamsamburá, feito isso a roça não demanda mais trabalho senão no tempo dacolheita (CASTRO, 1887, p. 280).

3 Os colonos e a agricultura

As araucárias, a erva-mate e o capim dos campos nativos influencia-ram as pessoas para determinada organização do espaço. Uma nova fase,que inicia no final do século XIX, estava centralizada nos interesses da co-lonização, que jogou a agricultura contra a floresta. Os colonos, com basena propriedade privada de pequenos lotes de terra, passaram a ver a florestacomo um estorvo, algo a ser destruído a ferro e a fogo, como diria WarrenDean (1996). No seu lugar, o colono poderia plantar cereais, como o milhoe trigo.

A organização espacial, em muitos casos, passou a ser determinadapelo mapa quadriculado e numerado desenhado no gabinete de um enge-nheiro. Em alguns casos, o projetista não considerou a hidrografia e o relevo,delimitando “linhas coloniais” no sentido norte-sul ou leste-oeste, formandoretângulos do modo mais exato possível. Embora esse equívoco não fosserepetido em todos os lugares e corrigido depois de certo tempo nas colôniasposteriores, ele nos dá uma ideia de como alguns agentes da colonizaçãoentendiam o meio ambiente. No caso da colônia Guarani, fundada em 1891entre os rios Comandaí e Ijuí, que citamos como exemplo, Nilo Bernardesobserva:

As consequências prejudiciais de um sistema tão irracional como este, sãofacilmente previsíveis: o relevo e a hidrografia não são levados em conside-

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ração, resultando assim que grande número de lotes ficam inteiramente des-providos de água, enquanto outros situam-se em condições topográficasdesfavoráveis em extremo. Considerem-se ainda os fortes declives e as nu-merosas passagens de cursos d’água a que as estradas ficam sujeitas, segun-do o plano original, e ter-se-á ideia dos inúmeros tropeços que o sistemaacarreta (BERNARDES, 1950, p. 34).

A destruição da floresta pela agricultura foi sobretudo uma decisãode política pública deliberada. A ruptura com os sistemas anteriores e oforte impacto ambiental da agricultura no RS e no Planalto em particular,no final dos anos oitocentos, foi decorrente de uma nova concepção denatureza e de política agrária. A colonização do território por milhares decolonos imigrantes foi precedida de um discurso laudatório amplamentedifundido com base na ideia de progresso e de civilização. Os discursos sãofacilmente encontrados nas inúmeras publicações e em periódicos da se-gunda metade do século XIX.

Gerhardt, em sua pesquisa sobre a colônia Ijuhy, um dos primeirostítulos da historiografia ambiental do Planalto, sintetizou o pensamentoprovavelmente dominante entre as pessoas envolvidas com a colonização eque serve de exemplo para o conjunto do processo colonizador do Planalto:

Os administradores e talvez parte da população entenderam a Colonia Ijuhycomo um espaço destinado ao progresso, com características especiais, fa-voráveis ao desenvolvimento econômico, em que a natureza era, ao mesmotempo, útil e um empecilho. Útil como fornecedora de matérias-primas, demadeira para construção, de lenha para fogões, fornos e para o preparo daerva-mate, de força hidráulica, de caça, de pesca, de argila para produção detijolos e telhas e como terra fértil que podia ser cultivada. Empecilho en-quanto floresta que precisava ser removida para ceder lugar aos cultivos,ambiente que abrigava plantas e animais considerados daninhos ou perigo-sos (GERHARDT, 2009, p. 152).

Outra característica dos projetos de colonização é que eles foram apre-sentados detalhadamente, com mapas, nomes e inúmeras informações re-levantes para a pesquisa histórica. O projeto da colonização era esquadri-nhar o território e transformá-lo em pequenas propriedades agrícolas. Omapa do território se transformou num grande tabuleiro de xadrez. Eisnesse aspecto uma primeira e fundamental diferença: as terras florestais deuso comum historicamente utilizadas pelos povos indígenas, e em boa par-te pelo ervateiros, passaram ao domínio privado.

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Agricultura moderna

Tomando os textos produzidos por cronistas, governantes e funcio-nários encarregados das políticas públicas no Rio Grande do Sul como exem-plo, percebe-se uma forte crítica contra o que se chamava de agriculturarotineira e tradicional. Como alternativas, os críticos apontavam a imigra-ção de camponeses europeus, a distribuição de terras em pequenos lotes e acriação de escolas agrícolas para difundir “técnicas modernas”. Em 1822,Antônio Gonçalves Chaves sugeria a adoção do movimento agronômicoeuropeu para difundir novas técnicas e trocar experiências, seguindo o exem-plo dos “povos cultos”. Sugeriu a criação, em cada província, de Sociedadesde Animação da Agricultura que deveriam “se corresponder entre si, co-municando seus respectivos projetos e planos para o bem da agricultura”(CHAVES, 1978, p. 94).

No final do século XIX, as recém-criadas revistas de divulgação detecnologia agrícola, como a Revista Agrícola do RGS, por exemplo, condena-vam a agricultura pelo seu suposto atraso tecnológico e ignorância dos agri-cultores. Num artigo de 1897, um agrônomo sugeria como solução a imi-gração europeia, escolas agrícolas, “publicações oficiais instrutivas sobreagricultura, maquinaria moderna e rede de transporte rodoviário e ferro-viário. Tudo isso levaria ao adiantamento do progresso” (Revista Agrícola doRio Grande do Sul, 1897, p. 7).

O que se constata com frequência nos textos de periódicos do séculoXIX é um desprezo muito grande pelos agricultores tradicionais do Sul doBrasil, com forte conotação racista, atribuindo-lhes ignorância e vadiagem.Tais adjetivos pejorativos são geralmente apresentados como contrapontoao colono europeu, portador de supostas qualidades positivas; como dedi-cação ao trabalho e conhecimentos técnicos para o desenvolvimento daagricultura.

Este fragmento do texto publicado num periódico de 1884 a respei-to da suposta precariedade da agricultura regional é um exemplo repre-sentativo:

A principal causa deste fenômeno não pode ser outra senão a indolência eignorância em que vegeta essa classe industrial, da ignorância absoluta dosprincípios teóricos de agronomia, e dos melhoramentos e aperfeiçoamentosque tem sido introduzidos até o presente nesta indústria. A indústria agríco-la é por enquanto exercida aqui entre nós, em sua quase totalidade, pelo pro-letariado, e também pela escória das sociedades (UFLACKER, 1884, p. 100).

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Em relação às práticas agrícolas, o autor condena veementemente aspopulações tradicionais:

Mas se quisermos atingir a tão almejado fim, devemos em primeiro lugar,banir de nossa lavoura toda aquela antiquíssima e bárbara rotina que estáainda em uso entre nós, rotina herdada em parte dos nossos avoengos dacolônia portuguesa; e em parte dos nossos aborígenes da raça Tupi ou Gua-rani (UFLACKER, 1884, p. 100).

A crítica do cronista, contraditoriamente, também se estende aos co-lonos imigrantes europeus, os quais eram apresentados como solução parao avanço e o progresso da agricultura. O autor faz uma advertência proféti-ca do ponto vista ambiental:

Precisamos acabar com o pernicioso sistema das grandes derrubadas dematos virgens, para o cultivo de milho e feijão por que a destruição dosmatos pelo machado e o fogo como é praticado aqui entre nós, não só reduza campo esterilizando a terra, como também com o decurso do tempo e ocrescimento progressivo e natural de nossa população e ainda mais, com aprovável criação de alguns núcleos coloniais de imigrantes estrangeiros, quevirão se estabelecer aqui seduzidos pelas nossas ubérrimas terras com certe-za matemática em menos de meio século terão desaparecido desta ricaregião todas as florestas virgens que a ensoberbecem (UFLACKER, 1884,p. 100) (grifo nosso).

Essas observações dos cronistas foram realçadas por diversos cien-tistas sociais que trataram da história da agricultura do Sul e tiveram sig-nificativa influência na historiografia. Jean Roche afirma que o palito defósforo foi o instrumento predileto dos colonos alemães: “Nas colôniasalemãs do Rio Grande do Sul, como no resto do Brasil, foi a caixa defósforos o instrumento de cultura favorito” (1969, v. 2, p. 288). Mesmoassim, Roche elogia a qualidade dos colonizadores europeus, diante dapopulação camponesa tradicional, associando-os às concepções de espíri-to do progresso (1969, p. 5).

O geógrafo Leo Waibel é notável pela sua influência no mundo aca-dêmico, pois foi autor de importantes contribuições teóricas para a geo-grafia agrária de seu tempo, apesar da forte marca eurocêntrica de seusescritos. Em seus estudos sobre a agricultura brasileira e do Rio Grandedo Sul em particular, refere-se aos agricultores tradicionais como incapa-zes de desenvolver o progresso e afirma que “vegetam numa vida inútil”(1979, p. 304). A obra de Waibel e outros que seguem esse raciocínio éinspirada no modelo de ocupação das terras da fronteira agrícola do Oes-

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te dos Estados Unidos da América do Norte, na qual a conhecida figurado pioneiro é louvada. O conceito de “zona pioneira” utilizado pelo geó-grafo expressa nitidamente uma visão de progresso e se constitui quandoocorre uma rápida expansão da agricultura:

De uma zona pioneira em geral, só falamos quando, subitamente, por umacausa qualquer a expansão da agricultura se acelera, quando uma espécie defebre toma a população das imediações mais ou menos próximas e se iniciao fluxo de uma forte corrente humana. [...] Então os preços das terras ele-vam-se vertiginosamente, as matas são derrubadas, casas e ruas são construí-das, povoados e cidades saltam da terra quase da noite para o dia e umespírito de arrojo e de otimismo invade toda a população (1979, p. 282).

Apesar da apologia ao colono europeu, Waibel também critica suaspráticas agrícolas como danosas ao ambiente, afirmando que seguiram emboa medida as práticas dos nativos, baseadas na rotação de terras. O geó-grafo germânico, referindo-se aos colonos alemães empobrecidos, relata queviu em sua viajem de estudos “um número de caboclos europeus surpreen-dentemente elevado, mesmo nas colônias que há 25 anos eram considera-das colônias modelo” (WAIBEL, 1979, p. 252).

As pesquisas de Roche e Waibel, apesar da apologia aos colonos eu-ropeus, indicam que estes não contribuíram para o desenvolvimento de umaagricultura ambientalmente menos impactante. Roche observa que a agri-cultura se expandiu através da devastação da floresta: “A importância capi-tal dos desbravamentos pode ser avaliada pela extensão das áreas cultiva-das, visto que o crescimento das áreas de cultura corresponde exatamenteao da derrubada” (ROCHE, 1969, p. 53). No entanto, salientam com ênfa-se a colonização como progresso agrícola no seu conjunto e, de certa for-ma, induziram outros pesquisadores a seguir esse caminho.

Em relação à agricultura dos colonos, as práticas predatórias foramevidentes, com o agravante de não terem o espaço para realizar rotação deterras: a roça de coivara exauriu o território de sua fertilidade natural empoucas décadas. Queimadas, mutirão, rotação de terras foram praticadaspelos colonos em lotes relativamente pequenos, que inviabilizavam tais prá-ticas, como bem demonstrou o geógrafo Leo Waibel em seu minucioso es-tudo sobre os sistemas de cultivo dos colonos alemães.

Evidentemente, tal forma de cultivo só era viável em áreas suficiente-mente amplas, que permitissem o pousio dos terrenos devastados por longoprazo. Nos lotes coloniais, normalmente com 25 hectares, isso era impossí-

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vel. Segundo os cálculos de Waibel, a área mínima (minimale Ackernahrung)deveria ser de pelo menos 55 hectares em terras de boa qualidade e 80 nasde pior qualidade (1979, p. 253/57). Diversos autores que trataram da his-tória agrária da região com certo rigor acadêmico demonstram que os siste-mas de cultivo, até meados do século XX, eram, na maior parte dos casos,baseados no uso da fertilidade natural do solo, com rotação de terras epousios. Tal atitude não pode ser atribuída à ignorância dos colonos imi-grantes, pois tinham contato com técnicas modernas. Assim, esses procedi-mentos podem ser atribuídos às circunstâncias econômicas e ambientais.Tais sistemas foram viáveis para os povos indígenas durante séculos e tam-bém para os ervateiros.

Diante dessas aparentes semelhanças entre lavradores nacionais ecolonos, cabe questionar quais seriam as diferenças entre os colonos imi-grantes e a população tradicional. Uma explicação bastante plausível é ade Telmo Marcon em seu estudo sobre os caboclos na fronteira dos esta-dos de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul. O autor critica Roche eEmílio Willems por nivelarem os imigrantes aos índios e aos caboclos noque se refere ao desmatamento e às queimadas. Tais considerações, diz oautor,

são equivocadas, porque não atentam para os modos de vida distintos. Éfundamental diferenciar a economia de subsistência dos caboclos, onde asderrubadas eram realizadas de acordo com as necessidades para produzir esobreviver e, às vezes, para a produção de alguns excedentes, da economiamercadológica – dos colonos – onde a produção de excedentes era uma ne-cessidade. No segundo caso, o excedente era fundamental para a obtençãode recursos a fim de honrar os compromissos assumidos por ocasião dacompra dos lotes de terra (MARCON, 2003, p. 301).

O argumento do autor se inscreve numa linha de investigação queatribui ao mercado um efeito inexorável sobre as populações de determina-do território. De fato, um dos indícios da destruição dos ervais nativos pe-los ervateiros, se consideramos verdadeiras as críticas dos cronistas e auto-ridades municipais, é justamente o aumento da exploração do mate para omercado. O estímulo do mercado pode ter colaborado com força para de-sarticular o modo de vida da população tradicional. Do mesmo modo, adevastação dos pinheirais deve muito ao mercado da madeira.

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Ferrovias e serrarias

Do ponto de vista ambiental, é marcante a estrutura tecnológica mon-tada para derrubar a floresta com base nas serrarias, ferrovias e rodovias. Orio Uruguai também foi utilizado como via importante para escoar mi-lhões de troncos de árvores na forma de balsas. A ferrovia, vinda do centroferroviário de Santa Maria, chegou a Cruz Alta, no coração do Planalto,em 1894, em seguida alcançou Passo Fundo e, um pouco mais tarde, afronteira com Santa Catarina, ligando o Rio Grande com São Paulo. Ra-mais rumo ao Noroeste ampliaram a capacidade logística dos colonos des-sas áreas (Ijuí em 1911, Santo Ângelo em 1924). O Leste do Planalto rece-beu uma linha férrea em 1910, ligando-o à capital da província.

Liliane Wentz, em Os caminhos da madeira: região Norte do Rio Grandedo Sul 1902-1950, informa detalhadamente sobre a multiplicação das serra-rias do município de Passo Fundo naquele período, que “colocaram abaixopinheirais centenários; foi uma atividade que produziu importante rique-zas para empresas e famílias” (WENTZ, 2004, p. 71). As 34 serrarias de1906 evoluíram para mais de 300 em 1930, somente na área daquele muni-cípio. Destaca-se, nos dados da autora, o largo predomínio do pinho nasexportações de madeira, seguido do cedro. A enorme produção de madeiraera escoada principalmente pela ferrovia, que, em diversos momentos, nãoconseguia dar conta do volume produzido, motivando reclamações dos ma-deireiros e pedidos de mais vagões (WENTZ, 2004). Como vimos acima,os indígenas protegiam os pinheirais e o pinhão que lhes servia de alimen-to; os colonos e os madeireiros, por sua vez, viram na madeira do pinho suaimportância maior. Derrubando os pinheirais, destruíram também a im-portante base alimentar e a forma de organização espacial dos Kaingang.Da mesma forma, dezenas de espécies de animais que sobreviviam do pi-nhão perderam seu hábitat natural.

Os governantes provinciais e intelectuais se manifestaram diversasvezes sobre a destruição desenfreada da floresta. Os regulamentos relativosà colonização, produzidos por agentes da diretoria de terras e colonizaçãodo Rio Grande do Sul do início do século XX, previam a preservação dospinheirais, dos ervais e das florestas de acordo com a topografia e os cursosd’água (CASSOL, 2003). No entanto, as leis parecem ter virado letra mor-ta: “Eram medidas isoladas e parcas, com pouco efeito prático”, comentaWentz (2004, p. 31). Faz sentido essa afirmação, pois os dados expostos

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pela autora sobre a exportação de madeira, pelas serrarias de Passo Fundoaté a década de 1950, indicam o largo predomínio do pinho, seguido docedro. As opiniões preservacionistas publicadas em periódicos parecem tersido abafadas pelos ruídos das serrarias.

Diferentemente das etapas anteriores, onde a interação com a natu-reza significava utilizar os recursos ambientais e manejar a floresta de talforma que esta pudesse se recompor, a colonização foi implementada comoutra concepção de natureza. A nova forma de organização do espaço combase em pequenas propriedades não permitiria os tradicionais pousios lon-gos das roças dos camponeses ervateiros e dos povos indígenas.

Conclusões

A revisão crítica da posição da história da agricultura no Rio Gran-de do Sul vem sendo reconstruída por novas pesquisas nos programas depós-graduação, revelando novas aproximações metodológicas entre cam-pos historiográficos, com destaque para a história ambiental. A históriados colonos é relativamente bem conhecida, sob vários aspectos, mas ain-da falta muito a aprofundar em relação aos impactos ambientais. Em re-lação aos povos indígenas e agricultores tradicionais, os ervateiros sobre-tudo, a história era marcada, até recentemente, pela condenação das suaspráticas sem uma reflexão consistente, especialmente do ponto de vistada história ambiental.

Justamente os colonos foram os maiores protagonistas de um enor-me impacto ambiental causado pela agricultura. Mas, sobretudo, é indis-pensável considerar esse fenômeno na perspectiva das políticas públicas fo-mentadas pela ideia de progresso, que revelaram desprezo pelo modo deviver e de produzir dos povos indígenas e dos caboclos. A concepção denatureza também contribuiu para a execução de um programa de coloniza-ção ambientalmente danoso, no qual a floresta era um estorvo e deveria serdevastada, ou deveria ser dominada por uma tecnologia considerada mo-derna. Tais ideias serviram plenamente para atender os interesse econômi-cos das companhias de colonização e do próprio Estado.

As populações tradicionais dedicadas ao extrativismo de erva-matecom suas roças de subsistência, assim como os povos indígenas, sucumbi-ram diante dessas políticas, que lhes reduziram drasticamente o espaço,

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inviabilizando seus modos de vida. Da mesma forma, centenas de espéciesda fauna foram eliminadas. Os animais de caça que serviram de alimentopara os nativos foram substituídos por animais domesticados. Plantas comoa erva-mate e a araucária, que durante séculos eram intocáveis pelas popu-lações nativas e centralizavam a sua organização socioespacial, perderamsua força, sendo substituídas por plantas domesticadas, tanto nativas comoexógenas. Esses problemas não passaram totalmente despercebidos dos agen-tes encarregados das políticas do Estado, que, para tanto, criaram propos-tas baseadas na ideia de reservas, com gente (as reservas para populaçõesindígenas) e ambientais, sem gente (os parques ambientais).

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História ambiental e transformaçãoda paisagem: metabolismo social

de três sistemas produtivos históricosdo Estado do Rio de Janeiro

Rogério Ribeiro de OliveiraJoana Stingel Fraga

Introdução: metabolismo social?

A definição da palavra metabolismo traz algumas luzes para o textoque ora se apresenta. Não são poucos os seus significados, que variam daescala celular ao de organismo, embora seja fundamentalmente estudadopela bioquímica. Na acepção mais corrente, metabolismo significa a somade todas as mudanças físicas e químicas em células vivas, pelas quais a ener-gia é fornecida para os processos vitais e novos materiais são assimilados.Estas reações são responsáveis pelos processos de síntese e degradaçãodos nutrientes na célula e constituem a base da vida, permitindo o cresci-mento e reprodução das células, mantendo as suas estruturas e adequandorespostas aos seus ambientes.

A palavra vem do grego meta- + ballein, que significa “atirar além”,ou seja, por analogia, uma estratégia para defesa e sobrevivência do orga-nismo. Ao se agregar o adjetivo social, o termo metabolismo social passa adesignar, dentro do corrente campo semântico, uma propriedade coletivade uma sociedade ou grupo com relação às entradas de energia e materiaisno seu sistema, provendo sobrevivência e permitindo que ela atire além, noque se refere aos usos dos recursos de energia e matéria disponíveis. Emúltima análise, o estudo do metabolismo social é uma ferramenta para secompreender os processos de (in)sustentabilidade(s) de uma sociedade emuma determinada época. Constitui, portanto uma forma de apreender alógica dos métodos de produção e relacionamentos sociais a partir dos flu-

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xos de energia e materiais retirados, transformados e devolvidos à natureza(CASADO e MOLINA, 2007).

Como visto, trata-se de um conceito elaborado a partir da biologia etransferido para o mundo das relações entre sociedade e natureza. É aplica-do às interações socioecológicas e sua característica é essencialmente meta-fórica e analítica (FISCHER-KOWALSKY e HABERL, 1998; MOLINA,2010; TOLEDO e MOLINA, 2007).

Segundo estes últimos,

[a] prática prevalecente nas ciências sociais considera os seres humanos comosituados no vazio, como se a satisfação de suas necessidades não os obrigas-se a usar, manipular e transformar a natureza; como se suas ações não tives-sem muitas vezes um impacto decisivo sobre ela. Esta postura tão comumevidencia uma desconexão insustentável da sociedade e sua base físico-bio-lógica, ou seja, com o mundo natural. Neste sentido, a maioria das teoriashegemônicas nas ciências sociais é tributária da ilusão metafísica da moder-nidade, que situa o homem separado da natureza, criando uma ficção antro-pocêntrica que persiste entre pensadores e nas mais avançadas correntes daciência contemporânea.1

Esta prática dominante pode, por vezes, trazer equívocos provocadospela falta de uma transdisciplinaridade que conjugue e promova visões in-tegradas entre as vertentes social e físico-biológica do ambiente. SegundoToledo e Molina (2007), deve-se reconhecer, nesse sentido, que nem todasas teorias que aparecem com o rótulo de “ecológico” dão conta de restau-rar adequadamente a ligação entre o social e o mundo natural, e nem todasas teorias das ciências sociais que incorporam o mundo físico-biológico con-sideram o nível de complexidade que isso implica.

Se as ciências sociais e naturais atualmente possuem uma tendênciade dicotomizar o ser humano e a natureza, dissociando suas dinâmicas eespecializando o conhecimento (fato este que não é exclusivo destas ciências,mas, como já foi explicitado, é uma das características da própria ciênciacontemporânea), as origens do conceito de metabolismo social demons-tram que já houve vertentes em outro sentido.

Segundo Padovan (2000), a sociologia clássica foi profundamente in-fluenciada pelas ciências biológicas, que estavam se tornando cada vez maisapuradas e cientificamente objetivas. Estes primeiros sociólogos acredita-

1 Tradução dos autores.

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vam que a natureza da própria sociedade dependia, de diversas formas, dassuas relações com seu ambiente. Apesar de uma certa dose de determinis-mo por parte de alguns autores que consideravam que a gênese e a evoluçãode todas as sociedades fossem regidas por leis naturais, a visão organicistados sistemas sociais traz uma importante contribuição à análise das rela-ções sociedade-natureza. O autor considera que o pensamento analógico(analogical thought) e as primeiras reflexões sobre as relações entre os orga-nismos vivos (biológicos e sociais) e o seu ambiente lançaram as bases doque chamamos de metabolismo social. Para os sociólogos da época, o fato deum organismo vivo depender de seu ambiente para sobreviver colocou empauta a problemática da maneira como são realizados os intercâmbios dematéria e energia entre os organismos e o ambiente.

Há que se considerar, porém, que os bens requeridos pelos seres hu-manos se diferenciam enormemente dos bens requeridos pela vida animal,de modo que sua relação com o meio não é ditada apenas por suas necessi-dades básicas de sobrevivência. A regulação econômica do metabolismosocial depende da necessidade consciente e das razões desenvolvidas pelasociedade. Os bens manipulados socialmente, ao contrário das matérias-primas, contêm níveis de originalidade, espiritualidade, racionalidade, tra-balho e técnicas sociais. O trabalho, atividade racional, transforma energiae matéria em natureza disponível para os seres humanos, modificando, de-sorganizando e reorganizando energia e matéria no sentido de alcançar assuas demandas específicas. Assim, as transformações de energia e matériada natureza por meio do trabalho trazem implicações de ordens diferentesdas dos outros seres vivos, principalmente no que se refere ao que é libera-do de volta à natureza durante os cinco processos do metabolismo socialque, segundo Molina e Toledo (2007), são compreendidos em: apropria-ção, transformação, distribuição, consumo e excreção.

O presente capítulo tem por proposta comparar três diferentes siste-mas agrário-industriais do Estado do Rio de Janeiro do século XVII aoXIX sob a ótica do seu metabolismo social. Objetiva trazer subsídios parauma compreensão integrada das suas resultantes ecológicas e sociais. Esta-mos cientes de que, em muitos campos das ciências sociais ou naturais, oestabelecimento de comparações entre realidades distintas constitui algoao mesmo tempo difícil e controverso. É difícil porque, muitas vezes, envol-ve situações e lugares com histórias, meios e culturas muito distintos. É

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também controverso porque estes processos, físicos, biológicos ou sociais,apresentam singularidades que colocam as comparações sob a imediata sus-peita de simplificarem realidades complexas. Apesar dessas dificuldades,as tentativas de comparação trazem o desafio de se escapar de enfoquesdescritivos e fechados em si mesmos, possibilitando um alargamento dehorizontes.

Alguns balizamentos conceituais do metabolismo social

Embora o metabolismo social apresente uma identidade que é emparte metafórica, isto não significa que se possa passar ao largo de determi-nadas leis e processos ligados a qualquer ser vivo. Isso se deve ao fato deque o contexto ecológico e evolucionário atinge tanto sistemas “naturais”como “artificiais”. A entrada de energia nos organismos ou ecossistemas(sejam eles “naturais” ou “antropizados”) constitui um ponto central nadeterminação de suas taxas metabólicas. O principal sistema de entradacontinua sendo, desde a aurora da humanidade, a conversão da energiasolar. No entanto, segundo Molina (2010), a apropriação e produção debiomassa são obtidas através da gestão de agroecossistemas, que interferediretamente na biodiversidade, nos ciclos de carbono, nitrogênio e fósforo,no ciclo hidrológico e nos mecanismos de regulação biótica. Isso implicouuma contribuição externa de energia que tinha de vir de fontes biológicas:o trabalho humano e animal, que, por sua vez, depende da capacidade deprodução de biomassa por parte do agroecossistema. Trata-se de um pro-cesso de alteração da paisagem, que, por retroalimentação, vai alterandoatributos básicos dos ecossistemas, como composição, estrutura e funcio-nalidade (figura 1).

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modificaçãodo hábitat

intensificaçãoda agricultura

Fig. 1: Ciclo positivo de retroalimentação provocado pela intensificação do uso agrícolacom alterações na biodiversidade e alterações funcionais do ecossistema como um subpro-duto (adaptado de Smith, 2000).

Outro ponto relevante na compreensão do metabolismo social é aassociação da termodinâmica com a questão do espaço físico. A primeiralei da termodinâmica “é essencialmente a afirmação do princípio de con-servação da energia nos sistemas termodinâmicos” (FERMI, 1996). A se-gunda lei da termodinâmica se traduz pela degradação da energia do siste-ma. Ela define processos reversíveis, que ocorrem em um universo em cons-tante equilíbrio, e processos irreversíveis, onde o universo evolui de manei-ra a degradar-se, isto é, de maneira tal que, durante a evolução, a energiaútil disponível no universo será sempre menor que no instante anterior (OLI-VEIRA e DECHOUM, 2003). Energia útil significa energia que pode serconvertida em trabalho. Posto em outras palavras: nenhuma transforma-ção de energia pode ocorrer sem que haja uma degradação da energia sob aforma de calor (entropia). A entropia é crescente à medida que a quantida-de de trajetórias possíveis cresce com a complexidade do sistema (HERS-COVICI, 2005). O metabolismo de uma sociedade incorpora os princípiosda termodinâmica para as trocas sociais. Energia e matéria são transforma-das, desorganizando-se e reorganizando-se para outros usos. Como tais,estão sujeitas às leis da termodinâmica e articulam-se às chamadas pirâmi-des ecológicas.

A ecologia usa os conceitos de pirâmide de massa, energia, etc., paraexpressar as mudanças nos diferentes estágios de transformação da ener-gia. A acomodação de uma rede trófica em uma pirâmide pressupõe tam-bém uma relação espacial entre cada um de seus níveis – justamente em

aumento de produçãoe alteração nabiodiversidade

aumento depopulação

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função da perda em calor que ocorre a cada transformação da energia. Umexemplo prático: uma área de 40.000 m2 pode produzir uma quantidade dearroz (que representa o produtor da pirâmide) suficiente para alimentar 24pessoas (consumidor primário) durante um ano. Se nessa mesma área fossecolocado pasto e criado gado (consumidor primário), a quantidade de carneproduzida poderia alimentar, durante um ano, apenas uma pessoa (con-sumidor secundário) (SARIEGO, 2002). Ou seja, uma vez aumentadoum nível trófico da pirâmide, haveria perda de energia do primeiro nível(o pasto) aos subsequentes, pelas atividades metabólicas realizadas pelosorganismos, sejam consumidores primários ou secundários. Daí decorrea necessidade de se atentar ao fato de que a internalização dos fluxos demateriais e energia tem um custo territorial (CASADO e MOLINA, 2007).Da mesma forma, deve se considerar o trabalho humano como parte inte-grante do metabolismo de um grupo social ou atividade econômica. Em-bora o trabalho físico possa ser consideravelmente minimizado por meiode artefatos tecnológicos, a interação dos fluxos continua a ser um pro-cesso biofísico, sujeito, portanto, às leis da termodinâmica (WINIWAR-TER, 2010).

Dentro destas interações funcionais e estruturais, as alterações antró-picas nos ecossistemas se imiscuem formando a paisagem, uma unidade hi-brida e indivisível. Formados em um longo encadeamento de fatos, estes le-gados do passado, seja aqueles ligados a eventos naturais ou antropogênicos,podem repercutir nos ecossistemas, controlar o funcionamento dos mes-mos e persistir por centenas a milhares de anos, influenciando a vegeta-ção, a composição de espécies, a ciclagem de nutrientes, o fluxo da água eo clima (RHEMTULLA e MLADENOFF, 2007), e, por decorrência, ascadeias e redes alimentares. Dentre estas marcas, os solos são o componentedo ecossistema com a “memória” mais longa de distúrbios, mas a flora igual-mente reflete por longo tempo os impactos humanos (BÜRGI e GIMMI, 2007).

Caracterização dos três estudos de caso

Produção de carvão nas encostas do Maciço da Pedra Branca

Muito possivelmente a proximidade do Maciço da Pedra Branca (lo-calizado na Zona Oeste) com a cidade do Rio de Janeiro foi responsávelpor transformar este trecho de Mata Atlântica, com cerca de 15.000 ha, em

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um polo de fabricação de carvão, de forma mais acentuada no século XIXe início do XX. As necessidades desta fonte energética eram consideráveispara o Rio de Janeiro. As forjas que se espalhavam pela cidade tinham nocarvão vegetal um insumo fundamental. Elas fabricavam artigos comomachados, enxadas, foices, arados, correntes e, principalmente, aros de ro-das de carroças e ferraduras destinadas aos cascos da tropa muar e equina.No Brasil, praticamente até o século XIX, utilizou-se um processo milenarde redução direta do minério (ou seja, a remoção do oxigênio) por meio decarvão vegetal em fornos de pequenas dimensões. A atividade carvoeiranas duas primeiras décadas do século XX no município do Rio de Janeirofoi muito bem documentada por Magalhães Corrêa (1933).

A atividade dos carvoeiros no Maciço da Pedra Branca e suas reper-cussões na paisagem são objeto de dois estudos que trouxeram relevantescontribuições. Um deles é o de Santos (2009), que examinou a vegetação eo solo da área de influência das carvoarias. O segundo trabalho (OLIVEI-RA 2010) é voltado ao estudo antracológico (ou seja, dos carvões históri-cos). A autora analisou a composição e a estrutura da vegetação à época daexploração do carvão por meio da análise antracológica de antigas carvoa-rias, evidenciando grandes mudanças na vegetação atual em relação àquelarepresentada nos restos de carvão. A floresta que hoje recobre o Maciço daPedra Branca, além de uma história natural, também tem uma história cul-tural impressa na sua paisagem.

Engenho de açúcar do Camorim

As terras do engenho do Camorim eram localizadas no piemonte doMaciço da Pedra Branca. Inicialmente pertenceram a Gonçalo Correia deSá, filho do primeiro governador (Salvador Correia de Sá) da cidade do Riode Janeiro. Este as deu a d. Luís Céspedes Xeria, governador do Paraguai,como parte do dote de sua filha Vitória, que acabou sendo a última sobrevi-vente do ramo de Gonçalo, da família Sá. Após a morte de d. Vitória de Sá,o engenho do Camorim foi legado em testamento ao mosteiro de São Ben-to. Com a sua morte e sob a administração do mosteiro, as terras do enge-nho foram desmembradas em três fazendas (Camorim, Vargem Pequena eVargem Grande). A manutenção e a operação do engenho eram todas ba-seadas no braço escravo, tendo-se, a título de exemplo, para o ano de 1864,um total de 172 escravos que exerciam diversos ofícios. As principais infor-

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mações disponíveis acerca do funcionamento deste engenho se encontramem Engemann et al. (2005).

Os engenhos de Rio dos Meros e Rio Turvo (Paraty)2

As mudanças na região de Paraty foram lentas até a descoberta doouro nas Minas Gerais. Seu porto passou a ser a entrada de aventureiros eescoadouro de minério e pedras. Desde o século XVII já se iniciara emParaty a fabricação de cachaça e açúcar, mas somente no século XVIII aprodução ficou significativa, sendo escoada nos dois sentidos: para Portu-gal, África (destinada à troca por escravos) e para Minas Gerais. Um fatointeressante que explica a preferência pela produção de aguardente em de-trimento do açúcar em Paraty é que, devido à alta pluviosidade da região, osolo encharcado fazia com que a cana ficasse “aguada”, com menor teor deaçúcar; além disso, a umidade dificultava a sua secagem (NOGARA, 2005).É possível que nesta época Paraty contasse com mais de 150 engenhos

O primeiro proprietário do engenho de aguardente do Rio dos Merosfoi Felicíssimo José Vieira, no século XVIII, que o legou para a Irmandadede Santa Rita. Há ainda referências, no Almanaque Laemmert, outros en-genhos de cachaça no Rio dos Meros, de Antonio Xavier Pacheco, AnaMaria de Barros e, ainda, de Frederico Jerk (café). No Saco do Mamanguá,a fazenda do Rio Turvo, propriedade do padre José Alves Velludo, de 1798,consta como uma das mais antigas da região. A intensa produção de aguar-dente, que funcionava com uma roda d’água com 9,0 metros de diâmetro,era transportada para Paraty e outras cidades, como Mangaratiba e Rio deJaneiro, em grandes barcos ou em carros de boi (em caso de mar agitado),para a fazenda de Paraty Mirim, e de lá para a cidade (NOGARA, 2005). Afigura 2 mostra a localização dos empreendimentos estudados.

2 Na falta de seus nomes originais (que possivelmente eram de invocação a santos ou a NossaSenhora) estes dois engenhos foram chamados pelo nome dos rios que os serviam.

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Paisagem e metabolismo social:uma comparação entre os três sistemas

Considerando que se trata de três sistemas produtivos distintos emdiversas ordens (tempo histórico, técnicas de trabalho utilizadas, mão deobra, disponibilidade de recursos, questão cultural, etc.), a comparação aquipretendida é, grosso modo, um confronto do metabolismo social de cadaprocesso com as resultantes ecológicas envolvidas na transformação da pai-sagem. O presente estudo tem como foco principal o uso dos recursos flores-tais (entendendo-se aí madeira e lenha), embora sejam feitas consideraçõesacerca dos recursos hídricos, dos recursos minerais e das terras para plantio.

Para a comparação do uso dos recursos florestais entre os três siste-mas, seguiremos o roteiro empregado por Toledo e Molina (2007), que con-sideram que o processo de metabolismo social é representado por cincofenômenos que são teórica e praticamente distinguíveis: a apropriação (A),transformação (T), distribuição (D), consumo (C) e excreção (E). Em se tra-tando basicamente de sociedades agrárias (os engenhos, sejam de açúcar ouaguardente), importam no fundamental os quatro primeiros (A, T, D e C).

Apropriação e transformação: o uso de recursos florestais nos engenhos

Segundo Toledo e Molina (2007), a apropriação se refere ao momen-to em que o ser humano se articula à natureza através do trabalho, confor-ma a dimensão propriamente ecológica do processo de produção e trans-forma um elemento natural em um objeto social. No caso das sociedadesagrárias, a apropriação é o elemento determinante do processo metabólicogeral, e, do ponto de vista meramente ecológico, a maneira como os sereshumanos extraem os elementos da natureza determinará os efeitos que aafetarão, assim como moldará a paisagem que for formada a partir da im-plantação da atividade e/ou seu subsequente abandono. Não se deve dei-xar de considerar, é importante ressaltar, que estas alterações terão resul-tantes ecológicas distintas, de acordo com as condicionantes ambientais,que interagem dinamicamente com estas interferências antrópicas.

Antonil (1711) se refere à intensa utilização dos recursos naturais porparte dos engenhos de cana coloniais, fazendo referência específica a doisecossistemas adjacentes: a mata atlântica e os manguezais.

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Os matos dão as madeiras e a lenha para as fornalhas. Os mangues dãocaibros e marisco. E os apicus (que são as coroas que faz o mar entre si e aterra firme e os cobre as marés) dão o barro, para purgar o açúcar nas for-mas e para a olaria...

Sabe-se, por meio dos muitos Estados da Ordem (principalmente os doterceiro e quarto quartos do século XVIII), que um constante desmatamen-to atingiu a floresta localizada no piemonte do maciço da Pedra Brancadurante o período beneditino. Pela leitura dos mesmos, depreende-se queas cinco principais demandas de produtos florestais eram: a) instalação decercas; b) reformas dos madeiramentos das construções; c) fabrico e manu-tenção dos carros de bois; d) construção de caixas para a exportação doaçúcar produzido; e e) fornecimento de lenha para as caldeiras. No presen-te caso, consideraremos apenas os dois últimos itens.

Segundo cálculos de Engemann et al. (2005) feitos para o Engenhodo Camorim, a quantidade de lenha necessária para se processar uma úni-ca safra era considerável. Para as 6.480 carradas de cana produzidas porsafra (em média) seriam necessárias 2.600 carradas de lenha para processá-las, ou seja, 4.228 m³ de lenha. O estudo citado fez estimativa da provisãode lenha passível de exploração em florestas do Maciço da Pedra Branca.Em média, considerando as suas diversas tipologias (floresta climáxica esecundária e em diferentes posições topográficas), era necessário o abate médiode 13 ha de floresta para suprir a necessidade energética de uma safra.

Um segundo insumo que demandava madeira selecionada era o trans-porte do açúcar. Este era acondicionado em caixas de madeira de grandesdimensões, forradas de papel e identificadas por fora com a marca do pro-dutor e do tipo de açúcar que portava. Considerando que a capacidade médiade cada caixa no século XVIII era de 550 kg, o engenho do Camorim deveter fabricado, por safra, de 400 a 600 caixas para a exportação do açúcar, oque demandaria um volume de madeira da ordem de 0,21 m³ por caixa.Assim, o conjunto das caixas consumia anualmente de 56 a 84 m³ de ma-deira serrada em tábuas. Portanto, seria necessário o abate anual médio de12 árvores com diâmetro superior a 70 cm. Conforme levantado neste estu-do (ENGEMANN et al., 2005), nas florestas mais conservadas do Camo-rim, apenas 5,9% das árvores de um hectare apresentavam diâmetro superiora 40 cm. Estas indicações sugerem que o fornecimento de tábuas deve terrequerido a exploração de um vasto território florestado. Assim, a ativida-de de derrubada de árvores para a obtenção de madeira deve ter sido feita

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de forma seletiva e pontual, sem a necessidade da derrubada extensiva. Emcarta que enviaram ao rei (note-se bem, já em 1698), os oficiais da Câmarainformaram que eram grandes os prejuízos, já que as “madeiras se condu-zem de muito longe” (ABREU, 2010).

Para se ter ideia global do impacto da atividade açucareira sobre aMata Atlântica, deve-se ter em conta que, somente na Capitania do Rio deJaneiro no início do século XVIII, existiam 131 engenhos em funciona-mento (ABREU 2006). No entanto, existem diferenças consideráveis nouso de lenha entre um engenho de açúcar e um de aguardente. Embora asquatro primeiras etapas sejam idênticas tanto para um como para o outro(moagem, decantação, filtração e purificação), a partir daí a diferença se dáno uso deste insumo energético. Para a aguardente, o caldo vai para ostonéis de fermentação; para o açúcar, a concentração do caldo (evaporaçãoda água) é feita pelo calor das chamas. Para a fabricação da cachaça, o usode lenha é consideravelmente menor, uma vez que a fermentação se dá porprocesso bioquímico à temperatura ambiente. Apenas a destilação necessi-ta de insumo energético, numa proporção de 160 litros de cachaça paracada m3 de lenha.3 A diferença calórica entre o açúcar e a cachaça é tam-bém uma decorrência das formas de conversão de energia. Feitas as respec-tivas correções de densidade, o valor calórico do açúcar é de 768 calorias,contra 184 da aguardente.

No que se refere à transformação da matéria-prima (cana-de-açúcar)em produto (seja açúcar, melado, rapadura, cachaça ou álcool), há aindauma grande demanda energética representada pela moagem da cana, umprocesso estritamente volumétrico, que consiste em deslocar o caldo conti-do no interior do seu colmo. Este deslocamento é conseguido fazendo acana passar entre dois rolos, submetidos a determinada pressão, proporcio-nal à quantidade de colmos que passa pelos rolos simultaneamente. Nosengenhos de Paraty, a força motriz era a água provida pelos rios. O enge-nho do Camorim era um trapiche, isto é, um sistema de tambores verticaismovido por força animal (os chamados bois de roda), por onde passava acana. Considerando-se as formas de entrada de energia (animal vs hidráu-lica) dos dois sistemas produtivos, no caso do trapiche, há que se considerara extensão de terreno necessária às pastagens dos animais de tração.

3 Dado obtido em um engenho em operação no município de Paraty (Engenho D’Ouro).

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No engenho do Rio Turvo (Paraty) foi encontrado, em meio à flores-ta densa que atualmente o recobre, o local onde se localizava um açude,inteiramente tomado pela vegetação florestal arbórea. Trata-se de um re-servatório de 33 x 29 m, cuja parede mais alta mede 4,1 m, com um drenoem sua base. As paredes são forradas por uma argamassa feita com óleo debaleia e conchas e têm, na sua parte mais larga, 2,8 m de largura, ou seja,duas braças (a unidade usada à época). Atualmente encontra-se sem adu-ção de água alguma, e no seu interior desenvolveu-se uma floresta comexemplares arbóreos com 1,3 m de diâmetro e cerca de 20 m de altura,evidenciando um longo tempo de abandono. Deste reservatório até o localonde se localizava a roda d’água (o chamado “inferno”) existe um aquedu-to de pedra mais ou menos nivelado, com altura média de 2,5 m, largura de3,0 m e extensão total de 150 m. Este conjunto de trabalhos em cantariaevidencia um uso intenso de recursos minerais (basicamente granito e gnais-se) para a construção dos engenhos da época. Estima-se que a superfícietotal dos muros deste engenho seja da ordem de 1.000 m2. Em média, osblocos medem 60 x 50 x 40 cm (0,12 m3), o que exigiu a movimentação decerca de 3.300 blocos. Admitindo-se que o granito tenha uma densidademédia de 2,65 (LEINZ e AMARAL, 1985), a massa total de rochas trans-portada das cercanias do Engenho foi da ordem de 1.000 toneladas. Estetrabalho, um patrimônio significativo para o engenho, não pode ser conce-bido sem a mão de obra escrava. Não é difícil imaginar o tempo gasto nasua construção e a quantidade de recursos utilizados para manter a escrava-ria. O Engenho do Rio dos Meros tem suas ruínas mais modestas, sendo odiâmetro da roda d’água estimado em 2,0 m. No entanto, em se tratandode construção do século XVIII, pode ser que o que tenha restado não repre-sente o que existiu (figura 3).

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Figura 3: O “inferno” do engenho do Rio dos Meros (Paraty, RJ). A roda d’água era assen-tada entre as duas paredes.

Apropriação e transformação: o uso de recursos florestais na fabricação de carvão

Historicamente, a lenha sempre acompanhou a trajetória humanacomo fonte energética de primeira necessidade. A sua transformação emcarvão via combustão abafada (os fornos de carvão) possibilita um aumen-to do poder calórico com uma redução de massa, o que o torna uma fonteenergética que pode ser transportada a distâncias mais longas. Ao contrá-rio do petróleo, o carvão pode ser produzido localmente, e – uma conside-ração de grande relevância para o presente trabalho – trata-se de uma fonteenergética cujo custo de produção é composto quase exclusivamente dotrabalho investido nele (OLSON, 1991).

São muito exíguas as fontes de informações anteriores ao século XXsobre as pessoas que forneciam carvão à crescente cidade do Rio de Janei-ro. Sabe-se que, em grande parte, os carvoerios trabalhavam por conta pró-pria, por empreitada ou, mais raramente, como assalariados. Tanto unscomo outros eram quase sempre explorados por intermediários que leva-vam o carvão para a cidade. Para o século XX, Bernardes (1962) faz refe-

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rência ao fato de que lenhadores e carvoeiros penetravam por toda parte dasserranias do Rio de Janeiro onde não se tinham estabelecido os sitiantes:“Em 1919, nas partes superiores destas vertentes, não existiam senão lenha-dores, não se encontrando aí um único lavrador” (p. 185). Embora se encon-tre referência na bibliografia consultada a diversos ofícios ligados à derruba-da de árvores (como lenhadores, falquejadores ou trapicheiros), não existereferência aos carvoeiros. O ofício de carvoeiro também se encontra ausentedos 39 ofícios do século XVII listados por Abreu (2011), assim como nosEstados da Ordem do Mosteiro de São Bento. Muito possivelmente este seriaum trabalho para alforriados, pequenos agricultores, e não como parte inte-grante do sistema produtivo de um engenho. Isto faz sentido na medida emque a quantidade de insumos utilizada na produção de carvão era muitobaixa. Um machado, um enxadão, um ciscador (tipo de ancinho) e uma pe-derneira (isqueiro) eram tudo o que se precisava para a produção de carvão.Até mesmo para embalá-lo, pelo menos no século XIX, eram utilizadas fi-bras naturais (bambu e cipós), como ilustra o quadro de Debret de 1827 (figu-ra 4). As referências aos sacos de aniagem são de 1920 (CORREIA, 1933).

Figura 4: Vendedores de carvão, de Jean Baptiste Debret (1827).

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Assim, o Maciço da Pedra Branca foi intensamente utilizado ao lon-go do século XIX e até quase meados do XX. Estudos feitos na região (OLI-VEIRA et al., ined.) revelaram a existência de 156 carvoarias dispostas emuma área de aproximadamente 80 hectares. É extremamente difícil avaliaro período de operação de cada uma. A grande maioria apresenta evidênciasde intensa percolação de fragmentos de carvão ao longo do perfil do solo, oque sugere serem antigas – possivelmente da segunda metade do séculoXIX.

A apropriação dos recursos florestais pelos carvoeiros, considerandoa tecnologia da época, era um processo extremamente simples. Em algumponto da encosta era cavado o balão de carvão (Fig. 5), de formato ovalado(de cerca de 45 m2), cuja limpeza e aplainamento eram feitos à enxada. Asmadeiras para corte não contavam com uma seleção delimitada de espécies,sendo todas consideradas próprias (CORRÊA, 1933, p. 74).

Figura 5: O balão de carvão em funcionamento. Magalhães Corrêa, 1933.

Examinando as chamadas cavas de balão nas encostas e a iconogra-fia disponível, é possível se estimar a dimensão média de cada balão: umcone de cerca de 6,0 m de base e 3,3 m de altura, o que permitiria ser preen-chido com 16,3 m3 de lenha. No entanto, cabe a indagação: o que isto signi-fica em termos de área de floresta abatida? Para se responder a essa ques-

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tão, é necessário pensar sobre o método de trabalho dos carvoeiros e ma-chadeiros. Dado o elevado grau de declividade das encostas do Maciçoda Pedra Branca, é razoável se admitir que a maior parte da provisão delenha para o preenchimento do balão fosse proveniente da floresta a mon-tante das carvoarias. Provavelmente a lenha era jogada ou rolada encostaabaixo. Não faz muito sentido subir toras que se localizassem a jusantedas mesmas. Considerando-se que, em média, 1 hectare de floresta daregião em estágio avançado de regeneração fornece 276,26 m3/ha de le-nha (segundo dados de ENGEMANN et al., 2005), pode-se, portanto,admitir que 1 hectare fornecesse lenha para encher 16,9 balões. No entan-to, a área de 1 hectare (um quadrado de 100 x 100 m) em terreno aciden-tado parece ser muito grande para ser percorrido transportando-se toras.Possivelmente uma área de 0,5 ha permite uma exploração mais cômodae eficiente do recurso. Neste caso, 0,5 ha proveriam o enchimento de 8,4vezes um único balão. Este dado vem ao encontro da constatação feitaem campo de que cada carvoaria deve ter sido utilizada muitas vezes.Assim sendo, pode-se admitir que as 156 carvoarias encontradas devamter consumido a lenha fornecida por 80 ha (ou seja, 156 carvoarias pres-supondo-se a remoção da lenha de 0,5 ha ao seu redor). Não se leva emconsideração neste cálculo a possibilidade de regeneração da floresta (oque permitiria um uso maior de uma mesma área), e tampouco o fato deque deve ter existido um número muitíssimo superior do que as 156 carvo-arias até agora encontradas na região.

O carvão vegetal constituía, assim, uma importante fonte energéti-ca para as crescentes indústrias, as estradas de ferro e os fogões domésti-cos do Rio de Janeiro. Para se ter uma ideia, no século XVII o ofício deferreiro é o terceiro com o maior número de oficiais (78, ou 11,7%) nabase de dados de Abreu (2011), que apresenta um total de 39 ofícios, em-pregando 666 pessoas. Outros ofícios ali listados, como tanoeiros, serra-lheiros, armeiros, carreiros e espadeiros, também deveriam utilizar o car-vão para amalgamar o ferro.

Distribuição e consumo dos bens produzidos

O processo de distribuição tem início quando uma unidade de apro-priação deixa de produzir tudo o que consome e de consumir tudo o queproduz. Dá-se, então, o intercambio econômico (TOLEDO e MOLINA,

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2007). É de se considerar que tempos históricos diferentes apresentemdemandas específicas para o consumo da sociedade, assim como possibi-lidades técnicas e recursos para a produção. O que é produzido e a formacomo é produzido seguem esses pressupostos (tempo, demanda e técni-ca). O contexto histórico-cultural, dessa forma, é base fundamental paraa compreensão dos processos que envolvem cada um desses sistemas.

No que se refere aos engenhos de açúcar e à produção de carvão,ambos localizavam-se no mesmo ambiente físico (Maciço da Pedra Bran-ca) e diferenciavam-se, em primeira instância, no tempo (praticamentenão coexistiram) e nas demandas sociais (visto que, no primeiro caso, tra-tava-se de uma demanda externa, sendo o açúcar produto para exporta-ção, e, no segundo, demanda interna, sendo o carvão necessário para odesenvolvimento e crescimento da cidade do Rio de Janeiro). Da mesmaforma que a produção de açúcar no Maciço da Pedra Branca, a produçãode aguardente em Paraty destinava-se, em grande parte, à demanda exter-na. Em relação à primeira, esta se guiava por uma demanda colonial,comportando-se como commodity e gerando os primeiros lucros da metró-pole em relação à sua colônia. No caso da cachaça, quando se deu a ex-pansão da atividade na região, no século XVIII, o destino do produto era,da mesma forma, Portugal, mas também Minas Gerais. Essa era destina-da aos escravos, que, trabalhando horas a fio em busca de ouro, não pro-duziam seu próprio alimento e eram pouco providos de meios para suaalimentação. Dessa forma, a cachaça servia tanto como um “anestésico”para a fome quanto como um “estimulante” para o trabalho destes minei-ros. Em meados do século XIX, a produção de aguardente passou a teruma finalidade adicional. Os proprietários das fazendas do Mamanguáse dedicavam também à venda e ao tráfico de escravos, principalmenteapós a proibição do tráfico negreiro, em 1850. Estes financiavam viagensde navio para a África, onde os negros eram trocados por aguardente eaçúcar. Os números do Almanaque Lammert (1849 a 1851) demonstramque o principal destino da aguardente produzida no estado do Rio deJaneiro em 1849 era a África. Em troca da cachaça, escravos.

A distribuição do carvão era feita em distância menor, basicamentedo Maciço da Pedra Branca ao centro da cidade (cerca de 40 km), onde erarealizado seu comércio, sendo transportado por burros na parte montanho-sa do percurso.

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O consumo do carvão era destinado a diferentes tipos de unidade deapropriação, desde os fogões domésticos até as crescentes indústrias. Emum tempo em que não havia energia elétrica ou petróleo (como insumoenergético), o carvão se apresentava como fonte energética de primeira ne-cessidade. A produção de carvão, desde sua apropriação até o seu consumo,traz em si os princípios da segunda lei da termodinâmica e a pirâmide espa-cial. Em sua transformação, via combustão abafada, há redução de matéria(lenha) com aumento energético (carvão) para facilitar a distribuição.

Metabolismo social: integrandoprocessos sociais e ecológicos

A tabela 1 apresenta um quadro comparativo geral sobre os proces-sos de produção estudados.4 Os três processos de produção apresentaram,como visto, diferenças significativas no que se refere às etapas analisadas(apropriação, transformação, distribuição e consumo). O retorno de todo oprocesso produtivo evidentemente é o financeiro, que permitirá a perpetua-ção ou crescimento de quem o explora ou o executa. No entanto, o enfoquedo metabolismo social permite que o retorno destas atividades produtivasseja visto de perspectivas mais amplas. Entre estas destacamos os custos daprodução, o balanço da conversão do trabalho em mercadoria e o tipo depaisagem gerada.

4 Os dados de campo foram obtidos em pesquisas de campo realizadas por Inês Machline Silva,Luan da Silva e Juliana Antonia F. Fernandes e os presentes autores. Os dados dendrológicosdo Camorim foram obtidos em Engemann et al., 2005.

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Tabela 1: Comparação entre os sistemas produtivos dos engenhos de aguar-dente, de açúcar e a produção de carvão

Atributo Engenho de açúcar Produção de Engenhos de cachaçado Camorim carvão no Maciço (Paraty)

da Pedra Branca

estrutura para a cara e complexa barata e simples cara e complexaprodução

recursos humanos muitos trabalhadores, poucos muitos trabalhadores,envolvidos muitas especialidades trabalhadores, poucas especialidades

uma especialidade

alterações provocadas baixa nenhuma elevadanos cursos hídricos

eficiência energética* muito baixa alta baixa

uso de madeira no alto nenhum altoprocesso

dependência de lenha alta total baixa

quantidade de lenha 4.300 m³ por safra 0,5 ha por balão 1 m3 de lenha pararequerida de carvão 160 litros de cachaça

número atual de – 84 em 2.500 m2 57 em 1600 m2 **espécies arbóreas nasáreas abandonadas

espécies exóticas basicamente frutíferas e basicamenteencontradas nas frutíferas rituais frutíferasáreas abandonadas

área basal *** – 25,7 m2/ha 34,6 m2/ha

produtividade 220 a 320 1.100 kg / balão –toneladas/safra

(*) Quantidade de energia despendida por unidade fabricada.

(**) Dado referente apenas ao Engenho do Rio dos Meros.

(***) Significa o somatório da área seção dos troncos com diâmetro maior ou igual a 5,0cm em um hectare. A área basal tem relação direta com a biomassa de uma floresta.Para os dois engenhos de Paraty, a área basal considerada foi a média da vegetaçãoarbórea localizada no entorno das ruínas. Para a produção de carvão, considerou-sea média de levantamentos feitos no território dos carvoeiros.

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Quando se fala em produção, é preciso levar em consideração os cus-tos da mesma – sejam eles financeiros ou ecológicos. Do ponto de vista daapropriação, o uso dos recursos ambientais nos dois tipos de engenho (açú-car e aguardente) não se limitava apenas às terras voltadas ao cultivo dacana-de-açúcar, mas também eram necessárias grandes áreas de florestaspara o fornecimento de madeira para construções e lenha para as caldeiras,além de espaços reservados à implantação de roças de subsistência dos es-cravos (Engemann et al., 2005). Tanto o engenho do Camorim como os deParaty tinham proximidade com áreas urbanas. O engenho de açúcar estu-dado se provia de muito do que lhe era necessário. Haveria algum exceden-te de alimentos para abastecimento dos núcleos urbanos? Segundo Abreu(2010), o abastecimento das cidades era feito por pequenos produtores, queocupavam os “solos inferiores ou cansados, impróprios para a cana e a gran-de lavoura em geral”.

Embora não haja informação para os dois engenhos de aguardenteestudados, existem muitos indícios deste autoprovimento, feito pela fari-nha de mandioca, pesca e caça. A presença de espécies frutíferas na florestaque presentemente recobre as ruínas dos engenhos é outro indicativo deque não se tratava de engenhos voltados exclusivamente à exportação. Nes-te sentido, os engenhos estudados seriam como que células autossuficientese, ainda, geradoras de algum excedente. Dessa forma, pensando em termosde balanço de recursos, a baixa dependência externa elevava os lucros. Otrabalho escravo era, portanto, convertido tanto em recurso voltado para oautoabastecimento quanto em mercadoria exportável e não demandavacustos significativos.

No caso da produção de carvão, a floresta do Maciço da Pedra Bran-ca, vista como recurso a ser explorado, integra-se aos processos do metabo-lismo social da cidade do Rio de Janeiro. Como tal, está sujeita às leis datermodinâmica e articula-se às chamadas pirâmides ecológicas. Como vis-to, a Ecologia usa os conceitos de pirâmide de massa, energia, etc. paraexpressar as mudanças nos diferentes estágios das transformações da ener-gia. Pode-se, portanto, colocar como decorrência destas a pirâmide espacial:a energia solar fixada pelos vegetais via fotossíntese, ao mudar de forma(tecido lenhoso em carvão), sofre uma concentração de energia. A sua trans-formação em carvão via combustão abafada (os fornos de carvão) possibi-lita um aumento do poder calórico com uma redução de massa, o que o

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torna uma fonte energética que pode ser transportada para longe. A redu-ção de sua massa e a concentração calórica são explicitadas pela segundalei da termodinâmica. Assumindo-se uma pirâmide espacial, a obtençãodo carvão segue a seguinte sequência:

carvão

floresta em pé

recursos abióticos

Muitos hectares de floresta são necessários para se obter a quantida-de de energia calórica contida no carvão vegetal, já que o seu poder calorí-fico por unidade do peso é quase três vezes maior do que a lenha (OLSON,1991). O polo receptor deste insumo energético – a cidade – também seorganiza de modo análogo em relação à energia importada. Para que estapossa apresentar uma elevada concentração populacional, é necessário (en-tre outros fatores) que esta concentração ocorra também no nível energéti-co. A cidade, em contraposição à floresta, apresenta alta densidade tantode pessoas, como de energia. Essa condição somente pode se dar pela exis-tência e dependência de um território anexo, onde a energia contida nafloresta em pé se encontra dispersa em uma vasta área. Por decorrência, apopulação que a explorava (os carvoeiros) também se encontrava espalha-da para a exploração deste recurso.

O padrão de ocupação do território pelos carvoeiros bem demonstraesta tendência à rarefação na forma de utilização do território. Isto é exem-plificado pela presença de numerosas ruínas de fundações de moradias decarvoeiros no interior do Maciço da Pedra Branca. A paisagem gerada,considerada na escala de cidade / floresta, passa a constituir uma unidadeindivisível, onde a sustentabilidade da primeira (provisão constante de ener-gia) depende da sustentabilidade da segunda (manutenção da biomassa eretomada da floresta nas áreas desmatadas). Por decorrência, a populaçãoque a explorava (os carvoeiros) também apresentava uma ocupação difusado território para a exploração deste recurso. O funcionamento da paisa-

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gem baseava-se na diferenciação de dimensões espaciais entre floresta e ci-dade, na qual a primeira, por ser provedora dos recursos energéticos, deve-ria ser composta por uma área consideravelmente maior do que a da segun-da. A paisagem passava a espelhar a cultura local dos carvoeiros atrelada àsnecessidades energéticas da cidade. Mesmo sendo de um segmento socialsem rosto e precariamente integrado ao sistema socioeconômico, os car-voeiros desempenharam um relevante papel nesta rede de metabolismosocial e paisagem gerada.

Conclusão

Do ponto de vista estritamente biológico (considerando-se a estrutu-ra e composição das florestas), os três sistemas apresentaram semelhançasentre si. O número de espécies, assim como a biomassa (aqui representadapela área basal), não se diferenciou significativamente entre os engenhos eo fabrico do carvão. Assim, isto significa que essas três atividades, pelomenos nos moldes e na intensidade em que foram praticadas, apresenta-ram evidências de resiliência ecológica. Um outro ponto deve ser destaca-do em relação à sustentabilidade ecológica: a exploração carvoeira, assimcomo a produção de açúcar e aguardente, apresentou como resultante eco-lógica a formação de extensas áreas de florestas secundárias, e não de áreasdesmatadas, como se deu com a exploração do café no vale do Rio Paraíbado Sul. A consequência ecológica maior no caso do carvão foi a redução dadiversidade, mas não de biomassa. Mudanças pontuais não geram mudan-ças regionais. As alterações são perceptíveis em microescala (composição) enão em macroescala (estrutura e funcionalidade da comunidade florestal).

Em termos de metabolismo social, as diferenças maiores entre estasatividades econômicas possivelmente foram os distintos ciclos socioecoló-gicos dos três produtos (carvão, aguardente e açúcar). A questão do destinodos mesmos é relevante, uma vez que a ciclagem é um ponto central noestudo do metabolismo. O produto dos engenhos apresenta um tipo de ci-clo aberto. O açúcar, uma vez satisfeitas as necessidades internas, era ex-portado em troca do retorno financeiro. Já a aguardente tinha como um deseus destinos tornar-se moeda de troca por escravos na África, que, por suavez, realimentavam o sistema socioeconômico. Nessa ótica, o fabrico docarvão apresentava um ciclo fechado na escala da paisagem, possibilitando

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o crescimento da cidade e, ao mesmo tempo, alterando a paisagem flores-tal. Em função da virtual inexistência de documentação acerca desta ativi-dade, a própria paisagem assume a condição de um verdadeiro documentohistórico acerca da vida e do trabalho dos carvoeiros. Por outro lado, aconexão entre cidade e floresta assim como entre carvoeiros e citadinosmolda a paisagem cultural e abarca todos estes elementos num complexofluxo causal. Nos três casos estudados, a transição socioeconômica e o tér-mino dos três empreendimentos nas suas respectivas áreas permitiram aretomada da floresta e a geração de um contingente humano que vivia nassuas áreas e que, em grande parte, migrou para as cidades em busca decondições de sobrevivência. Esta transição reconfigurou toda a sociedade,transformando completamente seus metabolismos sociais.

Referências

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La historia ambiental y los sistemas complejosen el estudio de los procesos de construcción

territorial en las cuencas hidrográficas.Casos de estudio en la provincia de Buenos Aires.

República Argentina

Marina Miraglia

Introducción

En la República Argentina, en general, y en el actual territorio de laprovincia de Buenos Aires, en particular, se produjeron múltiplestransformaciones, en los últimos cien años. Esta situación, inserta dentro deun sistema político-económico internacional, provocó en el actual territorionacional la implementación de un modelo político-económico con laconsecuente ejecución de diversos patrones de intervención en el territoriopor parte de la sociedad así organizada. De este modo se ha ido conformandouna especial relación entre ambiente y sociedad, la cual fue cambiando a lolargo del período de estudio considerado.

Los casos de estudio se aplican a las cuencas hidrográficas de lasLagunas Encadenadas del oeste de la provincia de Buenos Aires, en un ámbitorural, y a la cuenca del río Reconquista del noroeste de la Región Metropolitanade Buenos Aires, en un ámbito urbano.

El proceso de construcción territorial en ambas cuencas, entendidaséstas como sistemas complejos, en los últimos 100 años, se ha caracterizadopor una alta transformación de las variables naturales y una alta movilidadde las variables socioeconómicas y actores sociales con la consecuentetransformación ambiental y socioeconómica.

Dentro del período marco de estudio, se han considerado cuatro etapashistóricas de construcción territorial, por considerar que fueron los contextosque le dieron significado a la transformación ambiental y socioeconómica

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territorial: entre 1880 y 1930, conocida como etapa agroexportadora, desde1930 a 1976, donde predominó el modelo de sustitución de importaciones,entre 1976 y 1991, con la implementación del modelo neoliberal y de políticasde ajuste del Estado, y entre 1991 y 2006, con la implementación de un sistemapolítico-económico transnacional, altamente globalizado.

La historia ambiental trata de interpretar cómo la sociedad y el medionatural, a partir de su relación como ambiente, se han afectado mutuamentey con que resultados. En tal sentido, la historia ambiental es el marco conceptualy, a la vez, la herramienta metodológica que permitirá la reconstrucción,identificación e interpretación de los principales procesos políticos, sociales,económicos y culturales, asi como los factores ambientales de corta duración,las relaciones entre ambos y el impacto que las actividades político-económicashan generado en el proceso de conformación territorial bonaerense en el últimosiglo, y particularmente en las cuencas hidrográficas bajo estudio.

Las cuencas hidrográficas serán analizadas como base territorial de losprocesos ecosistémicos, a la vez que como base de interpretación de lasviariables relacionadas con el recurso hídrico.

En este documento, se articularán dos campos de conocimiento comola historia ambiental y los sistemas complejos para aplicarlos al estudio de losprocesos históricos de construcción territorial de las cuencas hidrográficas enla provincia de Buenos Aires.

En primer lugar se esbozarán los ejes conceptuales mencionados: A)La historia ambiental; B) Los sistemas complejos, C) Las cuencas hidrográficascomo unidades de análisis, y D) Los procesos de construcción territorial.

La historia ambiental

La historia ambiental es un campo de interfase entre disciplinas (Oos-thoek, 2005) que nace formalmente entre 1960 y 1970, como consecuen-cia directa del aumento en la preocupación mundial sobre problemas am-bientales tales como la contaminación del agua y el aire por pesticidas, eladelgazamiento de la capa de ozono y el aumento del efecto invernaderoocasionado por la diversificación de las actividades humanas, producti-vas principalmente.

El investigador especialista en historia ambiental latinoamericanaGuillermo Castro Herrera (2004) presenta como objetivo de la historia

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ambiental “las interacciones entre las sociedades humanas y el mundo natural,y [...] las consecuencias de esas interacciones para ambas partes a lo largo deltiempo”. En este proceso los historiadores comenzaron buscando los orígenesde problemas contemporáneos en varias disciplinas científicas las cuales fuerondesarrolladas durante el siglo XIX. A lo largo de dicho siglo se identificaroncinco disciplinas que cumplieron un papel muy importante en la constituciónde este nuevo saber, conocido como historia ambiental. Estas disciplinas fueronla historia, la ecología, la geografía, la arqueología y la antropología.

El trabajo de Silvia Meléndez Dobles (2002) en relación a los orígenesde los estudios en historia ambiental presenta las

investigaciones que incorporan el estudio de la historia y todas sus áreas detrabajo con el ambiente, desde finales del siglo XIX y principios del XX. Lamás destacada ha sido realizada por los historiadores franceses, conocidoscomo la Escuela de los Anales en las primeras décadas del siglo XX. MarcBloch (La Historia Rural Francesa), Lucien Febvre (Una Introducción Geográfica ala Historia) y posteriormente Fernand Braudel (El Mediterráneo y el MundoMediterráneo en Tiempos de Felipe II) y Emmanuel Le Roy Ladurie (Los Campesinosdel Languedoc) fueron pioneros en lo que hoy día se llama historia ambiental,analizando los cambios en el ambiente en tiempos pasados aplicados afenómenos históricos, incorporando diferentes escalas temporales, a saber,coyunturales, estructurales y la famosa “longue durée”.

La misión de la historia ambiental en el estudio de cómo los paíseslatinoamericanos se estructuraron en economías (y sociedades) de exportaciónde materias primas para el mercado mundial es principalmente otra: Reconocerel papel activo de los ecosistemas locales en determinar las formas, los tiemposy las posibilidades de la agroexportación y de la extracción (GALLINI, 2002,p. 11).

Según Donald Worster (2004), la historia ambiental considera tres ejestemáticos muy destacados como son los aspectos intelectuales de lassociedades, en cuanto a las percepciones que éstas tienen del ambiente y laforma de relacionarse, el nivel del dominio socioeconómico y el impacto delas actividades humanas sobre el ambiente.

El mismo autor plantea que la historia ambiental trata sobre elentendimiento que se tiene del mundo natural. Las interacciones entre lasociedad y el medio describen el concepto de separación entre el hombre y lanaturaleza y pueden constituirse en una herramienta para el historiadorambiental en la identificación de aspectos importantes, las fuentes que puedenhacer posible dar respuestas a las preguntas y los métodos utilizados paraestudiar estas fuentes (WORSTER, 2004).

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En palabras de la misma Meléndez Dobles (2002):

En 1982, Kendall Bailes define historia ambiental como todos los estudios delas relaciones entre las sociedades humanas y el ambiente natural a través deltiempo. El aporte en esta definición radica en la noción de “relaciones” y “através del tiempo”. A partir de esta definición, se ha dado un proceso deconsolidación de lo que se entiende por historia ambiental, siendo una de lasmás aceptadas la definición dada por Worster: la historia ambiental exploralas formas en que el mundo físico ha influenciado el curso de la historia humanay las formas en que la gente ha pensado y tratado de transformar su entorno.El mismo ha recalcado que hoy día lo más importante, dado el curso de losacontecimientos, es conocer cómo los seres humanos han afectado al ambientey con cuáles resultados.

Los sistemas complejos

Según presentaba el arquitecto Rafael López Rangel (2004) en unaconferencia dictada en la Benemérita Universidad de Puebla, “se reconoceque se ha estado dando un rebasamiento cognoscitivo de disciplinas en el ámbitosociológico y epistemológico, que intentan construir una visión más ‘realista’de los procesos sociales, que responda a la naturaleza compleja de éstos, sindescuidar los diferentes ámbitos y problemas específicos.”

En esta misma conferencia, López Rangel decía que

[e]l territorio es transformado en virtud de condiciones –o procesos– objetivos,subjetivos e intersubjetivos (éstos últimos son condición de identidad). Y seconcretan, realizan y se expresan en el territorio. Hay que recalcar, en términosque ahora se pueden considerar escolásticos, que territorio y sociedad no sonprocesos separados, sino que se interdefinen, de tal manera que así como lasociedad define al territorio, éste ejerce o influye en múltiples aspectos en lasformas de la vida social y cultural; por lo tanto, el territorio –y de manera muyespecial el territorio urbano– no es un simple receptáculo de las relacionessociales.

Es, como se ha reconocido ampliamente y desde hace tiempo, por los másconspicuos filósofos de la ciencia, una parte de la “dimensión espacial” de laexistencia de la sociedad (LÓPEZ RANGEL, UAP, 2004).

¿Cómo se incorporan los sistemas complejos en este trabajo territorialde historia ambiental? El objeto de estudio son los procesos de construcciónterritorial de las dos cuencas hidrográficas, para lo cual se aplica la historiaambiental, que permite reconstruír las vinculaciones y las múltiples determi-naciones entre actores sociales, procesos económicos, políticos, ecosistémi-cos, ambientales, tecnológicos, culturales, entre los más destacados.

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El territorio es un objeto de estudio complejo, definido, así, no sólo porla cantidad de elementos y procesos intervinientes, sino básicamente por lacalidad y cantidad de relaciones establecidas entre ellos.

Los sistemas complejos se caracterizan por ser abiertos, tenerpermanentemente transformaciones, así como etapas de equilibrio dinámico-relativo. El ambiente, los actores sociales, el territorio que conforman yconstruyen tienen un desarrollo histórico, el cual le suma complejidad alsistema, que, así definido, es claramente un sistema complejo.

Un sistema complejo no está determinado sólo por la heterogeneidadde los elementos o subsistemas que lo componen. Una característica delsistema complejo es la mutua dependencia de las funciones que desarrollanlos elementos o subsistemas dentro del sistema que los comprende. Esta visiónsupera la concepción de la ciencia decimonónica donde los elementos eranestudiados en su especificidad, y/o en el estudio de las partes constitutivasdel todo, pero aisladas unas de otras.

La construcción del espacio es parte de un sistema de alta complejidadcuyo centro es la reproducción de la vida del conjunto de sus actores en unterritorio específico y en un contexto socio económico determinado. Esoimplica tratar de comprender dicha construcción en ese marco intentandosuperar las visiones positivistas del fenómeno que tienden a separar sus partesy aislarlas, reduciendo la complejidad a explicaciones que simplifican elproblema más que explicarlo (LEFEBVRE, 1969).

La complejidad es el tejido de sucesos, acciones e interacciones, retro-acciones, determinaciones y azares que constituyen nuestro mundo fenomé-nico cotidiano. Eso significa que en la construcción que los actores realizanhay que considerar, al mismo tiempo, la diversidad de pensamientos, necesi-dades, aspiraciones e intereses de los actores que intervienen; la diversidad decampos (educación, salud, producción, cultura, etc.), dimensiones (social,económica, política, etc.) y niveles (micro y macro) que intervienen; las di-versas lógicas que en cada una de las acciones, prácticas y actividades apare-cen y compiten entre sí.

Incluír, además, el tipo de territorio y los recursos naturales que locomponen; el marco en que esas relaciones prácticas y acciones se reali-zan y influyen fuertemente en el contexto (variable contextual o relacio-nes de borde); los cruces múltiples que entre esos componentes se produ-cen; los mecanismos que se generan, las relaciones que ordenan y diferen-

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cian en el territorio la distribución de funciones; las relaciones de tiempo yespacio que intervienen; etc.

Las cuencas hidrográficas comounidad territorial de análisis

Desde el punto de vista estricto de las ciencias físico-naturales, la cuencaes definida en base a su carácter territorial, en una escala de tres dimensiones:ancho, alto y largo. Sobre esta unidad territorial

[...] se considera como característica adicional una cierta dinamicidad y, porende, una especificidad procesual. Sobre ella o dentro de ella se producendeterminados ciclos, determinados movimientos, determinadastransformaciones. En ella opera la erosión, la sedimentación, etc. Este carácterprocesual del concepto nos permite incorporar una cuarta dimensión, latemporal, dado que dichos procesos se producen en lapsos determinados ydeterminantes (ADAMO, 1989, p. 1).

Al incorporar el factor tiempo, las cuencas toman un carácter histórico.Este carácter permite la aplicación de los estudios de historia ambiental paraidentificar y analizar los procesos de construcción territorial generados en ellas.

La cuenca hidrográfica es tomada

como expresión territorial de un segmento específico de la realidad social.Dicha realidad se encuentra diferenciada por grupos cuyas –conflictivas–razones y determinaciones no empiezan ni terminan en el recorte territorialelegido. Tampoco son pasibles de ser sometidos a una interpretación sincrónica,de su situación actual; los procesos sociales operan en una perspectiva, en unagénesis, histórica. La cuenca, como base material inorgánica (dominio de laregularidad repetitiva) y orgánica (dominio de la adaptación y de la mutación)es incluida a través de procesos y elementos usados por la sociedad para sureproducción (ADAMO, 1989, p. 8).

Si la cuenca puede ser tomada como un

ámbito territorial específico donde actúan fenómenos naturales y sociales;donde se asienta una parte de la sociedad que es conflictiva y heterogénea(tanto dentro de la cuenca como en su exterior) […] Seguramente las determi-naciones natural-sociales estarán diferenciadas histórica y territorialmente enel seno de una sociedad que caracterizamos como conflictiva (ADAMO et al.,1989, p. 3).

Para Ana Carolina Herrero (2006),

una cuenca hidrográfica, concebida como el territorio delimitado por losescurrimientos superficiales que convergen a un mismo cauce, es la unidad

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espacial básica indispensable para estudiar la función ambiental de los recursosnaturales y su dinámica, con fines de conservación y manejo.

De esta manera, una cuenca es un emergente sintético importante delfuncionamiento del ambiente por varias razones: porque responde a uno delos recursos básicos esenciales; es la entrada al sistema de mayor trascendenciapara la habitabilidad, la competitividad y la sustentabilidad de los ecosistemasrurales y urbanos; porque la problemática ambiental derivada del estado delrecurso, sus formas de uso y los procesos ecológicos que imperan, impactanen la vida cotidiana de los habitantes y en sus actividades productivas, y porqueel acceso inequitativo al recurso, tanto en cantidad como en calidad,compromete la salud y reproducción social de la población y afecta suscondiciones de vida, produciendo situaciones de vulnerabilidad social y riesgo.

Wilealdo García Charría (s/f), hace suyas las palabras de AxelDourojeanni (1994), especialista latinoamericano en planificación y manejode cuencas, al decir que la cuenca, con sus recursos naturales y sus habitantes,posee connotaciones físicas, biológicas, económicas, sociales y culturales quele confieren características peculiares. En zonas cordilleranas y de altasmontañas, las cuencas son ejes naturales de comunicación y de intercambioeconómico, ya a lo largo de los ríos, ya a lo largo de las cumbres; en lascuencas de valles y de grandes descargas, el eje fluvial es también una zona dearticulación de sus habitantes.

García Charría toma también los conceptos desarrollados por Ariasy Duque (1992) cuando afirma que en la cuenca se estructuran relacionesmúltiples entre factores naturales y humanos en un espacio que es histori-camente delimitado por el poblamiento y la utilización social del espacio.El territorio de la cuenca facilita la relación entre los habitantes asentados,aunque éstos se agrupen por razones político-administrativas, debido a sudependencia común a un sistema hídrico compartido, a los caminos y víasde acceso y al hecho de que deben enfrentar peligros comunes, decía Douro-jeanni en la recopilación efectuada por García Charría.

Según Medina (2008), Axel Dourojeanni

[...] considera la cuenca hidrográfica como el territorio delimitado por loslímites de las zonas de escurrimiento de las aguas superficiales que convergenhacia un mismo cauce; el autor señala además que el territorio que conformala cuenca facilita la relación de sus ocupantes independientemente de si estánagrupados en jurisdicciones político-administrativas diferentes en razón de sudependencia común a un sistema hídrico compartido.

En los trabajos citados, se observa claramente la presencia de doscomponentes, uno físico y otro social. Por un lado, la definición del concepto

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cuenca marca el aspecto físico territorial, y, por otro, se marca el contextosocio-económico e histórico dentro del cual la cuenca es habitada, producida,gestionada.

Para este trabajo, se toma entonces el concepto de cuenca hidrográficacomo recorte espacial, delimitado a partir del recurso hídrico y como marcode desarrollo histórico de los procesos socioambientales de construcciónterritorial en el ámbito rural y en el urbano. Dos ámbitos diferenciados entresí a partir de las condiciones históricas de ocupación del suelo, los principalesusos productivos, las condiciones generales de localización de la población,así como los factores físicos y las variables naturales.

Los procesos de construcción territorial

La estructuración del territorio, entendido como un sistema complejo(GARCÍA, R., 2000; MORIN, E. 1998), y su sustentabilidad, forman partede los procesos cotidianos de reproducción de la vida de los actores socialesque van construyendo articuladamente en un territorio con sus acciones yprácticas, no sólo el marco de sus propias vidas, sino también la sociedad, laciudad y la sustentabilidad en su conjunto.

La articulación entre sociedad y territorio aparece mediada porelementos y procesos, sumada a los actores sociales en un sistema donde lacalificación del territorio, su sustentabilidad y la diferenciación socioespacialse producen a través de las relaciones sociales específicas.

Se destacan, así, los procesos generales y sus articulaciones externas einternas, en el período de estudio a escala regional en la Cuenca de lasEncadenadas del Oeste de la provincia de Buenos Aires (región rural) y laCuenca del Reconquista en la RMBA (región urbana).

Siguiendo la línea de las investigaciones realizadas por el equipo detrabajo dirigido por el Dr. Juan Lombardo (1999, 2002, 2003, 2004, 2006,2009), se presentan las siguientes características en el proceso de conformaciónterritorial urbana:

• Los ejes principales de expansión urbana son ahora las autopistas yno la traza del ferrocarril.

• La región no se extiende sino que crece puntualmente en espaciosvacantes tales como:– los asentamientos populares;

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– viviendas sociales;– nuevos emprendimientos privados.

El casco consolidado tiene un crecimiento relativamente reducido através de las nuevas inversiones del capital inmobiliario (ej.: las torres edificadasen antiguos solares de las áreas urbanas consolidadas).

El Estado y los grupos inversores de capital accionan en formacoordinada sustentando este modo de crecimiento:

El Estado se hace cargo de:• sostener el mercado del suelo y del espacio urbano;• del casco histórico;• los asentamientos populares;• las viviendas sociales.Los grupos inversores de capital:• organizan grandes áreas del territorio municipal y se hacen cargo de

las áreas donde realizó sus propias inversiones.En tanto que en el proceso de conformación territorial rural, se presentan

las siguientes características:• Los ejes principales de expansión rural son las rutas concesionadas y

no la traza del ferrocarril.• La región no se extiende sino que crece puntualmente en

– los grandes emprendimientos productivos con intensificación de lasinversiones de capital productivo.

– La región experimenta un proceso de expulsión de población ruralhacia las localidades de estas cuencas o bien hacia la región metro-politana de Buenos Aires, o Mar del Plata o Bahía Blanca, con elconsecuente despoblamiento rural.

• El Estado se hace cargo de:– sostener las políticas públicas.• El capital privado:– Organiza ahora partes importantes del territorio productivo,

dedicadas básicamente a la actividad agropecuaria;– Realiza las inversiones de capital y tecnología.

En ambos procesos de conformación, la participación del Estado y losgrupos inversores de capital se observa en las concesiones de los serviciospúblicos para las áreas consolidadas y los nuevos emprendimientos urbanos,

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comerciales e industriales. Por otro lado se observa la participación del Estadoen la asistencia mediante subvenciones a los concesionarios de los servicios ylos planes asistenciales para los grupos sociales más vulnerables localizadosen villas, asentamientos, terrenos fiscales, terrenos ocupados).

Tanto en el casco consolidado como en los nuevos territoriosincorporados a la región metropolitana, se observan situaciones donde lapoblación de bajos y altos recursos se agrupan conformando grandes espacios.Si se observan articuladamente la dimensión espacial y la socioeconómica,aparecen coexistiendo: desocupación-ocupación, trabajo precario, acceso ala educación-analfabetismo-uso de Internet; automóvil, indigencia y bellezanatural y servicios, ocupación de tierras con propiedad de alto precio, etc.(LOMBARDO, J. D., 2004).

Para Lombardo et al. (2002), el espacio urbano es concebido, por unaparte, como una de las dimensiones del sistema de reproducción de la socie-dad en cuestión y, por otra, como lugar donde se operacionalizan las relacio-nes de reproducción de los actores que lo van conformando. De igual ma-nera se puede incorporar el espacio rural. Esas dimensiones, lo social, loespacial, lo económico, lo ambiental, lo político, etc. son consideradasactuando interrelacionadamente en cada situación de reproducción concretade los actores en un territorio.

Las diversas estrategias, acciones y mecanismos de cada uno de esosactores, articuladas en ese contexto, se van espacializando en el territorio yconstituyendo los espacios e infraestructuras que lo van conformando comosostén de los diversos circuitos de actores involucrados y de las relaciones quese constituyen.

Sobre las cuencas hidrográficas de lasEncadenadas y del Reconquista

En el proceso histórico de construcción territorial, ambas cuencastuvieron comportamientos complementarios entre sí.

Entre 1776 y 1900 se producían movimientos provenientes de BuenosAires que tendían a apropiarse de tierras de la campaña rural. Una vez creadoel Virreinato del Río de la Plata, el eje comercial del Alto Perú fue decayendoen importancia, comenzando a valorizarse la ciudad de Buenos Aires comopuerto y sede administrativa del Gobierno Virreinal.

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La campaña que rodeaba a la primitiva Buenos Aires abastecía lasnecesidades de la población urbana, en tanto que las estancias próximas alrío Salado (como instalaciones de avanzada en el proceso de expansiónterritorial sobre las tierras aborígenes) producían cuero y sebo, los cuales eranexportados a Europa. En ese momento, la cuenca del río Reconquista erarural y la de las Encadenadas del Oeste estaba bajo el dominio aborigen.

La inserción de Argentina en el mercado internacional de materiasprimas llevó a los sucesivos gobiernos a aplicar políticas de expansión territorialpara ampliar las áreas productivas, en particular de la provincia de BuenosAires. Ambas cuencas pasaron a formar parte de la red comercial y políticade Buenos Aires a partir de fines del siglo XIX, cuando las tierras de losaborígenes fueron apropiadas por el Estado Nacional.

El proceso de construcción territorial en ambas cuencas en los últimos100 años se ha caracterizado por:

a) Alta transformación de los factores físicos y las variables naturales,b) Alta movilidad territorial de las variables socioeconómicas y actores

sociales,c) Alta transformación ambiental y socioeconómica.La transformación ambiental se entiende como un conjunto de pro-

cesos que intervienen en la modificación histórica de un territorio, de ma-nera diferencial. Esta transformación ambiental tiene consecuencias muymarcadas en ambas cuencas en los factores físicos y las variables naturales,socioeconómicas y políticas.

La historia ambiental de estas cuencas pone en evidencia que la relaciónentre las partes intervinientes en el proceso de construcción territorial hapropiciado el deterioro ambiental asociado a las políticas económicas aplicadasen la Argentina y la consecuente segmentación y fragmentación social yespacial. Estos procesos de deterioro se verifican con distintos grados deseveridad según sea la cuenca considerada:

• En las Encadenadas: inundaciones, sequía, erosión hídrica, erosióneólica, contaminación química de cursos de agua (vertido de efluentesindustriales y lixiviado de agroquímicos);

• En el Reconquista: inundaciones, contaminación del suelo y del agua,segmentación y fragmentación socioespacial.

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Fontes alternativas de energia:agrocombustíveis a partir derecursos genéticos vegetais

Lido BorsukRubens Onofre Nodari

Introdução

A energia da biomassa é a fonte mais antiga utilizada pelo homem,sendo que 13% do abastecimento mundial de energia primária ainda é bio-massa: nos países desenvolvidos, 3% das necessidades energéticas são su-pridas pela biomassa, enquanto que no continente africano a taxa variaentre os 70-90%.

O homem dominou o fogo entre 150 e 500 mil anos atrás, sendo queos primeiros grupos humanos de caçadores e coletores utilizavam em mé-dia 5.000 kcal/dia. Porém, os primeiros agricultores, usando o fogo paracozimento e aquecimento e a tração animal para o plantio, elevaram esseconsumo para 12.000 kcal/dia. Em meados do século XIX, durante a revo-lução industrial, esse número atingiu, na Inglaterra e EUA, 60.000 kcal/dia, alcançando 125.000 kcal/dia nos dias atuais (Miller, 1985). No entan-to, ainda existem pessoas que continuam usando o mínimo de energia (ex:2.000 kcal/dia), enquanto outras consomem recursos centenas de vezesmaiores para satisfazer seu padrão de consumo.

A energia oriunda dos combustíveis fósseis move o mundo há maisde um século. Mas foi no ano de 1869 que a humanidade deu um grandeimpulso no consumo de energia fóssil, através da perfuração do primeiropoço de petróleo, levando a uma drástica mudança em termos de consumode energia primária. Pouco mais de um século depois, no ano de 1983, ogás natural e o petróleo já eram responsáveis pela produção de 53% daenergia primária mundial (Miller, 1985). Em termos absolutos, no ano de2008, a energia fóssil consumida no globo terrestre todo representava 87,4%

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do total e nos países da OCDE este índice era de 93,2%. No Brasil, em 2009a energia fóssil representava 52,8%, indicando a grande participação deenergias renováveis no contexto do país (MME, 2010).

Da matriz energética brasileira 47,2% são renováveis, oriundas devárias fontes, como da biomassa (cana-de-açúcar, lenha, carvão vegetal,biodiesel, outras), eólica, solar, hídrica e outras. Se considerarmos somentea energia elétrica (Figura 1), o percentual de energia renovável no Brasil éde 89,9%, enquanto na OCDE é de apenas 16%, no mundo este índicechega a apenas 18,2% (MME, 2010).

Figura 01: Matriz da energia elétrica mundial

Fonte: MME, 2010.

Nos planos governamentais brasileiros estão previstos avanços na di-reção das fontes de energia renovável, destacando-se a biomassa (Figura 2).Até o ano de 2030, a previsão é que ocorra uma pequena redução da ener-gia derivada de energia fóssil em termos percentuais, embora possa ocorrerum aumento em relação ao consumo atual. Mesmo assim, a energia fóssilainda será responsável por pouco mais de 50% da matriz energética brasi-leira, paralelamente a um aumento nas emissões de CO2, onde passaremosde 2,09 t CO2/hab/ano para 3,23 t CO2/hab/ano no ano de 2030. Destaforma, cada brasileiro emitirá, no ano de 2030, em média mais CO2 oriun-do de energia fóssil.

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OCDE

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Figura 2: Evolução e perspectivas para o setor energético no Brasil

Fonte: Empresa de Pesquisa Energética, 2007.

Ao analisar o consumo de energia no planeta, verifica-se que os maio-res consumidores são os países desenvolvidos, seguidos dos emergentes (Chi-na, Índia, Brasil, Rússia, México). Porém, ao comparar estes valores emtermos per capita, é fácil perceber que EUA, Canadá, Japão, alguns paísesárabes e os países da União Europeia são os grandes consumidores de ener-gia e outras fontes de recursos naturais, sendo os principais responsáveispela maior parte da pegada ecológica. Os dados de emissões médias mun-diais per capita de CO

2 têm aumentado exponencialmente nas últimas déca-

das, e as projeções são ainda mais alarmantes (UNSD, 2009; Friedlingsteinet al., 2010). Em 1980, cada habitante emitia em média 0,93 t/CO2/ano; jáem 1990, este índice passou para 0,96 t/CO2/ano. No ano de 1999, atingi-mos 1,04 t/CO2/ano e, em 2005, 1,21 t/CO2/ano. Porém, há discrepânciasnas proporções entre os que emitem mais e os que emitem menos CO

2. No

ano de 2008, por exemplo, um cidadão do Catar emitia 53,5 t/CO2/ano; nos

EUA, a média anual foi de 17,5 t/CO2/ano; na China, de 5,43 t/CO

2/ano;

no Brasil, de 1,9 t/CO2/ano, enquanto dezenas de países estão na faixa de0,2 t/CO2/ano, como Guiné-Bissau e Haiti.

Estes índices estão acima da capacidade do ambiente (biocapacida-de) de suportar a pressão antrópica. Para suportar o tamanho da pegadaecológica e reduzir o aquecimento do planeta, admitindo que ocorra umaestabilização do CO

2 na atmosfera em 550 ppm no ano 2050, devem-se

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reduzir as emissões em aproximadamente 60% a 70% em relação às emis-sões do presente. Isso significa baixar os índices que estão em média a 1,25 t/CO2/ano para 0,25 t/CO2/ano per capita, meta esta extremamente difícilde atingir. Para atingi-la, é necessária uma mudança de comportamento deconsumo e uma brusca redução dos níveis de gás carbônico liberado para aatmosfera, ou seja, uma radical descarbonização dos sistemas de produção.

O primeiro motor a “diesel” foi inventado por Rudolf Diesel em 1893,com óleo de amendoim (GUERRA e FUCHS, 2010), em Augsburg, Ale-manha, invenção patenteada em fevereiro de 1897. No entanto, o nomediesel, em homenagem ao seu inventor, foi dado ao produto oleoso maisabundante obtido na primeira fase de refino do petróleo bruto. Porém, to-dos os motores a injeção podem funcionar com óleo diesel, desde que regu-lem a pressão no sistema de injeção, ou com qualquer tipo de óleo, tanto deorigem vegetal (como óleo de amendoim) quanto animal (como é o caso dagordura de porco). No entanto, com o uso cada mais intensivo de derivadosde petróleo nos anos 1930, o uso de biodiesel foi totalmente abandonado esó retomado na década passada.

Segundo Gazzoni (2007), a geração de energia por fontes renováveisserá um dos mais importantes negócios do mundo, sucedâneo do complexoenergético e químico baseado no carbono fóssil. Nesse novo paradigma, háum espaço enorme para o crescimento da energia gerada a partir de biomas-sa. Até 2050, o volume de recursos movimentado pela agricultura de energiaserá superior ao conjunto dos demais componentes do agronegócio (alimen-tos, fibras e ornamentais). Os principais fatores que impulsionam a retomadae o desenvolvimento tecnológico para o aproveitamento da biomassa energé-tica são: crescente preocupação com as mudanças climáticas, e os custosambientais serão paulatinamente incorporados ao preço dos combustíveisfósseis; aumento da demanda e preço, com redução das reservas e aumentodo custo de extração (1:100 em 1970 – 1:20 em 2010 na Arábia Saudita);conflitos regionais, descumprimento de contratos sobre petróleo e a impor-tância da energia de biomassa para a transição a uma nova matriz energética,substituindo o petróleo como combustível ou insumo para a indústria química.

Dentre as pressuposições para estas previsões cabe destacar que osagrocombustíveis são “limpos e verdes, não irão causar desmatamento, irãogerar desenvolvimento rural, não causarão fome e a segunda geração deagrocombustíveis aperfeiçoados já está a caminho”. Entretanto, estas pos-

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síveis características e implicações não só não são aceitas, como tambémquestionadas.

Como as consequências do aquecimento global já estão de fato ocor-rendo e o petróleo deve se tornar escasso ou até terminar num curto espaçode tempo, não resta outra alternativa a não ser buscar uma solução para aquestão energética. A opção pelo uso de combustíveis a partir de plantas éde fato uma alternativa, cujos tipos, fontes, características e possíveis con-sequências serão abordadas neste artigo.

Tipos principais de combustíveis extraídos de plantas

Por agrocombustiveis podem-se compreender os produtos da agri-cultura que possam ser utilizados como combustíveis. Exemplos destes pro-dutos são óleos de plantas que podem ser transformados em biodiesel eetanol, produzidos por cana ou mesmo outros óleos de origem animal, apartir da transformação das graxas animais. Há várias outras substânciasproduzidas por plantas que igualmente poderiam ser utilizadas como com-bustíveis. Os combustíveis extraídos de plantas são, portanto, denomina-dos de agrocombustíveis. Embora haja autores e autoridades governamen-tais que os chamam de biocombustíveis, neste artigo serão chamados deagrocombustíveis em razão tanto da forma como são obtidos como tam-bém das externalidades negativas que causam.

Combustíveis produzidos a partir de biomassa estão baseados no tri-nômio água, terra e sol. As plantas convertem energia do sol através dafotossíntese e a armazenam de duas formas distintas: através dos hidratosde carbono, como o açúcar, amido e celulose (ou carboidratos), e a partirde límpidos (que são os óleos vegetais). Estes podem dar origem ao etanol eao biodiesel, respectivamente.

Quando ocorre a combustão de uma planta ou derivado desta, libe-ra-se a energia do sol que foi convertida em energia química nessa planta.Portanto, quando se utiliza a biomassa na forma de lenha, etanol ou bio-diesel, o que se está a utilizar é a energia solar que foi armazenada numadeterminada espécie vegetal. Através da fotossíntese são absorvidos gasesde efeito estufa (ex: CO

2) e liberado O

2. Desta forma, ao produzir energia

através de biomassa, as emissões são menores se comparadas aos combus-tíveis fósseis.

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A produção de petróleo leva 200 milhões anos para se tornar fonte deenergia utilizável. Já a produção de biomassa para agrocombustíveis ocor-re em pouco tempo: o girassol leva 80 dias para isso, a canola 150 dias, acana-de-açúcar 300 dias e as algas apenas horas ou dias. Existe uma grandediversidade de fontes de biomassa energética que são utilizadas para gerardeterminada energia, podendo ser agrupadas em quatro grupos: florestas(lenha, carvão e briquetes); resíduos (serragem, casca de arroz, dejetos ani-mais); biodiesel (óleos vegetais e gorduras animais); e etanol (cana-de-açú-car, mandioca, batata, cogeração).

Em termos de agrocombustíveis líquidos, basicamente são dois tiposde combustíveis que atualmente são os mais produzidos de plantas: etanole óleo vegetal, que, por sua vez, é transformado em biodiesel. No entanto,muitos outros poderiam ser produzidos, como, por exemplo, o butanol,álcool de quatro átomos de carbono, que possui potência equivalente à dagasolina e dispensaria os gastadores motores flex. Atualmente, esta alter-nativa foi desprezada pelo país, mas está sendo desenvolvida em outrospaíses, como a Inglaterra.

No Brasil, a área ocupada com culturas agrícolas para agrocombustí-veis é inferior a 1% do território, sendo que na safra 2009/10, 4,14 milhõesde hectares (0,49%) de cana de açúcar foram destinadas à produção de eta-nol. No caso da soja, estima-se que foram usados 3,2 milhões de hectares(0,38%), de uma área total de 23,2 milhões de hectares, com esta cultura,ou seja, apenas 13,8% da soja nacional são destinados à produção de bio-diesel (Fernandes, 2010).

Etanol de plantas – Na cana-de-açúcar, o próprio caule já é constituídopor 20% de açúcar, o que permite o início da fermentação logo depois deela ser cortada. No Brasil, a cana-de-açúcar é a principal espécie utilizadana produção de etanol. Um canavial produz de 5,7 mil a 7,6 mil l/ha deetanol. Comparativamente, a produção no Brasil é significativamente supe-rior ao etanol dos demais países produtores. Dados apontam que nos EUAsão produzidos 3,1 mil l/ha com milho, na União Europeia são 5,4 mil l/ha com beterraba, na Índia são 5,2 mil l/ha com cana-de-açúcar e na Tai-lândia, 3,1 mil l/ha a partir da mandioca (TETTI, 2007).

Em 2008, o Brasil já cultivava cana-de-açúcar em mais de 8,7 mi-lhões de hectares (aproximadamente 11% da área cultivada no país), pro-duzindo cerca de 580 milhões de toneladas de cana (KOHLHEPP, 2010),

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sendo parte transformada em etanol combustível. Se o mercado do álcoolde cana continuar a ser demandado, como prevê a EPE (2008), o país salta-rá de 20,3 bilhões de litros em 2008 para 53,2 bilhões de litros em 2017.Como o etanol de cana continua a ser o foco praticamente único das políti-cas públicas e do setor sucroalcooleiro brasileiro, a área de cultivo com acana-de-açúcar deverá crescer rapidamente, acompanhada das externalida-des negativas.

Em outros países, como nos Estados Unidos, o amido contido nos grãosde milho é também utilizado para produzir combustível, o etanol. Todavia,este amido tem de ser transformado em açúcar com a ajuda de dispendiosasenzimas antes de ser fermentado, para geral o álcool combustível.

A mandioca apresenta maior potencial que a cana-de-açúcar paraprodução de etanol por tonelada, pode ser produzida em usinas mais bara-tas e se adapta melhor à agricultura familiar. Numa crise de preços, é maisfácil direcionar a mandioca para a alimentação do que a cana-de-açúcar(FUCHS, 2007). No entanto, o principal limitador da planta ainda é a pro-dutividade. De acordo com Ereno (2006), a mandioca produz em média 14t/ha/ano (211 litros/t) e a colheita é um processo lento e trabalhoso, en-quanto a cana-de-açúcar produz 74 t/ha/ano (85 litros/t), apresentandomecanização em todas as etapas, desde o plantio até a colheita. Outra des-vantagem da mandioca é o custo de produção, que é cerca 50% superior aoda cana. Esses fatores não tornam, momentaneamente, a mandioca umaopção competitiva; porém, seu potencial é extraordinário.

O etanol de celulose também é uma alternativa, e atualmente o pro-cesso utilizado recupera 45% do teor energético da biomassa sob a formade álcool. A rigor, seria possível obter álcool de praticamente todas as plan-tas, já que tanto os açúcares como os carboidratos e a celulose podem serprocessados para a obtenção de distintos tipos de álcoois. Também já éadmitido que seja possível produzir gasolina a partir de celulose (REGAL-BUTO, 2009).

Biodiesel de plantas – O segundo tipo de agrocombustível mais pro-duzido no Brasil é o biodiesel. O biodiesel é constituído por uma misturade ésteres de ácidos graxos através da reação de transesterificação de trigli-cerídeo com álcool (metanol ou etanol) na presença de um catalisador. Osprodutos do processo são biodiesel (86%), glicerina (9%) e álcool (5%), queé reprocessado.

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A Lei 11.097/2005 estabelece as percentagens mínimas de mistura debiodiesel no óleo diesel mineral. Em 2011, a mistura obrigatória foi de 5%;porém, o governo federal estuda aumentar o índice mínimo, aumentandotambém a obrigatoriedade de aquisição de matéria-prima da agricultura fa-miliar para as empresas beneficiadas com o Selo Combustível Social.

O uso de biodiesel traz, entre outras, as seguintes vantagens, compa-rativamente ao combustível de origem fóssil (petróleo):

• é energia renovável, constituído de carbono, que é capturado por meioda fotossíntese realizada pelas plantas, que, por sua vez, produzeme armazenam óleos vegetais, ou pelo anabolismo em animais, queproduzem gorduras;

• é uma alternativa econômica ao combustível de origem fóssil, que éfinito;

• gera na sua combustão somente água e gás carbono, contribuindopara evitar a emissão de gases de efeito estufa;

• é menos poluente que o óleo diesel, uma vez que não possui em suaestrutura molecular enxofre (S), não gerando, assim, compostos se-cundários indesejáveis, como os sulfurados, que são contaminantesda atmosfera terrestre;

• oferece uma alternativa de autossuficiência para a agricultura fami-liar, pois o agricultor que produzir o óleo vegetal ou álcool poderáutilizá-lo como tal ou transformá-lo em combustível;

• é uma estratégia de redução de custos da produção agrícola, se forutilizado localmente, já que o óleo vegetal ou álcool não necessitaviajar milhares de quilômetros, nem recolher impostos, como osderivados de petróleo;

• é um ótimo lubrificante, aumenta a vida útil do motor e, com baseem suas condições físico-químicas, pode ser misturado em qualquerproporção com o diesel;

• possui maior Índice de Cetano que o óleo diesel, oferecendo maiortorque ao motor que o utiliza;

• pode, dependendo da política agrícola governamental, gerar traba-lho e renda, evitando ou minimizando a migração do meio ruralpara o meio urbano.

Embora o Brasil sendo o país megadiverso, mais de 90% da produçãode biodiesel do Brasil no período 2009 a 2011 foi a partir de grãos de soja.Porém, em relação à soja é importante mencionar que o óleo é considerado

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resíduo no Brasil e a parte nobre é o farelo, que é a maior fonte de proteínaanimal utilizada. Assim, a avaliação da sustentabilidade do biodiesel desoja deve considerar a cadeia do biodiesel e a cadeia da produção de prote-ína animal (alimento), ambas desenvolvidas e estruturadas, bem como suasexternalidades negativas, que ainda precisam ser melhor quantificadas.

Atualmente, a capacidade instalada das indústrias de soja é superiorà produção de biodiesel, sendo que as duas regiões do país que mais produ-zem são o centro-oeste e o sul. Uma única espécie vegetal (soja) é responsá-vel por mais de 90% da matéria-prima, e tudo indica que, até 2020, vaicontinuar a ser o ingrediente dominante do biodiesel, isto porque tem todauma logística estruturada que vai desde a produção, a pesquisa e o mercadoaté a indústria. Migrar para culturas de maior potencial energético e produ-tivo requer uma transição planejada de alguns anos, alicerçada em sólidosprogramas de fomento a pesquisa, crédito e logística. Segundo os dados doPrograma Nacional de Agroenergia, em 2020 a soja ainda será responsávelpor 57% da matéria-prima de biodiesel, o sebo bovino por 4% e as demaisfontes por 39%, com maior participação de culturas perenes. Mas isto éapenas uma previsão dos órgãos governamentais brasileiros.

Da mesma forma que a cana, a produção de biodiesel é cercada decríticas. Sob o ponto de vista da realidade brasileira, a opção imediata foipela soja, tendo em vista as condições estruturantes já citadas e pela imediatanecessidade do país cumprir tratados internacionais de redução das emis-sões de gases de efeito estufa por combustíveis fósseis. No entanto, aquidestacamos dois pontos de vista importantes: valorização da cadeia da sojae eficiência energética desta espécie. Primeiro, o biodiesel valorizou e au-mentou a oferta de farelo (alimento de aves e suínos, principalmente) e deóleo de soja no país. Em 2005, anteriormente ao biodiesel, o óleo de sojaera considerado subproduto e valia US$ 238/t, e, em 2010, o preço passoupara US$ 865/t. Já no caso do farelo, o país exportava grão inteiro, o queacarretava baixa oferta interna e baixo preço da commodity. Antes do pro-grama, a tonelada era vendida a US$ 199/ton, e, em 2010, a US$ 345,00.Assim, o programa do biodiesel possibilitou maior disponibilidade de fare-lo e dinamizou diversas outras cadeias relacionadas. O segundo ponto estárelacionado ao balanço energético do biodiesel de soja; na literatura encon-tram-se valores que variam de negativo até 3,0 positivo. Este é um aspectocentral a ser analisado, pois o gasto energético para produzir uma caloriade biodiesel de soja é pouco inferior à energia gerada; ou seja, o saldo posi-

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tivo é muito baixo e não considera todas as externalidades ambientais e desaúde humana. A seguir discute-se o balanço energético de algumas cultu-ras utilizadas para produzir agrocombustíveis.

Agrocombustíveis de outros recursos genéticos vegetais – Recente-mente, o país adotou estratégias para diversificar a matéria-prima para aprodução de biodiesel, visto que é muito arriscado atingir grandes metas demistura de agrocombustíveis com uma base reduzida de oleaginosas, comoé o caso da soja, que apresenta eficiência energética muito baixa.

Existem centenas de plantas nativas do país que também produzemóleo vegetal em quantidades economicamente industrializáveis (Tabela 1).Mas, como mencionado, mais de 90% da produção de biodiesel no Brasilnos últimos anos foi a partir de grãos de soja. Outra espécie exótica queocupou importância nas políticas públicas foi a mamona. A mamona é umaespécie que se adapta bem às regiões semiáridas comparativamente a outrasespécies. Além disso, 47% de suas sementes possuem óleo vegetal de altaqualidade, pois resistem a temperaturas elevadas. No entanto, os programasoficiais para produzir biodiesel a partir de mamona apresentaram sinais defracasso no país. Este fracasso se deveu ao menor rendimento de sementespor área do que o governo previra, bem como ao preço do óleo vegetal demamona para outros usos mais nobres do que como combustível.

Tabela 1: Número de espécies estudadas quanto à produção de óleo no Brasil

Família Número de espécies Família Número de espéciesque produzem óleo que produzem óleosobre o total da família sobre o total da família

Anacardiaceae 11 / 68 Flacourtiaceae 1 / 925

Apiaceae 20 / 98 Lecythidaceae 6 / 105

Arecaceae 32 / 300 Linaceae 53 / 36

Asteraceae 28 / 1900 Lythraceae 108 / 143

Boraginaceae 10 / 93 Malvaceae 59 / 200

Brassicaceae 105 / 92 Onagraceae 41 / 43

Chrysobalanaceae 5 / 180 Proteaceae 3 / 32

Cucurbitaceae 29 / 200 Sapotaceae 18 / 103

Euphorbiaceae 145 / 1100 Sterculiaceae 26 / 115

Fabaceae 85 / 1550 Vitaceae 0 / 46

Fonte: Dr. J. T. Valls (adaptado de: SILVA, 2002).

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Porém, existem espécies de palmáceas que têm muito potencial paraa produção de óleos: o dendê, a macaúba e o babaçu são plantas típicas donordeste e do norte do país, plantas perenes com até 30 anos de produção eque produzem a partir do quarto ou quinto ano de vida, com a vantagem deque a parte do caroço também pode ser aproveitada para a produção ener-gética. Em termos de potencial, o dendê pode produzir até sete vezes maisóleo por hectare do que a soja, que produz apenas de 500 a 600 L/ha. Odendê poderia ser uma das melhores apostas para a produção de óleo paraagrocombustíveis no Brasil, pois produz 5 mil litros por hectar de óleo emais 15 mil kg de caroço, que é um excelente combustível como fonte decalor.

Outra espécie que se adapta muito bem às condições da agriculturafamiliar é a macaúba (Acrocomia aculeata), que produz mais de 4 mil quilosde óleo por hectare, além do aproveitamento de outros componentes dofruto. De qualquer forma, o melhor desenho é compor um mix de culturasoleaginosas em substituição da soja, aliado a policultivos e uso em áreas jádegradadas ou em áreas não ocupadas com a produção de alimentos.

Os avanços científicos e tecnológicos apontam que no futuro um hec-tare de algas, em condições ambientais e nutricionais adequadas, tem po-tencial de produzir mais de 100 mil litros de combustível a cada ano.

Também é possível produzir agrocombustíveis a partir de celulose.Bactérias geneticamente modificadas já estão sendo testadas para produziragrocombustíveis. Por exemplo, a bactéria Escherichia coli transgênica podefazer biodiesel diretamente de açúcares ou hemicelulose, que é um compo-nente das fibras das plantas. Segundo a revista Nature (Altered microbe makesbiofuel. Nature, v. 463, p. 409, 2010), o processo tem grande promessa, oque pode justificar sua comercialização.

No entanto, projetos utilizando a transgenia também têm sido criti-cados. Se processos rentáveis e sustentáveis podem ser desenvolvidos, osbenefícios potenciais destas tecnologias como um bem parecem apelativose incluem a produção em terras não aráveis de biodiesel, metanol, butanol,etanol, combustível para a aviação e hidrogênio, utilizando lixo, resíduo ouágua salina, como também CO2 de fontes industriais ou atmosféricas (Na-ture Biotechnology, v. 28, n. 2, p. 126, 2010).

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O balanço energético dos agrocombustíveis

O balanço energético estabelece a relação entre o total de energiacontido no agrocombustível e o total de energia investido em todo o proces-so de produção, incluindo as etapas agrícolas e industriais. Os agrocombus-tíveis constituem grandes consumidores de insumos agrícolas, com desta-que para a soja, cana, milho, trigo, mandioca e outras culturas. No entanto, amaioria dos agrocombustíveis apresenta sinais de baixa eficiência energética.Indicadores do balanço energético são ilustrados na Figura 3.

Figura 03: Balanço energético dos principais agrocombustíveis

Fonte: Worldwatch Institute, 2006.

Por terem maior insolação, culturas de regiões tropicais são geral-mente mais competitivas em termos de balanço energético, especialmenteas plantas com fotossíntese do tipo C4. Uma das plantas mais competitivasé a cana-de-açúcar (tipo C4), pois para cada caloria que consome produz8,2 calorias, dando origem a um combustível que reduz o carbono liberadono planeta. O trigo tem apenas um balanço energético de 2,0, enquanto odo óleo de palma é 9,0 e o da soja é de apenas 3,0. As culturas perenes emgeral têm uma eficiência maior do que culturas anuais e geram menor im-pacto ambiental, exceto em sistemas de monocultivos que demandam fon-tes externas de nutrientes e agrotóxicos.

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É possível evitar o confronto entre produção deagrocombustíveis e suprimento de alimento?

Os agrocombustíveis líquidos são os que apresentam maior cresci-mento no setor agroenergético, visto que são produzidos prioritariamente apartir de cultivos agrícolas. Os EUA são o maior produtor e exportador demilho, responsáveis por 60% da produção mundial, sendo que utilizam 30%de sua produção para o etanol. Um aumento na escala de etanol poderáacarretar menor oferta deste grão para a alimentação de várias nações queimportam o cereal. Situação semelhante ocorre nos países que produzemetanol a partir de outros grãos. Tanto na Europa como nos EUA, pratica-mente não existem mais áreas disponíveis para cultivos de agrocombustíveis,e as metas de mistura somente serão alcançadas através da importação.

As condições ambientais favoráveis das zonas tropicais em relação àdisponibilidade de água, terra e sol, aliadas à possibilidade dos capitais es-peculativos controlarem o expansivo mercado internacional dos agrocom-bustíveis, são razões para que o capital internacional se voltasse para o he-misfério sul, em especial para aqueles países com know-how, abundância deterras e legislação frágil. No Brasil estão ocorrendo diversos reflexos disso:áreas de terras e usinas de etanol ou biodiesel passaram a ser compradaspor grupos estrangeiros; parcial substituição de algumas culturas agrícolaspor agrocombustíveis; aumento do uso de agrotóxicos, relacionado direta-mente ao aumento dos monocultivos, principalmente da soja. No períodode 2001 a 2010, no Brasil o volume de agrotóxicos utilizados na agriculturaquase dobrou, com consequências negativas ao meio ambiente e à saúdehumana.

Segundo previsões da FAO (2008), até o ano de 2020 a populaçãomundial sofrerá um aumento de 25%, passando dos atuais 6,2 para 8,3bilhões de pessoas, e a produção de alimentos deverá crescer das atuais2,45 para 3,97 bilhões/t/ano. Esse incremento, aliado à melhoria da renda,demandará esforços na direção do aumento da eficiência no uso dos solos euma clara definição do papel dos agrocombustíveis, haja vista que as metasestipuladas levam a um aumento no uso destes.

Atualmente, países com um passado recente em restrições alimenta-res passaram a consumir mais calorias diárias, muitas destas vindas de mi-lhares de quilômetros. Esse aumento no consumo alimentar está direta-

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mente relacionado ao crescimento da renda, sendo que nas grandes econo-mias emergentes, como China, Índia, Brasil e México, o consumo crescen-te de alimentos marcha a par do desenvolvimento econômico, e este é umdos principais fatores que sustentam a firme demanda mundial de alimen-tos (Cordeu, 2008). Juntos, esses países possuem mais de 40% da popula-ção mundial e impactarão significativamente o consumo alimentar. Ape-nas uma porção diária de proteína animal para cada cidadão destes paísesterá como reflexo um adicional de milhões de toneladas de grãos, e novasáreas de pasto terão que ser manejadas ou convertidas em maior produtivi-dade. A questão é: como os agrocombustíveis impactarão a oferta de ali-mentos? Sem dúvida, a resposta passa pela maior eficiência no uso dossolos, pela redução global no consumo de recursos naturais, em especialnos países ricos, pela distribuição de renda e acesso à educação, pela mu-dança de atitudes e pela menor utilização de produtos agroquímicos.

A produção de carne bovina ocupa 170 milhões de hectares no Brasile está associada a 75% dos desmatamentos que ocorrem no país. Desteponto de vista, a carne atualmente faz parte do problema, pois sua produ-ção é ineficiente e exige grandes áreas para a produção de pasto e terraspara a produção de grãos que alimentarão os animais. Todos os anos, nomundo inteiro são utilizados 465 milhões de toneladas de grãos somentepara alimentar o gado. E por que isso é ineficiente? Porque para se produzir1 caloria de carne de gado, frango ou suíno são necessárias de 11 a 17 calo-rias de grãos. Os grãos são usados mais eficientemente quando consumidosdiretamente pelo homem; ou seja, do ponto de vista energético e ambien-tal, é melhor o ser humano basear a sua alimentação nos vegetais, pois orendimento energético é superior.

Segundo dados da Revista Brasileira de Bioenergia (2008), a disponibili-dade em abastecimento alimentar adequado a nível global poderia ser ame-açada pela produção de bioenergia, se terras e outros recursos produtivosforem desviados da produção de cultivos alimentares em proporção signifi-cativa no planeta. O aumento nos preços dos alimentos está mais associadoa fatores como a falta de planejamento do setor durante muitos anos, even-tos climáticos cada vez mais frequentes, o baixo estoque de grãos, o altopreço do petróleo, a restrição à exportação posta em prática por vários paísese a especulação nos mercados agrícolas. O grau de concorrência entre oscultivos energéticos e a produção de alimentos de forrageiras dependerá,

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entre outras coisas, dos progressos futuros no que diz respeito ao rendimen-to dos cultivos, na eficiência da alimentação de gado e nas tecnologias deconversão da bioenergia (FAO, 2008).

Em 2010, os agrocombustíveis ocuparam 1% da área total do plane-ta, e as perspectivas são de que em 2030 ocupem 3 a 4%; portanto, umaumento significativo. As pastagens ocupam 3,5 bilhões de hectares, e, comojá mencionado, são caracterizadas pela baixa eficiência. Estudos sugeremque, convertendo 1% das áreas de pastagem para agrocombustíveis, o pla-neta teria mais 35 milhões de hectares disponíveis para culturas energéti-cas. De outra forma, aumentando a eficiência de produção dos solos agrí-colas em apenas 5%, teríamos 175 milhões de hectares disponíveis para aprodução de alimentos ou agrocombustíveis. É evidente que não é possívelfazer isto da mesma forma, nem ao mesmo tempo e em qualquer parte domundo, pois existem fatores de pressão sobre a terra, sobre os recursos na-turais e fatores sociais. Então, outras questões a serem respondidas: Emque sistemas de produção existe compatibilidade entre agroenergia e ali-mento? Aumentando em 20% a eficiência energética em todos os sistemasprodutivos (indústria, transporte, iluminação, agricultura, energia elétrica,construções, entre outros), haveria necessidade do uso de agrocombustí-veis? Certamente muito menos do que atualmente se utiliza.

Um dos maiores desafios da sociedade atual é compatibilizar o usodos recursos naturais, suprindo adequadamente a todos com fontes de ener-gia e alimentos, combater a miséria e o analfabetismo, cuidando do meioambiente para as gerações futuras. Certamente, um dos maiores problemasrelacionados à pobreza está associado à falta de acesso a renda pelas popu-lações pobres, somado aos efeitos climáticos, a perda da diversidade genéti-ca, perda de terras e a conflitos. “O aumento no preço dos alimentos costu-ma afetar mais os países pobres do que os ricos. Nos países ricos a percenta-gem das despesas com alimentos, em relação ao total das despesas familiares,é de 10%, enquanto nos países mais pobres é de 60%” (FAO, 2008). O riscode aumentar o preço dos alimentos em decorrência dos agrocombustíveis éconstante, na medida em que comer e abastecer um veículo estão coloca-dos lado a lado, não havendo prioridade para o alimento.

O grau em que a produção de agrocombustíveis poderá afetar os pre-ços dos alimentos está também diretamente relacionado às políticas de in-centivos e à velocidade de sua expansão, que, por sua vez, está também

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associada aos preços do petróleo. Desta forma, a energia da biomassa tempotencial de representar tanto ameaças como oportunidades à segurançaalimentar. O avanço tecnológico poderá produzir combustíveis da biomas-sa sem comprometer a produção de alimentos; porém, não é possível des-considerar que o mercado sempre está a procura de lucro, não tem frontei-ras e muito menos é solidário.

Externalidades negativas decorrentes do usode plantas para produzir energia

Uma das questões centrais decorrentes da produção de energia naagricultura, particularmente de agrocombustíveis, com o sistema de agri-cultura industrial (química) majoritariamente praticado, está atualmenterelacionada com as externalidades negativas, tanto para a saúde humana(SILVA, 2006), como para o meio ambiente (NODARI, 2010).

Como mencionado, o primeiro motor a óleo (que atualmente deno-mina-se motor a diesel) utilizava óleo de amendoim para o seu funciona-mento. Posteriormente, os combustíveis derivados de plantas foram substi-tuídos pelos derivados de petróleo. Por diversas razões (p. ex.: custo, polui-ção e outras externalidades negativas do petróleo), fontes alternativas decombustíveis foram e têm sido apregoadas e utilizadas. Assim, agrocom-bustíveis como o etanol (de cana-de-açúcar ou de milho) e biodiesel (desoja) vêm sendo utilizados em quantidades cada vez maiores.

Quão verdes são os agrocombustíveis? As divergências sobre as externa-lidades dos agrocombustíveis ainda estão longe de acabar. O álcool de cana-de-açúcar produz até 60% menos gases de efeito estufa. No entanto, causa impac-tos ambientais bem maiores do que a gasolina se outros parâmetros foremconsiderados. Em estudo publicado na revista Science (How Green Are Bio-fuels? Science, v. 319, n. 5859, p. 43-44, 2008), dos 26 tipos de biocombustíveisfeitos no mundo, 21 deles reduzem em mais de 30%, em comparação com agasolina, as emissões de gases que contribuem para o efeito estufa. Mas 12 dos26 são mais nocivos para o ambiente do que os combustíveis fósseis, dentreeles: o álcool de milho dos Estados Unidos, o da cana-de-açúcar do Brasil, obiodiesel, tanto o brasileiro, de soja, quanto o da Malásia, de palma.

Por exemplo, as externalidades na produção de açúcar são: ela contribuipara o aumento do efeito estufa, queimadas, uso de muita água, poluição de

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rios e uso, em grandes quantidades, de fertilizantes nitrogenados que geramóxidos de nitrogênio. No entanto, o artigo acima referido afirma que as exter-nalidades da soja são piores do que as da cana-de-açúcar em razão do usointensivo de fertilizantes, inclusive os nitrogenados, e de agrotóxicos.

O conceito de energia “limpa” e “renovável” deve ser discutido apartir de uma visão mais ampla, que considere os efeitos negativos destasfontes. No caso do etanol, o cultivo e o processamento da cana poluem osolo e as fontes de água potável, pois utilizam grande quantidade de produ-tos químicos. Cada litro de etanol produzido consome cerca de12 litros deágua, o que representa um risco de maior escassez de fontes naturais e aquí-feros (Rede Social de Justiça e Direitos Humanos, 2008). Num período de30 anos, se as emissões da conversão da terra são levadas em conta, o etanolde milho produz duas vezes mais emissões de gás do efeito estufa do que agasolina, por cada milha percorrida (Searchinger et al., 2008). Resultadossimilares foram relatados por Fargione et al. (2008) para etanol e biodiesel.

Há uma forte tendência de expansão da produção de etanol objeti-vando atender, sobretudo, a demanda de curto e médio prazo do mercadointernacional, e as plantações de cana-de-açúcar passarão, de uma área plan-tada na safra 2007/2008 de 6,9 milhões de ha, para 28 milhões de ha em2017 (EPE, 2008), o que pode provocar impactos econômicos, sociais eambientais que podem tornar essa estratégia de crescimento, do ponto devista social e ambiental, insustentável.

O biodiesel obtido a partir da colza e o etanol de milho podem provo-car 70% e 50% mais emissões, respectivamente, do que os combustíveisfósseis (Crutzen e Smith, 2007; Prêmio Nobel de Química em 2007). Umadas razões é que a destilação desses vegetais libera mais que o dobro deóxido nitroso do que se supunha até 2007, um forte gás causador do efeitoestufa, devido ao uso de fertilizantes que contêm nitrogênio. Cerca de 80%do agrocombustível da Europa provêm da colza, enquanto nos Estados Uni-dos se usa fundamentalmente o milho para fabricar etanol. O cultivo decana no Brasil também utiliza grandes quantidades de fertilizantes quími-cos nitrogenados. Segundo os autores, “provavelmente, não oferecem ne-nhum beneficio e, de fato, estão piorando a situação”.

Porém, outras fontes de pesquisa apontam na direção oposta. Segundodados do BNDES/CGEE (2008), as emissões evitadas de gases de efeitoestufa pelos agrocombustíveis são: na cana-de-açúcar, 89%; no milho a vari-

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ação é de –30% a 38%; no trigo este índice é de 19% a 47%; na beterraba variaentre 35% e 56%. Já nos agrocombustíveis, a partir de mandioca as emissõesevitadas são de 63% e, nos resíduos lignocelulósicos, variam de 66% a 73%.

Por outro lado, é comum a produção de agrocombustível empurrarboi para a mata. Aumentar produção sem controle fundiário desmataria,até 2020, uma área maior que a Paraíba. A troca de petróleo por álcool decana e biodiesel levaria 250 anos para compensar as emissões provocadaspor tal desmate. Se a tendência atual de mudanças no uso da terra continuar,plantações de cana-de-açúcar e soja tomarão o lugar de pastagens, e estasserão empurradas para áreas de floresta, desmatando e emitindo carbono(Lapola et al., 2010). Se o Brasil cumprir seu objetivo para 2020 – aumentarem 35 bilhões de litros a produção de álcool e em 4 bilhões de litros a debiodiesel de soja –, essas duas culturas aumentariam a área ocupada pelaspastagens para cerca de 60 mil km2 de floresta.

A ciência, a tecnologia e as políticas públicas ajudaram a criar estescenários insustentáveis. A demanda por mais energia contrasta com a ne-cessidade de reverter as ameaças aos serviços ecossistêmicos, que decorremexatamente do consumo demasiado de energia. Cabe, então, à ciência, àtecnologia e às políticas públicas desenvolver conhecimento e apoio à pro-dução de agrocombustíveis que seja ecologicamente sustentável e sem ris-cos à saúde humana e à segurança alimentar.

Conclusões

Paradoxalmente, sendo o país de maior biodiversidade do planeta, oBrasil insiste em produzir agrocombustíveis a partir de espécies exóticas,como cana-de-açúcar e soja, apesar das externalidades negativas não com-putadas no saldo final. De outra forma, é preciso que as políticas públicas eos planos governamentais sejam imediatamente revistos, para que espéciesnativas de alto potencial de produção de combustíveis sejam utilizadas deforma sustentável.

No Brasil, a substituição da área de produção de alimentos por agro-combustíveis apresenta ainda uma dinâmica diferenciada do restante do mun-do, pela quantidade de alimentos produzidos. Entretanto, é imprevisível comoa expansão da área de cultivos agrícolas destinados à produção de combustí-veis afetará a produção e os preços dos alimentos, bem como a qualidade devida dos brasileiros.

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De uma forma geral, para que os agrocombustíveis sejam implemen-tados mundo afora, é importante que atendam determinadas condições,como capacidade de redução das emissões de gases de efeito estufa, aliadaa um balanço energético altamente positivo; que os custos finais sejam com-petitivos frente aos combustíveis fósseis, consideradas todas as externalida-des negativas (socioambientais e na saúde humana); que promovam o de-senvolvimento sustentável do meio rural, incluindo agricultores familiares,camponeses e outros povos tradicionais a partir de matérias-primas da re-gião, aprimorando tecnologias orientadas à pequena escala, de baixo im-pacto social e ambiental; e a produção de energia da biomassa não concor-ra com a produção de alimentos nem a pressione.

Finalmente, a agricultura familiar (ICEPA, 2004) pode fazer a dife-rença tanto em termos de eficiência energética quanto em termos socioam-bientais. São muitas as razões para que os agricultores devam se envolverneste processo. A primeira e mais óbvia é a elevação dos preços dos com-bustíveis, em grande parte devido ao aumento da demanda e à escassez dopetróleo, o que eleva os custos de produção de alimentos. A segunda razãoé o sistema agrícola desenvolvido e imposto aos agricultores nos últimos50 anos, altamente dependente de insumos e energia, que tem como in-gredientes básicos os derivados de petróleo. A terceira razão é que existemmuitas fontes e formas de produzir e utilizar a energia, o que possibilita adiversificação das fontes e usos. Em quarto lugar, a riqueza de espécies vege-tais e a diversidade de ecossistemas oportunizam soluções locais ou regionais(Nodari, 2010). Por fim, o sistema de produção e uso dos recursos genéti-cos vegetais deve ser feito com princípios e processos agroecológicos, o quepor si só já é garantia de sustentabilidade ambiental.

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A Exposição Nacional do Rio de Janeiro (1875)e os seus impactos na produção agropecuária

e nas ciências naturais

João Klug

As exposições agropecuárias fazem parte de minha trajetória de vidae deixaram marcas indeléveis em minha biografia. Aos 11 anos de idade,fui com meus pais visitar a Exposição Agropecuária de Londrina, PR. Foiminha primeira “viagem”, e justamente para conhecer uma exposição.Como criança que vivia no meio rural, num pequeno sítio em Cidade Gaú-cha, noroeste do Paraná, aquela viagem a Londrina, nos idos de 1967, dei-xou suas marcas. Uma delas foi, sem dúvida, o fato de, anos mais tarde, euvir a estudar Medicina Veterinária. Como estudante de Veterinária em Pe-lotas, RS, participei ativamente em exposições e feiras agropecuárias regio-nais e da renomada Exposição Internacional de Esteio, a EXPOINTER.

Atualmente, não mais como veterinário, mas como historiador, te-nho examinado algumas fontes documentais relativas ao tema, quer se-jam exposições mundiais, nacionais ou regionais, e percebo que as expo-sições causaram e continuam causando impactos de amplitude e alcancevariados.

Na segunda metade do século XIX, as grandes exposições mundiaisproliferaram na Europa. Para os países participantes eram, simultaneamente,uma espécie de “peça publicitária” e um espetáculo da modernidade. Osvários países apresentavam o que de mais significativo tinham em termosde recursos naturais, indústria e potencialidades. Também eram o espaçopara apresentar o exótico e/ou “curiosidades”, quer do mundo animal, ve-getal ou mineral.

As exposições mundiais tiveram início com a Exposição de Londres,em 1851, seguida por: Paris (1855), Londres (1862), Porto (1865), Paris(1867), Madri (1871), Paris (1872), Viena (1873), Filadélfia (1876), Paris(1878), Sidney (1879), Melbourne (1880), Berlim (1882), Paris (1900). Per-

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cebe-se nesta relação que Paris se destaca, sediando cinco edições de expo-sições mundiais na segunda metade do século XIX.

O Brasil iniciou sua participação nestes eventos a partir da Exposi-ção Mundial de Londres em 1862. Nesta edição, o Brasil participou expon-do máquinas, material de estrada de ferro e armamentos; no entanto, aconcentração maior era de produtos agrícolas e extrativos.1 Foram premia-dos, nesta exposição, o café e a cerâmica marajoara.

Neste contexto, a partir de 1861, o Brasil iniciou as suas exposiçõesnacionais. Entre 1861 e o advento da República em 1889, foram promovi-das seis edições de exposições nacionais, as quais serviam também comopreparatórias e classificatórias para a escolha de representantes brasileirosnas exposições internacionais. Diversas províncias brasileiras realizavamas suas exposições provinciais, antecedidas por algumas exposições colo-niais, como, por exemplo, em Santa Catarina. O Dr. Hermann Blumenau,diretor da colônia homônima, juntamente com alguns colonos, foi premia-do em exposições nacionais, chegando mesmo a ser premiado nas exposi-ções internacionais de Paris (1867) e Filadélfia (1876). A premiação da co-lônia de Blumenau em Paris rendeu ao seu diretor muito prestígio e credibi-lidade junto ao imperador D. Pedro II e seu Ministério da Agricultura.Amparado nesta credibilidade auferida, Blumenau elaborou uma propostade realização de exposições coloniais anuais, cujas metas seriam:

a) Tornar conhecidos, tanto quanto possível, quaisquer riquezas e recursosnaturais brutos, existentes no respectivo distrito e nas partes adjacentes, queatualmente ou no futuro possam ser aproveitados na indústria e comércio;

b) Animar o progresso e a emulação na lavoura e indústrias por meio deprêmios honoríficos e, em certos casos, de prêmios pecuniários ou na com-pra de objetos expostos;

c) Promover e facilitar a mútua instrução, bem como as relações e os negóciosentre os produtores e compradores (SANTOS; KLUG, 2003, p. 91).

As metas acima expostas foram detalhadas pelo seu autor, com vistasà operacionalização das exposições e, também, com vistas aos resultadosconcretos, como, por exemplo, melhoramento genético do rebanho e avan-ço na tecnologia agrícola.

1 É no mínimo curioso que em 1862, num certame mundial, o Brasil tenha exposto máquinas ematerial para estrada de ferro, visto que estava apenas “engatinhando” nesta área e não reuniacondições para comparar-se aos países europeus de vanguarda tecnológica.

KLUG, J. • A Exposição Nacional do Rio de Janeiro (1875) e os seus impactos na produção...

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Meu objetivo neste artigo é mostrar resumidamente o que foi a Expo-sição Nacional de 1875 realizada na capital do Império, Rio de Janeiro, e aforma como as várias províncias se apresentaram, com quais produtos, e aavaliação dos mesmos com vistas à sua utilização industrial/comercial nofuturo.

Seguindo a “onda modernizadora”, da qual o imperador D. Pedro IIera adepto, também o Império do Brasil já havia promovido três exposiçõesnacionais, sendo a de 1875, portanto, a quarta Exposição Nacional. Umasérie de artigos sobre esta exposição, escritos por José Saldanha da Gama2,foram publicados no Jornal do Commercio e, posteriormente, reunidos numtexto intitulado Estudos sobre a Quarta Exposição Nacional de 1875, pu-blicado pela Typographia Central de Brown & Evaristo, em 1876. Este é odocumento base para o presente artigo.

A Quarta Exposição Nacional do Rio de Janeiro merece destaqueespecial por ser uma exposição preparatória com vistas ao grande certameinternacional que ocorreria no ano seguinte em Filadélfia.

Saldanha da Gama inicia seu estudo destacando que as exposiçõesnacionais haviam sofrido forte abalo por falta de recursos, o que, aliás, colo-cara em risco a participação do Brasil na Exposição Internacional de Vienaem 1873, mas que “[...] graças aos esforços e medidas energicas do nossogoverno achamo-nos em os últimos momentos á coberto de um fiasco [...]em Viena” (p. 8). Destaca, ainda, que o Brasil vivia, naquele momento, ummovimento ascendente “sempre á mais e á melhor”, e, neste contexto, a QuartaExposição tinha a finalidade de preparar-se para apresentar o Brasil em Fila-délfia, com “[...] todo o brilho de suas riquezas”, evidenciando “[...] o gráode sua opulencia, da sua força e da sua civilisação” (p. 7).

Em seu relato, revela uma grave lacuna nesta quarta exposição, la-mentando que os resultados não tenham correspondido às expectativas,visto que nem todas as regiões apresentaram os seus produtos mais expres-sivos. No entanto, reconhece, também, que

2 José Saldanha da Gama foi professor da Escola Politécnica e membro das seguintes institui-ções: Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Imperial Instituto Fluminense de Agricultu-ra, Sociedade Vellosiana, Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional, Sociedade Botânicada França, Sociedade Linneana, Sociedade de Aclimação de Paris, Sociedade ExperimentalTerapêutica da França e Sociedade Botânica de Ratisbona. Atuou como membro da comissãodiretora e jurado da Quarta Exposição Nacional do Rio de Janeiro.

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[...] querer aglomerar nas salas de qualquer edifício, escolhido a momento,riquezas variadíssimas e em numero prodigioso, de todos os pontos do Bra-zil, no curto lapso de tempo de doze meses, sem atender os raios do nossoterritório por emquanto inaccessiveis a qualquer indústria extractiva, demineraes, de vegetaes e de animaes; querer a reunião de elementos explica-tivos e instructivos de todos os typos da nossa fauna, da nossa flora e dasnossas minas [...] é crear desejos, posto que nascidos dos mais altos senti-mentos, mas impraticáveis e fora do domínio da exequibilidade (GAMA,1876, p. 10).

Destaca, ainda, que a falta de um espaço adequado para exposições,de um “palácio permanente para estudo e manifestação constante das nos-sas riquezas...”, contribuía para a falta de avanços no conhecimento e utili-zação de nossos recursos naturais.

Ao analisar o que efetivamente foi apresentado na Quarta ExposiçãoNacional, Saldanha da Gama não poupa elogios à Província do Paraná e aseus engenheiros e técnicos, enfatizando que “[...] nesta exposição cabe apalma da victoria á esta bela estrela da corôa do Brasil [...]”. Chama aten-ção para o avanço na mineralogia, com destaque ao mercúrio da mina dePortão, município de Palmeira, e o futuro que este minério poderia trazerem termos econômicos e de avanço na medicina. Da mesma forma, consi-dera o chumbo extraído em Assunghy como tendo futuro promissor naarte metalúrgica. Também merece registro o ferro, na forma de peróxido deferro, que poderia despertar interesse da metalurgia das nações considera-das mais adiantadas. Sublinha que no município de Jaguariaíva foi desco-berta “uma montanha composta quasi exclusivamente de salitre”, o quecolocava a Província do Paraná em grande evidência nesta exposição. Lo-gicamente, não poderia faltar menção à madeira de pinho, já premiada naexposição de Viena. Em relação à madeira da araucária, Saldanha da Gamaantevia que, “uma vez aberta as saídas para os grandes centros de consumodo Imperio, os pinhos da Suecia e de Riga, que anualmente entram emnossos portos por somas consideráveis, darão lugar à procura da egrégiamatéria prima nacional” (p. 39). Considerando que as amostras de essênciasflorestais da Província do Paraná, nesta exposição, eram em torno de 200,também mereceram destaque a imbuia e a peroba rosa,

[...] digna de apreço para a architetura naval e no mesmo pé de igualdadeque a peroba do Rio de Janeiro [...] Não analysamos uma collecção scienti-fica, sinão specimens excellentes pelo lado das informações praticas, e cujomérito há de forçosamente impressionar o publico em Philadelphia (GAMA,1876, p. 39).

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Em relação à erva-mate, o autor destaca que o Paraná apresentava naExposição “dúzias de garrafas” de licor desta erva (Ilex paraguariensis), oque indicava o espírito científico, de experimentação desta planta, visto que,segundo o relato, falava-se muito dela na Europa, mas sem grandes conhe-cimentos relativos aos usos que dela poderiam ser feitos. Indica, ainda, quenos anos 1874-1875 a exportação de erva-mate atingira a cifra aproximadade 12 toneladas (p. 41).

Mereceram atenção do relator “os gêneros de trabalhos materiaes”, edestaca, neste campo, a quantidade de trabalhos feitos a partir das diferen-tes espécies de taquaras, desde bengalas a peneiras, balaios e cestos. Desta-ca ainda, neste item, os chapéus feitos a partir de folhas de palmeiras, indi-cando que estes produtos deveriam ser incluídos entre aqueles aptos parauma exposição internacional, pois levariam consigo “o cunho da indústrialocal, o valor comercial, o nome da materia prima e as propriedades dasrespectivas plantas” (p. 43).

Em relação aos produtos do mundo animal, sublinha a técnica decurtimento de peles (de onças e tamanduás-bandeiras), dada a existênciae o conhecimento do uso de substâncias taníferas da flora paranaense.Enfatiza, ainda, que “no estrangeiro são apreciadas estas pelles que têmaceitação d’entre as mais belas dos animaes que povoam os nossos bos-ques” (p. 30).

Aponta, também, para uma significativa coleção de insetos coleópte-ros, coletados pelos naturalistas Suplyci e Wirneaud. A coleção, no entan-to, mereceu crítica pelo fato de algumas espécies não estarem devidamenteidentificadas com seus nomes científicos, bem como pela falta de esclare-cimentos práticos acerca de malefícios ou benefícios que tais insetos po-deriam trazer, o seu modus vivendi, as espécies vegetais atacadas, os órgãosvegetais por eles atacados, etc. E termina enfatizando: “Eis a reunião doselementos imprescindíveis para estudos aplicáveis à sociedade ou aos ra-mos da sua indústria” (p. 31).

Ainda em relação à província do Paraná, Saldanha da Gama deixaclaro que ela é o grande exemplo ao restante do Brasil, visto que “nenhumadas suas irmãs soube compreender tão alto o pensamento desta festa deindústria e labores, nem reunir tão grande cópia de elementos e produtos,que por si sós definem a grandeza desta província” (p. 24).

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Por outro lado, manifesta sua decepção em relação aos escassos pro-dutos remetidos pelas províncias do Pará e Amazonas. Considerando queesta região já havia participado com brilho no certame de 1867 em Paris,expondo as suas essências florestais

[...] já admiradas perante o mundo [...] e a variedade infinita de produtosanimaes e vegetaes moldados pela indústria dos Indios para sua subsistênciae necessidades, assoma um sentimento de melancholia á alma do visitanteobservador, e dos lábios lhe escapa involuntariamente uma pergunta aosencarregados da administração: o que fizestes dos maravilhosos recursos doAmazonas? O que pensais da concurrencia do Amazonas em Philadelphia?(GAMA, 1876, p. 13-14).

A julgar por aquilo que foi exposto, o observador poderia concluirque os vales dos rios amazônicos seriam a região menos favorecida pelanatureza. A crítica diz respeito à ausência de uma das regiões mais ricas doBrasil, cuja riqueza, uma vez conhecida internacionalmente, poderia atrairmilhares de braços para dela extrair as “preciosas dadivas da natureza”.Apesar dos poucos produtos amazônicos ali expostos, Saldanha da Gamadestaca a “piaçaba para vassouras”, a borracha (“não inferior a goma elás-tica extraída das figueiras da India”), a tinta vermelha de urucum, o acapu,madeira que o autor aponta como “[...] entre os primores da vegetaçãoequinocial” e que, com vistas ao seu aproveitamento na indústria náutica,se comparava à Teka da Índia, “incorruptível e eterna em contato com aagua salgada” (p. 16).

Na Exposição de Paris (1867), o Brasil havia conquistado prêmiocom o algodão do Maranhão, Alagoas, Pernambuco e São Paulo, dado queo algodoeiro indígena aclimatado apresentava fibras de comprimento, es-pessura e alvura diferenciados. Assim, prossegue o autor, “deve considerar-se na restricta obrigação, senão no empenho de honra, de mandar paraPhiladelphia uma exposição até de luxo” (p. 19).

Na sua avaliação dos produtos expostos, entende que o açúcar donordeste continua sendo de qualidade inferior, o que se devia à ausência de“aparelhos mais aperfeiçoados que usam nas Antilhas”. Diante desta cons-tatação, conclui que, em relação ao açúcar, “ficaremos sempre aquem dasilhas Maurícias” (p. 20). As razões para isto o autor localiza na tecnologiaainda primitiva, que se verificava desde o processo de moagem da cana,seguido do processo de fabricação do açúcar em equipamentos já obsole-tos, resultando em grande perda. E, assim, arremata o autor: “[...] a respei-

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to de assucar faremos fiasco em Philadelphia, egual ao que fizemos emPariz e em Vienna d’Austria”.

Ao analisar a participação de Santa Catarina na Exposição, fica evi-denciado que ela se limita às colônias de Blumenau, Joinville, Itajaí e aocarvão mineral do vale do Tubarão, este, no entanto, sem testes quanto aoseu poder calorífico. Saldanha da Gama elogia a ornamentação na entradado espaço destinado a esta província, com um ramalhete de conchas miú-das de cores variadas e de escamas de peixes, “arte de bom gosto e cópia danatureza” (p. 45). São apresentados aí o vime oriundo de Joinville (e mobí-lias feitas deste vegetal) e a juta oriunda de Blumenau, de tipo têxtil, a qualhavia despertado interesse das fábricas inglesas em função da crise algodo-eira devido à guerra civil dos Estados Unidos.

Seguindo sua apreciação da Exposição, o relator se ocupa longamen-te com a sericicultura e o bicho-da-seda (Bombyx mori), que denomina de“estimadíssimo insecto”, descrevendo cada fase de sua vida. Elogia larga-mente os avanços que o Brasil fez nesta área, destacando o Sr. Luiz Ribeirode Souza Rezende, proprietário da “antiga Seropedica do Bananal do Ita-guahy”, avaliada pelo autor como sendo a esperança da indústria sérica.Deve-se levar em conta que a indústria têxtil pode ser considerada a “loco-motiva” da indústria daquele período; daí a valorização das experiênciasfeitas com o bicho-da-seda no Brasil.

O citado Luiz Rezende é elogiado por não poupar esforços no cultivodo bicho-da-seda, adquirindo amostras de várias procedências, como daChina, Síria e Bengala, concluindo, porém, que “a seda do Brazil não ocu-pa lugar inferior à vista dos estudos comparativos que acabamos de fazer”(p. 53).

Também tece elogios ao “ilustrado Dr. Nicoláo Moreira”, que expôsum lepidóptero serigênico indígena (Saturnia aurota), “cujos fios parecemrivalizar com os da especie asiática, e cujos serviços à indústria serica noBrasil se explicam e se definem de antemão pelas mais caras esperanças debom êxito, e de abundancia e boa qualidade da matéria prima” (p. 57).Afirma existir em todo o Brasil e alimentar-se das folhas de cajazeiro etambém de mamona e beriba, e com boa produção de casulos. Em funçãode suas qualidades, foi objeto de experiências na Europa, especialmente naSociedade de Aclimação da França, tendo passado por ensaios de seríme-tro com resultados altamente positivos. Em função disto, afirma Saldanha

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da Gama que “a borboleta indígena recebeu em Lyão grandes ovações” (p.62). Em 1815, a borboleta Saturnia aurota foi “descoberta” no Espírito Santo,e, dois anos mais tarde, o governo recompensava financeiramente a dois indi-víduos pelos estudos práticos que desenvolviam com a seda autóctone, e “hou-ve até quem estudasse no Brazil sete espécies de Saturnias serigenicas” (p. 63).

Ao avaliar os produtos oriundos da província de Minas Gerais, o re-lator do estudo destaca os produtos têxteis, os quais viriam a ser “assumptode muitas exclamações em Philadelphia” (p. 85). Seis destes produtos sãodestacados:

1°: Cipó lactescente (uma asclepiadacea), oriundo do vale do Rio Doce,cuja produção era estimada em 120 mil pés de cipó/alqueire, produzindocada um dos caules 30 gramas de fibras, o que daria 3.600.000 gramas (3.600kg de fibra/alqueire). As experiências feitas na Inglaterra com os fios destecipó foram muito positivas, o que leva o relator do estudo a concluir que setrata de um “imenso manancial do solo brasileiro” e propor que o governoremeta para Filadélfia alguns fardos deste produto para expô-los “aos olhosda indústria manufactureira do mundo inteiro” (p. 88).

2°: Uma palmeira, também oriunda do vale do Rio Doce que, estavaali exposta mas cujo nome, curiosamente se ignorava. Seu valor residia nofato de que de suas folhas e pecíolos saíam filamentos que se assemelhavama lã, cujas fibras podiam ser utilizadas, e “as fabricas se considerariam feli-zes de contal-a no tesouro de matérias primas” (p. 89).

3°: Dois tipos de fibras retiradas das folhas de outra palmeira, a “Iriu-ba” ou “Brajauva”, as quais poderiam ser empregadas nas máquinas defiação.

4°: Figueira de Minas Gerais, também designada de “Figueira Bra-va” ou “Gameleira”, cujas folhas passadas em cilindros de ferro adquiriampequena espessura, mas largura e comprimento notáveis, servindo para “ves-tidos grosseiros de operarios rurais ou de outros quaisquer trabalhadores”(p. 90). Na Bélgica esta planta já havia sido testada como papel de escrever.Conclusão do relator: “Nova mina para a indústria”, visto ser uma plantaque se reproduzia facilmente por estacas (p. 91).

5°: Cipó Vermelho, em função da tinta natural que impregnava asfibras no processo de extração, cujo rendimento é avaliado como “copio-so”, e “as cordas não peccam por falta de tenacidade”.

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6°: Cipó preto, o qual, assim como o anterior, devia sua cor ao pro-cesso de extração e chamava atenção pela sua aparência de retrós. Era oriun-do de várias áreas pantanosas de Minas Gerais.

A avaliação que Saldanha da Gama faz destas fibras é que os es-pecialistas no assunto, tanto no Rio de Janeiro como em Filadélfia, dariamo devido valor a estes produtos, pois eram um “triumpho alcançado peloImperio do Brazil” (p. 93).

Também a riqueza mineral e de pedras preciosas oriundas de MinasGerais tem o seu destaque no relatório, com ênfase à turmalina, devido àssuas propriedades óticas, sendo portanto, de grande interesse dos fabrican-tes de instrumentos óticos. Arremata, enfatizando que “as províncias deMinas Geraes, de Goyaz e do Rio Grande do Sul encerram quantidadesmais que suficientes para fazerem face ao consumo das officinas de opticade todos os paizes do mundo” (p. 95).

Em relação à província do Maranhão, o autor apenas apresenta algu-mas curiosidades ali expostas, sem discorrer sobre suas eventuais qualida-des ou potencialidades comerciais. Destaque é dado à madeira de muirapi-ranga (Mimusops balata), indicada para dormentes de estradas de ferro. No-meia também o pequi e a manteiga extraída do mesmo.

Do Mato Grosso, é mencionada apenas uma amostra de aroeira legí-tima, “cujo lenho vermelho dura séculos debaixo d’agua”. Lamenta que delá não tenham vindo ouro e platina, “fatal esquecimento” (p. 107).

Afirma que “a collecção florestal das Alagoas é magnífica”; no en-tanto, esta província simplesmente não enviou seus produtos, “descuidoincorrigível de todas as províncias, hontem, hoje e quem sabe se amanhã!”Destaca, porém, que representava esta província o conduru, e, em funçãoda bela cor vermelha de seu cerne, “os marcineiros da industria estrangeiraficarão pasmos se a virem com o tom dado pela natureza e pela arte” (p.111). Ao comentar sobre os tipos de algodão ali expostos, afirma que ostipos de algodão de Alagoas “[...] servem apenas para saccos e para vesti-mentas de escravos” (p. 131).

Destaca a maniçoba (ou “sarnamby”) oriunda da serra de Urubure-tama no Ceará, uma euphorbiacea da qual se extraía um látex, e que “[...] asimilhança entre a borracha da maniçoba do Ceará e a da seringueira doPará é tal que o porto de Liverpool as confunde com o nome de gommaelastica do Brazil”, da qual se exportavam anualmente em torno de 250

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toneladas para a Inglaterra (p. 113). Ainda em relação ao Ceará, o autorsublinha com ênfase especial as plantas medicinais, como o jaborandi (su-dorífero), o jucá – Caeselpinea ferrea (afecções dos brônquios), pinhão depurga (idem), mangue vermelho e barba-timão (adstringentes), pau-ferrocearense (infusão para tratamento de feridas). Os produtos oriundos da car-naúba também merecem menção, assim como bordados finos e leques or-namentados com penas coloridas de pássaros diversos, que em 1873 já ti-nham feito sucesso na exposição internacional de Viena e, conclui o autor,“causarão furor em Philadelphia” (p. 118).

Ao tratar do linho, Saldanha da Gama destaca que a província doRio Grande do Sul conseguiu aclimatar muito bem este valioso produto,tendo como expositor Felippe Keller, do vale do Caí. Naturalmente, nãopoderia faltar uma menção à lã de carneiro, também oriunda do Rio Gran-de do Sul, com produtos tais como cobertores, chales e baetas, trançados elisos de várias cores, produzidos pela fábrica Rheingantz, da cidade de RioGrande (p. 132). Em seu relato, o autor critica a ausência do carvão mine-ral desta província, mas elogia o mármore de Encruzilhada, a aguardenteavermelhada de pêssego de Santo Ângelo e produtos farmacêuticos, cos-méticos e de perfumaria extraídos de essências vegetais diversas, processa-dos em Porto Alegre. Chama atenção uma menção ao óleo de mocotó refi-nado a vapor, isento de graxa e gelatina, para uso em máquinas, reduzindoo atrito nas peças (p.135).

Ao relatar sobre a participação da Bahia na exposição, destaque im-portante é dado ao tabaco, especialmente em forma de charutos. Esclareceo autor que este produto baiano não havia, ainda, se colocado no mesmonível dos charutos de Havana, mas que gozava de uma fama crescente. Naexposição universal de Viena, “[...] mais de um milhão de charutos desa-ppareceram por encanto das bonitas caixas de cedro! Mandem milhões;contem aos centos de milhões na certeza de que todos ficarão em Philadel-phia” (p. 140). Vários vegetais são nominados, ou por suas qualidades me-dicinais, como, por exemplo, a alfavaca de cobra (Monniera utilis) de folhasgranulosas, preconizada contra mordedura de serpentes venenosas, ou es-pécies de madeira, como, por exemplo, o pau-rosa (Physocalymna florida)“[...] uma das mais lindas madeiras de marcenaria de que porventura setenha noticia nos annaes da industria e da sciencia” (p. 138).

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Saldanha da Gama encerra o seu relatório sobre a Quarta ExposiçãoNacional de 1875 dedicando um capítulo às “artes liberais”, destacando osavanços no que diz respeito à química empregada no material fotográfico,instrumentos cirúrgicos, cutelaria, instrumentos musicais fabricados commadeira brasileira, como pianos de peroba e de jacarandá, sobre os quaiscomenta: “Estamos, portanto, longe dos pianos de Pleyel e Hertz, sonoros eduradouros; longe de Erard” (p. 165). Enfatiza, ainda, a qualidade dastintas para todos os fins, com base vegetal, produtos diversos oriundosespecialmente da arte moveleira e produtos de oficinas de estamparia.

O autor fecha o seu estudo/relatório com a seguinte conclusão:

A quarta exposição nacional é um facto glorioso na historia do trabalho;grande e vistoso marco do progresso levantado no seio da sociedade brazi-leira, horizonte amplo de futura grandeza, de crescente prosperidade, espe-lho das forças vivas do grande Império, sob a luz benéfica de uma sábiamonarchia constitucional (GAMA, 1876, p. 184).

O conjunto dos “Estudos” de Saldanha da Gama sobre a Quarta Ex-posição Nacional evidencia que se tratava de uma exposição preparatóriapara se definir como o Brasil iria se apresentar no ano seguinte na Exposi-ção Internacional de Filadélfia. Percebe-se claramente que o critério de ava-liação é como determinado produto poderia ser recebido em Filadélfia,observando-se a demanda mundial por determinadas matérias-primas. Verifi-ca-se, ainda, que vários produtos apontados como promissores sequer eramconhecidos no Brasil, mas já tinham sido testados na Inglaterra ou na França.

Em maior ou menor medida, as exposições, quer regionais, nacio-nais ou internacionais, foram um eficiente veículo para o avanço do conhe-cimento de várias matérias-primas e da tecnologia para a sua utilização.

Referências

GAMA, José Saldanha da. Estudos sobre a Quarta Exposição Nacional de 1875. Rio deJaneiro: Typographia Central de Brown & Evaristo, 1876.

SANTOS, Manoel P. R. Teixeira dos; KLUG, João. Associações agrícolas eExposições Coloniais em Santa Catarina. Blumenau em Cadernos, Blumenau, tomoXLIV, n. 09/10, set./out. 2003.

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Relação corpo, natureza e organizaçãosociopolítica no Medievo:

revelação, ordem e lei

Aline Dias da Silveira

1. Introdução

Buscar o entendimento da concepção de natureza na História tor-na-se imprescindível no estudo da relação entre o ser humano e o meioambiente, pois a forma desta relação está diretamente vinculada às per-cepções de si (microcosmo) com o todo (macrocosmo). Assim, o estudoda percepção e compreensão de natura na cristandade latina medieval ofe-rece indícios para a análise de comportamentos que formaram a socie-dade ocidental, como pretendo demonstrar através das fontes escolhi-das.

Nas Siete Partidas, livro normativo do século XIII, o rei Afonso Xde Castela, na partida 2, título 9, lei 1, sob a epígrafe “que quiere deziroficio, e quantas maneras son de oficiales” (“que quer dizer ofício e quais sãoos oficiais”), faz uma relação entre corpo, natureza e sociedade, e esclareceo seguinte:

Aristóteles, no livro que escreveu para Alexandre, organiza sua casa e seusenhorio dando-lhe a semelhança do homem ao mundo. E disse que, assimcomo o céu e a terra e as coisas que neles estão constituem um mundo que échamado de maior, da mesma forma o corpo do homem e todos os seusmembros constituem outro mundo chamado de menor. Assim como o mun-do maior tem movimento, entendimento, obra, concordância e divisão, damesma forma os possui o homem, segundo sua natureza. E a este mundomenor, do qual tomou como exemplo o homem, comparou o rei e o reino edisse de que forma cada um deveria ser ordenado. Mostrou que, assim comoDeus pôs entendimento na cabeça do homem, a qual está acima do corpo,no mais nobre lugar, ele fez o mesmo com o rei, e quis que todos os sentidose membros, tanto os de dentro, que são vistos, como os de fora, que não são

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vistos, lhe obedecessem e lhe servissem como senhor1 (ALFONSO X, SietePartidas, partida 2, título 9, lei 1).

Podemos perceber neste pequeno trecho das Siete Partidas um enten-dimento analógico entre a natureza, o corpo e a sociedade, típico do perío-do medieval e que remonta a uma recepção de fontes da Antiguidade adap-tada ao contexto da época. Seja através de fontes religiosas, astronômico-astrológicas ou de medicina, podemos aferir nos textos medievais uma re-lação funcional e simpática entre o corpo (referido nas fontes como o pe-queno mundo ou microcosmos) e a natureza (referida como o grande mun-do ou macrocosmos). Dentro de um mesmo princípio de organização na-tural, a literatura laica de cunho político, conhecida como speculum ou “Es-pelho dos Príncipes”, apresenta uma estrutura funcional de pensamento,pela qual o universo teria uma ordem harmônica, hierárquica e perfeita, deforma a explicar a organização social a partir das relações naturais entremicro e macrocosmos. Nas reflexões que se seguem, apresentarei a análisecomparativa de duas fontes do período medieval, a fim de verificar a baserelacional e estrutural da percepção da natureza como universo harmônicoque rege todos os âmbitos da vida humana. As fontes analisadas foramelaboradas na corte do rei Afonso X de Castela: Las Siete Partidas, obra nor-mativo-filosófica do século XIII, e o Libro de las Cruzes, obra astronômico-astrológica árabe do século VIII, traduzida para o castelhano no século XIII.

Filho de Fernando III e Beatriz da Suábia, neto de Alfonso IX deLeão e bisneto de Afonso VIII de Castela, Afonso X nasceu em 1221. For-jado na Reconquista, ainda como infante, esteve à frente na tomada de Se-vilha, no mesmo momento em que o rei muçulmano de Granada se tornouvassalo de Castela. O rei Afonso foi, além de um rei guerreiro, um poeta e

1 Tradução da autora a partir do texto a seguir: “Aristoteles en el libro que fizo a Alexandre, decomo auia de ordenar su casa e su señorio, diole semejança del ome al mundo: e dixo assi comoel cielo, e la tierra, e las cosas que enellos son, fazen vn mu~do, que es llamado mayor, Otrosi, elcuerpo del ome, con todos sus miembros faze otro que es dicho menor. Ca bien assí como elmundo mayor hay muebda, e entendimiento, e obra, e acordança e departimiento, otrosi lo hael ome segund natura. E deste mundo menor, de que el tomo semejança, al ome, fizo ende otra,que a semejo ende al rey e al reyno, e en qual guisa deue ser cada vno ordenado, e mostro queassi como Dios puso el entendimiento en la cabeça del ome, que es sobre todo el corpo, el masnoble lugar, e lo fizo como rey, e quiso que todos los sentidos, e los miembros, tambien los queson de dentro, que nõ parecen: como las de fuera, que son vistos, le obedesciessen, e le siruies-sen, a si como señor [...].”

SILVEIRA, A. D. da • Relação corpo, natureza e organização sociopolítica no Medievo

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amante do conhecimento. Sua corte ficou conhecida pela reunião, convi-vência e colaboração de intelectuais de diferentes lugares e credos. Princi-palmente nas traduções do árabe para o castelhano, trabalhavam juntosjudeus, mouros e cristãos, constituindo sua corte um reconhecido espaçode tolerância. Por todo o seu empenho como patrono da arte e do conheci-mento, Afonso recebeu o epíteto de rei Sábio.

É na multiplicidade das facetas do rei de Castela e no solo cultural-mente fértil da Península Ibérica que encontramos fontes capazes de ex-pressar, de forma exemplar, o caldeirão cultural efervescente que constituiuo Mediterrâneo medieval, cujas influências atuaram não somente na cons-trução das culturas europeias, como também do norte da África, do Orien-te bizantino e muçulmano. A seguir, serão analisados aspectos das fontescitadas acima, que representam a percepção do ser humano em relação àsleis naturais e como estas leis foram aplicadas ao entendimento do corposocial. Porém, para entender o processo e os fundamentos destes aspectos,faz-se necessário, primeiramente, destacar a percepção da relação entre mi-cro e macrocosmo na Idade Média.

2. Micro e macrocosmo: as relações entrecorpo humano e natureza na Idade Média

De acordo com o sistema associativo e simpático de perceber o mun-do natural na Idade Média, o ser humano seria um pequeno mundo, omicrocosmo. Os olhos, por exemplo, entendidos como iluminadores dapercepção, foram associados ao sol e à lua nas esferas fixas dos céus2. As-sim, todos os membros do corpo humano foram relacionados em tal siste-ma, no qual o paralelo cósmico-antropológico apresenta o ser em fina sinto-nia com o universo, percebido como um todo de relações simpáticas (PIER-RE, 1999, p. 55). Sobre este sistema de percepção da natureza e do próprioser humano, Aaron Gurjewitsch (GURJEWITSCH, 1999, p. 57)3 afirma

2 Esta imagem aparece sob a influência do neoplatonismo a partir de seu entendimento sobreemanação e simpatia entre os corpos sub e supralunares. Sobre o neoplatonismo: REALE,Giovanni. Plotino e o neoplatonismo. São Paulo: Loyola, 2008.

3 A obra foi publicada em português sob a referência: GUREVICH, Aaron. As categorias da cultu-ra medieval. Lisboa: Editorial Caminho, 1991.

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que a relação do ser humano com a natureza na Idade Média não consisti-ria na relação entre sujeito e objeto, mas do encontrar a si mesmo no mun-do externo e na percepção do cosmo como sujeito. O ser humano encon-trou na natureza sua continuação e, em si mesmo, a descoberta do univer-so. O corpo humano, chamado na Antiguidade de microcosmo, foi perce-bido, então, não apenas como uma pequena parte do todo, mas tambémcomo sua pequena réplica, o pequeno mundo. As obras filosóficas e políti-cas do Medievo esclarecem o microcosmo como completo em si mesmo,assim como o macrocosmo foi entendido no sistema associativo entre pe-queno e grande mundo.

Por esta perspectiva, na iconografia medieval o corpo humano apare-ce representado, muitas vezes, com características da natureza física, como,por exemplo, cabelos em forma de folhas e braços em forma de galhos. Estecorpo, entendido como o primeiro espaço percebido pelo homem, tornou-se a medida de todo espaço externo (ZUMTHOR, 1994, p. 19). Desta for-ma, as distâncias e a área de solo não possuíam medidas absolutas e abstra-tas, mas eram medidas com pés, passos e polegadas (GURJEWITSCH, 1999,p. 55). O corpo humano era a medida para a percepção do macrocosmo,como se existisse um denominador comum para todas as coisas na natureza.

A metáfora e representação medieval do corpo humano e da nature-za indicam que o pensamento desta época é baseado na analogia. Destaforma, a cabeça também foi associada ao céu, o peito ao ar, a barriga aomar, as pernas à terra, os ossos às pedras, o cabelo à vegetação e os senti-mentos aos animais (GURJEWITSCH, 1999, p. 58).

A correspondência do ser humano com a natureza visível e os astrosse mostrou abrangente, seguindo um sistema quaternário de representação.O Libro de las Cruzes, uma das fontes analisadas a seguir, é um exemplodeste sistema, no qual os povos são caracterizados e hierarquizados de acordocom os quatro elementos e os signos do zodíaco. Outro exemplo conhecidodo sistema quaternário de correspondência é o da medicina antiga e medie-val. Nesta correspondência, os elementos do organismo humano são per-cebidos em analogia com os quatro elementos da natureza: o corpo corres-ponde ao elemento terra, o sangue ao elemento água, a respiração ao ar e ocalor ao fogo, como o esquema apresentado na tabela abaixo:

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Tabela 1: Sistema Quaternário

Quatro Quente e úmido Quente e seco Frio e úmido Frio e secocaracterísticas

Quatro elementos Ar Fogo Água Terra

Quatro humores Sanguíneo = Colérico = Fleumático = Melancólico =sangue bílis amarela secreções bílis negra

Quatro estações Primavera Verão Inverno Outono

Quatro idades do Infância Juventude Velhice Decrepitudeser humano

Signos Gemius, Libra, Aries, Leo, Cancer, Scorpius, Taurus, Virgo,Aquarius Sagitarius Pisces Capricornius

Fonte: RICO, Francisco. El pequeño Mundo del Hombre. Varia fortuna de una idea en lacultura española. (Alianza Univerdad, Bd. 463.) Madrid, 1986, p.165

De acordo com esse pensamento analógico, as doenças e moléstiasseriam causadas pelo desequilíbrio dos humores (os sucos corporais); porisso, esta prática medicinal foi chamada de humoralpatia. Tal medida detratamento fundamentou a medicina desde a Antiguidade, tendo sido ex-posta pela primeira vez por Hipócrates (RIHA, 2003, p. 115). A aplicaçãodesta terapia consistiria em, por exemplo, aplicar drogas frias contra altatemperatura corporal e drogas úmidas contra ressecamento. A tarefa domédico seria, então, utilizar corretamente as forças naturais para, com isso,restabelecer o equilíbrio dos humores e, consequentemente, das funçõescorporais (RIHA, 2003, p. 115). Através deste sistema de correspondência,a natureza (percebida como o mundo = cosmo) teria todas as suas manifes-tações interligadas por uma grande rede, incluindo também as pessoas eseu destino. E a tarefa dos homens e das mulheres de ciência seria a dedesvendar a analogia entre micro e macrocosmo. Mulheres de ciência e fécomo Hildegard von Bingen, monja da Germânia, nascida em Bermersheimvon Höhe, em 1098, assumiram este compromisso.

A fascinante vida e obra de Hildegard nos remete à fina compreensãoda relação entre micro e macrocosmo dentro da mística cristã. Segundo aobra da monja, liber subtilitatum diversarum naturarum creaturarum, tudo queDeus cria, vive nele, porque o todo (macrocosmo) em sua natureza é vivoatravés de Deus. Assim, por meio da contingência divina, todas as criaturas

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(no sentido de criação) se relacionam harmonicamente: as ervas, os quatroelementos, as pedras, as árvores, os animais e os metais. O ser humano(microcosmo), consorte do mundo, é o espelho do universo. Toda a nature-za é condição para sua existência. O humano completo seria como umjardim florido aos olhos de Deus. Aquele receberia a emanação divina,quando agisse em harmonia e associação com todas as outras criaturas, etodas essas estariam presentes nele: “Oh, homem, olha para a humanidadecorretamente: o ser humano já contém o céu, a terra e todo o resto da cria-ção em si mesmo e é uma forma completa, e nesta forma tudo está latente”4

(HILDEGARD VON BINGEN, 1992, p. 50). Esse seria o fundamento daprática de cura ensinada e exercida pela monja beneditina, através das plan-tas, dos elementos e da harmonia da criação dentro do corpo microcosmos.

Hildegard baseia-se nos escritos dos Pais da Igreja Cristã (Patrística)e, desta forma, indiretamente, na percepção neoplatônica do universo queinfluenciou Ambrósio (século IV), bispo de Milão, bem como seu discípuloAgostinho, bispo de Hipona (séc. IV). Por este desenvolvimento da percep-ção da divindade e do universo, deu-se o nome de natura5 à substância divi-na presente na criação. O conceito de natureza de Agostinho remete à es-sência (essentia) e à substância (substantia), de maneira que a divindade seriatambém natureza, mas de um estado especial. Desta forma, ele diferencia ocriador (natura creatrix) da criação (natura creata) através da mutabilidade: anatureza que muda de acordo com o tempo e o espaço seria a dos corpos; anatureza que muda somente com o tempo e nunca com o lugar seria a daalma; a natureza que não muda nem com o lugar nem com o tempo seria ade Deus. Ou seja, a concepção de natureza na obra de Agostinho apontapara a instância da origem divina de todas as coisas (KANN, in: DILG,1995, p. 34-35). Enquanto a natureza veio a ser entendida pelo bispo deHipona como a essência que mediaria o ser humano com a revelação dadivina, o século XIII testemunha na cristandade latina a concepção de na-tureza de acordo com a qual a natureza das coisas seria movimentada pela

4 “O Mensch, schau dir doch daraufhin den Menchen richtig an: der Mensch hat ja Himmel undErde und die ganze übrig Kreatur schon in sich selber und ist doch eine ganze Gestalt (formauna), und in ihm ist alles schon verborgen vorhanden (in ipso omnia latent)”

5 Nominativo feminino, significa essência. A raíz nat também compõe o vocábulo natio, quepode significar tanto nascimento como origem, povo.

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vontade divina através de suas características e ordenada no sentido de umaestruturação normativa. Este desenvolvimento da concepção de naturezadeve muito às traduções da obra de Aristóteles. A interpretação medievalde Aristóteles entende que todas as coisas se movimentam em busca daperfeição (instância divina) de acordo com suas especificidades próprias,diferenciando-se em ordenamentos. As coisas são classificadas de acordocom sua natureza, entendida, então, como ordo. Esta percepção desenvolve-se para a categorização e identificação da funcionalidade de todas as coisas,reunidas e inter-relacionadas pela lei natural. O conceito de natureza da cris-tandade latina nos séculos XIII e XIV é o da lei que assegura a ordem hierar-quicamente harmônica do universo (KANN, in: DILG, 1995, p. 48).

O cosmo medieval e as fontes da Antiguidade

Na alta Idade Média, a imagem do universo da cristandade latinaera, em essência, o modelo platônico. Isso, não porque as ideias de Platãocombinariam com o pensamento cristão melhor que outras da Antiguida-de, mas porque os textos desta época foram fundamentados a partir dasobras de autores neoplatônicos como Agostinho (354-430), Macróbio (emtorno de 400) e Martinus Capella (em atividade em cerca 410-429). Apenasa partir do século XII, graças às traduções feitas do árabe para o latim nosul da Espanha e na Itália, o entendimento cosmológico da perfeita harmo-nia entre o micro e o macrocosmo recebeu a contribuição das obras deAristóteles e Ptolomeu, o que já havia acontecido no mundo muçulmano apartir do século IX na Escola de Tradução de Bagdá.

Sob a influência dos textos gregos, foi construída uma imagem docosmo na qual a Terra se encontraria no centro de um sistema de esferasconcêntricas e transparentes. A Terra seria também o ponto mais baixo edenso, palco das transformações como nascimento, morte e queda e, conse-quentemente, de preocupações e vontades. Nestas esferas que circundam aTerra, existiria apenas luz, o símbolo do espírito; não existiriam transfor-mações ou morte, haveria somente paz. Tal sistema foi adotado tanto porcristãos como por muçulmanos.

Os muçulmanos possuíam, igualmente, grande interesse nos textosda Antiguidade e desenvolveram, a partir do século IX, sob o mecenato dosabássidas de Bagdá, traduções das obras de Aristóteles e Ptolomeu, entreoutros autores, incluindo textos persas e indianos. Mostra-se relevante lem-

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brar que, neste ambiente, reuniam-se estudiosos, tanto muçulmanos quan-to cristãos e judeus, pois o trabalho de traduções era feito em equipes dediversos idiomas. Esta diversidade possibilitou não apenas as traduções dostextos, como também discussões e comentários valiosos. Entre os grandescomentadores da obra de Aristóteles no mundo muçulmano da época, en-contramos Al-Kindi (séc. IX), Avicena (séc. X) e Averróis (séc. XIII). Areunião de diversos saberes, do Ocidente ao extremo Oriente, possibilitou oincremento da analogia entre macro e microcosmo. Uma frase de Al-Kindipode exemplificar os resultados possíveis deste desenvolvimento de sabe-res: “Este fato é demonstrado pela razão: que os raios de todas as estrelasoperam diversamente sobre as coisas do mundo, segundo as diversas pro-priedades destas coisas”6 (AL-KINDI, 1976, p. 87).

Em 1230, em sua viagem da Inglaterra para Paris, Miguel Escoto7

levou consigo as traduções em latim dos textos e comentários árabes sobrea obra de Aristóteles. Estas traduções ele teria conseguido nos anos em queviveu e trabalhou nas escolas de tradução de Toledo e Palermo.

3. Libro de las Cruces

O Libro de las Cruces é uma obra astronômico-astrológica do séculoVIII, traduzida no século XIII, na corte do rei Afonso X de Castela, doidioma árabe para o castelhano pelo judeu Hyuhda Fy de Mosse al Choen.Nesta obra, encontra-se a relação simpática entre o macrocosmo (as cons-telações, os quatro elementos e as zonas climáticas) e o microcosmo, comofator determinante das características e da história dos povos. De acordocom esta relação, os povos possuiriam características de acordo com o ele-mento ao qual pertenceriam (terra, água, ar ou fogo) e à zona climática naqual se encontram. Assim, quanto mais temperado o clima, mais “nobre”seria o povo que teria se desenvolvido na respectiva zona climática, pois

6 “De ce fait il a été démontré par la raison que les rayons de toutes les étoiles opèrent diverse-ment dans les choses du monde selon les diverses propriétés de ces mêmes choses.”

7 Miguel Escoto ou Michel Scoutus nasceu na Escócia no ano de 1175 e morreu em 1232. Foimatemático, filósofo e astrônomo. Aprendeu o árabe trabalhando com as equipes de traduçãoem Toledo e Palermo e é reconhecido por levar os comentários da obra de Aristóteles feitos porAverróis e Avicena a Paris.

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teria condições mais propícias e equilibradas para tanto. E, porque os po-vos pertenceriam aos elementos, o destino desses dependeria do movimen-to das constelações zodiacais:

Pois, segundo estas opiniões, quando as conjunções estiverem nos signosígneos ou nos signos aéreos, haverá poder e boa andança para os reinos daparte oriental do mundo, e será a decadência e a má andança nos reinos daparte ocidental do mundo.8

Não é por acaso que esta obra, originária do século VIII, tenha inte-ressado o rei de Castela no século XIII; afinal, a relação entre micro e ma-crocosmo é uma fórmula que perpassa outras obras da corte do rei DomAfonso9. No prólogo do Libro de las Cruces escrito pelo rei, encontra-se níti-do paralelo com o texto de Obeydalla, autor da versão árabe da obra:

Assim como disse Ptolomeu em Almageste, não morre aquele que buscou aciência e o saber, nem foi pobre aquele a quem foi dado o entendimento.Pois, assim como o anjo é mais alto e mais nobre que o homem por seugrande entendimento e por seu grande saber que Deus lhe deu, assim é ohomem em que Deus quis colocar senso e entendimento mais nobre entretodos os homens (ALFONSO X, Libro de las Cruces, Prólogo de Afonso).

Digo que a razão pela qual dizem que alguns povos e algumas pessoas sãomais nobres que outras é por dois motivos: um é que tenham decretos e leise que se guiem por senhorios e reinos, o outro é que tenham ciência e saberes(ALFONSO X, Libro de las Cruces, Prólogo de Obeydalla).

A nobreza não está associada à fé, mas ao conhecimento. Tanto Obey-dalla como Afonso categorizam o gênero humano de acordo com o conhe-cimento e a ciência, e não pela opção religiosa. Assim, os chineses e osindianos, povos politeístas, possuem o primeiro nível de nobreza, pois pos-suiriam uma alta ciência e seus governos seriam bem organizados, devido àzona climática em que se encontram. É observável a influência da geogra-

8 “Pues segund estas opiniones, quando las coniunctiones fueren en los signos ígneos o en lossignos aéreos, será el poder et la buena andantia a los regnados de la partida oriental del pobla-do, et accaeceran las occasiones et las mal andancias en los regnados de la partida occidentaldel poblado” (Libro de las Cruces, p. 9).

9 Entre muitos aspectos interessantes deste livro, está seu testemunho do movimento do conheci-mento na Idade Média, pois é uma obra que reúne várias temporalidades e culturas. A versãoque Afonso X utiliza para verter o texto do árabe ao castelhano é do século XI. No entanto, nopróprio prólogo desta versão é exposto que seu redator, Obeydalla, a teria copiado de umaoutra versão do século VIII. Odeydalla, então, teria escrito um prólogo e dividido este texto doséculo VIII.

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fia de Ptolomeu10 na obra, autor citado no prólogo de Afonso. Os postuladosde Ptolomeu constituem uma ponte entre o prólogo castelhano de Afonso eo prólogo árabe de Obeydalla, principalmente no que diz respeito ao desen-volvimento do gênero humano de acordo com determinantes naturais.

Concomitantemente com esta perspectiva, as estruturas destes cos-mos de diferentes dimensões remontam à ideia aristotélica de um universohierárquico e harmonioso. A quebra da hierarquia seria causa de desor-dem. E, para estes homens e mulheres medievos, Deus estaria na ordem,no topo de toda ordem hierárquica. Infringir a ordem naturalis (enquantoessenciais, divinas e imutáveis) de um universo hierárquico seria a infraçãoda vontade divina. Então, quando obras de cunho político explicam a socie-dade e sua hierarquia dentro deste princípio, aquelas acabam por ser inseri-das na ordem que regeria o universo.

4. Speculum

A analogia entre micro e macrocosmo tornou-se um modelo essencialpara a compreensão das áreas do conhecimento na Idade Média. Aqui,foram apresentados exemplos deste modelo na medicina, filosofia e na as-tronomia/astrologia. É exatamente a interligação de todos os saberes a “cha-ve” para entender e analisar como este modelo se apresenta nos textos quese pode identificar como de cunho político. Não foram desenvolvidas, naépoca, teorias políticas no sentido moderno, mas existiram, para além dostratados de filosofia, os Specula ou Espelhos de Príncipes, que transcendem asdiscussões entre o poder temporal e espiritual, para concentrar-se na vidaprática, administrativa e legislativa do reino. O Speculum é um livro cujafunção é aconselhar o “príncipe” a respeito de como esse deveria procedere como deveria ser a estrutura do reino. Na cristandade latina, a maioriados Espelhos de Príncipes surgiu no século XIII; esses foram fortemente in-fluenciados pelas obras da Antiguidade, especialmente Aristóteles e Pseu-do-Aristóteles.

Na corte de Afonso X de Castela, foram escritos três Specula, nosquais o próprio rei escreve o prólogo; estes são: Espéculo, Siete partidas e

10 PTOLEMY, Geography: an annotated translation of the theoretical chapters. Trad. de J. LennartBerggren and Alexander Jones. Princeton, 2000.

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Setenário, sendo as Siete Partidas a obra mais bem elaborada entre todas.Nessa é possível perceber explicitamente a influência dos textos orientaiscomo o livro Poridat de las Poridades, do qual a versão latina era conhecidacomo Secretum Secretorum. Poritat de las Poridades é uma tradução do textoárabe Sirr al-asra, cuja autoria foi, na época, atribuída a Aristóteles. O textofoi construído em forma de cartas de Aristóteles a Alexandre, quando essese encontrava no Oriente. O livro ocupa-se de conselhos sobre o exercíciode reinar, as boas maneiras do rei, a justiça, funcionários, estratégia de guerrae organização do exército. Poridat de las Poridades utiliza ainda a metáforado corpo para explicar como o rei deveria entender a responsabilidade deseus funcionários:

Percebas que a primeira coisa que Deus fez foi uma coisa espiritual, muitocompleta e figurou nela todas as coisas do mundo e colocou-lhe o nome desenso (razão). E fez outra coisa que não é tão nobre, a qual se chama alma.Deus, em sua virtude, colocou-os no corpo do ser humano. Pois o corpo écomo a cidade, e o senso é como o rei da cidade e a alma seu funcionário,que o serve e organiza todas as coisas. Ele colocou o senso no lugar mais altoe mais nobre, que é a cabeça do homem. A alma Ele fez morar em todas asoutras partes do corpo. E, quando acontece alguma coisa ao senso, a alma seesforça para manter o corpo vivo até que Deus queira que venha o fim.11

Nestas passagens, identifica-se a influência da analogia micro-ma-crocosmo da obra de Aristóteles (mais plausível de seus peripatéticos ára-bes) (LIBERA, 1999, p. 97-138) na esfera política. Em comparação comoutras fontes da época, percebe-se que o entendimento da relação entremicro e macrocosmo não foi puramente científico, filosófico ou político,mas ela foi tomada como lei natural (divina), a qual estaria na essência decada fenômeno no universo.

Os Espelhos de Príncipes aparecem na Península Ibérica muçulmanadesde os primeiros séculos de sua chegada. Os governantes muçulmanos

11 “Sepades que la primera cosa que Dios fizo una cosa simple spiritual et mui conplida cosa, etfiguro en ella todas las cosas del mundo, et pusol nonbre seso. Et del salio otra cosa non tannoble quel dizen alma, et pusolos Dios con su uirtud en el cuerpo del omne; et pues el cuerpoes commo cipdad, et el seso es commo el rey de la cipdad, et alma es como el su aguazil quelsirue et quel ordena todas sus cosas; et fizo morar el seso en el mas alto logar et en el mas nobledella, et es la cabeça del omne. Et fizo morar el alma en todas las partidas del cuerpo de fueraet de dentro, et siruel et ordenal el seso. Et quando conteçe alguna cosa al seso, esfuerçal elalma et finca el cuerpo bivo fata que quiera Dios que uenga la fin”, PSEUDO-ARISTÓTE-LES. Poridat de las Poridades. Kasten, 1957, p. 47.

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buscavam conselhos nestes livros, de acordo com os quais o dever essencialdo “príncipe” seria a justiça. Estas obras consistiam em legado persa, oqual o Islã adaptou, para construir uma unidade entre os valores religiosose políticos (ROSENTHAL, 1969, p. 259).

Então, o século XIII foi o momento em que foi despertado o interes-se neste tipo de literatura entre os reinos cristãos do norte da Península.Jaime I de Aragão e Afonso X de Castela foram os precursores nas tradu-ções destas obras para o idioma regional. Eles poderiam ver nestes textosconselhos sobre como aprender a governar e organizar uma terra com tantadiversidade cultural. Para os reis ibéricos, Alexandre foi um exemplo, poiseles poderiam ver-se na mesma situação do macedônio, confrontados coma tensão da diversidade cultural.

5. Siete Partidas

As Siete Partidas são uma obra normativa escrita em castelhano, basea-da em fontes de diferentes tradições e conhecimentos da filosofia, do direi-to, da história, da cabala, além de ser também um Speculum. Encontram-senas Partidas, por exemplo, menções e citações de Aristóteles e influênciasdo direito visigótico, romano e canônico.

O livro é dividido em sete partes, pois, de acordo com o prólogo,todas as coisas no universo são divididas em sete: o movimento (em cima,abaixo, direita, esquerda, frente, atrás e ao redor), os planetas, as esferasplanetárias, as zonas climáticas, os metais e as ciências.

O nome de Afonso, ALFONSO em castelhano, também possui seteletras, e cada parte das Siete Partidas começa com uma letra do nome de Al-fonso. Assim, a primeira partida inicia com a letra A (“A seruicio de Dios”) e aúltima partida inicia com a letra O (“Oluidança e atreuimiento son dos cosas quefazen a los omes errar”): letras A e O, as quais corresponderiam à primeira e àúltima letra do alfabeto grego, alfa e ômega. Ou seja, Afonso seria o princípioe o fim de sua obra, em uma perspectiva simbiótica entre o rei e suas leis.

As constatações feitas parecem estar em consonância com a concep-ção organicista da sociedade presente na obra legislativa de Afonso, o queJosé Antonio Maraval chama de pensamento corporativo (MARAVAL,1983). Por esta perspectiva, Afonso X pretenderia formar o corpo socialhierárquico e harmônico definido nas Siete Partidas, na qual o rei é descrito

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como a cabeça, o coração e a alma do reino (Partida 2, 1, 5 “que cosa es elRey”12), e onde cada grupo social tem uma função (partida 2, 10, 1, “quequier dezir pueblo”13), mesmo que hierarquicamente definida: “Ca todos sonmenester: e nõ se pued½ escusar, por q se hã de ayudar vnos a otros, por que puedãbien biuir e ser guardados, e mantenidos”14.

Para exemplificar melhor o pensamento organicista e associativo deAfonso, apresento a seguir um trecho da partida 2, título 1, lei 5:

Vigários de Deus são os reis, cada um em seu reino, postos acima das pessoaspara manter a justiça e, na verdade, quando no temporal, bem como o impe-rador em seu império. Isto se mostra completamente de duas maneiras. Aprimeira delas é espiritual, segundo mostram os profetas e os homens san-tos, a quem deu nosso Senhor a graça de saber as coisas corretas e de fazê-las entender. A outra é segundo natura, assim como mostraram os homenssábios que foram conhecedores das coisas da natureza. E os santos disseramque o rei é posto na terra em lugar de Deus, para cumprir a justiça, e dar acada um seu direito. E o chamaram coração e alma do povo, porque assimcomo faz a alma no coração do homem e por ela vive o corpo, e se mantém,assim no rei se faz a justiça que é vida e manutenção do povo e de seu senho-rio. E, assim como o coração é um e por ele recebem todos os outros mem-bros unidade para ser um corpo, da mesma forma os do reino, a saber quesão muitos (porque o rei é e deve ser um), devem ser uno com o rei, paraservi-lo e ajudá-lo nas coisas que há de fazer. E naturalmente disseram ossábios que o rei é cabeça do reino, pois como da cabeça nascem os sentidos,que mandam em todos os membros do corpo, assim o mandamento nascedo rei, que é senhor e cabeça de todos do reino. Deve-se mandar, guiar efazer um acordo com ele para obedecer-lhe, amparar, guardar e fazer crescero reino, onde Ele é cabeça e alma, e aqueles os membros15.

12 Trad.: que coisa é o rei.13 Trad.: que quer dizer povo.14 Trad.: pois todos são importantes e não se devem excluí-los, pois ajudar-se-ão uns aos outros,

para que possam viver bem, ser protegidos e mantidos. Partida 2, título 10, lei 1.15 Tradução da autora, a partir do seguinte texto: “ Vicarios de Dios son los Reys cada vno en su

reyno, poestos sobre las gentes, para mantener las en justicia e en verdad quando en lo tempo-ral, bien assi como el Emperador en su imperio. Esto se muestra complidamente en dos mane-ras. La primera dellas, es espiritual, segundo lo mostraron los profetas, e los santos aquien dionuestro Señor gracia, de saberlas cosas ciertamente, e de fazer las entender. La outra es, segun-do natura, assi como mostraron los omes sabios que fueron conoscedores delas cosas natural-mente. E los santos dixeron que el Rey es puesto en la tierra en lugar de Dios, para cõplir lajusticia, e dar a cada vno su derecho. E porende lo llamarõ coraçon, e alma del pueblo. Ca assicomo yase el alma enel coraçon del ome, e por ella biue el cuerpo, e se mantiene, assi enel Reyyaze la justicia que es vida e mãtenimiento del pueblo de su señorio. E bi½ otrosi como elcoraçon es vno, e por el recib½ todos los otros miembros vnidad, para ser un cuerpo, bien assitodos los del reyno maguer seã muchos (porque el Rey es e deve ser uvo) por esso deu½ otrosi

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A partir da própria representação organicista do reino, do qual o rei écabeça, coração e alma, podemos inferir a compatibilidade deste pensa-mento associativo com as ambições e práticas políticas de Afonso pela cen-tralização de poder. Esta política lhe trouxe problemas perante a nobreza16.Gladys Lizabe (1993) identifica nesta segunda Partida a frustração políticade Afonso perante a nobreza, pois a maioria das leis parece estar a serviçodo projeto de centralização política de Afonso. De fato, a nobreza castelha-na revoltou-se contra o rei Afonso X nos anos de 1274-1275, alegando queesse não seguia os antigos costumes, pois Afonso pretendia terminar com ojulgamento especial dos nobres, deixando-o para seus alcaides17, além deintroduzir mudanças inspiradas no direito romano, o qual fundamentaria ocaráter centralizador da lei.

6. Considerações finais

Apresenta-se, aqui, um exemplo de circunstância política que prova-velmente orientou a escrita de várias leis nas Siete Partidas, mas as imagense associações com que essas foram construídas se encontram no princípioessencial de entendimento e explicação das relações humanas em conso-nância com o micro e o macrocosmo; ou seja, a relação simpática entre o“mundo menor” e o “mundo maior” referida na Partida II, cuja autoria éatribuída a Aristóteles, pois, “assim como o mundo maior tem movimento,entendimento, obra, concordância e divisão, da mesma forma os possui ohomem, segundo sua natureza. E a este mundo menor, do qual tomou comoexemplo o homem, comparou o rei e o reino e disse de que forma cada umdeveria ser ordenado” (AFONSO X, Partida 2, título 9, lei 1).

ser todos vnos conel, para servir le, e ayudar le, en las cosas, que el ha de fazer. E naturalmentedixerõ los sabios que el Rey es cabeça del reino, ca assi como dela cabeça nascen los sentidos,porque se mãdan todos los miembros del cuerpo, bien assi por el mandamiento que nasce delRey, que es señor e cabeça de todos los del reyno, se deuen mandar e guiar e auer vn acuerdoconel para obedescer le e amparar e guardar e acrescentar el reyno. Onde el es alma e cabeçae ellos miembros.”

16 A nobreza castelhana revoltou-se contra o rei Afonso X nos anos de 1274-1275, alegando queesse não seguia os antigos costumes, pois Afonso pretendia terminar com o julgamento espe-cial dos nobres, deixando-o para seus alcaides.

17 “Alcalde” deriva da palavra árabe andaluz alqádi, que corresponde, no governo de Afonso X,aos seus juízes nomeados.

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E os reinos, assim como os homens, teriam seus destinos ordenadospelos corpos supralunares (constelações e planetas), de acordo com os qua-tro elementos e as condições climáticas, como explica o Libro de las Cruces.Trata-se de fatores determinantes aos quais os seres humanos estariam sub-metidos, leis naturais incorruptíveis.

Neste ensaio, demonstraram-se as bases de uma compreensão da natu-reza que permeou diversas áreas do conhecimento na Idade Média em dife-rentes setores da sociedade. Analisou, principalmente, como os escritos quepretendiam uma explicação da organização social e política fundamentaram-se na relação corpo (microcosmo), natureza (macrocosmo) e sociedade. Osresultados apontam para releituras e reapropriações de fontes neoplatônicase pseudoaristotélicas de explicação da natureza na elaboração de postuladospolíticos medievais, segundo os quais o rompimento da ordem social hierár-quica e harmônica implicaria o abalo da ordem natural.

Com a expectativa de despertar novas curiosidades, permito-me umsalto anacrônico, mas oportuno: seria por acaso que a literatura científicado século XVIII e, principalmente, XIX desenvolve o conceito hierárquicode raça como uma natureza (essência) identificável, agrupável e condicio-nada ao meio? Esta literatura não serviu a projetos políticos da primeirametade do século XX?

Fontes

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Sociedade, natureza e território:contribuição para a história ambiental

Haruf Salmen Espindola

O objetivo desse artigo é apresentar algumas contribuições para odesenvolvimento da história ambiental produzida no Brasil. O ponto departida são preocupações relacionadas à utilização das fontes e produçãoda escrita da história, especialmente as questões que envolvem a narrati-va, entendida tanto como a forma de ordenar os eventos do passado numaexplicação historiográfica, quanto o modo de articulação da experiênciatemporal pelas instituições e pessoas (RICOEUR, 2010). Em seguida,contrapondo-nos ao discurso binário sociedade-natureza, mas antes dedesenvolver uma problemática relacional, apresentamos um jogo narrati-vo com a história regional do Vale do Rio Doce. Trata-se apenas de umexercício superficial, mas suficiente para mostrar como é possível cons-truir narrativas diferentes modificando-se o enredo. Finalmente, trago al-guns autores e ideias da abordagem relacional do território, que acreditocontribuírem para o avanço da história ambiental que produzimos.

A história torna-se muito diferente quando vista em seu contexto am-biental, abrindo múltiplas possibilidades para a investigação interdisciplinare incorporação de novos tipos de fontes, diferentes das habitualmente usadaspelos historiadores. Entre os novos tipos, destaco as que resultam da observa-ção direta da paisagem ou do trabalho de campo, tão familiares aos biólogos,agrônomos, geógrafos, etnógrafos, antropólogos, mas ainda distantes doshistoriadores. A questão das fontes e de sua utilização é uma preocupaçãoinicial porque assistimos a uma tendência de negligenciar a tarefa da crítica eanálise documental, ou seja, no lugar de testemunhas que serão submetidos arigoroso interrogatório, as fontes são tratadas apenas como informantes1

1 O termo informante é utilizado aqui tomando como referência o sentido jurídico e/ou policial,isto é, a figura do declarante que está dispensada por lei a prestar o compromisso a que se

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sujeitam as testemunhas, além de não se obrigar ao interrogatório e à acareação. A instituiçãopolicial tem todo o cuidado com o uso do informante, cujas informações apenas fornecemdados preliminares ou orientadores para a investigação.

“úteis” para a escrita da história ambiental. Fica a dúvida em relação aoscritérios de escolha dos informantes e das informações úteis. Há uma espé-cie de encantamento com fontes “ambientais”, mas essas são invençõesoriginariamente de outra natureza: econômica, social, cultural, científica e,sobretudo, política.

Assiste-se ao abandono dos avanços epistemológicos de LucienFebvre, Marc Bloch, Fernand Braudel e outros, capazes de dar ao historia-dor o que ele tem de fundamental: a capacidade de contextualização (esta-belecer a problemática relacional no tempo e no espaço) e de negação dasgeneralizações, próprias de outras ciências humanas e sociais. O problemada descrição ou da explicação centrada no informante – mesmo que sub-metido à análise sêmica e discursiva – é o da utilização de narrativas cons-truídas com enredos informados pelo senso comum ou, mais grave, pelaideologia/intencionalidade daqueles que a produziram. Nos dois casos, te-ríamos uma situação de comprometimento da história ambiental, pois tra-ta-se de uma postura ingênua frente à complexidade relacional da proble-mática que envolve sociedade/natureza.

O historiador ambiental William Cronon escreveu um belíssimo arti-go (CRONON, 1992) no qual se refere a uma determinada crítica pós-mo-derna e sustenta a tese da objetividade possível para a história ambiental.Ele entende que a narrativa é a forma humana de dar sentido a uma reali-dade que, em si, é misturada e desordenada. O narrador articula o sentidoe organiza sua experiência temporal a partir de um enredo (roteiro) intencio-nal ou inconsciente (ou pelo menos não assumido). A narrativa é uma formade se desenhar a história, e, portanto, é o narrador que fornece a unidade esentido. A história ambiental constrói narrativas para ordenar o passado hu-mano/natureza e a relação sociedade/natureza, que, em si, são realidadesmisturadas e desordenadas, ou seja, sem unidade e sentido “dados”.

A escrita da história ambiental é produzida a partir de diversas fon-tes, porém todas essas também são escritas humanas, inclusive aquilo quedenominamos de paisagem e de natureza observada. O historiador ambien-tal, como qualquer outro, movimenta-se no reino exclusivamente humano

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da narrativa. Entretanto, mesmo que não se possam evitar os ataques pós-modernistas à história, para Cronon (1993) é plausível falar de uma objeti-vidade possível, fundamentada numa ética do historiador: que não menteconscientemente, não infringe fatos reconhecidos, utiliza-se de métodosaceitos e reúne evidências que sustentam sua história. Em sua opinião, ahistória ambiental americana seria exitosa por demonstrar como pessoasdiferentes, em épocas e lugares distintos, têm vivido e usado os recursosnaturais. Assim, o historiador ambiental tem contribuído para ampliar oentendimento sobre o passado.

Uma premissa dos historiadores ambientais é reconhecer que os atoshumanos acontecem dentro de uma rede de relações, processos e sistemasque são tão naturais quanto são culturais. Natureza não é objeto, mas umadinâmica da qual o ser humano é parte; é modificação, mudança: o morrodo “pão de açúcar” de hoje não é o de ontem. O ser humano é parte danatureza, no sentido de que não pode existir fora dela, mas com a diferençade que ele se reproduz com mais velocidade e intensidade que outras espé-cies, por conta da sua economia, organização social, cultural e política. Osúnicos competidores eficientes dos seres humanos são as bactérias e vírus.A análise deve identificar os elementos que compõem os dois termos darelação sociedade-natureza para estabelecer a problemática relacional quea envolve. Isso não é simples e exige um esforço de superação do saberdisciplinar dominante e/ou das concepções “ambientalistas” acríticas. Osaber disciplinar vê a sociedade (sujeito) dissociada da natureza (objeto). Aconcepção acrítica oferece um juízo de valor ambiental, que parte do julga-mento antecipado da culpa dos “homens” ou da “sociedade” pela destrui-ção da natureza.

A separação entre os seres humanos e a natureza, mais do que umaideia, é o substrato que compõe a subjetividade ocidental, fundamentadano ato de doação da terra, água, animais e plantas ao primeiro homem(Adão), para seu usufruto. Na Bíblia, o livro de “Números” declina as li-nhagens, geração a geração, confirmando que o homem está desligado daterra-natureza, pois deriva de Deus (“Façamos o homem a nossa imagem esemelhança e presida... toda a terra ...”2). A terra, os animais e as plantas

2 Gênesis 1:26.

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são bens dados para o usufruto. Josué, ao entregar às tribos a porção quecaberia a cada uma da terra “prometida”, o fez com a condição dessas seafastarem de toda forma de animismo e com a ordem para destruírem bos-ques e outras “naturezas” consideradas locais do sagrado: Deus não é en-contrado na natureza. Esse substrato do espírito ocidental que se forja con-tra a natureza (TURNER, 1990) na verdade constitui uma percepção defundo que vê a natureza como exterioridade, como objeto. Daí a fragilida-de do juízo de valor ambiental, pois, sem a coerência analítica e crítica, essesubstrato atua como “roteiro oculto, entranhado no texto”, para usar a ex-pressão de Latour (2000, p. 93).

Não quero discutir aqui a contradição entre a prática social e o dis-curso sobre o “meio ambiente” difundido na mídia, nas políticas de res-ponsabilidade ambiental e nas escolas3. Na última década, aumentaram asdenúncias em relação ao poder de destruição do homem, alimentadas pelodiscurso sobre o aquecimento global, ápice de uma narrativa trágica. Toda-via, é preciso perguntar, mesmo que seja por provocação: o ser humanopode de fato destruir a natureza? A história ambiental não pode reproduzirum discurso ambientalista binário, que coloca de um lado a natureza e dooutro o homem que a destrói, sem perceber a problemática relacional.

Se o enredo que fundamenta a narrativa é um problema para a histó-ria ambiental – especialmente se não existe consciência disso –, não é me-nor a tragédia do recorte que evita a complexidade e simplifica o objetopara facilitar a abordagem. Na história ambiental, o “roteiro oculto” e o re-ducionismo do objeto às suas partes constituintes mais simples podem con-duzir ao discurso moralista do juízo de valor ingênuo. O fato de o historia-dor ambiental lidar com questões cruciais para os seres humanos, particu-larmente problemas muito concretos que afetam a noção de progresso eperspectiva de futuro, pode contribuir para influenciar de fato o curso deeventos no mundo real (CRONON, 1993). Entretanto, se o discurso resvalapara o campo moralista, pode fazer coro ao ecologismo a-histórico ou mes-mo anti-histórico, reduzindo-se a um juízo de valor que pouco contribui

3 O pragmatismo prevalece quando o “meio ambiente” impõe restrições efetivas aos agencia-mentos de indivíduos e grupos; particularmente se é usado para regulamentar ou restringirempreendimentos econômicos que afetam “regiões pobres”, ou seja, com pouco ou nenhuminvestimento de capital.

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concretamente para o debate. A fragilidade da história ambiental se tornamaior se o discurso vem acompanhado de generalizações supostamentecríticas que acusam os homens, a sociedade, a economia, etc., sem que seesclareçam as categorias envolvidas na problemática relacional: os atores, apolítica dos atores (intenções e finalidade), a estratégia que é utilizada parase alcançar os fins, os mediatos da relação, os diversos códigos utilizados e oscomponentes espaciais e temporais da relação (RAFFESTIN, 1993, p. 38).

Para avançar na reflexão proposta, antes seria útil um exercício deconstrução de múltiplas narrativas a partir da alteração do enredo, porémsem mudar as circunstâncias históricas (história regional do Vale do RioDoce). Como dissemos antes, a narrativa é uma forma de configurar oseventos do passado na sucessão temporal, construindo significados e senti-dos humanos. Narrar é criar um fluxo de eventos e estabelecer uma dura-ção que possibilitem o entendimento humano (seja o próprio entendimen-to, seja o do outro). Cada pessoa, ao contar sobre o passado, utiliza a narra-tiva para articular suas lembranças, porém conforme o contexto presenteno qual se insere, e não a partir do próprio passado (RICOEUR, 2010). Anarrativa é construída a partir de determinado enredo que articula os ele-mentos mobilizados para lhe dar conteúdo. O enredo, consciente ou não,cria uma unidade de sentido que natureza e sociedade, presente e passadonão possuem. Da mesma forma que a narrativa foi construída a partir deum enredo, podemos reverter a operação para reter apenas o enredo quelhe serviu de guia (roteiro oculto). Podemos alterar o enredo e, assim, refa-zer a narrativa, dando-lhe outro sentido. É o enredo que governa a armaçãodos fluxos e duração e, ao mesmo tempo, estabelece o sentido.4 Feitas essasconsiderações, façamos um exercício com base no processo de ocupaçãodas áreas de floresta tropical de Minas Gerais, particularmente a zona defronteira constituída pelo Vale do Rio Doce (VRD).

As zonas de fronteira são férteis em narrativas sobre pessoas e famíliasque lutaram para transformar um ambiente hostil e saíram vencedoras, como“a luta dos agricultores pioneiros para subjugar as terras áridas da GrandePlanície... 5 (TURNER, 1996). Essas narrativas de pioneiros se limitam à

4 Cronon (1992) demonstra como uma determinada história é modificada quando se passa deum enredo partidário da ideia de progresso para um enredo pessimista.

5 “The struggle of the pioneer farmers to subdue the arid lands of the Great Plains…”.

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duração que cobre o período de uma única geração, que se inicia logo apósa conquista, pelos colonos, das primeiras terras antes ocupadas por índios.Encontramos esse tipo de narrativa de “pioneiros” para o VRD, que se ex-pressa da seguinte forma:

Isso aqui era uma reserva ecológica, vamos dizer assim; foi a mais recentefronteira de 50 anos para cá, que foi aberta em Minas Gerais. O anofelino,mosquito transmissor da malária, guardou isso aqui para as novas gerações.As reservas naturais foram uma grande fonte de colonização, a mica, comomatéria-prima essencial ao esforço de guerra, e a madeira.6

Os “pioneiros” de Governador Valadares, cidade-polo do VRD, apre-sentam-se como caso particular da narrativa de fronteira7. Essa se concen-tra na fase do boom da economia regional (décadas de 1940-1950), quandose constituiu uma classe dominante de fazendeiros, industriais e comerci-antes. Esses são os vencedores da natureza hostil e construtores do progres-so e civilização. No seu vigésimo aniversário de emancipação (1958), a ci-dade de Governador Valadares, refletindo o orgulho dos seus “pioneiros”,foi denominada de Princesa do Vale. A narrativa se fundamenta no enredode progresso e realização, que ressalta a capacidade de transformar a natu-reza em riquezas e produzir o crescimento econômico: a indústria da ma-deira, a extração e beneficiamento da mica, a exportação do minério deferro, a agroindústria canavieira, as grandes fazendas de pecuária de corte,as siderúrgicas, o beneficiamento de pedras preciosas, entre outros. Naspalavras de Hermírio Gomes: As reservas naturais foram uma...

Esse enredo dos “pioneiros” de Governador Valadares desconhece operíodo entre 1808 e 1930. Promove um apagamento da temporalidadeassociada a índios, mestiços, negros, pardos, ou seja, “gente desclassifica-da” que, juntamente com soldados das Divisões Militares do Rio Doce,jagunços, missionários, garimpeiros e aventureiros, ocuparam, no século

6 Depoimento gravado em 1996, com Hermírio Gomes da Silva, 85 anos, prefeito por dois man-datos (1967-70 e 1972-76), e um dos “pioneiros” que participou da criação da Associação Co-mercial, do Rotary Club, da Fundação Percival Farquhar, mantenedora da Universidade Valedo Rio Doce, entre outras instituições, nas décadas de 1940, 1950 e 1960.

7 COSTA, Edmar Campelo. Epopéia de pioneiros. Belo Horizonte: s.n., 1977; SOARES, Ruth.Memórias de uma cidade. Governador Valadares: Tribuna Fiel, 1983; SANTOS NETTO, MariaCinira dos. Desbravadores e Pioneiros do Porto de Dom Manuel. Governador Valadares, s.n., 1999.

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XIX, o Sertão do Rio Doce (ESPINDOLA, 2005). O enredo típico dosmemorialistas8 sobre o VRD, que destacava os “canibais insaciáveis em car-ne humana”, as cachoeiras, as matas sombrias, os miasmas, etc., desapare-ce para dar lugar ao inimigo identificado e vencido: anofelino, mosquito trans-missor da malária guardou isso aqui para as novas gerações. Não existe mais oíndio nem o Krenak, último grupo de língua Botocudo a ser contatado,cujo aldeamento ocorreu na década de 1920. Também não estão presentesno enredo dos “pioneiros de Governador Valadares” os elementos que arti-culam o tempo dos milhares de migrantes anônimos ocupantes das terrasdo VRD como posseiros, ou mesmo como trabalhadores na construção daEstrada de Ferro Vitória a Minas (EFVM), entre 1903 e 1942. O que contaé a reforma da ferrovia para transportar minério de ferro em larga escala9; ocrescimento da cidade de Governador Valadares; as famílias dos “pioneiros”e seus empreendimentos; a formação das entidades e associações que reu-niam esses “pioneiros”; a criação de seus clubes de recreação, entre outros.

Podemos substituir esse enredo e, assim, mudar a narrativa para umaoutra social e ambientalmente trágica. As atividades econômicas da fase doboom (décadas de 1940 e 1950) estavam centradas na exploração dos recur-sos naturais, mas, como não eram sustentáveis, houve o fechamento dosempreendimentos e a progressiva queda da capacidade de geração de em-prego e renda. Indicadores econômicos e sociais podem ser mobilizadospara dar sustentação à nova narrativa, principalmente os indicadores de-mográficos, por apresentarem uma inversão brusca na década de 196010. Aocupação do VRD pode ser comparada com a de outras regiões do Brasil,

8 A referência são os memorialistas que se tornaram fontes recorrentes para a história de MinasGerais, particularmente Diogo de Vasconcelos, José João Teixeira Coelho, José Vieira Couto,D. Rodrigo José de Menezes, Antônio Pires da Silva Pontes Leme, Basílio Teixeira de Sá Vedra,Joaquim José Lisboa, José Joaquim da Rocha, entre outros. Esses autores tinham em comumuma visão geral sobre o declínio da produção aurífera e seus efeitos sobre a economia mineira e,particularmente, sobre a importância do VRD para a recuperação econômica de Minas e sobreos obstáculos a serem vencidos para se efetivar a colonização e navegação do rio Doce.

9 A referência é um filme promocional da segunda metade da década de 1940, produzido pelaMorrison-Knudsen Company, Inc., denominado de Jungle Railroad, que apresenta o trabalhode reforma da EFVM para transporte de minério de ferro em larga escala como construção daferrovia na selva.

10 O saldo migratório líquido negativo é dos mais expressivos do Brasil, entre 1960 e 1991 (SOA-RES, 2002).

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no século XIX e XX, onde também houve incorporação de territórios con-quistados das populações indígenas. Na comparação, pode-se destacar queessas outras regiões hoje são importantes zonas econômicas do país, con-trastando-as com o empobrecimento crescente do VRD. No lugar de se con-centrar na prosperidade econômica, a narrativa pode ser encaminhada paraa rápida decadência, expressa numa participação decrescente no PIB minei-ro, aguçada ainda mais ao se ressaltar e, em seguida, excluir os grandes inves-timentos de capital (Usiminas, Cenibra, Vale, ArcelorMittal Inox Brasil, etc.).O que antes era uma “terra da promissão” se torna “região-problema”.

Assim, tendo como suporte documentos oficiais e dados censitários de1960 a 199111, é possível substituir o enredo de progresso pelo que descrevainvasores oportunistas que excederam os limites naturais do ecossistema eproduziram um desastre socioambiental. A narrativa pode ser conduzida parao clímax da devastação ambiental (a exemplo de “A Ferro e Fogo” de WarrenDean) e para a tragédia de pessoas e famílias, que se iludiram com a riquezafácil. Os “pioneiros” são substituídos pelas florestas desaparecidas, pelas ter-ras exploradas além do limite e pelas centenas de milhares de indivíduosobrigados a migrar12. Portanto, embora as armações geográficas e cronológi-cas sejam bastante semelhantes, temos outra narrativa, resultado da mudan-ça de enredo: a história é conduzida para um desastre inevitável, provocadopelo oportunismo, ignorância e egoísmo dos “pioneiros”.

Podemos pensar uma terceira narrativa, cujo enredo é fornecido pelacrítica à razão dualista do capitalismo brasileiro, de Francisco de Oliveira (1981).Sairiam as famílias, homens e mulheres, e entrariam as categorias, tais comoacumulação primitiva de capital e renda da terra. O movimento da totalidade,dado pelo processo de industrialização brasileira, forneceria o sentido para anarrativa, tendo a agricultura um papel de fornecer alimentos a custos baixospara as cidades, além do exército industrial de reserva, a partir do êxodo rural.A narrativa também pode ser orientada para o beco sem saída do desastreecológico e socioeconômico, mas não mais seriam os pioneiros os responsáveis

11 A população, que chegou a mais de 17% dos habitantes do Estado de Minas Gerais em 1960,representava menos de 10% em 1991.

12 A população sem sustento nas cidades da região é obrigada a migrar para os polos industriaisou outras áreas de fronteira.

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pelo final trágico, e sim o capitalismo. Nesse caso, a “região” cumpriria umafuncionalidade subalterna na totalidade social capitalista brasileira.

O narrador pode redefinir os eventos do passado e da natureza, a fimde que se ajustem às exigências do seu enredo. O historiador não apenasconstrói narrativa, mas lida com narrativas que são continuamente atualiza-das pelos seus narradores. A narrativa reatualiza a memória e reorganiza opassado, com importantes implicações na construção da identidade coletiva,forjando pertencimentos que são básicos na construção da unidade na multi-plicidade. Portanto, a narrativa que prevalece sobre outras constitui trunfo dopoder: é um passado que se faz presente entre muitos esquecidos. Descons-truir a narrativa oferecida ao partilhamento da coletividade não significa queessa deixe de ser o modo de homens e mulheres, famílias e grupos sociaisorganizarem suas experiências. Entretanto, cabe ao historiador não se deixarseduzir pela narrativa, especialmente se ela foi produzida com um enredoque atores, propositadamente, queriam deixar para a posteridade.

O que é comum aos enredos acima é a presença da natureza: parauns, maléfica e vencida; para outros, benéfica e destruída; ainda para ou-tros, recursos mal administrados.13 No exercício narrativo proposto aqui,podemos exercitar outro enredo: o da formação histórica do território. Issoimplica, antes de qualquer coisa, organizar os elementos constitutivos dasrelações que operam a produção do território. Nosso objetivo é demonstrara contribuição que a abordagem territorial pode oferecer, e, consequente-mente, trata-se apenas de um raciocínio simplificador, para destacar os ele-mentos da problemática relacional.

Para Raffestin (1993, p. 38), os elementos da problemática relacionalsão: atores, finalidade dos atores, estratégias, trunfos, códigos e os compo-nentes espaciais e temporais. Vamos utilizar esses elementos para estabele-cer um enredo, que a princípio consideramos com menor carga de juízo devalor. Para simplificar o exemplo, definamos dois atores, cuja finalidade é a

13 A questão não é nova, pois está presente no debate sobre a construção da identidade nacionalno século XIX. De um lado, estavam aqueles que consideravam os trópicos insalubres e inade-quados à civilização; do outro, os tributários do romantismo, para quem a natureza tropicalpropiciaria condições para o desenvolvimento pleno da civilização, que poderia ser construídasem os erros e vícios do Velho Mundo.

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posse da terra: posseiros e fazendeiros14. É preciso esclarecer o significadodado aos dois termos da relação que se pretende estabelecer (código). Otermo “posseiro” refere-se ao homem que, junto com “vizinhos”, algunscom família e outros não, deixa o local onde ocupava terra sem título depropriedade (posse) para se estabelecer numa nova ocupação em terras de-volutas, em razão das terras na origem não serem mais produtivas parasustentar as famílias com culturas agrícolas15. Esses posseiros também fo-ram denominados de “lavradores pobres”, quando os conflitos de terra ga-nharam a imprensa nacional. O termo “fazendeiro” indica o homem que écapaz de se apoderar e possuir grande extensão de terras (fazenda), comoproprietário, com a finalidade de engordar gado bovino de corte16.

A posse da terra é um elemento comum, porém é esse elemento quese torna o motivo do conflito, exatamente porque as demais finalidadesdivergem, principalmente em relação ao uso da terra: fins mercantis contrafins de subsistência. A diferente valorização do espaço (valor de troca evalor de uso) interfere na posição dos atores em relação ao título de proprie-dade, visto tratar-se inicialmente de ocupação de terras devolutas, portantode direito de posse. Outras questões também diferenciam os fins de cadaum dos atores, porém, para a nossa finalidade, basta essa diferença na valo-rização do espaço. O movimento dos atores e sua distribuição espacial es-tão relacionados diretamente com as estratégias seguidas. Essas expressamos componentes espaciais e temporais, ou seja, a localização (posição) dosatores e a temporalidade da ação (início, duração e desfecho). Podemosdistinguir duas posições majoritárias, a partir das quais os atores se situame se movimentam no jogo relacional: meio rural e meio urbano. O tempo éprimordial na construção do enredo, que pode ser dividido em três grandes

14 Restringir-se aos dois atores também é uma simplificação porque cada um deles indica umasuposta unidade e homogeneidade interna que não existe historicamente. Essa simplificaçãosomente é justificada por se tratar de um exemplo. Não consideramos também o contexto dasmudanças políticas e socioeconômicas que afetam as diferentes escalas, ou seja, o contexto doestado de Minas Gerais e do Brasil, particularmente o processo de industrialização no século XX.

15 Nem sempre o posseiro ocupava terras anteriormente. Ele pode ser, por exemplo, filho depequeno produtor rural que, ao se casar e constituir novo domicílio, necessita de novas terraspara produzir – efeito do ciclo de vida do domicílio sobre o uso da terra. As terras devolutaspodem representar esta oportunidade para ele.

16 O fazendeiro, inicialmente, também é ocupante de terras devolutas, porém trata logo de reque-rer a legitimação da terra junto ao órgão público responsável.

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blocos: agenciamentos anteriores ao conflito, agenciamentos dos conflitose agenciamentos depois desses se definirem.

Antes do conflito, predominam os agenciamentos de posseiros quese estabelecem nas terras de matas, por considerem essas terras boas. Osagenciamentos são de dois tipos: contiguidade ou por transferência de pon-to a ponto. O primeiro tipo trata do avanço em direção ao Vale do Rio Docepropriamente dito, que espacialmente é contíguo à zona de origem dos pos-seiros, criando um movimento de criação de fronteira ou de extensão dafronteira. No primeiro caso, trata-se de abertura da fronteira por posseirose fazendeiros anteriormente estabelecidos por gerações na (A) zona tra-dicionalmente ocupada de Minas Gerais17 (Ouro Preto-Mariana, Caeté-Itabira, Serro-Peçanha); no segundo, são majoritariamente posseiros queexpandem a fronteira cafeeira da (B) Zona da Mata Mineira e (C) zonaserrana do Espírito Santo e expandem a fronteira da pecuária da (D) zonados vales do Jequitinhonha e Mucuri. Os posseiros se estabelecem no meiorural e praticam culturas de subsistência, vivendo em pequenos círculos devizinhança denominados “córregos”, mais ou menos afastados dos peque-nos núcleos urbanos que denominam de “comércio”18.

No segundo tipo (transferência ponto a ponto), temos situações maisheterogêneas, caracterizadas pela “fuga” de um local de origem na buscada sobrevivência ou de melhores alternativas de vida ou de acumulação. OVRD é local de destino para indivíduos ou famílias que buscam a sobrevi-vência: retirantes nordestinos expulsos pela seca do sertão ou imigrantesitalianos e alemães expulsos pela crise que se seguiu à derrota na PrimeiraGrande Guerra. Esse também é um caso de criação de fronteira, com osindivíduos e famílias se estabelecendo no meio rural.19 Por outro lado, oVRD é oportunidade de acumulação ou melhoria de vida. Nesse caso, omovimento se dá de núcleo urbano para núcleo urbano, ou seja, movimen-to mais individual do que familiar de transferência do domicílio de antigas

17 Entre aqueles que se deslocam para o Vale do Rio Doce, alguns carregam sobrenomes detradicionais famílias mineiras de Mariana, Itabira, Caeté, Serro, Peçanha, etc.

18 Córregos e comércio são códigos que indicam a posição dos atores no campo operacional dasrelações de poder.

19 É preciso considerar uma diferença fundamental entre os dois tipos. No caso do imigranteestrangeiro, existe intervenção estatal no estabelecimento dos “colonos” na terra, o que nãoocorre com o imigrante nordestino.

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cidades para os núcleos urbanos em formação. Os fazendeiros se estabele-cem majoritariamente nesses núcleos urbanos (“comércio”), possuindo ter-ras nas proximidades, sendo que muitos acumulam a propriedade de casasde comércio e indústria. Os novos núcleos urbanos também recebem mi-grantes que se estabelecem nas ocupações mais diversas. Para a lista nomi-nativa da vila de Figueira (Governador Valadares), de 1930, foram conta-dos 527 imóveis e 2.103 habitantes, com uma população economicamenteativa de 743 indivíduos, distribuídos em 64 ocupações, sendo os lavradores20

o maior contingente (18,44%), seguidos dos comerciantes (9,02%) e ferroviá-rios da Estrada de Ferro Vitória a Minas (7,54%). Os dois movimentos expos-tos acima podem ser observados no esquema colocado abaixo.

Tipos de Agenciamentos

A

B VRD D

C

A linha contínua é o tipo contiguidade e alinha pontilhada a transferência ponto a ponto.

Os agenciamentos anteriores ao conflito são majoritariamente linhasde contiguidade que se destinam ao meio rural da fronteira do VRD. Omovimento ponto a ponto que ressaltamos aqui são as transferências paraos novos núcleos urbanos, majoritariamente destinados às localidades querecebem as estações ferroviárias, como é o caso de Figueira, cuja estação foi

20 O termo “lavrador” designa os donos de terras, diferentes dos vaqueiros, arrieiros, carreiros,etc., porém não é possível distinguir se os lavradores são posseiros ou proprietários da terra;em todo caso, o mais provável é que, originariamente, a grande maioria tivesse apenas a posse.Os posseiros são distinguidos pelo adjetivo “lavrador pobre”.

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inaugurada em 15 de agosto de 1910. Como nosso enredo é um exemplosimplificado, desconhecemos a complexidade presente em múltiplas situa-ções particulares, retendo apenas um binarismo esquemático para fins deargumentação. O movimento de contiguidade pode ser caracterizado comoprocesso de territorialização que guarda as propriedades típicas da formade ocupação territorial brasileira dos sertões cobertos de matas. As terrasdevolutas são ocupadas pela frente de expansão demográfica, com base emuma relação particular com a natureza: desmatamento e queima, com apro-veitamento da fertilidade do solo derivada da idade da floresta e da cinza.Os solos são utilizados para culturas de subsistência, com plantações dearroz, feijão, milho, mandioca, etc., durante três anos, seguidos de interva-lo de descanso. Com o esgotamento do solo, o posseiro é “obrigado” a abrirnova clareira na mata ou se transferir para outra terra de matas, criando umsistema que se sustenta com a progressiva extensão da área desmatada (ES-PINDOLA, 2000). Podemos utilizar Deleuze e Guattari (1976) e afirmarque ocorre uma desterritorialização da floresta e da terra, entendida comoa condição originária da natureza do lugar.

O segundo tipo, denominado de “ponto a ponto”, pode ser identifi-cado como movimento de desterritorialização e reterritorialização, na me-dida em que indivíduos (maioria do sexo masculino) deixam o local ondejá se encontravam estabelecidos por uma ou várias gerações, ou seja, dei-xam sua cidade, grupo social e família para tentar a vida num lugar novo,identificado como “hostil”, mas que oferece oportunidade de um novo es-tabelecimento com prosperidade.21 Os motivos das transferências de umponto a outro são de diversas ordens, particularmente o empobrecimentoresultante de crises locais (especialmente da cafeicultura) ou de limitaçãoda herança (famílias numerosas)22. Esse movimento foi modesto até 1930,porém fatores conjunturais aceleraram as transferências de ponto a ponto:fatores diretos, como a crise cafeeira e a valorização do gado zebuíno; e osfatores indiretos, tais como a criação da Companhia Vale do Rio Doce eCompanhia Siderúrgica Belgo-Mineira, a modernização da Estrada de Ferro

21 São conhecidos os casos de indivíduos que modificaram a expectativa inicial de buscar a famí-lia que ficou na origem, trocando-a pelo estabelecimento de uma nova família construída nodestino.

22 A migração familiar resultante do fato dos filhos não disporem de terras para sustentarem seuspróprios domicílios recém-constituídos.

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Vitória a Minas, a abertura da rodovia Rio-Bahia, a Segunda Guerra Mun-dial (demanda de mica), entre outros. O caso que sustenta nossa reflexãofornece o exemplo para o que estamos colocando: aceleração do movimen-to ponto a ponto. A cidade de Governador Valadares (Figueira), que tinha2.103 habitantes, em 1930, cresceu 172% na década, atingindo 5.734 habi-tantes, em 1940. Na década seguinte, a população cresceu 255%, chegandoa 20.357 habitantes, em 1950. O ritmo continuou o mesmo e a populaçãoatingiu 70.494 habitantes, em 1960 (ESPINDOLA, 1998).

A década de 1950 marca o início da fase denominada de agencia-mentos dos conflitos, porque nela se concentram as disputas pela posse daterra que resultaram no predomínio do fazendeiro, do gado e da proprieda-de, no lugar do posseiro, das culturas de subsistência e da posse (ESPIN-DOLA et al., 2010a). Nessa fase também ocorre uma intensificação da ex-ploração dos recursos florestais, pela extração da madeira de lei, pela ativi-dade carvoeira e produção de lenha e pela substituição das matas pelo ca-pim-colonião (ESPINDOLA, 2008). A exploração florestal se convertenuma forma de capitalização e estabelecimento da exploração da terra. Oconflito é produzido pelo avanço sobre a territorialidade dos posseiros porparte dos fazendeiros, a partir do meio urbano, num movimento de reterri-torialização fundamentada na propriedade privada da terra à custa da des-territorialização dos posseiros e do direito de posse.

Nessa problemática relacional, sobressaem os trunfos (recursos à dis-posição dos atores). Trata-se de relação de poder, cuja dissimetria é de na-tureza diversa: econômica, social, política e cultural. Estava em melhorposição aquele que sabia ler, pertencia à “sociedade” (urbana), participavade entidades civis (Rotary, Lions, Maçonaria, Associação Comercial, Con-selho Paroquial, etc.), conhecia a legislação estadual de terras, podia con-tratar advogados hábeis, usufruía de contatos nas repartições de terras, pos-suía aliados no campo político (prefeitos e deputados), transitava livremen-te na Secretaria de Agricultura, dispunha de força armada (pistoleiro), en-tre outros trunfos. O fazendeiro situado na cidade possuía tudo isso, mas oposseiro posicionado no meio rural não dispunha de nenhum desses trun-fos. Os primeiros se colocaram em posição de poder para se tornarem pro-prietários privados das terras, mesmo que isso fosse à custa do direito deposse, assegurada pelos preceitos constitucionais e pela tradição jurídica(ESPINDOLA et al., 2010b). Fatores de ordem natural também são opera-

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dos como trunfo, tais como a disposição das vertentes que condicionam osassentamentos humanos; a temperatura, altitude e regime de chuvas que fa-vorecem a infestação do capim-colonião, na competição com a floresta tropi-cal; os incêndios florestais; e a atuação devastadora da formiga sobre as cul-turas agrícolas, resultante do desequilíbrio ambiental (ESPINDOLA, 2008).

Se houve conflito é porque os posseiros se organizaram e, assim,mobilizaram trunfos suficientes para criar um contexto de luta pela terra.Isso exige identificar os atores mobilizados pelos posseiros ou por eles utili-zados para modificar o campo operativo das relações de poder, alterando asua posição ao ponto de criar um novo cenário. Entre os diversos atores,destacamos o Partido Comunista Brasileiro; a imprensa nacional alheia aosinteresses locais; a imprensa local e advogados solidários com a causa “cam-ponesa”; e comerciantes favorecidos pela dinâmica da economia rural dosposseiros. É preciso identificar as instâncias organizativas constituídas esuas estratégias (no exemplo, o sindicato dos trabalhadores rurais). A lutatambém é pela representação, pelo controle dos códigos, pela afirmação doque é verdadeiro na consciência dos atores e sua difusão na sociedade. Nonosso exemplo, ressaltamos a disputa pela definição do que era direito einvasão: apropriar-se do “direito” significa impingir ao outro a condição deinvasor de terra e vice-versa. A vitória também se realiza como predomíniode códigos: os fazendeiros se tornam respeitados proprietários de terra.

O resultado para o posseiro, convertido em “invasor” de terras, é o“despejo rural”, isto é, a expulsão da terra com amparo de ordem judicial.Para a maioria, a alternativa é a migração para a cidade ou outra região defronteira agrícola, porém localizada a milhares de quilômetros da origem(Mato Grosso e Rondônia). A linha de fuga pode ter intermediação: pri-meiro para a cidade-polo da região do conflito, seguindo depois para ascidades industriais ou para fronteiras agrícolas. Os agenciamentos de reter-ritorialização (fazendeiro) e desterritorialização (fuga forçada do posseiro)não constituem uma fase posterior aos agenciamentos dos conflitos, masuma derivação concomitante desses. Entretanto, é preciso identificar o mo-mento de corte, no qual se estabelece o novo contexto. No nosso exemplo,é o golpe militar de 1964 que produz o corte, ao colocar na ilegalidade ereprimir os agenciamentos de resistência dos posseiros. A partir de então,configura-se a dominância da linha de fuga que se manifesta na intensidadedo saldo migratório líquido negativo das décadas de 1960, 1970 e 1990

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(SOARES, 2002). Esse fenômeno não é uma ocorrência isolada, mas com-põe um cenário de desterritorialização, associado à redução da coberturaflorestal de 5 a 2,5% da originária23; à queda generalizada da capacidade desuporte da terra; ao declínio acentuado da pecuária bovina; à intermitênciade cursos d’água; à migração de capitais anteriormente atuantes nos princi-pais núcleos urbanos; à diminuição contínua da oferta de emprego e dacapacidade de geração de renda, entre outros.

O exemplo utilizado acima permite afirmar a riqueza da contribui-ção que a abordagem territorial pode oferecer à história ambiental realiza-da no Brasil. Apesar da simplificação extrema, ao reduzirmos a questão àrelação posseiro-fazendeiro, pode-se observar a riqueza dos elementos rela-cionais que emergem. O termo “território”, originariamente aplicado nasciências geográficas, a partir de Friedrich Ratzel24, é carregado de contradi-ções, cuja discussão conceitual está longe de ter suas tensões resolvidas. Numavertente materialista, o território é tratado como uma realidade objetiva exte-rior às relações sociais, constituindo-se o espaço onde ocorrem essas rela-ções. Esse espaço material impõe as limitações da distância física, forneceos recursos e serve de abrigo. Na perspectiva relacional, mas sem abando-nar a ideia do território físico, esse é entendido como fator localizacional(economia) ou como área de abrangência da dominação política (jurisdi-ção definida por limites, com controle do acesso).

Na concepção subjetiva (idealista), o território é espaço relacional dereferências identitárias, simbólicas e de valor. Nesse sentido, o objeto são oslugares inter-relacionados, incluindo os percursos, com seus pontos impor-tantes e meandros, as ligações superficiais (expostas e visíveis) e as capila-res (subterrâneas e invisíveis). Os indivíduos e coletividades territoriaismantêm com o território sentimento de pertencimento e relações subjeti-vas. Essa concepção não aceita a ideia de um mundo preciso, exterior ao

23 A Floresta Atlântica cobria 91% da área, os Tabuleiros 7,5% e a vegetação litorânea 1,5%.COMPANIA VALE DO RIO DOCE. Desenvolvimento Agropecuário da Região de Influência daCVRD: estudo básico. São Paulo: Planejamentos Agro-Industriais – SEITEC, 1969, p. 248 e 251.

24 O alemão Friedrich Ratzel, na segunda metade do século XIX, introduziu a noção de territó-rio na Geografia, retirando-a das Ciências Naturais. A Geografia Clássica, que prevaleceu atéa década de 1960, seguindo Ratzel, entende o território a partir do Estado, reconhecendoapenas uma única dimensão territorial e, portanto, uma única categoria de análise.

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sujeito e destituído de significados para esse. Abarca os laços de afetividadeque unem as pessoas ao ambiente e busca analisar a relação empática doser, tendo na fenomenologia o suporte teórico da análise: não considera omundo independente do ser humano (experiência vivida, aplicada e adqui-rida) (ROSENDAHL; CORRÊA, 2001). A assimilação ao local e a culturado lugar contribuem para a constituição do território, formação da identi-dade e o enraizamento de indivíduos e coletividades territoriais (WEIL,2001). O lugar é principalmente produto da experiência humana, um cen-tro de significados produzido pela experiência (TUAN, 1980).

A história ambiental deve conhecer essas diferentes abordagens, po-rém a reflexão sobre o território, resultado das discussões das últimas duasdécadas, produziu avanços significativos, mesmo sem ter superado as con-tradições que existiam e ainda existem. Entre os vários autores que contribu-íram para a retomada da reflexão sobre o território, destaco Claude Raffestin(1993); a edição francesa de “Por uma geografia do poder” foi publicadaoriginalmente em 1980. O autor parte da crítica à geografia e outras ciênciashumanas que transformaram o Estado na categoria superior às outras, oumesmo na única categoria de análise. A ideia de que o poder é o do Estadoreflete a ideologia triunfante do poder estatal. Todas as escolas geográficasratificaram esse pressuposto filosófico e ideológico expresso na equação Es-tado igual a poder. O autor contrapõe a essa geografia outra que trata nãodo Estado, mas do poder ou dos poderes, porque “o fato político não estáinteiramente refugiado no Estado” (RAFFESTIN, 1993, p. 17).

A apropriação produtiva e/ou cognitiva da natureza sempre é umprocesso de territorialização, no qual o território resultante se torna, elepróprio, força condicionante das ações futuras, um trunfo com particulari-dades, pois é “recurso e entrave, continente e conteúdo, tudo ao mesmotempo” (RAFFESTIN, 1993, p. 60). O impacto ambiental começa a partirdo momento em que grupos humanos ocupam determinada área e desen-cadeiam uma sequência de ciclos recorrentes (processos sociais caracteri-zados pela recorrência, regularidade e reprodutividade). O espaço e as ma-térias encontradas na superfície ou subsolo da terra oferecem um campo depossibilidades. São identificadas propriedades na matéria que permitem suautilização, ou seja, o estabelecimento de relação. Essas propriedades nãosão “dadas” pela natureza, mas são “invenções” humanas, que resultam doprocesso empírico e analítico que as identificou. A valorização do espaço e

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das matérias que formam seu conteúdo liga-se à relação que os grupos hu-manos mantêm com elas, ou seja, com as propriedades “inventadas”. Amatéria sem as práticas e conhecimentos humanos permaneceria um “dado”e não se tornaria “campo de possibilidades”. É a prática que possibilita arelação, pois, “sem prática, nenhuma relação, nenhuma relação com a ma-téria e, portanto, nenhuma produção” (RAFFESTIN, 1993, p. 224).

Não é a matéria que é o recurso, mas as propriedades da matéria queconstituem “classes de utilidade” para determinados atores (grupo huma-no, instituição, organização, etc.). Logo, o valor não está na matéria, masnas propriedades e correspondentes classes de utilidades. Não há recursosnaturais, só matérias naturais, porque recurso não se refere a uma coisa ousubstância, mas à relação criada por uma prática do ator capaz de mobili-zar uma técnica. A tecnicidade se refere ao conjunto das relações que o atormantém com as matérias às quais pode ter acesso, constituindo-se numsubconjunto da territorialidade, e, portanto, ao ser, saber e saber fazer pró-prios do território. A prática pode ser simétrica ou dissimétrica, ou seja,não destrutiva do meio material ou destrutiva do meio material. A socieda-de contemporânea é marcada por uma tecnicidade dissimétrica, governadapela vontade de crescimento econômico e de extensão do domínio territorialdo Estado. Portanto, a tecnicidade nos introduz na esfera do poder, expri-me relações de poder, não somente com a matéria, mas também entre oshomens para os quais essa matéria é um trunfo. “A produção dos recursossupõe, pois, uma dominação mínima de uma porção do quadro espaço-temporal dentro do qual, e para o qual, a tecnicidade interage com a territo-rialidade” (RAFFESTIN, 1993, p. 227-228).

Isso nos remete ao descolamento entre a “consciência ambiental” e aatitude quando o ator se depara com a situação concreta do aproveitamen-to dos recursos. Vamos ilustrar isso com um exemplo que envolve atoressintagmáticos e monocultura de eucalipto. O seguinte relato foi apresenta-do num evento que reunia atores de organizações da sociedade civil e detodo o espectro partidário do município de Governador Valadares. Em 1936,o diretor da Companhia Siderúrgica Belgo-Mineira, que iniciaria sua pro-dução na cidade de João Monlevade (MG), em discurso realizado na praçacentral da vila de Figueira (Governador Valadares), anunciou que seria pre-ciso desmatar as margens do Rio Doce para produzir carvão vegetal, masque isso seria benéfico, pois, além do saneamento, se reflorestaria com eu-

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calipto. Com as claras vantagens da floresta ordenada... A reação dos ato-res presentes ao evento foi de automática condenação da imprevidênciados antigos. Entretanto, quando se anunciou que a companhia de celuloseAracruz – antes de a crise mundial estourar em 2008 – pretendia realizargrandes plantações de eucalipto e abrir uma nova unidade fabril no municí-pio de Governador Valadares, todos os atores se colocaram prontamente afavor, calando-se as vozes “ambientais”. Afinal, era o “desenvolvimento”local que estava em jogo. Portanto, fica claro que o caráter relacional dorecurso se refere a relações de poder, cujas escolhas envolvem atores sintag-máticos, isto é, atores capazes de realizar um programa que afeta de mododiferentes atores paradigmáticos.25

A presença humana numa determinada porção da terra, por mais“primitivo” que seja o estágio técnico, sempre afeta a natureza ao convertermatéria em recurso. O conjunto dos objetos produzidos, as transformaçõesoperadas no ambiente e os próprios homens se transformam no processode territorialização desencadeado pela presença humana. É a presençahumana que produz a configuração do território, por meio de processossociais que reforçam e conservam determinada organização territorial. Emgraus diversos, em momentos diferentes e em lugares variados, somos to-dos atores sintagmáticos que produzem territórios. Logo, a territorialidadereflete a multidimensionalidade do “vivido” territorial pelos membros deuma coletividade.

Os homens “vivem”, ao mesmo tempo, o processo territorial e o produtoterritorial por intermédio de um sistema de relações existenciais e/ou pro-dutivas. Quer se trate de relações existenciais ou produtivas, todas são rela-ções de poder, visto que há interação entre os atores que procuram modifi-car tanto as relações com a natureza como as relações sociais. Os atores,sem se darem conta disso, se automodificam também. [...] Enfim, é impossí-

25 Para Raffestin (1993, p. 40-41), o ator sintagmático pode ser um indivíduo, um grupo, massempre é uma organização capaz de conceber e realizar um programa; portanto, tem umafinalidade e uma estratégia. Ele articula momentos diferentes da realização do seu programapela integração das muitas variáveis. “Todos os atores sintagmáticos estão engajados numcomplexo jogo relacional”. O ator paradigmático não está integrado num processo programa-do, pois deriva de uma categoria construída com base no que os indivíduos têm em comum,constituindo sempre uma pluralidade de homens e mulheres (população). A população deuma cidade, de um país constitui um ator paradigmático, porque tem em comum apenas o fatode estarem fixados numa porção de terra.

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vel manter uma relação que não seja marcada por ele (poder) (RAFFES-TIN, 1993, p. 158-159).

A configuração natural é uma variável que contribui para especificaro território, mas isso não significa, de nenhuma maneira, que produza aconfiguração territorial. Na verdade, é conjunto de formas espaciais (socio-ambientais) que guarda relações com as estruturas e processos sociais atra-vés de uma trama articulada de determinações de diversas ordens. O pesoda variável espacial na territorialidade depende de processo analítico, po-rém “[...] a análise da territorialidade só é possível pela apreensão das rela-ções reais recolocadas no seu contexto sócio-histórico e espaço-temporal”(RAFFESTIN, 1993, p. 162). O rigor analítico deve recusar o senso co-mum ambientalista, que responsabiliza genericamente o “homem”, paraidentificar a trama relacional presente no território. Conforme Raffestin(1993, p. 160), “[...] a relação com o território é uma relação que mediatizaem seguida as relações com os homens, com os outros”.

O espaço tem valor na medida em que está organizado ou pode serorganizado, portanto, a partir de relações que identificam propriedades ecorrelatas classes de utilização, seja utilidade econômica, social, política ousimbólica. A atividade ou uso responde aos interesses objetivos de determi-nado ator ou conjunto de atores capazes de mobilizar recursos para seapropriarem do espaço e o utilizarem como trunfo. A esse processo de apro-priação denominamos territorialização, isto é, a introdução no espaço dostempos e das temporalidades do tempo social. O território é uma realidadecultural e histórica, concomitante com a definição espacial, é forma socio-espacial diacrônica e sincrônica, ao mesmo tempo, favorecendo ou limitan-do os processos sociais. As pessoas vivem ao mesmo tempo os processos eos produtos territoriais, porém de forma diferenciada conforme sua territo-rialidade particular ou singular e sua classe ou grupo social, portadoras deforça sociais e políticas distintas. Logo, trata-se de relações entre atores quebuscam modificar ou consolidar tanto as relações sociais como as relaçõescom a natureza.

Claude Raffestin define três tipos de relações mantidas com os recur-sos “naturais”: exploracionismo, preservacionismo e conservacionismo. Amobilização dos recursos pressupõe exploração, inventário, avaliação e aná-lise do custo/benefício, antes da decisão sobre o início da exploração eco-nômica. A análise se faz com relação a um contexto de redes econômicas e

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políticas e é relativa a esse contexto. Se a decisão é pela exploração econô-mica, restarão ainda os contextos técnicos e jurídicos. Portanto, envolveestratégia complexa, na qual intervém conjunto de atores sintagmáticosque fornecem, uns aos outros, os fatores necessários à realização do proje-to. O comportamento do tipo exploracionismo é aquele que busca produziro máximo possível, sem se preocupar com o ritmo de esgotamento, caracte-rizando-se por ser um comportamento autocentrado, que admite apenas aregulação do mercado: enquanto for favorável, a exploração prossegue nolugar e no momento dado. O exploracionismo recorre a uma informaçãofuncional: a que interessa a todas as técnicas de valorização, em qualquernível. A informação reguladora é muito fraca, restringindo-se ao “preço” e,portanto, responde a uma lógica econômica clássica: privilegiar o bem pre-sente em detrimento do bem futuro. O meio material e humano não é levadoem consideração, na medida em que os menores custos são prioritários. Essecomportamento caracteriza as fases de crescimento econômico dos países,especialmente os processos de industrialização. “As relações de produção ede propriedade dão então origem a relações de poder muito dissimétricas,tanto com as coisas como com os homens” (RAFFESTIN, 1993, p. 235).

Para o preservacionismo, o ser humano é uma ameaça para a nature-za e, portanto, essa deve ser protegida contra a sua presença. Assim, pode-mos afirmar que não se inscreve numa perspectiva de crescimento, mas deestagnação. Da mesma forma que a posição anterior, o preservacionismo éuma ideologia carregada de sentido. Numa abordagem pragmática, a posi-ção preservacionista é aquela que defende a predominância da informaçãoreguladora, de forma a garantir que o meio fique intocado ou pouco toca-do. Logo, implica uma renúncia ao ganho imediato por parte dos atores.Nesse sentido, é uma política que visa regular o uso dos recursos para ga-rantir benefícios ainda no futuro. O preservacionismo pode coincidir comuma estratégia ecológica ou determinada perspectiva econômica, mas nãose restringe a isso, já que pode proceder de considerações bem diferentes26.

Os conservacionistas trabalham com a lógica da convivência entreseres humanos e natureza, por meio da utilização “correta” e “eficiente”

26 Raffestin (1993, p. 235) lembra que o preservacionismo não é uma atitude muito difundida,porque entra em contradição com a vontade de crescimento e, ao mesmo tempo, é uma lógicapolítica difícil de ser alcançada, pois exige consenso entre a população e os atores econômicos.

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dos recursos “naturais”, sem desperdício, respeitando o “interesse” e o“bem” da maioria da população, garantindo o presente e conservando paraas gerações futuras. Como movimento político, defende a proteção do meioambiente e a preservação da natureza, incluindo os recursos “naturais”, asplantas e animais e os respectivos habitats. Está presente nele a crença nacapacidade do ser humano explorar a natureza sem provocar destruição ecolocar em risco a existência das gerações futuras. Mais ainda, de que ele écapaz de recuperar o que foi degradado. Como projeto, busca otimizar pre-sente e futuro, na perspectiva das necessidades e dos objetivos da coletivi-dade. Para Raffestin (1993, p. 236), o conservacionismo tende para relaçãosimétrica, sendo marcado por forte espírito de gestão do longo prazo. Ainformação reguladora predomina e, assim, exige forte presença do Esta-do, que por definição deve representar o conjunto da população que querviver e sobreviver no território. Essa posição é marcada por forte “idealis-mo” e, frequentemente, é limitada pela “ingenuidade”, na medida em queos recursos são objeto de apropriação privada. Raffestin (1993, p. 236) con-clui que o “problema da produção de recursos reside no desequilíbrio entreinformação funcional e informação reguladora”.

As considerações acima, denominadas de “mobilização dos recur-sos”, indicam a importância do território e territorialidade para a históriaambiental. O território como espaço apropriado e como relação individual/coletiva com o espaço vai muito além do sentido elementar da sobrevivên-cia (territorialidade animal). O território participa do processo de sociabili-dade, da qual faz parte a identificação psicológica com o espaço, isto é, aconstrução do sentimento de pertencimento e da identidade individual,grupal e coletiva. Dessa construção participam de forma fundamental oselementos simbólicos (HALBWACHS, 1990). Nesse sentido, é preciso des-tacar que não se trata apenas das relações produtivas, mas também de rela-ções existenciais.

O geógrafo americano Robert David Sack (1986) também oferece umacontribuição importante para uma abordagem integradora do território. Suaobra sobre a territorialidade humana ajuda a compreender a problemáticarelacional que envolve a sociedade e natureza. Para o autor, não é o espaçoem si que se procura controlar, mas as relações e as coisas no seu interior e asrelações com o exterior, sendo a territorialidade a relação de poder na qualum indivíduo ou um grupo procura afetar ou influenciar pessoas, fenômenos

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e relações através da delimitação e do controle sobre uma determinada área.O autor define a territorialidade humana como uma forma espacial de com-portamento social no qual sobressai a noção de poder, regulação, coe-são, delimitação e controle de uma área, que se torna, assim, um território.

No deslocamento de um espaço de origem para outro de destino, osmigrantes, colonizadores, traficantes, conquistadores, etc., levam consigo aterritorialidade, que tentarão recriar ou que usarão para se territorializar nodestino. Junto com a bagagem cultural-histórica, conhecimento-tecnicida-de (prática) que lhes servirá de guia no novo espaço, também levam umabagagem biótica, o portmanteau biota a que se refere Alfred Crosby (1993).O processo de territorialização nem sempre é viável ecologicamente, e, por-tanto, ou os impactos ambientais tendem ao desastre, comprometendo osassentamentos humanos, ou, antes que esse ocorra, os atores conseguem asadaptações necessárias (DIAMOND, 2006). Em ambos os casos se estabe-lecem relações dissimétricas com o meio.

A formação histórica é sempre um processo de formação históricado território. Portanto, trata-se de processo de territorialização do e no es-paço (material ou imaterial). As categorias do espaço e da produção doespaço se aplicam ao processo de territorialização, que é condicionado pe-las propriedades espaciais. O nosso ponto de partida é entender que o espa-ço é a condição de existência dos objetos físicos, mas não é uma proprieda-de dos corpos. Não é o espaço, mas a espacialidade que forma a proprieda-de dos corpos, ou seja, abarca os momentos da extensão: forma, posição,distância, direção e diversidade de direção, bem como os fluxos e conexõesespaciais. As relações sociais possuem espacialidade, mas indireta, pois essaespacialidade se refere aos suportes físicos/matérias requeridas e partici-pantes das relações sociais. A espacialidade não é única nem tem caráteruniversal, mas varia com a natureza diferencial dos diversos fenômenos eprocessos sociais. Os processos sociais produzem a espacialidade determi-nada, ou seja, a organização espacial (ou territorial) que é sustentada, re-forçada e conservada, ou modificada por esses processos sociais. Apesar deCoraggio (1987, p. 46-47) entender o território como “la usual referenciageográfica a la superfície terrestre, con todas sus rugosidades y especificida-des”, ao tratar da categoria espaço nos ajuda a compreender que esse érelacional e não fixo. Logo, o que existe são contextos espaciais produzidospor relações sociais.

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O território não é o mesmo que o espaço, mas está sujeito às catego-rias espaciais, resultando de conjunto de relações socioespaciais. Todo ter-ritório é produzido e produto de relações de determinada coletividade como meio e, ao mesmo tempo, das relações entre os atores no interior da cole-tividade, mediadas por organizações. Tanto as organizações como as rela-ções são múltiplas, complexas e contraditórias, sendo todas marcadas pelopoder. Essas relações de poder criadoras do território, e que o sustentam,são temporais e, portanto, históricas. As temporalidades diversas e confli-tuosas existentes no território são o resultado do processo de territorializa-ção, sendo que o território guarda as diversas temporalidades.

Territorialização é um conceito dinâmico, relacionado não apenas àdimensão econômica e política, mas também às formas de percepção e apre-ensão do espaço. É o processo de territorialização que dá forma e sentidoao território, envolvendo não apenas humanos, mas também não huma-nos. O processo de territorialização envolve as seguintes categorias: apro-priação, definição, delimitação, fluxos e o vivido territorial. A apropriaçãodo espaço não se inicia com a ocupação em si, mas com a necessidade decontrole de um espaço e das expectativas que ela envolve. Daí decorremtodos os agenciamentos para se conseguir o domínio do espaço: submeter,controlar e regular soberanamente o direito de uso.

As definições dizem respeito ao que Deleuze e Guattari denominamde agenciamento coletivo de enunciação, isto é, ao regime de signos com-partilhados e produção do pensamento, que incluem as formas de expres-são e uso da língua que são mobilizados pelos atores (COSTA, 2007, p.125). Os agenciamentos coletivos de enunciação fixam atributos aos cor-pos de forma a recortá-los, ressaltá-los, precipitá-los, retardá-los. Para Bour-dieu (1989, p. 112-113), as definições são produzidas por agentes estrategi-camente interessados em determinar a representação mental que os outrospodem ter. Assim, trata-se das lutas pelo monopólio de fazer ver e fazercrer, de dar a conhecer e de fazer reconhecer, de impor a definição legítimadas divisões do mundo social e, por esse meio, de fazer e de desfazer osseres. A presença humana num determinado espaço é, por si só, uma defi-nição do espaço, surgida a partir de uma relação que é marcada por desejose objetos conflitantes que se projetam no espaço. A definição deve resultar naprodução de uma coletividade territorial, ou seja, um nós formado pelos quese estabeleceram e criaram uma distinção em relação aos outsiders (ELIAS;

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SCOTSON, 2000). Os estabelecidos partilham o valor comum da apropria-ção: isto é meu, meu domínio e minha terra.

A apropriação e a constituição do território referem-se sempre a con-dições preexistentes, portanto, a condições históricas, a uma dinâmica dedesterritorialização e reterritorialização. A definição do território é umaação de poder, exercida por um grupo ou por uma aliança de grupos, apartir da ação organizada, contínua, constante e repressora, pois trata desuprimir ou reprimir as dissensões acerca da compreensão e da definiçãodo território. Daí decorre que o território existe e somente existe se as açõesde poder são capazes de delimitar e controlar os acessos dentro da área deabrangência delimitada. A delimitação somente produz o território quan-do a fronteira (limite) é utilizada para afetar o comportamento por meio docontrole do acesso (SACK, 1986, p. 19).

Os agenciamentos que se referem às coisas, seres, pessoas, organiza-ções e fluxos são realizados por atores que se situam em diferentes posiçõesem cada relação, nos pontos de interconexões e nos fluxos. Daí a necessida-de de identificar e explicitar “os distintos meandros do poder em que estãosituados” (COSTA, 2007, p. 166). A diferenciação entre distintos setoresda sociedade e economia, entre sujeitos e entre objetos que esses podemmobilizar compõe relações de poder profundamente desiguais. Existe a desi-gualdade de grau porque o movimento dos sujeitos e a distribuição/funcio-namento dos sistemas de objetos afetam desigualmente as localidades, ouseja, a escala do fenômeno forma uma totalidade, porém esssas localidadessão desiguais entre si nas escalas intermediárias ou locais em que esse semanifesta objetivamente. Também existe uma diferenciação de naturezaentre localidades que não é uma desigualdade entre escalas, mas uma con-dição de singularidade sem relação com qualquer escala.

O processo de territorialização ocorre nas interconexões, ligações edisjunções, que devem ser controladas pelo poder que comanda as estraté-gias. Os contextos e correlações das forças sociais e políticas não podemquebrar a coesão em torno dos limites que separam o nós do resto do mun-do, mantendo unidos os de “dentro”, independentemente de tensões e lu-tas, por um sentimento de pertencimento: eu sou daqui. A produção dosentimento de pertencimento é necessária para a constituição do território,porém ocorrem particularidades se, no lugar do território formado pela con-tiguidade espacial, tratar-se do território-rede, constituído pela espacialida-

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de reticular das ligações à distância. Nos dois casos, a questão central é oacesso ou o não acesso à informação, pois disso dependem as estratégiasque comandam o processo de territorialização.

Os processos de apropriação, definição, delimitação e controle dosfluxos de energia e informação, produtores do território, são carregados deterritorialidade que expressa os anseios da ação centralizadora e definidorado poder. Essa territorialidade não é única, mas constitui a multiterritoria-lidade do vivido territorial por todos os membros da coletividade. A vonta-de de poder opera uma sobrecodificação, na intenção de impor unicidadeou monismo, mas sem conseguir sucesso contra a pluralidade, diversidadee diferenças que formam uma multiterritorialidade própria de determinadoterritório. A territorialidade é o caráter dinâmico que se refere às diferentesfacetas que compõem o território, em suas contradições, conflitos e consen-sos. Isso envolve questões ambientais, econômicas, sociais, políticas e cul-turais; liga-se à regulação jurídica formal e não-formal (explícita e implíci-ta); corresponde ao patrimônio cultural, herança histórica, modos de ser eviver, saberes e fazeres (técnica), ciência e tecnologia e às subjetividades erelações intersubjetivas. A territorialização é dinâmica, porém é referencia-da por contextos preexistentes que são resultados de processos de longaduração. A territorialidade não se reduz à entidade jurídica nem aos espa-ços vividos sem existência política (sem agentes portadores de poder). Porsua vez, a entidade jurídica, política e administrativa não se reduz unicamen-te ao Estado, mas relaciona-se a todo agente capaz de exercer o poder de apro-priar, delimitar e definir o uso de um determinado espaço. Portanto, pode-sefalar na produção de múltiplos territórios, justapostos ou sobrepostos.

Entendido o território como resultado de processos de territorializa-ção, podemos introduzir os termos desterritorialização e reterritorializa-ção. Se a territorialização é estratégia para tomar posse, estabelecer o domí-nio e controlar o espaço, a desterritorialização é o abandono espontâneoou forçado do território. A reterritorialização é construção de uma novaterritorialidade, que não ocorre necessariamente na mesma localidade. Adesterritorialização guarda relação direta com a conceituação que se faz doterritório. Se esse é entendido como materialidade e distância física, a des-territorialização se torna virtualidade e fim das distâncias, possibilitadas pe-las tecnologias de informação e comunicação. Se o sentido é o da localização,o contraponto é a deslocalização que se torna possível com a perda da impor-

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tância do fator econômico “espaço”. No campo político, temos a desterrito-rialização ligada à globalização, fragilização das fronteiras e enfraquecimen-to do Estado-Nação. No campo cultural, a desterritorialização é associadaao deslocamento de identidades, pessoas e significados. Está associada àsnoções de hibridismo cultural ou aos não lugares sem identidade e sem histó-ria. Outro modo de entender a desterritorialização no campo cultural se ligaa fenômenos envolvendo grupos étnicos, movimentos setorizados e políticasque afetam a lealdade territorial27 (COSTA, 2007, p. 223-228).

Haesbaert, ao discutir os processos de territorialização, desterritoria-lização e reterritorialização, procura demonstrar a importância do concei-to de território, especialmente no contexto de fragilização da territorialida-de do Estado-Nação. O território tomado como premissa, no seu sentidoratzeliano, conduziu a diversas interpretações equivocadas sobre a desterri-torialização, que assim se torna um mito. Para o autor, a contemporaneida-de assiste à sobreposição de lógicas territoriais, seja no interior de uma mes-ma escala ou em escalas distintas, que em si não é positiva nem negativa.Esse processo contínuo de complexificação não significa o fim dos territórios– há alguns anos se falava do fim da história –, mas o que se tem são múltiplosterritórios e a possibilidade de vivenciá-los no mesmo espaço ou no mesmotempo. Os territórios múltiplos resultam da convivência justaposta ou sobre-posta de diferentes lógicas territoriais, ou seja, da multiterritorialidade. Ra-zões econômicas e de classe, capital cultural e meio institucional interferemnas relações que cada indivíduo ou grupo mantém com a multiterritorialida-de, variando da insegurança e medo que leva à territorialidade fechada (apri-sionamento junto aos “iguais”), à flexível (sobrepõe ou intercala as relações)e à múltipla (combina e usufrui todas as possibilidades).

O território permite perceber as imbricações e amálgama entre socie-dade e natureza, ao expressar a complexidade dessa relação. Para isso, épreciso ir além da noção do território como divisão político-geográfica, irpara além do Estado, até atingir a problemática relacional. Como foi dito

27 Nesse caso, não é o processo de desterritorialização, mas o de reterritorialização que dominaa contemporaneidade, como se vê no fenômeno de tribalização que ocorre nas grande metró-poles, ou nos movimentos de valorização dos lugares, ou de priorização da vida cotidiana, istoé, novas formas de agregação identitárias que se recriam, incluindo aí as novas comunidades-redes.

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antes, o território não é o espaço nem um fixo, mas produzido, produto eprodutor de processos sociais em diferentes escalas, centralidades e tempo-ralidades. O território é criação coletiva, relações sociais, forças produtivas,aparato institucional, capacidade técnica (práticas), saberes (conhecimen-tos), patrimônio cultural, sistemas de objeto e sistemas de ações. O territó-rio é espaço vivido de relações sociais e socioambientais, marcadas pelopoder, onde há sentimento de pertencimento – identidades formadas combase nos processos histórico-culturais, histórico-ambientais e histórico-es-paciais (SANTOS, 2009).

O conceito de valorização do espaço (MORAES; COSTA, 1999) setorna útil para se entender o processo de territorialização, produtor de par-ticularidades e/ou singularidades28. As articulações entre a valorização de-sigual do espaço e propriedades naturais produzem a diferenciação, masconforme cada contexto espaçotemporal. As sociedades pré-capitalistas ten-diam à diferenciação de natureza, e as sociedades capitalistas tendem àdiferenciação de grau, porém essas tendências devem ser confrontadas como contexto histórico-geográfico determinado. Considerar o conceito de va-lorização do espaço contribui para entender o processo de formação doterritório como relação sociedade-natureza, na qual a humanização da na-tureza se dá no pensamente e na ação, sincronicamente materializando asformas da sociedade (socius) em território.

A territorialização produz “uma qualidade do lugar” e “subverte ascaracterísticas naturais originárias”, que são recriadas como paisagem (se-gunda natureza ou ambiente). Para o pesquisador, a valorização do espaçofunciona como um horizonte teórico genérico de indagação e a formaçãoterritorial como objeto empírico29. Nesse sentido, a história ambiental, atentaà formação territorial a partir dos processos socioambientais, permitiriacompreender a valorização do espaço e a formação histórica do territóriocomo relação sociedade-natureza.

28 A particularidade são as propriedades que guardam vínculo com o espaço total, independen-temente das distintas escalas (local, regional, nacional, etc.); a singularidade é o específico(diferenças de natureza), sem correlação obrigatória com outras escalas.

29 O uso do solo, os estabelecimentos humanos (firmas, fazendas, posses, povoados, vilas e cida-des), as formas de ocupação, as hierarquias entre lugares, a localização no espaço e a explora-ção dos recursos naturais expressam “os resultados de lutas, hegemonias, violências, enfim,atos políticos” (MORAES, 2000, p. 17).

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Outros componentes importantes para a análise dessa relação socie-dade-natureza são os ordenamentos jurídicos e as sociabilidades. O poderefetivo sobre o território não é apenas exercício da dominação ou violên-cia, mas exige o direito como instância social e normativa (formas jurídicasde reconhecimento de direitos). Dois conceitos são úteis: território comonorma e território normado (ANTAS Jr., 2005, p. 39 e 65). Os ordenamen-tos jurídicos ou outros mecanismos de regulação são capazes de condicio-nar o funcionamento do e no território, produzindo o território normado.Não apenas a norma jurídica, pois sentimento de pertença, identificaçãosubjetiva com o espaço, consciência dos lugares, valores, capital cultural,meio institucional e construções discursivas respondem a determinada so-ciabilidade que regra e disciplina os corpos e as subjetividades. Entretanto,os condicionamentos não são produzidos apenas pelas ações de atores (or-ganizações, incluindo o Estado) que estabelecem as normas formais(Direito) ou não formais (costumes, sociabilidade, solidariedade organiza-cional, etc.). Os objetos e sistemas de objetos (formas geográficas) tambémsão condicionadores dos comportamentos, atitudes e ações, porque sãomodos peculiares de regulação, expressando uma intencionalidade embuti-da na técnica, no arranjo espacial e nos fluxos de energia e informação.Nesse caso, temos o território como norma, ou seja, o território na suadinâmica relacional contém e produz normas. A rigidez das normas jurídi-cas (Estado), os vários regramentos sociais e as formas geográficas com-põem partes de um mesmo processo, porque se prestam à regulação territo-rial.

Portanto, os processos socioambientais respondem à dinâmica de terri-torialização, e, para se compreender a relação que se estabelece entre socie-dade, natureza e território, é preciso superar o pensamento estritamentedisciplinar, adotando-se uma abordagem interdisciplinar. Isso não é novona história, apenas precisamos recuperar as lições de Marc Bloch (2002, p.81), que considerava necessário ampliar a lista das “disciplinas auxiliares”da História, “mesmo que apenas a fim de saber avaliar, previamente, a for-ça da ferramenta e as dificuldades de seu manejo”. Esse é um desafio epis-temológico a ser vencido na práxis investigativa e na construção da escritahistórica.

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Sobre os autores

Aline Dias da Silveira – Professora Adjunta do Departamento de Históriada Universidade Federal de Santa Catarina. Possui graduação em Históriapela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1998), mestrado emHistória pela mesma instituição (2002) e Doutora em História Medievalpela Universidade Humboldt de Berlin (2008). Colaboradora no Institutode História Comparada da Europa Medieval da Universidade Humboldtem Berlim. Coordenadora do Núcleo Interdisciplinar de EstudosMedievais Meridianum. Tem experiência na área de História, com ênfaseem História Medieval, atuando principalmente nos seguintes temas: aconcepção da natureza no período medieval, religião, ciência, política,Literatura, relações sociais e culturais, análise de fontes legislativas eliterárias, Península Ibérica.

Eunice Sueli Nodari – Professora Associada do Departamento de Históriada Universidade Federal de Santa Catarina. Possui graduação em Históriapela Universidade de Passo Fundo – RS (1976), Mestrado em HistóriaEuropéia pela University of California at Davis – EUA, (1992) eDoutorado em História do Brasil pela Pontifícia Universidade Católicado Rio Grande do Sul (1999). É coordenadora do Programa de Pós-Graduação em História da UFSC, onde leciona e orienta, ministrandotambém aulas na graduação e no Programa de Pós-GraduaçãoInterdisciplinar em Ciências Humanas. Tem experiência na área deHistória, com ênfase em História Ambiental, atuando principalmentenos seguintes temas: História das Florestas do Sul do Brasil, desastresambientais e políticas públicas, história do uso dos recursos naturais,agrotóxicos, movimentos migratórios e colonização. É bolsista deprodutividade em Pesquisa do CNPq- Nível 2.

Haruf Salmen Espindola – Professor titular da Universidade Vale do RioDoce Possui graduação em História pela Universidade Federal de Minas

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Sobre os autores

Gerais (1981), mestrado em História pela Universidade de Brasília (1988)e doutorado em História Econômica pela Universidade de São Paulo(2000). Tem experiência na área da História e da Gestão Universitária.Foi Chefe de Departamento, Diretor de Faculdade e Vice-Reitor.Coordenador do Programa de Pós-graduação Stricto Sensu em GestãoIntegrada do Território e do Núcleo de Estudos Históricos e Territoriais.Tem experiência em pesquisa relacionada a História de Minas Gerais,particularmente sobre as questões ligadas à territorialização, a partir daexpansão da agropecuária, dos conflitos e constituição da propriedadeprivada da terra e do papel da regulação pelo Estado.

Joana Stingel Fraga – Possui graduação em Geografia com domínioadicional em Questões Ambientais pela Pontifícia Universidade Católicado Rio de Janeiro (2011). Foi bolsista PIBIC da Pontifícia UniversidadeCatólica do Rio de Janeiro, atuando principalmente nos seguintes temas:história ambiental, ecologia histórica e transformação da paisagem.

João Klug – Professor Associado do Departamento de História daUniversidade Federal de Santa Catarina. Possui graduação em Veterináriapela Universidade Federal de Pelotas (1978), graduação em História pelaUniversidade Federal de Santa Catarina (1988), mestrado em Históriapela Universidade Federal de Santa Catarina (1991) e doutorado emHistória Social pela Universidade de São Paulo (1997), Pós-Doutoradona Universidade Livre de Berlim. Tem experiência na área de História,com ênfase em História Moderna e Contemporânea, atuandoprincipalmente nos seguintes temas: Imigração, Colonização, MeioAmbiente, Identidade, Luteranismo e Germanidade.

Lido José Borsuk – Graduado como Engenheiro Agrônomo pelaUniversidade Federal de Pelotas (2003), mestrado pela mesma instituição(2008). Doutorando no Programa de Pós-Graduação em RecursosGenéticos Vegetais na Universidade Federal de Santa Catarina. Noperíodo de 2006 a 2011 atuou como Assessor Técnico Parlamentar deLiderança nas áreas de Agricultura, Meio Ambiente, Movimentos Sociaise Energias Renováveis na Assembleia Legislativa do Estado de SantaCatarina.

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Marina Miraglia – Professora Adjunta do Instituto del Conurbano de laUniversidad Nacional de General Sarmiento. Possui Graduação emGeografia pela Universidad Nacional de Buenos Aires – Argentina(1989), mestrado em Recursos Naturales de la Facultad de Agronomíade la Universidad Nacional de Buenos Aires (1993-1996) Doutorandaem Geografia (defenderá em agosto de 2012) pela Facultad de Filosofíay Letras de la Universidad Nacional de Buenos Aires. Coordenadora daTecnicatura Superior en Sistemas de Información Geográfica de laUniversidad Nacional de General Sarmiento. Leciona a disciplina deHistoria Ambiental, e tem se especializado em História Ambiental dasPlanícies, desastres ambientais, cartografias digitais históricas e históriado uso dos recursos naturais na construção social do território.

Paulo Afonso Zarth – Atualmente é bolsista PVNS da Coordenação deAperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior na Universidade Federalda Fronteira Sul. Possui graduação em Geografia pela UniversidadeRegional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (1983), graduaçãoem Estudos Sociais pela Universidade Regional do Noroeste do Estadodo Rio Grande do Sul (1980), mestrado em História pela UniversidadeFederal Fluminense (1988) e doutorado em História pela UniversidadeFederal Fluminense (1994). Tem experiência na área de História, comênfase em História Moderna e Contemporânea, atuando principalmentenos seguintes temas: ensino de história, história agrária e camponeses.

Rogério Ribeiro de Oliveira – Professor associado do Departamento deGeografia da PUC-Rio e membro do corpo docente dos Programas dePós-Graduação em Geografia da PUC-Rio e de Engenharia Urbana eAmbiental, da PUC-Rio/Universidade de Braunschweig e colaboradordo Programa de Pós Graduação em Ciências Ambientais e Florestais daUFRRJ. Graduado em Comunicação Social na Pontifícia UniversidadeCatólica do Rio de Janeiro (1976), o mestrado (1987) e o doutorado(1999) em Geografia na Universidade Federal do Rio de Janeiro e o pós-doutorado na Universidade Alpen-Adria, Áustria (2007). Seu interessemaior é o estudo das interações entre sociedade e natureza ao longo dotempo. Suas pesquisas combinam as abordagens da ecologia histórica,da ecologia da paisagem e da história ambiental. Bolsista deProdutividade em Pesquisa do CNPq – Nível 2.

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Rubens Onofre Nodari – Professor Titular do Departamento de Fitotecniada Universidade Federal de Santa Catarina. Possui graduação emAgronomia pela Universidade de Passo Fundo-RS (1977), mestrado emAgronomia (Fitotecnia) pela Universidade Federal do Rio Grande doSul (1980) e Doutorado pela University of California at Davis – EUA,(1992). Tem experiência na área de Genética, com ênfase em GenéticaVegetal, atuando principalmente nos seguintes temas: caracterização dadiversidade e conservação genética, biodiversidade, melhoramento deplantas, Acca sellowiana e biossegurança de OGM. Foi Gerente deRecursos Genéticos Vegetais do Ministério do Meio Ambiente no períodode 2003 a 2008. É coordenador e professor orientador do Programa dePós-graduação em Recursos Genéticos Vegetais. Bolsista deProdutividade em Pesquisa do CNPq – Nível 1C.

Sílvio Marcus de Souza Correa – Professor adjunto do Departamento deHistória da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Graduadoem História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1990),mestrado em História pela Pontifícia Universidade Católica do RioGrande do Sul (1993) e doutorado em Sociologia pela Westfälische-Wilhelms-Universität Münster (1999). Fez estágio de pós-doutorado naUniversité du Québec à Rimouski (UQAR) e no Institut National de laRecherche Scientifique (INRS) em 2005. Suas pesquisas mais recentestratam da África colonial sob domínio alemão. Bolsista de Produtividadeem Pesquisa do CNPq – Nível 2.

Sobre os autores