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HISTÓRIAS DE HUMOR E HORROR UBIRAJARA GODOY BUENO 1 2 2011

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Historias de humor e horror

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  • HISTRIAS DE HUMOR E HORROR UBIRAJARA GODOY BUENO

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    2011

  • HISTRIAS DE HUMOR E HORROR UBIRAJARA GODOY BUENO

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    HISTRIAS DE

    HUMOR E

    HORROR

    Ubirajara Godoy Bueno

    2011

  • HISTRIAS DE HUMOR E HORROR UBIRAJARA GODOY BUENO

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    Capa: Desenho desfocado do Yang Ying, smbolo dos opostos capa elaborada e produzida pelo autor.

    Reviso: Igor Godoy Bueno e Raquel Santarelli de Souza Bueno

    Registro da obra: FUNDAO BIBLIOTECA NACIONAL - ESCRITRIO DE DIREITOS AUTORAIS NO 511.364 - LIVRO 969 - FOLHA 186 - DATA 29/10/2010.

    Livro disponibilizado na Internet em 2011 livre acesso

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    NDICE

    COLETNEA 1

    05 - A HISTRIA DE IGOR KIROV 12 - A CASA VEDADA

    17 - A VOZ DE CLAIRE

    21 - APRECIAO 26 - PERFECCIONISMO

    29 - O REENCONTRO

    33 - A CONTENDA

    38 - O FANTASMA CAMPESTRE

    46 - O VISITANTE

    53 - ASCENSO E QUEDA DE UM ARTISTA

    57 - ATRS DO MURO 60 - O BEATO

    COLETNEA 2

    78 - DANOU CESAR 80 - APARELHINHOS

    83 - DEIXA ESTAR

    85 - O BOM FILHO

    88 - O LIVRO MGICO 91 - O PRESENTE

    92 - COLAPSO

    94 - O PSSARO 96 - NO 97 - A FERA

    99 - POST MORTEM

    100- ILUSTRAES 111- SOBRE O AUTOR

    68 - EM FAMLIA 71 - LA CUCARACHA

    73 - GAME OVER 74 - OSSOS DO OFCIO 76 - HISTRIAS PUERIS

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    A HISTRIA DE IGOR KIROV

    Ubirajara Godoy Bueno

    Tudo o que vemos ou julgamos ver no passa de um sonho dentro de um sonho.

    Edgar Allan Poe

    O pequeno hotel, de fachada discreta, quase oculto s sombras de um bosque de pinheiros, bem poderia passar des-percebido. Mantinha, contudo, um bom nmero de hspedes sob os cuidados quase maternais da proprietria do estabelecimento. Alguns anos atrs o hotel fora palco de um fato extraordin-rio, o que lhe tornara singularmente interessante, alm dos atrati-vos de seus apreciveis servios.

    Sobre a cornija da lareira, o retrato de um jovem de contor-nos indefinidos mantinha viva a lembrana do que acontecera e transformara-se no centro das atenes. Despertavam igual inte-resse as histrias sobre o caso, narradas pelos antigos hspedes que presenciaram o fenmeno, inspirando as mais diversas e controvertidas conjecturas e, no raro, incredulidade. Tal acontecimento deu-se numa noite do inverno de 19..., quando os hspedes reuniam-se na sala de estar, aconchegados ao calor da lareira, enquanto bebericavam licores e vinhos. Ocu-pavam as poltronas dispostas em semicrculo, como convm a um grupo vido por histrias e conversas de toda natureza. Um cirurgio aposentado do exrcito falava de suas aventuras na poca em que assistia aos soldados durante os exerccios de sobrevivncia e todos as atenes se voltavam para o velho m-dico. Um leve sopro de ar frio e o som de sinetas anunciaram que algum acabara de entrar pela porta da recepo. Instantes de-pois, um jovem desconhecido cruzou a sala e sentou-se numa poltrona junto lareira. Apenas relanceou os olhos ao seu redor

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    e ali ficou, imvel, mirando o fogo com os braos cruzados e o corpo encolhido. Apesar do frio, agasalhava-se somente com uma capa de tecido leve. As roupas e as botinas midas pelo se-reno da noite revelavam que uma longa caminhada fora empre-endida pelo visitante. O jovem, muito plido, sugeria uma esttua de cera prestes a derreter no calor do fogo. Deseja hospedar-se? perguntou solcita a dona do ho-tel, enquanto estendia-lhe uma xcara de chocolate quente. Talvez no seja necessrio respondeu o rapaz com voz dbil. Dispensou a bebida com um gesto de mo e voltou imobilidade. A hoteleira no pde evitar seu espanto ao contemplar o visitante. Sua pele parecia, vista de perto, um delicado papel alvo quase translcido. Os olhos profundos eram tnues manchas a-zuis, como um colorido que o tempo desbotara a quase imper-ceptibilidade. Com o mesmo aspecto vago e quase irreal apre-sentavam-se os cabelos, muito claros e compridos. Toda a sua figura assemelhava-se a uma imagem fracamente projetada; na-da mais que um espectro. Consternada com a situao do rapaz, dirigiu-se ao mdico e cochichou-lhe que talvez fosse necessrio examin-lo. Parece estar muito doente falou aflita. Apoiado bengala que trazia consigo, mais por hbito do que propriamente pela necessidade de firmar o corpo, o cirurgio aproximou-se do visitante. Ao observ-lo, tivera imediatamente a mesma impresso de fragilidade e inconsistncia que tanto sen-sibilizara a proprietria do hotel. Tomou-lhe o pulso demorada-mente; depois, deitando a cabea em seu peito, procurou auscul-tar-lhe o corao. Experimentara uma sensao estranha e sur-preendente ao examinar o rapaz. Havia, no primeiro instante, fre-ado um impulso instintivo de recuar abruptamente diante de um sentimento vago de assombro e averso, apesar do longo exer-ccio da medicina ter-lhe preparado o esprito para toda sorte de situaes e experincias. No constatara naquele jovem qual-quer sinal aprecivel de vitalidade. Seu corpo parecia deixar transpassar-se ao simples toque das mos e to estranha ano-malia no podia ser associada, mesmo que vagamente, a uma

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    enfermidade conhecida ou qualquer disfuno congnita admis-svel nos padres humanos.

    Pouca vida existe neste corpo murmurou-lhe o jovem, conquanto pudesse ser ouvido por todos os presentes que a-companhavam em silncio a interveno do mdico. Pela manh cuidaremos de lhe fazer mais alguns exa-mes concluiu o cirurgio, visivelmente perturbado. Voltou cadeira, desta vez um pouco mais dependente da bengala. Um caso excepcional, meu caro Tenente sussurrou a um ve-lho colega do exrcito que se sentava ao seu lado. Uma visita inoportuna desculpou-se o jovem. na-tural que me julguem um intruso. Talvez tivesse sido melhor eu ter permanecido esta noite em meu quarto, mas reconheo minha fraqueza, admito ter me transtornado a ideia de ficar sozinho quando minha vida parece se dissipar to rapidamente como o ter que evapora de um frasco aberto. No deve dizer estas coisas repreendeu-lhe a dona do hotel. Alguns remdios vo lhe repor a sade.

    Devo-lhes uma explicao. Isso pode esperar tornou a gentil senhora, procuran-

    do poupar-lhe qualquer esforo. Acredito que no haja tempo insistiu o visitante, e com os olhos distantes, embora lcidos, principiou a sua histria: Meu nome Igor Kirov. Sou filho de emigrantes russos. A-pesar de muito pobres, meus pais viviam felizes na casa simples que construram num stio no muito distante daqui. Neste lugar nasci e passei toda a minha existncia. Fui o nico filho desta feliz unio que o destino desatou prematuramente. Minha me morreu quando eu contava apenas seis anos de idade. Um mal sbito do corao levou-a ao tmulo em poucos dias. Meu pai, um lenhador rude, porm sensvel e dedicado famlia, ficou completamente transtornado com o que aconteceu e jamais se conformou com perda to dolorosa. O plano de mudarmos pa-ra a cidade foi esquecido e continuamos a viver no pequeno stio. Meu pai passou a oferecer-me todas as atenes. Levava-me em sua companhia quando saa, ainda de madrugada, para apanhar madeira. Impressionava-me a sua disposio para o trabalho,

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    buscando continuamente na atividade fsica esquecer a mgoa que lhe consumia como uma doena incurvel. Parecia um gi-gante ao desferir o machado contra as rvores mais robustas da floresta ou quando sobraava os enormes troncos e carregava-os at a carroa para serem transportados e vendidos na cidade. tarde, pescvamos ou cuidvamos da horta. Havia decidido que eu passaria a frequentar uma escola; no me queria um lenhador como ele. Certa vez voltvamos da cidade em direo ao stio, aps uma forte chuva durante toda a manh. A estrada encontra-va-se em pssimas condies e o cavalo esforava-se em puxar a carroa no cho lamacento e escorregadio, apesar do veculo j estar livre da carga de madeira. Estvamos a atravessar um trecho mais estreito quando uma das rodas da carroa encravou num buraco aberto pela chuva. O veculo tombou abruptamente e fui arremessado num despenhadeiro margem da estrada. Meu pai conseguiu agarrar-se s rdeas do cavalo, livrando-se de i-gual destino. Lembro-me vagamente do roar dolorido das vege-taes que revestiam a encosta enquanto meu corpo precipitava naquele buraco medonho e profundo de onde exalava um cheiro acre, como o hlito ftido de algum monstro abrigado em seu in-terior. Este terrvel momento pareceu-me uma eternidade antes do meu corpo chocar-se no fundo do abismo. Falo-lhes de um final previsvel, pois, antes que acontecesse, perdi completamen-te a conscincia.

    Certamente tal fato no ocorreu, considerando-se que ainda est vivo. Deve ter ficado preso nas vegetaes inter-pelou o tenente. Recordo-me, apenas, que ao recuperar os sentidos en-contrava-me novamente na carroa em companhia do meu pai. No havia em meu corpo qualquer fratura ou mesmo um simples arranho que atestassem o acidente. Quanto ao meu pai, falava-me sobre as aulas que comeariam na prxima semana e da ne-cessidade de comprar-me cadernos, lpis e livros. Falava-me normalmente, enquanto seguamos em direo ao stio, sem qualquer meno do que havia ocorrido. Confuso, atribu o aci-dente a um sonho. Era comum eu cochilar no coxim quando vol-tvamos para casa aps o trabalho. Alm do mais, no se pode-

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    ria supor que fosse possvel algum sair ileso daquele buraco. Assim, o fato foi simplesmente esquecido durante vrios anos at o dia da morte do meu pai, quando vim a saber o que realmente tinha acontecido. Confidenciou-me ele em seu leito, pouco antes de morrer, um segredo to surpreendente que deveria eu lev-lo ao tmulo selado em meus lbios. Uma histria fantstica que a princpio julguei fruto de sua imaginao, produto apenas dos de-lrios que normalmente povoam a mente dos moribundos, mas fora verdadeira a sua confisso. Preparou-me o esprito aos fatos que aconteceriam inevitavelmente aps a sua morte. Essa reve-lao lhe foi to dolorosa que, aps expirar-lhe a vida, ainda pu-de ver, por alguns instantes, as lgrimas escorrerem no seu rosto contrado pela angstia. Meu pobre pai faleceu h poucos dias, vtima da terrvel tuberculose, e as imagens que descrevo per-manecem ntidas em minha mente.

    Igor pareceu fadigar-se sob o peso das lembranas. Seu rosto assumira a cor e a textura de uma nvoa e aqueles que o observavam no viam seno a imagem de um fantasma.

    O acidente do qual falei no foi apenas um sonho, con-forme eu imaginava. Vou contar-lhes o que me foi revelado exa-tamente como pude entender, embora no espero crdito s mi-nhas palavras continuou com uma expresso de cansao e tristeza. Logo aps minha queda no precipcio, meu pai, com sua fora incomum, levantou o veculo e seguiu viagem em direo ao stio. Ignorava o acidente, refutava a realidade com a mais firme convico que permite a razo humana. Desejou meu pai, naquele instante, com todas as foras de sua crena, que eu estivesse vivo. No admitia uma nova perda de um ente querido. Comeou a falar naturalmente sobre a escola e outras coisas, como se buscasse persuadir a prpria razo, ludibriar a reali-dade. E l estava eu novamente em sua companhia. Talvez a-penas a manifestao de uma vontade, ou mais precisamente, a materializao de um corpo ilusrio, pois provavelmente encon-trava-me sem vida no fundo do abismo. Assim, a despeito do a-cidente, permaneci ao seu lado durante vrios anos e nada me fez diferente de outras crianas e, mais tarde, de outros jovens. Minha vida transcorreu sem qualquer anormalidade.

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    Acha realmente que isso tenha ocorrido? perguntou o mdico, surpreendido com a crena do jovem, a qual julgava, no mnimo, extravagante.

    Acredito sinceramente que muitos dos fenmenos que nos assombram ou nos surpreendem de alguma forma, os quais julgamos manifestaes sobrenaturais, so projees moment-neas de nossos medos, anseios e desejos. Meu pai, enquanto vivo, conseguiu alimentar continuamente este processo com o poder extraordinrio de sua vontade. Com a sua morte, inter-rompeu-se o fluxo de energia que me devolveu a vida e a mante-ve por muitos anos, se assim podemos definir, simplesmente, es-ta ocorrncia fora do comum. Acabou-se o encanto. Desde ento, posso sentir a desmaterializao do meu corpo, a cada instante mais rarefeito, como um lquido que aos poucos se evapora. Meu pai sabia exatamente o que aconteceu naquele dia. Uma experi-ncia to surpreendente deve ter lhe proporcionado durante toda a vida um misto de alegria e assombro, mas certamente, acima de qualquer sentimento, afligia-lhe a ideia do fim de minha exis-tncia aps a sua morte. s vezes adoecemos seriamente e entregamo-nos a cer-tos devaneios. Damos crdito a nossas fantasias por mais absur-das que sejam observou o mdico, sendo prontamente apoia-do pelo seu colega que assentia com a cabea, penalizado com a provvel demncia do jovem.

    Os delrios de um louco, se isso que quer dizer, se-nhor, seriam, acredito, prefervel a uma parcela da realidade que me aflige. Falo-lhes de algo fantstico, assombroso. Uma histria inacreditvel para as crenas comuns, contudo verdadeira respondeu Igor Kirov, reclinando-se na poltrona com os olhos ba-os voltados para o teto. Parecia ser possvel divisar o espaldar, no qual se recostava, atravs do seu rosto que assumira ainda mais um aspecto de quase transparncia.

    Um sentimento de medo revelava-se em todos os olhares. A suspeita de que algo estranho, incompreensvel e assustador estava para acontecer evolua para a certeza do fato. Uma jovem professora, que se divertia fotografando os hs-pedes, desde que chegara ao hotel, apanhou sua cmara e dis-

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    parou-a em direo ao visitante. Embora inoportuno, aquele re-gistro serviria como testemunho posteridade sobre o que acon-tecera naquela noite.

    Seu estado exige cuidados imediatos alertou uma hspede que se postara ao lado do jovem e acompanhava apre-ensiva seu abatimento. Nada podem fazer a meu respeito, mas reconforta-me a companhia e as atenes que me dispensam, precisamente o que busquei esta noite balbuciou Igor, como se suas palavras fracas e abafadas ecoassem de um ponto distante da sala.

    Vamos lev-lo para o quarto ordenou a dona do hotel, enquanto fazia sinais camareira para que providenciasse as acomodaes. No houve tempo para isso. Nos minutos seguintes, diante dos olhos atnitos dos presentes, o jovem Igor Kirov desapare-ceu, como as sombras da noite que somem placidamente na au-rora.

    * * *

    TTULO: A HISTRIA DE IGOR KIROV; DATA DA PRODUO: FEVEREIRO 1998; CRDITOS: CONTO PREMIADO NO CONCURSO LITERRIO 2000 SECRETARIA DE CULTURA E ESPORTE DE MAU - DEZEMBRO DE 2000, CONTO CLASSIFICADO (4O LUGAR) NO CONCURSO LITERRIO DA ACADEMIA DE LETRAS DA GRANDE SO PAULO PRMIO ALGRASP 2005; PUBLICAO: TAMISES 05 (2006) - REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA GRANDE SO PAULO; REGISTROS: FUNDAO BIBLIO-TECA NACIONAL - ESCRITRIO DE DIREITOS AUTORAIS NO 205.836 - LIVRO 356 - FOLHA 496 - DATA: 21/07/2000.

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    A CASA VEDADA

    Ubirajara Godoy Bueno

    ... num pesadelo sem paz, sonhamos com o veneno, que descanso nos traz...

    Rodenbach

    Aps cavalgar durante horas por trilhas ngremes e tortuo-sas, apertadas pela floresta, encontrava-me bastante cansado e ainda distante do meu destino. Comeara a chover torrencialmente e foi um alvio avistar, logo adiante, a casa que se erguia a meia encosta. O edifcio, aparentemente abandonado, servir-me-ia de abrigo se possvel fosse ocup-lo at a manh do dia seguinte. Podia ser alcanado por um caminho estreito, pavimentado de pedras, que se esten-dia atravs de intricados arbustos e touceiras de capins, onde antes, provavelmente, fora um belo jardim. Deixei o cavalo sob o que restara de um grande quiosque e fui ter frente da casa. A porta no estava trancada chave e abriu-se ao menor esforo. Provendo-me precariamente de luz com a chama de um fsforo, segui por um corredor que conduzia a uma sala ocupada por m-veis abarrotados de livros, prataria e objetos de adorno. Um can-delabro com restos de velas ofereceu-me melhor iluminao. As janelas eram guarnecidas de cortinas escuras e pesa-das, o que provocava uma sensao angustiante de clausura. A poeira em profuso deixava evidente o total abandono da casa. Atravessei a sala incomodado por um natural constrangimento; invadir um local privado, mesmo que obrigado pelas circunstn-cias, deixava-me pouco vontade. Evitei a escada para o andar superior e entrei num cmodo contguo de menores dimenses, revestido com lambris de madeira e veludo. Uma cama, um pe-queno armrio e duas mesas servidas por cadeiras constituam a reduzida moblia. Livros e manuscritos empilhavam-se desorde-

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    nadamente sobre as mesas. Uma lareira robusta, com restos de madeira e fuligem, ocupava o centro da parede no fundo do quar-to. Havia sobre a laje da fornalha uma grande quantidade de re-tortas, almofarizes e frascos de formas e cores variadas, alm de outros instrumentos utilizados para ensaios qumicos. Materiais semelhantes encontravam-se num balco de mrmore ao lado da lareira. O odor no quarto denunciava a presena de fungos proli-ferados pela umidade e ausncia de luz. Em pequenos nichos havia lmpadas com sobras de leo. Entornei-as sobre a lenha da lareira e com as chamas das velas inflamei o combustvel, que se avivou rapidamente em grandes chamas, preenchendo o quarto com um calor reconfortante. Com efeito, o bafio desapareceu. Desvencilhei-me da mochila e retirei a capa e os sapatos ainda molhados. Ocupando uma das cadei-ras, junto ao calor do fogo, estirei o corpo com um gemido de cansao. Um dirio, aberto sobre uma das mesas, chamou-me a a-teno. Li-o, a princpio por simples curiosidade, mas logo me despertaram especial interesse os caracteres ali registrados. Transcrevo-os agora, suprimindo os pormenores dispens-veis ao entendimento. Tampouco citarei, a favor da discrio, nomes e datas.

    Mudei-me para um stio, distante e tranquilo, o que me bastante confortador, visto minha intolerncia a qualquer natureza de rudo e a necessidade de isolar-me comple-tamente. Minhas companhias restringem-se a dois velhos empregados e aos animais silvestres. certo que a doena tem evoludo, alcanando nveis insuportveis. Meus descuidos, ao expor-me luz do dia, levam-me a uma dolorosa experincia, com o sol a ofus-car e ferir meus olhos como centelhas da mais viva incan-descncia e a queimar meu corpo com a mesma ardncia provocada pelas chamas do fogo. No padecem pior mar-trio os que no inferno expiam os seus pecados. A claridade diurna, mesmo atenuada pelas grossas cor-

    tinas, -me prejudicial. Para minha comodidade e segu-

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    rana, transferi meus aposentos para uma sala do pavi-mento inferior, cujas janelas mantenho hermeticamente fechadas. Ainda que eu consiga resguardar-me dos efeitos mais

    cruciais da doena, privando-me da luz, enclausurado s sombras de meus aposentos, permanece em meu esprito um sentimento de angstia e tristeza. (...)

    (...) Minha disposio, a cada dia mais dbil, no me per-mite realizar qualquer atividade, exceto a leitura, alguns traos de escritas e outras pequenas coisas. Foram in-teis minhas derradeiras tentativas de continuar os experi-mentos qumicos. As frmulas, obtidas at ento, no lo-graram qualquer efeito sobre a doena. Meu repasto consiste unicamente de vinho e uma redu-zida variedade de alimentos adquiridos dos mercadores que eventualmente trafegam pela estrada, no mais me apetecendo as iguarias que antes foram minhas predile-es. A meu pedido, foram-se os empregados. Embora seus servios fossem-me indispensveis, no seria justo t-los mantidos por mais tempo no convvio com este lugar, su-portando minha penosa companhia.

    A casa parece impregnar-se da maleficncia de minha enfermidade. Uma atmosfera densa, funesta, quase visvel e palpvel, estende-se por todo o edifcio, sobre todas as coisas. O ar insalubre e opressor torna-se, a cada tempo, menos suportvel. Reconforta-me, apenas, a esperana de alvio no des-canso da morte.

    Assim terminava o manuscrito. O pobre homem fora porta-dor de uma fotofobia em grau extraordinrio, provavelmente a-gravada por outras complicaes, embora os efeitos exacerbados da enfermidade parecessem-me, inicialmente, sugeridos por uma mente perturbada. Revelara o desejo de entregar-se morte, e

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    imaginei, com pesar, que talvez algum recndito da casa abri-gasse os seus restos mortais. Aqueles registros haviam me impressionado bastante e, an-tes de dormir, ocupei-me em transcrev-los para o meu caderno de viagem. Despertei pela manh aps um sono profundo, refeito do cansao do dia anterior. Extinguira-se o fogo da lareira e o mesmo ocorrera com as chamas das velas do candelabro. Nenhuma luz infiltrava-se no aposento, apenas o cantar abafado dos pssaros diurnos anun-ciava o amanhecer. Ainda sonolento, tateando tropegamente, al-cancei uma das janelas do quarto. Com dificuldade, desloquei o ferrolho e a janela abriu-se, rompendo as heras que se estendi-am como uma rede do lado de fora. A chuva havia cessado. O quarto inundou-se da luz branca do sol da manh e, sob suficien-te claridade, iniciei a tarefa de recolher meus pertences. Estalidos secos, iguais ao crepitar de lenho em chamas, vi-eram do piso de madeira e das vigas do teto. Ocorreu-me de in-cio que tais rudos fossem decorrentes do contato repentino, a-ps longa ausncia, da luz e calor do sol no interior do quarto, provocando dilataes abruptas no madeiramento. A intensidade e a cadncia dos rudos aumentaram rapida-mente num pipocar ensurdecedor. Sob os meus ps, as tbuas do assoalho torceram-se e romperam-se em movimentos quase convulsivos. As deformaes estenderam-se aos mveis e lam-bris, cujas superfcies encarquilharam-se como folhas secas. Em pouco tempo o ambiente assumira um aspecto disforme e resse-quido. Um arfar rtmico, opresso, ecoava por todos os cmodos e a casa toda parecia ofegar agonizante. No mais teria sentido atribuir a esses fenmenos as cau-sas que a princpio me pareceram ser as mais simples e bvias. Ao lembrar-me de certo trecho do dirio, ocorreu-me ento o entendimento por uma destas dedues que s vezes nos so-brevm ao esprito num lampejo intuitivo enquanto ao mesmo tempo, a razo nega aceitar. A casa parece impregnar-se da maleficncia de minha en-fermidade

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    Corri em fechar a janela do quarto e os rudos cessaram pouco a pouco. Prossegui viagem, assombrado por to estranhos aconte-cimentos.

    * * *

    TTULO: A CASA VEDADA. DATA DA PRODUO: DEZEMBRO 1982. CRDITOS: TRABALHO PREMIADO NO II CONCURSO DE CONTOS DA CASA DA PALAVRA - SANTO ANDR SP, EM 1993 E NO VI CONCURSO DE CONTOS E POESIAS INSTITU-DO PELO DEPEC - SO CAETANO DO SUL SP, EM 1993. PUBLICAES: CONTOS NOTURNOS 1985; HISTRIAS HETEROGNEAS 1995 ( PRODUES INDEPEN-DENTES); COLETNEA DE TEXTOS VENCEDORES DO 2O CONCURSO DE CONTOS DA CASA DA PALAVRA DE SANTO ANDR SP 1993. REGISTROS: BIBLIOTECA NACIO-NAL - ESCRITRIO DE DIREITOS AUTORAIS NO 33.513 - LIVRO 28 - FOLHA 079 - DATA 21/02/1985; NO 86.840 - LIVRO 116 - FOLHA 003 - DATA 09/12/1993; NO 205.836 - LIVRO 356 - FOLHA 496 - DATA 21/07/2000.

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    A VOZ DE CLAIRE

    Ubirajara Godoy Bueno

    A Conscincia Humana este morcego! Por mais que a gente faa, noite, ele entra

    Imperceptivelmente em nosso quarto!

    Augusto dos Anjos

    Frana 18...

    Xavier Duchamp viera numa calea aberta, fresca da noite, o que s vezes ajudava a atenuar o efeito da bebida, mas se sentia ainda entorpecido pelo vinho quando entrou em casa. Firmou-se no corrimo e subiu as escadas em direo ao quarto. Claire, sua jovem esposa, dormia com um livro sobre o colo e parecia mais frgil e mida sob o alto dossel de cortinas renda-das que lhe abrigava o leito. A luz das velas perfumadas, sobre a mesa de cabeceira, acentuava-lhe a palidez. O marido observou-a com repulsa, enquanto retirava o pale-t recendendo a tabaco e impregnado com os perfumes ordin-rios dos bordis. No acreditava na doena da esposa, apesar dos exames terem revelado uma grave molstia do corao. A recomendao era para que ela evitasse, entre outras coisas, qualquer tipo de emoo, o que inclua as relaes ntimas com o marido. Duchamp estava convencido de que se tratava de uma representao da mulher para livr-la das obrigaes de espo-sa, antes, um pretexto para se encontrar regularmente com o mdico, Frederic Gouzer, com o qual estaria mantendo um rela-cionamento amoroso. Embora no houvesse evidncias de tal conduta, Duchamp remoa em silncio a convico do adultrio. Proibir as visitas do mdico ou enxotar a esposa de casa seria admitir publicamente a infidelidade. J bastavam os comen-trios de que Claire havia lhe sido entregue em casamento pela exonerao de uma antiga dvida contrada pela famlia da jovem

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    com o seu pai. Ainda que Xavier no fosse o tipo que zelasse devidamente pelo decoro de sua reputao, procurava, pelo me-nos neste caso, em defesa unicamente do seu amor prprio, manter alguma discrio. Contudo, a situao tornava-se intole-rvel medida que repudiava a mulher com um dio crescente. Notou, sobre a mesa de cabeceira, uma nova prescrio de medicamentos, indcio de que o mdico estivera presente naque-la noite. Via nisso apenas um artifcio para engan-lo. Rosnou como um animal furioso e num impulso incontrol-vel lanou-se contra a mulher, apertando-lhe o pescoo com de-dos vigorosos, iguais tenazes de ao comprimindo uma frgil porcelana. Claire debateu-se debilmente alguns poucos segun-dos, depois se aquietou com os dedos crispados na orla do corti-nado. Xavier recuou at o fundo do quarto. Com a manga da ca-misa, enxugou o suor que lhe inundava o rosto enquanto se dava conta do que fizera. Veio-lhe a imagem da prpria cabea deca-pitada pela guilhotina como um prenncio de punio. Transtornado, durante o resto da noite cuidou um plano pa-ra se livrar da culpa pela morte da mulher. To logo amanheceu, chamou por um dos empregados da casa que acabara de chegar, um jovem cavalario que se apresentou imediatamente. Orde-nou-lhe que fosse buscar o doutor Gouzer com a mxima urgn-cia a pedido da senhora Duchamp. O empregado saiu s carrei-ras casa do mdico, distante alguns poucos quarteires. Xavier aguardou em seu escritrio e no esperou muito tempo para ouvir os passos apressados do mdico atravessarem a sala e seguirem em direo ao quarto. Cabia-lhe, agora, seguir cuidadosamente o que havia planejado. Apanhou um revlver e subiu as escadas. Ao cabo de alguns segundos mataria Frederic Gouzer.

    Teria atirado numa tentativa malograda de salvar a esposa ao chegar em casa e deparar-se com o mdico estrangulando-a num acesso de clera. Este seria o seu depoimento. Ficaria es-tabelecido, pela hiptese mais provvel, que ocorrera um grave desentendimento entre o mdico e sua mulher; o motivo ficaria por conta das conjecturas dos inspetores e juzes anteviu, Xa-

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    vier, o curso da diligncia policial. No descartou, entretanto, a possibilidade de recair sobre si a suspeita de ter atirado no mdi-co e matado a mulher com as prprias mos, aps surpreend-los em atitudes indecorosas. De qualquer modo, ele, o marido ultrajado pela jovem e infiel esposa, teria sido a maior vtima e nenhum juiz, em s conscincia, iria conden-lo - concluiu satis-feito. Aps liquidar o mdico, ele mesmo comunicaria o fato po-lcia. O caso repercutiria por toda a cidade e seria inevitvel um escndalo, mas era prefervel toda sorte de humilhao possi-bilidade de ser condenado guilhotina - consolou-se Xavier. Aproximou-se da porta do quarto, imaginando que naquele instante o mdico j deveria estar debruado sobre o cadver, exasperado pela morte da amante. Surpreendeu-se ao ouvir vozes que lhe pareciam vindas do interior do quarto. Apurou os ouvidos junto porta procurando distinguir o teor da conversa. Apenas algumas poucas palavras lhe chegaram distintas, mas foi possvel reconhecer a voz de Claire:

    ... um sonho horrvel, como se algo me sufocasse disse a mulher. Xavier deduziu que a esposa tinha apenas desfalecido e no se dera conta do que realmente acontecera. Levou as mos cabea, meneando-a com uma expresso mista de incredulida-de e assombro. Procurou continuar ouvindo a conversa entre a esposa e o mdico, mas s conseguiu distinguir um murmrio i-ninteligvel. Desceu as escadas e voltou para o escritrio ainda perplexo pelo que acontecera.

    Ocorreu-lhe que a diferena de tempo entre a morte da mu-lher e a do mdico, caso o seu plano fosse consumado, seria fa-cilmente percebida pela polcia. Recriminou-se por no ter aten-tado antes a este detalhe, contraditrio sua verso e que lhe comprometeria seriamente. Felizmente, o novo curso da situao fora providencial. No tivesse Claire recobrado os sentidos, no tivesse escutado sua voz, o mdico j estaria morto pensou Xavier aliviado, voltando o revlver na gaveta de uma escrivaninha.

    Exausto, estirou-se numa poltrona do escritrio. Rudos de passos na sala indicaram-lhe que o mdico retirava-se da casa

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    com a mesma pressa com que chegara. Os ltimos acontecimentos causavam-lhe a impresso de algo irreal. Ter ouvido a voz de Claire, cuja morte pareceu-lhe to evidente, mostrava-se agora inverossmil. A loucura absoluta.

    Mas no estava louco e Claire estava viva, falou para si. Viva! repetiu mais alto, como se buscasse convencer a prpria razo. Uma sensao de inquietude e desconforto pareceu avolu-mar-se rapidamente para um sentimento insuportvel de horror. Tentou sorrir, zombando de seus temores, mas o estupor do ros-to freou-lhe o riso. Melhor seria ir ter com a mulher. Numa carreira desesperada tomou o caminho do quarto. L estava o corpo inerte de Claire. Os dedos rgidos per-maneciam crispados na orla do cortinado, os hematomas no pes-coo maculavam grotescamente a palidez da morta. Xavier observou atnito o cadver da mulher. Saiu do quar-to e sentou-se na escada, com a cabea entre as mos, prostra-do pelo horror que lhe fustigava a alma. Dois policiais, conduzidos pelo doutor Gouzer, irromperam na sala principal. Xavier manteve-se indiferente presena dos trs homens. Ainda lhe ressoava a voz de Claire.

    * * *

    TTULO: A VOZ DE CLAIRE. DATA DA PRODUO: MARO 1996. CRDITOS: CONTO CLASSIFICADO EM PRIMEIRO LUGAR NO CONCURSO LITER-RIO 2008/2009 DA ACADEMIA DE LETRAS DA GRANDE SO PAULO ALGRASP. PUBLICAO: TAMISES 7, REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA GRANDE SO PAULO 2009. REGISTRO: FUNDAO BIBLIOTECA NACIONAL - ESCRITRIO DE DIREITOS AUTORAIS NO 205.836 - LIVRO 356 FOLHA 496 - DATA 21/07/2000.

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    APRECIAO

    Ubirajara Godoy Bueno

    Um assassinato, consumado compulsivamente, reveste-se apenas da violncia vulgar. Ainda que sobeja de cuidados, no passar igualmente de um crime ordinrio quando o resultado final consistir no nico fator preponderante. Contraposto, o pro-cesso que ora descrevo mostrar-se-, acredito, invulgar e inte-ressante em todo o seu curso.

    Minha simplria esposa, notria quando em vida somente pela sua impertinncia, correspondeu perfeitamente, desta feita, aos meus propsitos. Dentre os muitos recursos disponveis, optei seguramente pelo veneno, a despeito da concepo atual julg-lo arcaico. No momento seria inoportuno enaltec-lo com relatos a respeito da sua eficcia no decorrer de sculos; limito-me a observar que a escolha cuidadosa do veneno e sua perfeita aplicao levam, in-variavelmente, ao fim desejado de forma impecvel.

    Tomou-me algumas horas da madrugada a adio de pe-quenas pores de veneno nos invlucros de ch ingls. Como de costume, a infuso seria preparada e consumida pontualmen-te s sete horas da manh pela minha sistemtica esposa. Com efeito, despertei alm do horrio habitual. Tomei as escadas devagar, extremamente devagar, at o pavimento inferior. Em circunstncias normais seria inconcebvel manter tamanha lentido. A insipidez da observao abrupta fora devidamente evitada e a expectativa garantida em seu nvel m-ximo. A cada degrau, detinha-me a perscrutar demoradamente uma parte do cmodo l embaixo. Alcancei a sala no final das escadas e com a mesma lentido prossegui em direo ao corre-dor. Atrs da porta entreaberta da cozinha, divisei uma pequena amostra do corpo estirado no cho: o brao imvel e lvido da fa-lecida. Um momento de vitria e jbilo. Avancei alguns poucos

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    passos e a cabea despontou com o rosto perfeitamente visvel, retorcido pelo torpor da morte. O cadver despertaria, naqueles desprovidos do senso de anlise, apenas averso ou reles curio-sidade. Para um bom observador, no entanto, o material poderia oferecer uma infinidade de detalhes e suposies interessantes. Os cabelos em desalinho e emaranhados, por exemplo, revela-vam os movimentos convulsivos que precederam morte. A mesma desordem era observada nas vestes da defunta. A face direita do rosto colava-se no piso de granito. A boca escancara-da parecia reter um grito que a qualquer momento retumbaria no silncio da casa. Um filete de saliva seca contornava os lbios azulados e escorria ao longo do pescoo. Os dentes aparenta-vam uma brancura incomum. Os olhos cavos, abertos e conges-tionados, estavam voltados para o armrio suspenso na parede, onde se encontrava a caixa de ch adulterado. Teria a vtima se dado conta do ardil nos ltimos instantes de vida? Que pensa-mentos lhe ocorreram enquanto o raciocnio embotava-se pela ao do veneno? Embora sejam perguntas para as quais no temos respostas, as conjecturas oferecem um excelente exerc-cio para a imaginao. Durante horas permaneci contemplando a cabea da morta antes de atentar para o resto do corpo, o qual no se mostrou to interessante. Somente noite ocupei-me em ocultar o cadver, enterran-do-o no poro da casa, aps coloc-lo num armrio em desuso, semelhante no tamanho e forma a um fretro comum. O sepul-tamento transcorreu normalmente, obedecendo, na medida do possvel, a certos critrios de organizao.

    No final de uma semana, ainda excitavam-me, sobremanei-ra, os ltimos acontecimentos. Contudo, garanto no ter me es-capado publicamente, em atos ou palavras, qualquer indcio de minha exaltao. Foi com absoluta segurana e tranquilidade que justifiquei a ausncia da falecida. Aos vizinhos e amigos, disse que estava a visitar parentes distantes, e a estes ltimos, quase inexistentes, no careceu explicaes. Assim o assunto estava resolvido por tempo indeterminado.

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    Poder-se-ia considerar o processo concludo e os resulta-dos satisfatrios no fosse a sabedoria menos ordinria, presen-te nos escaninhos da alma, e que s vezes se insinua e nos ins-tiga a imaginao. Assim me parece ser, pois, ao deitar-me bas-tante cedo, aps uma tarde de vrios e exaustivos compromis-sos, e j quase dormindo, ocorreu-me de sbito a possibilidade de uma extraordinria experincia. Refiro-me s mutaes aps a morte e apreci-las minuciosamente seria algo formidvel. Arrebatado pela curiosidade, desci imediatamente ao poro e, esquecendo-me da falta de iluminao no local, tive de voltar em busca de algumas velas. Uma porta bastante estreita e dis-creta em uma das paredes da sala, precedida imediatamente por uma escada ngreme, consistia na nica passagem para o subso-lo. Atravess-la com o corpo da morta uma semana antes havia dado-me um bocado de trabalho. O poro, com aproximadamen-te dois metros de altura, correspondia em extenso somente a um tero da casa, formado por um desnvel do terreno. Uma pe-quena janela circular, vazada para o quintal, promovia a nica ventilao. O cho era desprovido de pavimento e, com exceo de alguns entulhos, restos do que fora uma adega, o lugar en-contrava-se desocupado. Bastariam as chamas de trs ou quatro velas para iluminar razoavelmente todo o local. No entanto, utili-zei uma dzia delas, garantindo assim a perfeita observao do material a ser analisado. Desenterrar o caixo, a poucos centmetros sob o solo, no exigiu grandes esforos. Mal retirei a tampa e um cheiro forte de carne putrefata exa-lou do interior do caixo. Tal circunstncia pode sugerir aos mais reservados algo incmodo ou mesmo intolervel. Mas na verda-de, numa avaliao puramente tcnica, desvinculada de certos preconceitos, podemos considerar o odor, independente de sua natureza, quando intrnseco ao material de interesse, uma quali-dade aprecivel. Com a tampa do caixo totalmente removida, o cadver a-presentou-se luz de velas como uma figura espectral. A pele, antes lvida, tingira-se de um verde azulado. O corpo se avoluma-ra consideravelmente, inflado pelos gases putrefativos, atingindo

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    dimenses gigantescas. Os olhos procidentes assumiram um as-pecto cmico. To diferente o corpo, agora, de sua aparncia ini-cial. Voltei com a tampa no caixo sem recobri-lo de terra; ten-cionava voltar para novas observaes.

    Passei a visitar regularmente a defunta. Outras mudanas se processaram, aumentando consideravelmente a decomposi-o. Os gases se evolaram e desaparecera o enfisema. O corpo murchara numa massa disforme. Sobre a colorao verde da e-piderme, estamparam-se manchas e retculos escuros. Na fronte enrugada, os cabelos raleavam. Os lbios carcomidos deixavam os dentes expostos num sorriso grotesco. A pele, flcida e sola-pada, soltava-se do esqueleto. Era possvel ouvir o frmito dos vermes, a cada dia mais vorazes, fervilharem na matria purulenta. Ocupei-me cada vez mais em apreciar a fascinante meta-morfose. O processo carecia de um acompanhamento contnuo e exasperavam-me as constantes interrupes ocasionadas por telefonemas e visitas de amigos para conversas triviais, assim como os afazeres rotineiros. Assim, abandonei completamente os compromissos alheios ao meu principal interesse e, ao final de um ms, instalei-me definitivamente no subsolo. Com proviso de comida e gua, no dei mostras de minha presena na casa, o que permitiu manter-me com tranquilidade junto ao cadver. Com ripas e pregos, fechei a janela e a porta do poro a fim de garan-tir meu isolamento. Sem iluminao diurna, passei a usar com parcimnia os poucos restos de velas, pois no seria prudente expor-me na ob-teno de um novo suprimento. A luz, a cada dia mais dbil, no interrompeu minhas ativi-dades, ao contrrio, levou-me a um novo experimento: o exame ttil do cadver. Nas sutilezas das percepes, o tato revelou-se, neste caso, mais interessante que os demais sentidos. Porm, sob a fraca claridade, meus apontamentos dirios, os quais tenho mantido com rigor, se tornam uma tarefa penosa ou mesmo im-praticvel e, por ora, convm encerr-los.

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    Antes, cumpre registrar que reservo minha apreciao final para a faculdade do paladar.

    * * *

    Para a composio deste conto, foram consultados artigos tcnicos sobre medicina legal Oscar Freire e outros

    *

    TTULO: APRECIAO. DATA DA PRODUO: 1990 1994. PUBLICAES: HISTRIAS HETEROGNEAS,1995 (PRODUOINDEPENDENTE); ANTOLOGIA DE CONTOS DO I CONCURSO DE CONTOS PARA A TERCEIRA IDADE (PGINA 33) SOESC SO CAETANO DO SUL SP 2008. CRDITOS: PRIMEIRO LUGAR NO VII CONCURSO DE CONTOS E POESIAS DE SO CAETANO DO SUL SP DEPEC PREMIAO POR OCASIO DA CERIMNIA DO MAPA CULTURAL DE 1996; CLASSIFICADO EM QUINTO LUGAR ENTRE OS VINTE MELHORES CONTOS SELECIONADOS PARA PUBLICAO PELA FAENAC, I CON-CURSO DE CONTOS PARA A 3A IDADE 2007 SO CAETANO DO SUL SP. REGISTROS: FUNDAO BIBLIOTECA NACIONAL - ESCRITRIO DE DIREITOS AU-TORAIS NO 95.185 - LIVRO 133 - FOLHA 119 - DATA 31/01/1995; NO 205.836 - LIVRO 356 - FOLHA 496 - DATA 21/07/2000.

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    PERFECCIONISMO

    Ubirajara Godoy Bueno

    ... o que afeta nossos coraes No a exatido de partes individuais;

    No so uns lbios ou uns olhos que beleza chamamos, Mas a fora conjugada

    e o resultado final de tudo

    Alexander Pope

    Por mais inconcebvel que possa parecer, pude entender-lhe o ato horrvel, embora no signifique aceit-lo como um pro-cedimento normal. Sempre demonstrou, pelo menos desde que o conheo, um extravagante senso de esttica e organizao. Um perfeccionista alm dos padres que o termo possa admitir ou sugerir. No havia em sua casa um nico lugar que escapasse de seus cuidados. Mveis, utenslios, objetos de adorno e de uso pessoal dispunham-se numa ordem to meticulosa que tais re-quintes somente poderiam ser atribudos aos caprichos de uma mente obcecada. Detalhes nfimos, que passariam despercebi-dos aos olhos do mais atento observador, chamavam a sua aten-o. Incomodava-se com uma simples rugosidade no tapete ou uma dobra irregular na cortina. Refazia de boa vontade um ma-nuscrito diante de uma nica rasura, assim como no relutava em descartar os objetos que lhe apresentassem a mnima imper-feio, ainda que pudessem cumprir suas funes. Contava com os servios de trs empregados devidamente treinados para manter, sob a sua orientao, a organizao da casa. No decorrer de nossa longa convivncia, fui conhecendo suas esquisitices, o que no afetou, em absoluto, a nossa boa amizade. Estimava-o sinceramente. Fora isso, era um sujeito tranquilo, dcil, alegre, dono de uma cultura admirvel, especial-

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    mente na rea das letras. Ocupava, h muitos anos, um cargo importante na alfndega do porto martimo. Apesar dos seus trin-ta e poucos anos de idade, mantinha-se solteiro por opo. Resi-dia apenas em companhia de seus empregados e esta condio parecia ser a mais favorvel ao seu estilo de vida incomum. Certa vez, durante um encontro de amigos, confessou-me ele, num leve torpor da bebida, o terrvel incmodo que lhe cau-sava o estrabismo em seu olho esquerdo. Acrescentou o fato dos mdicos terem descartado a possibilidade de uma cirurgia corretiva. Notava-se, realmente, um discreto desvio do seu olho, mas essa pequena anomalia no parecia comprometer a sua viso e longe estava de afetar-lhe a esttica. Procurei tranquiliz-lo de sua tola preocupao, mas inter-rompeu-me nervosamente: Uma pequena, mas perceptvel diferena entre dois ele-mentos concebidos originariamente para serem idnticos entre si intolervel. Acredito que o mais crucial seria uma grande diferena contestei. Ao contrrio retrucou ele. No sendo possvel a i-gualdade, prefervel a total desigualdade. Esta ltima perfei-tamente caracterizada pelo contraste ou assimetria, enquanto a semelhana sugere algo mal sucedido de se alcanar a igualda-de, com resultados estticos desastrosos. O quase igual ou a quase normalidade devem ser rejeitados.

    No posso concordar com um princpio to absurdo talhei severamente. O que est me dizendo equivale a afirmar que o melhor a falta de audio do que t-la com uma leve de-ficincia, ser mudo a no ter uma boa dico.

    Meu amigo sorriu, como se complacente com minha incom-preenso; depois observou num tom incisivo: Note que estamos considerando, sobretudo, o aspecto esttico e no funcional. Admito que suas colocaes possam ter fundamentos em alguns casos especficos, mas no seria sensato estend-las indiscriminadamente para todas as situaes disse-lhe um pouco rspido, censurando seu juzo analtico.

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    Mas no me deu resposta. Sentado, com o rosto apoiado nas mos, silenciou-se acabrunhado. Tentei distra-lo com outros assuntos, mas somente aps algum tempo foi possvel acalm-lo.

    Duas semanas depois viajei ao exterior para tratar de as-suntos profissionais, de onde retornei aps quatro meses. A viagem de volta fora cansativa, mas resolvi, no mesmo dia, ao final da tarde, visitar meu amigo perfeccionista. Dirigi-me ao porto onde trabalhava e encontrei-me, antes, com o seu tio, um ex-marinheiro que agora cuidava da segurana dos navios. Trocamos cumprimentos e perguntei-lhe do seu sobrinho. Em re-posta, apontou-me com o dedo a plataforma do cais. L estava meu amigo, em companhia de dois homens, a examinar uma pi-lha de caixas. Notei-lhe uma venda no olho esquerdo moda dos piratas. O que lhe aconteceu? indaguei apreensivo, supondo alguma desgraa. Vazou o prprio olho respondeu seu tio com pesar.

    * * *

    TTULO: PERFECCIONISMO. DATA DA PRODUO: FEVEREIRO 2000. REGISTROS: FUNDAO BIBLIOTECA NACIONAL - ESCRITRIO DE DIREITOS AU-TORAIS NO 305.044 - LIVRO 555 - FOLHA 204 - DATA 24/11/2003; NO 474.325 - LIVRO 894 - FOLHA 134 - DATA 06/10/2009.

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    O REENCONTRO

    Ubirajara Godoy Bueno

    A desgraa neste mundo variada e a misria multiforme

    Poe

    O firme propsito de rever um velho amigo que se mudara para o interior, e de quem eu no tivera mais notcias, levou-me a uma busca paciente e alguns dias de viagem antes de localiz-lo num stio distante. Da pequena casa onde morava sozinho, entre montanhas e bosques, dir-se-ia resguardar seu morador aos o-lhos do mundo.

    Minha visita causou-lhe grande surpresa e foram necess-rios alguns minutos para que meu amigo pudesse recompor-se de suas emoes. Quanto a mim, no fiquei em situao diferen-te. Mal podamos acreditar em nosso reencontro aps vinte anos de separao. Felizmente achou-me neste fim de mundo disse-me ele com uma alegria incontida, enquanto abraava-me caloro-samente. Segui o seu rastro como um co perdigueiro! excla-mei, um tanto orgulhoso e sinceramente satisfeito pelo resultado de minha determinao.

    Durante todo o resto do dia e parte da noite, permanece-mos juntos a recordar algumas passagens de nossas vidas. Devo admitir que a aparncia do meu amigo causou-me certa opresso. Seu rosto revelava no somente as marcas do tempo mas, sobretudo, o que me pareceram sequelas de um grave acidente. Cicatrizes sulcavam-lhe a face e desciam at o pescoo, sugerindo profundos arranhes ocasionados por garras potentes. Um retngulo de couro, preso a uma tira que lhe cir-cundava a cabea, tapava seu olho esquerdo. Imaginei com um

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    calafrio a horrvel deformao que a pequena venda escondia. As cicatrizes repuxavam-lhe um pouco os lbios e, com efeito, sua voz sofrera uma discreta alterao. Marcas semelhantes podiam ser observadas em seus braos e nos dorsos de suas mos. Os cabelos em desalinho, outrora louros e abundantes, j raleavam e tingiam-se de branco. A barba por fazer acentuava-lhe a rudeza da aparncia. Vestia, sobre uma camiseta branca, um macaco de brim surrado e calava, sem meias, botinas de couro cru. Ti-nha sido na juventude cuidadoso com suas roupas, um exemplo de vaidade, mas agora exibia uma simplicidade quase desleixa-da. Custava-me associar sua figura imagem que eu trazia na lembrana de um jovem elegante de pele rosada e feies plci-das, alegre e inquieto, cuja vivacidade parecia eterna. Somente me havia sido possvel identific-lo com segurana quando, ao bater-lhe a porta, disse-me seu nome. Desgostava-me v-lo to diferente. No podia atinar sobre o que lhe acontecera e fiquei a imaginar os infortnios que a vida lhe infligira. Contou-me que havia comprado uma fazenda bastante prspera na poca em que suas excurses pelo garimpo rende-ram-lhe algum dinheiro, mas tinha se desfeito da propriedade e preferido a simplicidade do seu pequeno stio. H algum tempo dedicava-se a criao de abelhas com grande entusiasmo. Falou-me efusivamente sobre a arte da apicultura, curiosidades e deta-lhes que eu jamais poderia imaginar. Tornara-se um especialista no assunto. Dezenas ou centenas de colmias espalhavam-se pelo seu stio e o ar recendia a mel. Talvez fossem as abelhas suas nicas companhias. No me falou, contudo, sobre o acidente que lhe havia muti-lado e procurei manter-me discreto sobre este assunto. noite, porm, quando conversvamos e bebamos, fresca da varanda, acabei tomando conhecimento sobre o que lhe havia ferido o corpo e a alma. Pelo que vejo acabou solteiro? perguntei-lhe ao lem-brar-me quando dizia que jamais se casaria. verdade. Mas certa vez cheguei a marcar casamento respondeu ele um pouco constrangido. Ento... ?

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    Foi na poca da fazenda e isso j faz muito tempo deu de ombros e silenciou-se. Pois continue insisti.

    Parecia que relutava em falar sobre o caso e cheguei a ar-repender-me de minha insistncia. Aps uma longa pausa pros-seguiu finalmente: Havia uma moa chamada Clara, filha do feitor de uma fazenda vizinha. Conheci-a numa festa na cidade e as circuns-tncias favoreceram novos encontros e o comeo de um namoro. Em cinco ou seis meses ficamos noivos e marcamos nosso ca-samento. No final de uma tarde, retornvamo-nos da cidade em direo fazenda, servindo-nos de uma charrete que usvamos frequentemente. Durante o trajeto, uma das rodas do veculo quebrou-se. Desatrelei o animal e seguimos a p pela estrada de terra que se estendia como um tnel entre as copas das rvo-res e touceiras de capim. Apesar do caminho ser conhecido, ace-leramos os passos a fim de evitarmos percorr-lo noite. O ca-valo, que eu mantinha seguro a uma corda, seguia-nos logo atrs e notei-lhe uma sbita inquietao. Neste momento, sobressal-tou-nos o ronco de uma ona. O cavalo tornou-se incontrolvel e, arrancando-me da mo a corda que o prendia, disparou numa fuga alucinada. Clara agarrou-se ao meu brao e comeou a cho-rar. Contava apenas com a faca que eu costumava carregar; uma arma de pouca serventia para uma situao como aquela. Pusemo-nos a correr instintivamente. Corramos a perder o fle-go, sem que isso nos livrasse do perigo. Enfiada na vegetao margem da estrada, a fera avanava na mesma velocidade, agi-tando o capim, estalando galhos e fungando como um touro en-furecido. Acompanhava-nos a cada passo sem se mostrar, mas posso garantir, meu amigo, que era possvel sentir-lhe o bafo fe-dorento. De sbito, a fera ergueu-se da mata e saltou sobre ns com um rugido medonho, mais precisamente em direo Clara. Uma ona enorme, pouco comum nas redondezas. Provavelmen-te estava faminta. Interceptei a tempo o seu ataque, atirando-me contra ela de faca em punho, sobraando-lhe o pescoo como um louco suicida. Um gesto desesperado, mas que livraria Clara do bote fatal. Mesmo presa em meus braos, contorcendo-se e

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    debatendo-se furiosamente, a maldita ona conseguia atacar-me. Num nico golpe, retalhou meu rosto e extirpou-me o olho com suas garras afiadas. Um momento horrvel que jamais poderei esquecer. Naquele instante, suportei o sofrimento, ignorei todos os riscos e a minha prpria vida, buscando unicamente, com as foras que me restavam, manter Clara livre do perigo. Mesmo com uma dor atroz e o olho que me restava encharcado de san-gue, permaneci atracado fera a desferir-lhe seguidos golpes, enquanto suas unhas continuavam a dilacerar-me o corpo. Sua boca escancarada tentava atacar-me a garganta com tal mpeto que considerei minha morte inevitvel. Finalmente, quando me sentia prestes a desfalecer, o animal, ferido mortalmente, desa-bou sobre o meu corpo. Clara, ilesa, havia conseguido fugir em direo fazenda e l chegando pediu ajuda aos trabalhadores. Algum tempo depois, j noite, fui encontrado inconsciente. Leva-ram-me para uma casa de sade onde permaneci at recuperar-me dos ferimentos, mas desejei ter morrido quando retirei as bandagens e mirei no espelho meu rosto deformado pelas feri-das. Um sentimento de angstia e horror sufocou-me durante muito tempo. E Clara? perguntei, deveras aturdido com a histria. O casamento no aconteceu. Qual moa se casaria com o monstro que me tornei? finalizou meu amigo, reabastecendo nossos copos e brindando, mais uma vez, nosso reencontro.

    * * *

    TTULO: O REENCONTRO. DATA DA PRODUO: JANEIRO 1999. REGISTROS: FUNDAO BIBLIOTECA NACIONAL - ESCRITRIO DE DIREITOS AU-TORAIS NO 205.836 - LIVRO 356 - FOLHA 496 - DATA 21/07/2000; NO 474.325 - LIVRO 894 - FOLHA 134 - DATA 06/10/2009

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    A CONTENDA

    Ubirajara Godoy Bueno

    ... consideramos que nossa virtude mxima certa astcia prtica, que, na verdade, nos

    extremamente indispensvel (...)

    Franz Kafka, em Josefina a Cantora

    Zadoque, o boticrio, conquistara, ao longo dos anos, uma situao prspera em seus negcios. Angariara uma pequena fortuna que se dividia em alguns imveis e outros bens. Tal sucesso no se devia unicamente tcnica da manipu-lao, profisso, alis, pouco rendosa, mas, sobretudo, a uma extraordinria disposio para o trabalho. Costumavam atribuir a sua vitalidade aos elixires preparados em seu laboratrio, e se assim no era, a propaganda lhe valeu vendas formidveis. Alm da reputao de bom profissional, conquistara tam-bm o reconhecimento de cidado exemplar. Homem srio e cnscio de postura irrepreensvel e to slidas consideraes no foram abaladas nem mesmo quando, no enlevo de uma pai-xo repentina e extravagante, desposara a jovem e bela Cateri-na. Os acontecimentos que seguiram a este enlace mostraram-se igualmente extravagantes.

    *

    Beba o vinho disse Zadoque, com um revlver apon-tado para a cabea da mulher. Caterina, inclinando-se na cadeira, estendeu a mo trmula em direo aos dois clices sobre a mesa. Presenciara quando o marido servira a bebida, entornando numa das pores de vinho o contedo de um frasco de veneno

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    para, em seguida, alternar rapidamente e vrias vezes as posi-es dos clices. Caterina deveria escolher qual dose tomar: uma incua, a outra mortal. A situao sugeria o velho jogo das cascas de nozes que Zadoque costumava exibir com grande ha-bilidade. Havia a possibilidade de servir-se do vinho inofensivo, con-tudo sabia que se tal acontecesse ele acabaria por mat-la de outra forma. Acusava-a de ter tentado envenen-lo. No fazia muito tempo, Zadoque havia encontrado acnito misturado a uma nova poro de ervas para o preparo de seu ch habitual. Ao i-dentificar o vegetal venenoso, antes de fazer uso da infuso, admitiu t-lo apanhado por engano quando colhia no campo fo-lhas e razes. Porm, agora, mostrava-se convicto de ter sido a mulher quem adicionara intencionalmente o acnito aos ingredi-entes e Caterina compreendera que o passeio naquela tarde casa de campo fora cuidadosamente planejado para submet-la quele jogo sdico.

    Beba repetiu Zadoque, comprimindo a fronte plida da mulher com o cano do revlver. Por momentos pensou recusar o vinho, mas a idia da arma disparar lhe era insuportvel. Finalmente escolheu um dos cli-ces. Levou a bebida boca e procurou sentir algum odor que denunciasse a presena da droga. O veneno inodoro e inspido observou Zadoque ao perceber a inteno da mulher. O gatilho moveu-se com um rangido. Num gesto sbito e quase involuntrio, sorveu, em um s flego, todo o vinho. Aguardou, angustiada, os efeitos do veneno; os primeiros espasmos, as dores lancinantes, a horrvel asfixia e a paralisia dos msculos vitais. Em alguns casos ocorriam vmi-tos, dormncias e frio intenso. Talvez o veneno utilizado pelo ma-rido fosse forte o bastante para promover uma morte rpida e lhe poupar tais sofrimentos, pensou Caterina, com o suor a banhar seu rosto lvido e desfigurado pela exausto. Olhou para Zadoque, que agora se punha a andar em crcu-los sem deixar de observ-la. Parecia-lhe que a espreitavam, com o mesmo interesse do marido, os olhos fixos e vtreos das

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    cabeas ressequidas dos muitos trofus de caa suspensos nas paredes. Ao cabo de poucos minutos ocorreu-lhe uma esperana de fuga. Considerou a possibilidade de o veneno encontrar-se no outro clice e, se assim fosse, poderia simular sua morte e esca-pulir na primeira oportunidade antes que Zadoque percebesse o embuste. Confiava em sua capacidade de representar e estava dis-posta encenao a que se propusera. Agachou-se, levando as mos garganta como se o ar lhe faltasse. Estou morrendo gritou, deitando-se no cho. Desconhecia o tipo de veneno escolhido pelo marido, o que no lhe permitia precisar as reaes caractersticas, mas procu-raria ser convincente na sua representao. Zadoque sentou-se na cadeira h pouco ocupada por Cate-rina e, enquanto observava satisfeito a agonia da mulher, passou a beber o vinho do segundo clice. Ao final de pouco tempo, foi a sua vez de cair e estremecer-se em convulses. Caterina no conteve o riso. Ah! Feliz ironia que lhe com-pensava os momentos pelos quais passara. Levantou-se e arru-mou os cabelos na tiara dourada. Uma representao admirvel balbuciou Zadoque , mas sua esperteza nem sempre surpreendente; foi tolice ter adicionado acnito s ervas de minhas infuses balbuciou Za-doque, colocando-se de joelhos. Descobriu o acnito com a quebra acidental do frasco, o que no atesta minha tolice, ou lhe d algum mrito. Mas isso j no tem mais importncia respondeu a mulher indiferente, re-tocando o batom no espelho da sala. Ainda que eu tivesse feito uso do ch, poderia ter me li-vrado da ao do veneno com o vomitrio que conservo na mesa de cabeceira. Substitu o vomitrio por gua confessou Caterina com um brilho nos olhos que sobrepujava aos dos espectadores empalhados. As circunstncias de minha morte seriam investigadas

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    lembrou Zadoque, com voz entrecortada No impossvel, mesmo a um boticrio experiente, en-ganar-se com algumas espcies de ervas e razes. No faz muito tempo alguns soldados em exerccio de sobrevivncia confundi-ram razes de acnito com nabo contraps Caterina. Depois, olhando a garrafa de vinho sobre a mesa, continuou: Quanto a hoje, terei prazer em dizer exatamente o que aconteceu. No ser difcil convencer a polcia de que o motivo foi um marido transtornado pelo cime e suas suspeitas infunda-das de infidelidade. Parece-me bem apropriado a este incidente, do qual no vou me lamentar. Ainda de joelhos, o rosto contrado, Zadoque comprimia o estmago com as mos, como se o veneno lhe corroesse as en-tranhas. Uma viva jovem e rica pode ser uma condio fortuita ou planejada finalizou a mulher, dando-lhe as costas e cami-nhando impvida em direo porta de sada, ao mesmo tempo em que Zadoque debruava o corpo, como se descansasse de uma tarefa penosa. A respirao ofegante tornou-se inaudvel e no semblante, h pouco distorcido, notava-se, agora, uma nesga de jbilo. Com as mos espalmadas, bateu vigorosamente no assoalho. Em resposta, sons de passos vieram do corredor que se estendia at o fundo da casa. Declaraes interessantes anunciou um homem gor-do de fala macia que sara de um quarto contguo e dirigia-se sala, acompanhado de um policial uniformizado. Creio que a espera tenha lhes cansado disse Zado-que aos dois homens, enquanto colocava-se de p e com a pal-ma da mo sacudia a poeira da roupa. Em minha profisso, h coisas mais cansativas do que algumas horas de viglia no interior de um quarto respondeu o gordo que se escondera no cmodo minutos antes da chegada do casal. Zadoque voltou-se para Caterina, transtornada pela surpre-sa e clera. O corpo paralisado apoiava-se na ombreira da porta. Eu sabia sobre o vomitrio, o que me deu a certeza de que voc havia colocado o acnito em minhas ervas. Decidi res-

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    ponsabilizar-me pelo incidente at ser possvel extrair-lhe a con-fisso. Acreditei que falaria do seu plano srdido, conquanto fos-se convenientemente instigada para isso e pudesse preservar sua impunidade. Confidncias a um moribundo no lhe traria qualquer risco. Poderia vangloriar-se de seus feitos e gabar-se de sua esperteza sem se comprometer. Cuidei de planejar as si-tuaes que acabariam por lev-la a uma confisso; um artifcio que a psicologia chama de comportamento induzido. A encena-o, da qual recorrera para tentar fugir, e suas declaraes eram previsveis diante das circunstncias. A propsito, sua interpreta-o estava excelente.

    Voc tambm no se saiu mal retrucou Caterina, com o mesmo tom de ironia.

    Surpreendente! exclamou o policial de fala macia, cuja preocupao no momento era reacender o seu charuto. Zadoque dirigiu a todos um sorriso de triunfo, saboreando o sucesso do plano cuidadosamente engendrado, com o qual con-seguira antever os resultados com admirvel preciso. Em se-guida, recolheu o revlver sem munio e o frasco de veneno fal-so. Serviu-se do resto do vinho da garrafa e, com um suspiro, deixou-se cair numa poltrona da sala enquanto os policiais retira-vam-se da casa enlaando nos braos a bela Caterina.

    * * *

    TTULO: A CONTENDA. DATA DA PRODUO: MARO 1987. PUBLICAO: HISTRIAS HETEROGNEAS, 1995. REGISTROS: FUNDAO BIBLIOTECA NACIONAL ESCRITRIO DE DIREITOS AU-TORAIS NO 86.840 - LIVRO 116 - FOLHA 003 - DATA 09/12/1993; NO 205.836 - LIVRO 356 - FOLHA 496 - DATA 21/07/2000.

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    O FANTASMA CAMPESTRE

    Ubirajara Godoy Bueno

    Onde no h imaginao, no h horror

    Arthur Conan Doyle

    Sentado escrivaninha, o professor A. Quemedo cuidava das correspondncias acumuladas durante a sua ausncia. Entre elas, um telegrama da senhora M. H aproximadamente duas semanas, a mulher enviara uma carta relatando que o seu velho piano passara a tocar sozinho durante a noite. Acontecimento es-tranho e inexplicvel dizia ela, considerando que morava, desde a morte do marido, apenas em companhia de um papagai-o, somado ao fato de que a tampa sobre o teclado h muito no se abria devido a ferrugens nas dobradias. Acreditava que os sons, entoados s horas mortas, era obra de algum fantasma zombeteiro e descartava a possibilidade de qualquer ligao com um dos falecidos a quem o piano pertencera, pois, as notas des-compassadas, sem qualquer ritmo, s poderiam ser produzidas por uma entidade sem a mnima noo de msica. Finalizava a carta dizendo ser inevitvel desfazer-se do piano caso o proble-ma persistisse, ainda que esta soluo lhe fosse extremamente dolorosa; o velho instrumento era herana de famlia. Diante de to delicada situao, a infeliz senhora solicitava ajuda com a mxima urgncia. Uma inspeo no interior do piano, realizada pelo professor alguns dias depois, revelou a presena de penugens aderidas s cordas do instrumento, mais precisamente, plos de rato. Foi sugerida a instalao de uma ratoeira na abertura inferior do m-vel. Decorridos seis dias, o presente telegrama notificava o sucesso da interveno; o problema fora resolvido com a captura do roedor. Este caso, semelhante histria curiosa do teto que cho-ramingava, levou o professor a desviar sua ateno para uma

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    boneca de loua sobre a estante de livros; lembrana e prova ir-refutvel de mais um mistrio resolvido. A boneca havia sido en-contrada junto aos objetos que entulhavam o sto de uma velha casa. Apoiada sobre uma nfora, a boneca pendia de um lado para outro ao ser tocada pelas pombas que habitavam o local. O movimento acionava um mecanismo interno no brinquedo que produzia com perfeio o choro de uma criana. Durante muito tempo, o fato assombrou os moradores da casa, at ser investi-gado e rapidamente solucionado pelo professor. Um dos seus primeiros trabalhos aps ter deixado a cadeira de matemtica no magistrio do estado para dedicar-se ao novo ofcio. Atribuire-mos a escolha de to incomum especialidade simplesmente a um pendor para assuntos de tal natureza, e isso basta. Deixemos de lado as longas especulaes, dispensveis a este relato, sobre os impulsos que norteiam ou definem as preferncias humanas. No caso do professor, acrescentemos, apenas, que o seu traba-lho era, invariavelmente, conduzido no terreno cientfico, em con-formidade com sua formao exclusivamente materialista. Jamais atribua qualquer ocorrncia, por mais estranha e inexplicvel que pudesse parecer, a manifestaes sobrenaturais. Voltou s correspondncias. Apanhou um envelope branco com distintivo azul impresso em relevo. A insgnia lhe era conhe-cida; pertencia a uma associao esprita. Num artigo publicado h pouco tempo, ele criticara com certa austeridade a crena de seus membros e provavelmente a correspondncia era uma res-posta s suas colocaes, deduziu o professor, enquanto a-bria o envelope com um estilete de prata. Estava acostumado aos revides. Estendeu a carta sobre a escrivaninha e leu a seguinte mensagem:

    Caro Professor A. Quemedo

    Rejubilamo-nos em saber que o caso do Fantasma Cam-pestre foi conduzido e concludo de forma imparcial, sendo admitido por V. Sa tratar-se de uma legtima ocorrncia de carter sobrenatural.

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    Seu louvvel bom senso em aceitar as evidncias no ca-so em questo nos leva a crer que, doravante, tal postura, diante de situaes semelhantes, ser uma constante no seu trabalho.

    Atenciosamente

    A. E.

    O professor enrubesceu. Deveria haver algum engano. O caso fora cuidado e resolvido como tantos outros e estaria louco se tivesse admitido a existncia de um fantasma ou algo seme-lhante. Acendeu o cachimbo, afundou-se na poltrona e com os o-lhos fixos no teto do escritrio procurou ressuscitar as lembran-as dos detalhes do caso. Que mal entendido poderia ter ocorri-do? Voltemos, pois, caro leitor, ao incio dos acontecimentos e, a exemplo do professor, vamos revis-los com ateno. Dois dias antes de sua viagem para o exterior, o professor resolvera investigar de ltima hora as aparies de um fantasma numa cidadezinha do interior. O caso estava sendo tratado com persistncia por um desses jornais sensacionalistas e o assunto j ganhava dimenses de um grande acontecimento. Aps viajar quatro horas de carro, o professor foi ter com o lugar onde se davam as aparies. Uma cidade minscula com menos de mil habitantes. As casas de construes simples, en-cardidas pela terra vermelha, espalhavam-se em alguns poucos quarteires. Era possvel divisar toda a cidade num rpido passar de olhos. O vigrio Marinho, homem de fala e escrita bonita, guardio dos moradores, era o mais indicado para recepcionar o visitante e dar-lhe as devidas informaes. bem ali onde a noite ele aparece. Caminha sem pres-sa at se embrenhar na floresta e desaparecer das vistas fa-lou o vigrio, apontando para um local da orla verde que circun-dava a cidade.

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    Como esse tal fantasma? indagou o professor, ob-servando empertigado a mata densa carregada pelas sombras da tarde. Parece ser um velho de cabelos brancos, usando roupas comuns. No possvel distinguir-lhe a fisionomia. O que faz vocs pensarem que se trata de um fantasma? questionou o professor sem tirar os olhos do bosque. No tem sentido algum ficar perambulando a horas mortas pela floresta. Um caador sugeriu o professor. No um caador afirmou o vigrio. Um vagabundo andarilho... insistiu o professor, con-siderando as causas mais provveis que pudessem provocar mal-entendidos. O fato se repete da mesma forma e com bastante fre-quncia, o que acabaria ser tornando uma rotina maante mesmo para um desocupado. Acho que podemos descartar essas possibilidades concordou finalmente o professor. Alguma apario recente?

    Semana passada alguns curiosos se reuniram durante a noite e resolveram esperar pelo fantasma. Algumas horas depois, viram o espectro vagando pela floresta. De onde estamos seria possvel observ-lo? Sem dvida. Foi exatamente daqui que o mascate e o seu sobrinho viram ... a assombrao, se assim posso dizer. O que pretende fazer? Permanecer de planto at o nosso fantasma aparecer respondeu o professor, dirigindo-se ao carro, de onde apa-nhou uma bolsa contendo, entre outras coisas, lanterna, luneta e, obviamente, cachimbo e tabaco. Espero que a noite seja clara. Vai ser garantiu o vigrio, examinando o cu limpo. Me faz companhia? Infelizmente no tenho mais disposio para os seres lamentou o vigrio. Retirou-se em seguida farfalhando a bati-na, no sem antes dispersar energicamente um grupo de curio-sos que se aproximava do ilustre visitante.

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    O professor olhou as reas circunvizinhas em busca de um posto de observao. Munindo-se de cachimbo e luneta, sentou-se numa rocha de granito. noite, a mata se transformou numa massa cinza gigan-tesca de onde a brisa morna trazia um cheiro agreste. O que o professor notara, at ento, foram apenas as coru-jas mergulhando na floresta caa de roedores, os vos dos piri-lampos e a sinfonia estridente dos sapos e grilos.

    A cidade, do outro lado, silenciosa e deserta, igualmente no oferecia novidades. quelas horas distinguia-lhe somente as luzes amareladas do cruzeiro no alto da igreja, infestadas de ma-riposas e besouros. Finalmente surgiu uma figura de contornos vagos, apare-cendo e desaparecendo medida que caminhava entre as rvo-res. Com a luneta, o professor focalizou um velho mido e frgil, com cabelos brancos espetados para fora do chapu de palha. O rosto, mesclado de sombras e luz da lua, mostrava-se pouco dis-tinto. dito cujo! exclamou o professor e, decidido a no perd-lo de vista, apanhou uma lanterna e entrou na mata. Acelerando os passos, procurava diminuir a distncia que o separava do suposto fantasma. Em alguns trechos, as copas das rvores mais altas vedavam totalmente a claridade da lua. O pro-fessor recorria lanterna, contudo, mal conseguia iluminar um pequeno crculo no solo. O velho, sua frente, parecia conhecer perfeitamente o caminho; seguia-o sem dificuldades, apesar da falta de iluminao. A perseguio continuou por uma vereda margeada de ca-nios, abrindo-se alguns metros frente numa clareira. O velho caminhou em direo a um casebre que se erguia no descampa-do. Ei voc! gritou o professor, ofegante pela longa cami-nhada. O velho voltou-se curioso, mas sem qualquer sinal de sur-presa. Aparentava ter uns setenta anos. Os olhos pequenos e azuis reforavam a expresso tranquila dos matutos. Trajes sim-ples: camisa xadrez e cala de brim segura por suspensrio; a

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    cabea branca metida num chapu de palha esgarado. Os ps, esparramados e calejados, estavam nus. Sou o professor Quemedo. Cilas Barreiro, ao seu dispor identificou-se o velho, apanhando uma lamparina de querosene que bruxuleava pendu-rada na porta da choupana. Parece que suas andanas pela floresta tm assustado o povo da cidade. Acreditam que seja um fantasma. Pelo menos sirvo pra alguma coisa falou o velho com um sorriso de poucos dentes. Melhor seria se explicar com o padre. Vosmec diga pra ele se assosseg. Fica preocupado por mor de coisa -toa. Conhece o padre? Tem cabea dura e corao mole. Se me permite, senhor Cilas, tenho que voltar cidade disse o professor, dando por encerrada a conversa, que pela brevidade das respostas do velho, no prometia evoluir de forma mais interessante. Alm do mais, o problema estava praticamen-te resolvido. O fantasma no passava de um caipira. O velho assentiu com a cabea e entrou na choupana. O professor tomou o caminho de volta, procurando se orien-tar pelas luzes do cruzeiro da igreja que brilhavam muito longe como uma constelao no cu negro. Seria fcil algum se per-der naquele lugar. J passavam das onze horas quando alcanou o local de partida. Seguira o velho por uma distncia maior do que imagina-ra. Dirigiu-se at o carro, serviu-se de uma dose de conhaque e voltou ao cachimbo. Na rua no se via vivalma. Aos latidos de um co somaram-se, aos poucos, o rudo de um automvel que se aproximava. Aquilo sim era um verdadeiro fantasma pensou o profes-sor, observando um jovem de rosto comprido e sardento, com cabelos eriados cor de fogo, que estacionava o seu veculo do outro lado da rua. O jovem, muito alto e magro, saiu do carro e, com passos ligeiros, caminhou em sua direo. Professor Quemedo, suponho falou o rapaz, estenden-

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    do a mo esguia. Exatamente. Sou Ladepoys Junior, o jornalista que est acompanhan-do o caso do fantasma campestre. O vigrio telefonou de ltima hora avisando-me da sua presena. Sorte ter me encontrado, j estava de sada. Quando pretende continuar as investigaes? pergun-tou o jovem desapontado. O trabalho est concludo respondeu o professor empi-nando o nariz e tirando do cachimbo uma longa baforada. Concludo? Uma das questes mais simples com que j me deparei. Na verdade, o tal fantasma um matuto chamado Cilas Barreiro, provavelmente conhecido pela maioria dos moradores da cidade. As sardas do jornalista tornaram-se mais vermelhas, os ca-belos mais eriados e os olhos cintilaram deslumbrando a man-chete do prximo jornal. E como soube disso? perguntou o rapaz, guarnecen-do-se de papel e caneta. Segui o nosso fantasma at o seu casebre, numa clarei-ra a dois ou trs quilmetros na direo norte da floresta. Con-versamos alguns minutos e c estou so e salvo, apenas um pouco cansado da caminhada. Esplndido. Nada como o servio de um especialista. Escreva sobre a concluso do caso e mande-me um e-xemplar do jornal solicitou o professor, entregando-lhe um car-to com o seu endereo. Ser feito prometeu o jovem com visvel euforia. No deixe de informar ao padre lembrou o professor, entrando no carro e despedindo-se em seguida. No dia seguinte, com mais um caso resolvido, o professor partiu em viagem para o exterior, de onde retornou aps seis dias. Assim terminamos a retrospectiva deste caso. Portanto, astuto leitor, a que atribuir o engano? A notcia no jornal intuiu o professor, batendo a mo so-bre a escrivaninha. Afinal, pensando bem, Ladepoys Junior no inspirava muita eficincia e poderia ter distorcido as informaes.

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    Imediatamente vasculhou uma cesta onde a empregada costu-mava guardar os jornais e revistas. L estava o exemplar procu-rado num envelope datado pelo correio dois dias aps a investi-gao do caso. A matria do jovem jornalista era assunto da pri-meira pgina. O professor leu a notcia com a haste do cachimbo trincada nos dentes, e desta vamos ao trecho elucidativo:

    ESCLARECIDO O CASO DO FANTASMA CAMPESTRE

    ... e o especialista, professor A. Quemedo, afirmou ter mantido breve conversao com o fantasma, aps se-gui-lo pela floresta onde ocorrem os fenmenos. A sur-preendente apario identificou-se ao professor como sendo Cilas Barreiro. Segundo informaes do padre Marinho, o qual se recorda com pesar do velho ermito, Cilas Barreiro residia num stio pouco afastado da ci-dade e faleceu h aproximadamente quatro anos. Foi encontrado morto em sua cabana (causa desconhecida), por um grupo de caadores que na ocasio...

    A situao exigia mais que um tabaco forte e o professor recorreu, sem restries, garrafa de conhaque.

    * * *

    TTULO: O FANTASMA CAMPESTRE. DATA DA PRODUO: JULHO 1994. PUBLICAO: HISTRIAS HETEROGNEAS, 1995 (PRODUO INDEPENDENTE). REGISTROS: FUNDAO BIBLIOTECA NACIONAL - ESCRITRIO DE DIREITOS AU-TORAIS NO 95.185 - LIVRO 133 - FOLHA 119 - DATA 31/01/1995; NO 205.836 - LIVRO 356 - FOLHA 496 - DATA 21/07/2000.

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    O VISITANTE

    Ubirajara Godoy Bueno

    Ao voltar para casa, o professor Artur Halas deparou-se com um homem em sua sala.

    Teria dado meia volta e se retirado imediatamente diante da suspeita de uma invaso hostil, mas tal coisa no lhe ocorreu. Embora estivessem se tornando frequentes os assaltos s resi-dncias, o seu inesperado visitante, um senhor de aspecto grave, pareceu-lhe inofensivo e o motivo de sua visita certamente seria relevante. Deduziu que a empregada havia lhe autorizado a en-trar mediante a devida identificao e justificativa. Vestido com um terno preto e chapu da mesma cor, o ho-mem sentava-se numa poltrona junto janela a folhear despreo-cupadamente um jornal do dia anterior. Artur procurou associar sua figura a algum parente ou amigo que h muito no via, mas no lhe veio qualquer lembrana. Estava certo de no conhec-lo. O homem levantou-se e retirou polidamente o chapu ao se dar conta da presena de Artur. Os cabelos de azeviche assen-tavam-se impecavelmente para trs. O movimento deixou exalar um discreto perfume de cravos. Era alto e magro, conquanto os ombros fossem largos. Aparentava no ter mais que cinquenta anos de idade. Artur pde observar-lhe melhor o rosto plido e as expresses calmas de um monge. Os olhos azuis eram encima-dos por grossas sobrancelhas. Um bigode fino, de pontas curvas, delineava-se como um trao a nanquim. Boa noite senhor Artur Halas. Peo-lhe desculpa pela vi-sita inesperada, mas o assunto que tenho a tratar da mxima urgncia. Acho que no nos conhecemos disse Artur, convidan-do-o a sentar-se novamente, enquanto ocupava uma poltrona vi-zinha.

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    Certamente no. Como conseguiu entrar? A porta estava trancada, as ja-nelas possuem grades e acabo de me lembrar que a empregada est de folga. Uma das minhas especialidades respondeu o visitan-te, piscando um olho. Voc um policial e deve ter usado uma chave mestra! exclamou Artur, estalando os dedos com ar de troa. Des-confiava tratar-se de alguma brincadeira. Mas qual o moti-vo...?

    No me dei a este trabalho senhor Halas, e no sou poli-cial interveio o homem.

    Ento... ? Eu sou a morte apresentou-se o visitante, curvando-

    se com mesuras. A morte ?

    Perdoe-me. No quero parecer pretensioso. Na verdade, no detenho o poder de deciso sobre a expirao da vida, cuido apenas para que o processo transcorra dentro da normalidade. Fao parte de uma legio onde todos esto habilitados para esta incumbncia. A morte!? repetiu Artur, tentando imaginar qual de seus amigos teria lhe preparado a pilhria. Tinha que admitir que fora cuidadosamente elaborada. Apenas um ttulo figurado, por falta de um termo melhor para o entendimento dos homens esclareceu o visitante, levan-tando-se e espiando pela janela o movimento da rua. E pretende levar minha alma? perguntou Artur, con-vencido de que se tratava de uma brincadeira e disposto a lev-la adiante. No momento no. Apenas comunic-lo oficialmente que morrer impreterivelmente no prximo dia vinte e sete. Sendo assim, muito importante que seus estudos sobre as reaes qumicas seletivas sejam concludos e divulgados. O que hoje uma simples curiosidade em pouco tempo poder ser a base pa-ra uma das principais pesquisas no campo da medicina. Um grande benefcio para a humanidade.

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    Sinto-me deveras enaltecido, mas acho que preciso de pelo menos mais trinta anos para concluir meus estudos vol-tou Artur num tom de zombaria. No mais que vinte dias. O que foi determinado no po-de ser alterado replicou o visitante, mantendo a seriedade. Acredito que no seja comum sermos informados sobre a data de nossa morte. Apenas em casos excepcionais. Conforme j lhe disse, nossa funo resume-se em auxiliar no processo que costuma-mos chamar de transmutao. Posso saber de que forma vou morrer? No vejo nenhum inconveniente. Um momento, senhor Halas. O homem retirou do bolso interno do palet um caderno de capa desgastada pelo uso e ps-se a consult-lo, correndo o in-dicador por uma srie de apontamentos. Artur mal podia acreditar que aquele homem pudesse real-mente achar que estava sendo convincente com uma histria to absurda. C est! disse ele Artur Halas, solteiro, 35 anos, professor de qumica. Vejam s! Atropelamento. Um tipo de aci-dente corriqueiro nos dias de hoje. Atropelamento! Poderiam ter me arrumado coisa melhor observou Artur, pensando no mau gosto dos amigos. No deve se preocupar. A transmutao ser pratica-mente indolor. Ao contrrio do que muitos imaginam, a dor fsica nem sempre corresponde em intensidade magnitude da trag-dia. Posso garantir que a morte advinda da queda de uma esca-da, por exemplo, pode ser mais dolorosa em relao quela onde a vtima se atirou do alto de um edifcio ou foi esmagada por um rolo compressor. Uma observao bastante confortadora, mas de qualquer modo, prefiro morrer de velhice. Certamente a transmutao natural prefervel a outras formas de morte. Uma vez ciente do dia e da causa de minha futura morte, posso perfeitamente evit-la permanecendo em segurana na

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    minha casa observou Artur, enfatizando a ingenuidade com que o visitante conduzia aquela suposta balela. Posso lhe assegurar que isso no ser possvel res-pondeu o outro dirigindo-se porta de sada aps consultar um relgio minsculo que retirou do bolso do palet. Sempre imaginei a morte com capuz negro e alfanje nas mos comentou Artur, examinando as vestes elegantes do vi-sitante. Apenas uma crena antiga. Ouvi o mesmo do conde An-tonielle. Conde Antonielle? Perdoe-me, estou falando de coisas que se passaram h muitos anos. Isso foi antes de... 1900, em Veneza, na Itlia. No aparenta tanta idade. J ultrapassei os seiscentos anos, h mais de quatrocen-tos na funo revelou orgulhosamente o visitante, alisando o bigode com os dedos magros. Inacreditvel exclamou Artur, referindo-se, na verda-de, capacidade de representar do visitante. Seus amigos ti-nham contratado um verdadeiro ator. Tenho de partir imediatamente anunciou o homem, consultando novamente o relgio. Em alguns minutos, cuidarei do falecimento do senhor Csar Baldazar. Um pintor magnfico que conseguiu resgatar a genialidade dos mestres da renascen-a. Felizmente ser uma transmutao tranquila. O visitante recolocou cuidadosamente o chapu e, antes de partir, reforou a recomendao: No se esquea de concluir o seu trabalho depois, baixando a voz e curvando-se para Artur Halas, completou num tom de confidncia: H interesses do outro lado para que isso acontea. To logo a visita se retirou, Artur afundou-se na poltrona e sorriu da pilhria. Um pouco exagerada, mas original. Provavel-mente haviam conseguido uma cpia da chave de sua casa. Se a turma do quarto ano estivesse envolvida na brincadeira, tudo era possvel. No fazia muito tempo os referidos alunos ocuparam-se durante toda uma noite em fechar com tijolos e argamassa a por-

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    ta da garagem de um professor enquanto a vtima viajava com a famlia lembrou Artur. No momento, o melhor seria um banho quente e um macar-ro instantneo.

    Alguns dias depois, nenhum dos seus alunos tinha, at en-to, dado mostras de serem os autores da brincadeira, inclusive os endiabrados do quarto ano. No assumir uma encenao da-quela grandeza seria o mesmo que no assinar uma obra de ar-te. Talvez estivessem observando-o discretamente, esperando uma mudana no seu comportamento, mas Artur no lhes daria este prazer. Manteve uma conduta normal, antes, exacerbou si-nais de tranquilidade e quando lhe perguntaram sobre suas expe-rincias com as reaes seletivas respondeu que somente volta-ria a se ocupar com elas no prximo ano. Mas verdade seja dita, no pde evitar uma sensao de desconforto ao ler no jornal a manchete sobre o falecimento do pintor Csar Baldazar, que ocorrera algumas horas depois da ex-cntrica visita. Mas acabou rindo da sua preocupao. Provavel-mente o pintor se encontrava doente h algum tempo, e sendo uma pessoa conhecida, a notcia de sua enfermidade saiu nos jornais. Os autores da brincadeira apenas tiraram proveito da si-tuao e acertaram em cheio com a data de sua morte conclu-iu com ares Sherlockianos. Voltou ao jornal e leu a notcia. O ltimo pargrafo informava: o pintor gozava de boa sade e teve morte sbita. Sacudiu-lhe um tremor. Bobagem ! Bobagem ! disse para si mesmo, fechan-do o jornal. Embora no conseguisse atinar sobre o fato, deveria existir uma explicao lgica. Estava certo disso (ou quase). Bobagem tambm seria adiar propositalmente o trmino de seus experimentos qumicos devido a uma simples brincadeira de alunos ponderou o professor. Tratava-se de um estudo inte-ressante e merecia ateno. Assim, bastaram alguns dias para voltar s experincias e conclu-las de vez. Os resultados foram divulgados numa revista especializada.

    No dia previsto para a sua morte, um belo sbado ensola-

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    rado, decidiu permanecer em casa. Considerou essa sua deciso como uma simples cautela diante da possibilidade de expor-se, de forma voluntria e abusiva, s situaes de riscos unicamente para enfatizar sua descrena a to absurda previso. Esse inte-ressante e oportuno preceito sobre o comportamento humano deixou-o mais vontade com a sua deciso. Alm do mais, e tal-vez s isso bastasse, era o seu dia de folga e estava precisando de um bom descanso. Viu televiso e entregou-se algumas horas leitura.

    Curioso que fosse sbado; normalmente no lecionava nos finais de semana cismou o professor. Ocorreu-lhe que a maior prova do sucesso do trote que lhe aplicaram seria lev-lo a faltar s aulas no dia marcado pelo visitante, no entanto.... Tudo havia sido elaborado e encenado impecavelmente, exceto por este de-talhe. Certamente equivocaram-se com a data deduziu Artur Halas, espreguiando-se na poltrona. Fechou um livro de Kafka e olhou para o relgio na parede da sala: meia noite e quatro minutos. Correu a mo sobre a me-sinha ao lado e apanhou a carteira vazia de cigarros. Talvez o bar da esquina ainda estivesse aberto e no lhe custaria nada uma caminhada at l para reabastecer-se de tabaco. Colocou os chinelos e saiu. Enquanto seguia pela rua tranquila, lembrou-se mais uma vez da pilhria. Levantou o pulso e consultou o relgio num gesto impulsivo: meia noite e vinte minutos. J se passara o dia previs-to para a sua morte e o mesmo transcorrera normalmente. Sorriu. Uma pontinha de vergonha corou-lhe a face ao lembrar-se da morte do pintor. Admitia que o fato mexera com seus nervos du-rante algum tempo e agora se recriminava por isso.

    Avistou o movimento no bar e acelerou um pouco os pas-sos, mas deteve-se ao cruzar com um dos seus alunos. Amanh vamos ter algum dormindo no futebol brin-cou o professor, lembrando-se dos jogos escolares dominicais. Qual nada, pretendo estar na cama antes da meia noite respondeu-lhe o estudante com bom humor, sem interromper os passos ligeiros. Pois ento est atrasado, j quase meia noite e meia

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    disse-lhe o professor apontando para o pulso. Trate de acertar o seu relgio, h pouco terminou o hor-rio de vero observou o rapaz. As pernas vacila