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  • 7/22/2019 HERZ, Mnica. Organizaes Internacionais - perspectivas tericas.pdf

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    sas reas de convivncia. Veja o relatrio da Comisso sobre Governana Global (Comission

    on Global Governance, 1995). Veja tambm o site do Centro de Estudos sobre Governana

    Global da London School of Economics, que conta com a participao de Mary Kaldor e

    David Held, entre outros, e que possui diversas publicaes sobre a governana global e a

    sociedade civil internacional: http://www.lse.ac.uk/Depts/global!AboutCsGG.htm.

    Veja ainda o trabalho de jarnes Rosenau para uma apresentao do conceito

    (Rosenau,1992, p.4).

    3. O G7/G8 congrega os pases mais desenvolvidos do mundo - Estados Unidos, Frana,

    Alemanha, Itlia, Japo, Canad, Gr-Bretanha e Rssia (desde 1994) - para discutir ques-

    tes econmicas, polticas e de segurana. Eles realizam uma reunio de chefes de Estados

    anualmente e outras reunies a nvel ministerial.

    4. Para esse assunto, veja o artigo de john Ruggie (Ruggie, 1993).

    5. Proibio da discriminao contra importaes de pases que produzem o mesmo produto.

    6. Esse argumento desenvolvido por Michael Barnett e Martha Finnemore (Barnett &:

    Finnemore, 2001).

    7. O tema discutido por lan Hurd, que salienta que existem trs formas de garantir que uma

    regra seja obedecida: coero, auto-interesse e legitimidade. O autor considera o conceito

    de legitimidade como um dos mecanismos de ordenamento do sistema internacional (Hurd,

    1999).

    8. Essa discusso desenvolvida por Ricardo Seitenfus (Seitenfus, 1997).

    9. Essa regra aplicada apenas aos Estados que assinaram os novos protocolos da IAEA.

    10. A proposta de Abb Saint-Pierre (Project ofPerpertual Peace, 1713) inclua a criao de uma

    liga de Estados e uma corte internacional, representando os Estados Europeus, com poder

    para arbitrar as disputas e im por sanes caso necessrio. Emric Cruc props a criaode uma federao mundial. Ele apontava para a superficialidade das diferenas entre os

    homens - cristos, mulumanos, judeus e pagos teriam lugar no desenho de sua federa-

    o (Cruc, 1909). lmmanuel Kant, autor que apresentamos no Captulo 2, escreveu sobre

    a formao de uma cidadania cosmopolita e de uma federao de repblicas (Kant, 1970).

    11. O mar territorial foi estabelecido em trs milhas, j que esse era o alcance de um canho

    baseado em terra no incio do sculo XVII.

    12. Hugo Grotious foi um terico do direito internacional, tendo escrito um dos textos funda-

    dores do direito internacional moderno, De Jure Belli ac Pacis, em 1625.

    13. Veja o livro de lnnis Claude para essa discusso (Claude, 1984, p. 121).

    14. A Corte funciona no Palcio da Paz em Haia desde 1913, lidando com disputas envolven-

    do Estados, 01Gs e atores privados, direito pblico e privado. Trata-se de um aparato que

    permite a montagem de tribunais de arbitragem. Veja http://pca-cpa.org.

    15. Essa discusso feita por Veijo Heiskanen (Heiskanen, 2001).

    CAPTULO

    2

    Contribuies Tericas para o

    Estu do de O rganiz aes Inte rnacio nais

    PRINCIPAIS QUESTOES ABORDADAS:

    . . A histr ia dos estudos sobre organizaes internacionais.

    . . A t eo r i a r ea l is t a e su a c o n t ri b u i o p a ra o d e b at e s o b r e o p ap e l

    das organizaes internacionais.

    . . As perspect ivas l iberais e a relevncia das inst i tuies.

    . . O funcional ismo e a verso de David Mit rany do papel das organiza-

    es internacionais.

    . . O ne o fu n c i on a li s m o e o e s tu d o d a i n te g ra o r e gi o n al .

    . . O marxismo e a cr tica s organizaes internacionais.

    . . O co s m o p o li t i sm o e s u as q u es t es n o r m at i v as e t i ca s .

    . . O c o ns t ru t i vi s m o e a l ei t u ra s o c i ol g i ca d a s o rg a n iz a es .

    Introduo

    A disciplina de relaes internacionais, ao longo de sua histria,

    iniciada nas primeiras dcadas do sculo XX, produziu um conjunto

    de teorias, conceitos e debates que visa criao de conhecimento

    r

    http://www.lse.ac.uk/Depts/global!AboutCsGG.htm.http://pca-cpa.org./http://pca-cpa.org./http://www.lse.ac.uk/Depts/global!AboutCsGG.htm.
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    sobre o sistema internacional. O debate terico esteve presente desde

    o comeo do delineamento do estudo de relaes internacionais como

    uma disciplina especfica, ainda nas primeiras dcadas do sculo XX.1

    As diferentes perspectivas tericas buscam, entre outros objetivos, ex-

    plicar a cooperao e o conflito entre os principais atores do sistema

    internacional, a produo de mecanismos de estabilizao do mesmo

    e as formas como esse sistema poltico governado, na ausncia de

    aparato estatal central. Nesse sentido, as diferentes teorias, com maiorou menor nfase, tm algo a dizer sobre as organizaes internacio-

    nais. Assim, apresentaremos a seguir uma descrio sucinta da contri-

    buio das teorias relevantes para o estudo das organizaes interna-conais.'

    A rea de estudos sobre organizaes internacionais desenvolveu-

    se ao longo do sculo XX, tendo momentos de maior e menor produti-

    vidade, sendo influenciada por processos histricos como a criao do

    sistema ONU aps a Segunda Guerra ou o novo ativismo das organi-

    zaes internacionais ao final da Guerra Fria, assim como pelo trajeto

    dos debates tericos da disciplina. Comearemos com uma breve hist-

    ria dessa rea de estudos.

    Apontamos as principais questes associadas aos principais gru-

    pos tericos da disciplina de relaes internacionais. Daremos es-

    pecial nfase s contribuies das teorias ao estudo das instituies

    internacionais, visto que so fundamentais para a compreenso do pa-

    pel, funcionamento e impacto das organizaes internacionais. Du-

    rante os ltimos 2S anos, em particular, grande parte das discussestericas no campo das relaes internacionais foi composta por ar-

    gumentos sobre o papel, a origem, as dinmicas e o formato das ins-

    tituies, alm de seu impacto sobre o comportamento dos Estados.

    O debate sobre as organizaes internacionais est intimamente as-

    sociado a essa realidade, mas apresenta peculiaridades ilustradas aseguir.

    Histria da rea

    As pesquisas sobre organizaes internacionais fazem parte de uma

    extensa rea de estudos sobre as formas como o sistema internacional se

    governa. So estudos sobre os diferentes mecanismos que garantem. ~s

    relaes entre os Estados e outros atores uma certa medida de estabili-

    dade e continuidade, mantendo e transformando a estrutura do sistema

    internacional e, em particular, seu princpio organizacional: a soberania

    dos Estados nacionais. Ao mesmo tempo, possvel delinear um campoespecfico de estudos sobre organizaes internacionais, interligado aos

    trabalhos sobre instituies, integrao, regimes internacionais e outros.

    A histria desse campo de estudos est ligada, por um lado, s ca-

    ractersticas da agenda internacional e, por outro, s transformaes te-

    ricas e metodolgicas da disciplina de relaes internacionais como um

    todo. O nascimento da disciplina e o primeiro debate entre liberais e

    realistas nos anos 30 e 40, em que se estabeleceu um contraste entre o

    balano de poder, o direito internacional e as organizaes internacionais

    como formas de gerar ordem no sistema internacional, so o marco ini-cial para a compreenso da histria desse campo de estudos.

    A crena na possibilidade de progresso e no potencial da razo para

    enfrentar o flagelo da guerra est na origem da disciplina no ps-Primei-

    ra Guerra Mundial. Na poca, as propostas do presidente norte-ameri-

    cano Woodrow Wilson e dos movimentos pacifistas, para que o direito

    internacional, a arbitragem internacional ou uma organizao interna-

    cional evitassem conflitos armados, estavam presentes em debates p-

    blicos e nos currculos dos cursos de relaes internacionais, que eram

    criados na Gr-Bretanha e nos Estados Unidos. As publicaes do pe-rodo, na maior parte voltadas para a histria diplomtica e o direito

    internacional, abordavam as diferentes propostas ao longo da histria

    do moderno sistema de Estados, de criao de Ligas, federaes e erga-., .. S 3 O ambiente menosnizaes internacionais que evitariam as guerra .

    otimista instaurado a partir dos anos 30 favoreceu a produo de uma

    literatura crtica s crenas que haviam marcado o debate pblico sobre

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    as relaes internacionais at ento. Os trabalhos de Edward HaIlett Carr

    e Hans Morgenthau so considerados um marco, por enfatizarem as

    relaes de poder entre os Estados e estabelecerem as bases da hegemonia

    do pensamento realistas que caracterizaria a disciplina (Carr, 1939;Morgenthau,1948).

    O estudo das organizaes internacionais, como definidas no Ca-

    ptulo 1, um fenmeno que acompanha o crescimento das OIGs aps

    o final da Segunda Guerra Mundial. O otimismo inicial quanto ao seu

    papel na nova arquitetura do sistema internacional, com a criao do

    sistema ONU, impulsionou estudos bastante especficos. Por outro lado,

    a partir da dcada de 1950, a hegemonia da perspectiva realista, que,

    como veremos adiante, no confere maior relevncia s organizaes

    internacionais, impediu que recursos humanos e financeiros fossem

    alocados para o desenvolvimento do campo de estudos como foram

    para outras reas, como estudos estratgicos.

    Trabalhos sobre as OIGs, concentrando-se nos atributos formais

    das organizaes, como seu mandato constitucional, procedimentos de

    votao, anlise de suas cartas constitutivas e estruturas dos comits sogerados nesse perodo (Goodrich &'Simons, 1955; Knorr, 1948; Sharp,

    1953; Rolin, 1954). Ao mesmo tempo, j aparecem textos indicando as

    tenses entre os processos decisrios formais e a realidade da poltica

    internacional. O uso do veto no Conselho de Segurana, por exemplo,

    como expresso das relaes internacionais durante a Guerra Fria e o,voto em bloco na Assemblia Geral so salientados (Padelford, 1948;

    Ball, 1951; Moldaver, 1957). Embora os textos do perodo j tragam

    questes que sero desenvolvidas mais tarde, no h um quadro de refe-

    _rnca conceitual que permita o avano de um programa de pesquisamais integrado.

    Os padres de votao foram um tema particularmente explorado,

    tendo os estudos sobre os padres de votao no congresso norte-ame-

    ricano exercido clara influncia sobre autores como Hayward Alker e

    Bruce Russet (Alker&'Russet, 1965). A forma como determinados pa-

    ses tendiam a votar em bloco, ou a formao de coalizes legislativas, foi

    investigada. A partir do final da dcada de 1950, o ambiente acadmico,

    marcado pela chamada "revoluo behaviorista", favorecia estudos ba-

    seados em dados empricos acessveis." A necessidade de reformar o

    desenho institucional das organizaes tambm apontada (Finkelstein,

    1955; Riggs, 1960, Claude, 1961).

    Na dcada de 1960, ocorre uma separao analtica entre a discus-

    so sobre mecanismos de estabilizao do sistema internacional e o es-

    tudo sobre o que as organizaes internacionais fazem. Tratava-se ento

    de descobrir qual seria a funo especfica das OIGs (Kratochwil &'

    Ruggie, 2001). O trabalho de Inis L. Claude contribui para essa modifi-

    cao, assinalando diferentes formas de governo no sistema internacio-

    nal e o papel da ONU como geradora de legitimidade. Os estudos pas-

    sam a abordar questes mais substantivas, concentrando-se nos proble-

    mas que as OIGs podiam resolver. Diversos problemas so focalizados:

    paz e segurana, segurana nuclear, assistncia ao processo de

    descolonizao e ajuda ao desenvolvimento. Nos anos 70, tambm h o

    enfoque no papel das organizaes internacionais na reestruturao das

    relaes norte-sul ou na administrao do ambiente.Um estudo mais sistemtico dos padres de influncia que deter-

    minam o contedo das resolues, os oramentos, a forma como os

    Estados votam e a orientao geral das organizaes, se afastando da

    tendncia a tratar as votaes na Assemblia Geral como o centro da po-

    ltica mundial, editado por Robert Cox e Harold K. ]acobson, na

    dcada de 1970. (Cox &']acobson, 1973). Trata-se de um trabalho

    sobre oito agncias especializadas da ONU, no qual as organizaes

    internacionais so analisadas como sistemas polticos distintos. Pela

    primeira vez, relaes transgovernamentais so consideradas, ou seja,coalizes envolvendo partes de governos e partes das organizaes in-

    ternacionais.A discusso sobre a relao entre as caractersticas do sistema inter-

    nacional e o papel das organizaes internacionais torna-se uma orien-

    tao marcante da bibliografia nos anos 70. A transferncia de legitimi-

    dade coletiva, a formao de agenda, fruns para a formao de coali-

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    zes e formas de coordenao de polticas transgovernamentais so al-

    guns dos papis das organizaes internacionais abordados nesse contex-

    to (Hoffmann, 1970; Nye, 1974). A crtica viso realista do sistema in-

    ternacional, em particular ao tratamento exclusivo das relaes interestatais,

    favoreceu o desenvolvimento de estudos sobre outros atores, como as

    OIGs e as ONGIs. A maior abertura para a anlise de atores subestatais

    como agncias do governo, tambm representou um impulso para a

    compreenso de como interagem no contexto das OIGs.. ~s e~tudos sobre integrao regional propunham que nem as orga-

    mzaoes mternacionais existentes nem os Estados nacionais seriam su-

    ficientes para lidar com os crescentes problemas internacionais. O con-

    ceito de integrao regional foi o nico conceito amplo capaz de estruturar

    ~ campo de estudos, at o aparecimento dos trabalhos sobre regimes

    mternacionais nos anos 80. Entre meados dos anos 50 e meados da

    dcada de 1970, as teorias de integrao foram formuladas em diferen-

    tes vertentes, como o neofuncionalismo e o intergovernamentalismo,

    abordadas a seguir. Contudo, a estagnao do processo de integraopoltica na Europa, frustrando boa parte das expectativas acumuladas

    aps a Segunda Guerra Mundial, e as crticas epistemolgicas e concei-

    tuais aos trabalhos produzidos at ento geraram uma crise nesse cam-

    po de estudos, e muitas questes levariam 10 ou 15 anos para serem

    retomadas. O novo mpeto integracionista na Europa, a partir da meta-

    de da dcada de 1980, produziu uma retomada dos estudos sobre

    integrao com o relanamento do programa de pesquisa neofuncionalista

    e o desenvolvimento de outras perspectivas.

    Trabalhos sobre regimes internacionais dominaram os estudos so-

    bre instituies internacionais durante os anos 80, surgindo como re-

    sultado de debates anteriores sobre interdependncia, sobre a manuten-

    o das normas internacionais diante do suposto declnio da hegemonia

    norte-americana, alm da inoperncia da ONU naquele perodo (Krasner,

    1982). O tratamento de normas no contexto internacional, abandonado

    com o advento da revoluo behaviorista, foi retomado pela literatura

    sobre regimes. O conceito buscava responder por que, apesar dos sinais

    de declnio da hegemonia norte-americana e a conseqente crise das

    instituies internacionais, um conjunto de normas que regiam as rela-

    es internacionais continuavam a ser respeitadas. Essa bibliografia lida

    com o processo de formao dos princpios, normas, regras e procedi-

    mentos, que compem diferentes regimes e seu impacto sobre o com-

    portamento dos atores; a dimenso subjetiva das normas e a relao

    entre regimes e cooperao internacional. 5

    A Escola Inglesa, que desenvolveu o conceito de sociedade interna-

    cional, buscando analisar a ordem internacional a partir da existncia

    de normas e valores, tambm um marco para os estudos sobre institui-

    es internacionais (Wright, 1977 e Buli, 1977). No entanto, a viso

    ampla e histrica do sistema internacional, da qual partem esses auto-

    res, no favoreceu o desenvolvimento de uma agenda de pesquisa sobre

    instituies internacionais profcua nesse perodo.Os estudos sobre organizaes formais no galvanizaram esforos

    at um perodo posterior, tornando-se marginais. Contudo, na medida

    em que os regimes, em alguns casos, geram organizaes internacionais

    _ e a bibliografia trata das possibilidades e/ou dificuldades da coopera-o internacional-, ela estabeleceu parmetros importantes para a in-

    vestigao das organizaes internacionais. Ademais, um tratamento mais

    diversificado das organizaes internacionais pode surgir, uma vez que

    cada rea especfica - cada regime - requer uma forma de regulao

    particular e o lugar das organizaes varia em cada uma delas. A litera-

    tura sobre desenho organizacional, por exemplo, busca estabelecer a

    adequao entre arranjos institucionais e problemas especficos (joyce

    &Van de Vem, 1981). Os trabalhos sobre regimes continuam ocupando

    especialistas, tendo se consolidado como uma rea de estudos impor-tante. Novas reas temticas foram incorporadas e atores no estatais

    passaram a fazer parte das anlises, tendo alguns regimes um carter

    eminentemente privado. 6

    Nos anos 90, observa-se um significativo aumento do nmero de

    publicaes, apresentaes em conferncias internacionais sobre orga-

    nizaes internacionais, alm da presena do tema em currculos uni-

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    versitrios. Ocorre uma modificao do lugar desse campo de estudos

    no contexto mais amplo da disciplina de relaes internacionais, em

    funo do novo otimismo sobre o papel das organizaes internacionais

    no ps-Guerra Fria, mas tambm como resultado da incorporao de

    novos instrumentos analticos aos estudos. As organizaes passam a

    ser tratadas como atores, e abre-se uma janela para incorporar a discus-

    so sobre as organizaes "como organizaes" atravs da incorporao

    da sociologia das organizaes aos instrumentos analticos utilizados.

    Por outro lado, o debate sobre atores transnacionas, que teve gran-

    de impacto sobre a disciplina nos anos 70, foi recuperado a partir do

    final dos anos 80.7 Nesse contexto, o conceito de sociedade civil global

    adquire grande relevncia, permitindo uma avaliao diferenciada do

    papel e do comportamento das ONGls. Eventos em que as ONGls tive-

    ram um papel importante - como a Conferncia de 1992 sobre meio

    ambiente, realizada no Rio de Janeiro; o debate sobre a sociedade civil

    global e o processo de globalizao; alm da crescente influncia das

    ONGls nas OIGs e sobre os governos nacionais - despertaram o inte-

    resse de especialistas.Na medida em que as organizaes internacionais passaram a ad-

    quirir um papel central na poltica internacional e a tornar-se tema de

    debate pblico em diversas partes do mundo, uma bibliografia crtica

    emergiu. As organizaes internacionais so veementemente criticadas

    como uma fora desestabilizadora, em especial na forma de sua inter-

    veno em conflitos internacionais ou porque perpetuam o subdesen-

    volvimento de determinadas regies." Outros autores as vem como um

    empecilho ao funcionamento normal das foras do mercado partindo

    das premissas do liberalismo econmico. As deficincias administrati-vas so amplamente discutidas em fruns polticos e na bibliografia (Pitt

    &Weiss, 1986). A ineficincia das OIGs como forma de administrar as

    relaes entre os atores internacionais tambm discutida (Conybeare,

    1980). A relao entre as organizaes internacionais e os mecanismos

    de reproduo das formas de dominao capitalistas so tratadas porautores marxistas.

    Realismo

    A tradio realista foi, durante muito tempo, dominante na disci-

    plina de relaes internacionais e, como vimos, isso explica parcialmen-

    te a ausncia de uma vasta bibliografia sobre organizaes internacio-

    nais at o final da Guerra Fria. Segundo essa perspectiva, os principais

    atores no sistema internacional so os Estados, entendidos como atores

    unitrios, que buscam maximizar seu poder e sua segurana." A ausn-

    cia de uma autoridade supranacional, ou de uma hierarquia baseada emuma estrutura de autoridade, levacaracterizao do sistema internacio-

    nal como anrquico. Uma distino rgida entre a esfera domstica na

    qual o progresso, a ordem e a paz so possveis, e a esfera internacional

    na qual reina a anarquia, a desordem e a guerra um pressuposto bsi-

    co. Essa uma realidade permanente, a teoria realista no vislumbra

    uma transformao da natureza do sistema internacional, embora as

    relaes de poder se transformem. O aspecto central a ser analisado o

    poder ou as relaes de poder; so focalizadas as capacidades dos Esta-

    dos, ou seja, os recursos de poder militares, econmicos ou polticos eas relaes de poder, ou a possibilidade de influenciar ou determinar o

    comportamento do outro.

    Assim, autores realistas criticam a proposio de que instituies

    podem mudar aspectos importantes do sistema internacional e no con-

    ferem relevncia ao papel de atores no-estatais como as ONGls

    (Mearsheimer, 1994; Grieco, 1988). john Mearsheimer, em particular,

    dedicou-se a demonstrar a falta de evidncias empricas indicativas de

    que as instituies mudam os padres de comportamento dos Estados,

    especialmente na rea da segurana.A cooperao dificultada pela natureza insegura do sistema in-

    ternacional. Alm do receio de que a cooperao acordada no ser res-

    peitada, os realistas salientam que a ausncia de governo gera uma luta

    constante pela sobrevivncia e pela independncia. Logo, impossvel

    ignorar a posio dos outros atores na hierarquia de poder do sistema,

    pois os amigos de hoje podem ser os inimigos de amanh. Dessa forma,

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    os atores so movidos pela falta de confiana no outro e pela lgica dos

    ganhos relativos. Se a posio de cada ator na hierarquia de poder do

    sistema considerada fundamental, a colaborao que favorece o outro

    tende a ser vista como uma possvel perda.

    Na medida em que a cooperao, embora presente no sistema in-

    ternacional, seja limitada pelas condies de anarquia, o papel das orga-

    nizaes internacionais como atores e, por vezes, at como fruns rele-

    vantes, questionado. As OIGs no tm poder nem autoridade para

    fazer as decises serem cumpridas, e os Estados optam por obedecer sregras e normas criadas, de acordo com seus interesses nacionais. Elas

    so tratadas como barcos vazios, existindo somente enquanto servem

    aos interesses dos Estados. As organizaes so fundamentalmente ins-

    trumentos usados pelos Estados mais poderosos para atingir seus obje-

    tivos. Elas s exercem funes importantes quando expressam a distri-

    buio de poder no sistema internacional. Apenas quando os atores mais

    poderosos acordam a utilizao conjunta das OIGs para realizao de

    seus objetivos esperado que elas se tomem efetivas.

    Embora para alguns realistas que se concentram na anlise da es-trutura anrquica do sistema internacional as instituies internacio-

    nais no meream o esforo dos pesquisadores, outros compreendem

    que a relao entre cooperao e instituies deve ser analisada. O estu-

    do da cooperao sob condies de anarquia a orientao dada pes-

    quisa. Para autores como Robert Gilpin, Stephen Krasner e]oseph Grieco,

    a distribuio de capacidades a varivel central para a explicao sobre

    a natureza ou a efetividade das instituies (Gilpin, 1981; Krasner, 1991,

    Grieco, 1990). A teoria da estabilidade hegemnica, por exemplo, pro-

    pe que a presena de um lder poderoso fundamental para manter o

    funcionamento das instituies internacionais. Apenas quando se ob-

    serva a presena de um ator hegemnico, possvel garantir a criao e

    o respeito pelas normas (Kindleberger, 1981). Por outro lado, outros

    autores desenvolvem estudos de como os Estados usam as OIGs racio-

    nalmente ou qual o desenho institucional mais racional a partir da

    perspectiva dos interesses dos Estados (Gruber, 2000; Koremenos, Lipson

    &Snidal, 2001).A maior contribuio da perspectiva realista ao estudo sobre orga-

    nizaes internacionais est na constante contestao dos pressupostos

    e resultados das pesquisas desenvolvidas por autores associados a ou-

    tros grupos tericos. Seu ceticismo em relao ao papel das instituies

    internacionais, particularmente quanto ao seu impacto sobre a natureza

    do sistema internacional, sua preocupao com o conceito de poder e a

    demanda por demonstraes empricas impulsiona, por meio do deba-te, a pesquisa sobre organizaes internacionais.

    Liberalismo

    A tradio liberal do pensamento sobre relaes internacionais

    no pode ser tratada como um bloco coeso. As nfases so variadas e a

    associao com diferentes pensadores clssicos da filosofia, do direito e

    da economia poltica j indica a presena de uma ampla gama de propo-

    sies sobre a natureza das relaes internacionais. Para fazer um estu-do detalhado das idias dos autores liberais, necessria uma volta aos

    textos clssicos de Immanuel Kant, Hugo Grotious, Adam Smith e ]eremy

    Bentham e uma anlise cuidadosa de sua apropriao e reviso pela dis-

    ciplina de relaes internacionais em diferentes momentos histricos.

    Observemos, portanto, a relevncia dessa tradio para o estudo das

    organizaes internacionais partindo de uma idia bsica que permite

    agrupar uma coleo to heterognea, ou seja, o pressuposto da racio-

    nalidade como caracterstica bsica da humanidade que abre as portas

    para o potencial de transformar as relaes sociais e realizar o progresso

    (lembrando que a racionalidade est, em ltima instncia, depositada

    nos indivduos). A crena no progresso indica que possvel transcen-

    der a poltica do poder ou o carter endmico da guerra.

    Uma srie de discusses sobre os caminhos para reformar o siste-

    ma internacional se abre a partir deste pressuposto: um fluxo mais in-

    tenso de comrcio favorece a paz, regimes polticos democrticos ou

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    republicanos esto associados a relaes pacficas entre os Estados e, o

    mais importante para este trabalho, a construo de instituies inter-

    nacionais pode transformar as relaes entre os atores no sistema inter-

    nacional. Essa ltima verso est historicamente associada s propostas

    do Presidente Woodrow Wilson, 10ao final da Primeira Guerra Mundial,

    que deram origem formao da primeira organizao internacional

    universal- a Liga das Naes, que ser vista no Captulo 3.

    A tradio liberal o fundamento de propostas que envolvem o

    papel das organizaes e do direito internacionais para a gerao demais cooperao e mais ordem no sistema internacional. Como h uma

    relao inerente entre razo e paz, h um enfoque nos mecanismos que

    potencializam o uso da razo como o direito, a arbitragem, a negociaoe a administrao coletiva dos conflitos.

    Da mesma forma que no plano domstico, pensadores liberais pro-

    pem formas de controle do exerccio do poder. No plano internacio-

    nal, as instituies como o direito, as organizaes e outras representa-

    ro um limite ao exerccio do poder dos Estados e de sua soberania. Na

    interseo entre a esfera internacional e a esfera domstica est o exer-

    ccio da poltica externa, que os liberais propem tornar mais transpa-

    rente, como na proposta de Woodrow Wilson de uma diplomacia aber-

    ta, em contraposio diplomacia secreta das elites do sculo XIX.

    Nos anos 70, o domnio realista sobre os estudos de relaes in-

    ternacionais questionado, a partir de constataes sobre a crescente

    interdependncia entre as sociedades e sobre a sobrevivncia das ins-

    tituies criadas no ps-Segunda Guerra, mesmo em face das crises

    daquele perodo, como o aumento dos preos do petrleo, o colapso

    dos arranjos monetrios de Bretton Woods, o crescimento da dvida

    do terceiro mundo e o declnio do poder econmico norte-americano

    em relao Europa e ao japo.!' Na dcada seguinte, o chamado

    neoliberalismo institucionalista desenvolveu um programa de pesqui-

    sa fundamentalmente associado ao estudo de regimes internacionais,

    enfrentando a compreenso de autores realistas de que as instituiesno so relevantes.

    Os trabalhos de autores vinculados ao liberalismo nessa fase so

    mais descritivos ou buscam construir teorias empiricamente verificveis,

    atendo-se ao projeto de construo de uma cincia das relaes interna-

    cionais; um movimento similar quele ocorrido dentre especialistas rea-

    listas. Questes ticas so deixadas de lado. O papel das instituies

    internacionais adquire lugar central, mantendo-se hegemnica a idia

    de que o Estado o principal ator do sistema internacional. 12O livro de

    Robert Keohane e]oseph Nye, publicado em 1977 (Keohane,Nye, 1977),

    no qual o papel das instituies internacionais no contexto da inter-dependncia complexa discutido, teve um impacto marcante sobre o

    debate no perodo. 13A percepo de que as instituies internacionais

    podem mudar as relaes entre Estados o grande divisor de guas que

    separa liberais e realistas no debate que ficou conhecido como aquele

    entre neoliberais e neo-realistas dos anos 80.14

  • 7/22/2019 HERZ, Mnica. Organizaes Internacionais - perspectivas tericas.pdf

    8/21

    Por outro lado, o processo de transnacionalizao tambm consi-

    derado, sendo ONGls, redes de interesses e grupos de presso trans-

    nacionais includos nas anlises propostas. Com o fim da Guerra Fria e

    a intensificao do processo de globalizao, houve um significativo au-

    mento no nmero de estudos que partem dos pressupostos liberais.

    O neoliberalismo institucionalista trata o conflito e a cooperao

    com apenas um aparato lgico, em contraposio tradio anterior no

    campo das relaes internacionais, em que algumas correntes concen-

    travam-se nas relaes cooperativas, e, outras, nas relaes conflituosas.Nesse sentido, a diviso rgida entre a nfase sobre as possibilidades de

    cooperao e a inevitabilidade do conflito, que marcou o debate entre as

    disciplinas no comeo do sculo XX, superada. A existncia de confli-

    to e a possibilidade de coordenao de polticas no so antitticas; por-

    tanto, no necessrio partir da idia de harmonia de interesses para

    fazer o percurso da cooperao. Em contraposio aos autores realistas,

    parte-se da premissa de que os Estados buscam melhorar sua posio

    no sistema internacional, auferindo ganhos absolutos, independente daposio dos outros atores.

    Os Estados, principais atores do sistema internacional, so caracte-

    rizados como atores racionais movidos pelo auto-interesse. Essa litera-

    tura tem como suporte terico primordial as teorias de escolha racional,

    ou seja, pressupe que os atores so racionais e calculam a utilidade

    (vantagens) de caminhos alternativos, escolhendo aquele que maximiza

    as utilidades nas circunstncias em que se encontra. 15Da mesma forma

    que os autores realistas do mesmo perodo, os neoliberais insttuciona-

    listas so influenciados pela literatura que trata do papel de firmas dian-

    te das imperfeies do mercado. A realidade da poltica internacional

    seria anloga realidade do mercado, na qual convivem atores que bus-

    cam maximizar utilidades em um contexto competitivo. Assim como as

    firmas, as instituies podem corrigir problemas gerados por informa-es incompletas e altos custos de transao. 16

    A incerteza que configura o sistema internacional dificulta a cons-

    truo de relaes cooperativas, particularmente porque muito difcil

    b _

    confiar nas promessas dos atores. As instituies tm a funo de dimi-

    nuir o grau de incerteza por meio da gerao de transparncia e da rea-

    lizao de conexes entre diferentes questes atravs do tempo (linkage).

    A maior transparncia e a existncia de conexes entre questes ajudam

    a diminuir o medo da trapaa, aumentando a disposio dos atores de

    envolverem-se em arranjos cooperativos. Dessa forma, a circulao de in-

    formao atravs das instituies pode transformar o sistema interna-

    cional (Keohane, 1984). Nesse sentido as instituies realizam os inte-

    resses dos Estados.A teoria dos jogos no-cooperativos freqentemente utilizada para

    mostrar como a cooperao difcil, mas possvel. Nesse tipo de mode-

    lo, os atores so racionais e egostas e no h um terceiro ator que garan-

    ta o cumprimento dos acordos. A presena de instituies que favore-

    cem a reciprocidade e a confiana mtua fundamental (Axelrod &:

    Keohane, 1985). Modelos formais, que reproduzem os interesses e as

    decises dos atores, diante da possibilidade de cooperao (formao

    de acordos) e/ou coordenao (estabelecimento de convenes), so

    aplicados para explicar o comportamento dos atores.17 Pergunta-se comogerar cooperao - o melhor resultado do ponto de vista coletivo -,

    se um comportamento no-cooperativo a escolha mais racional para

    um indivduo. As relaes contnuas entre atores egostas, ou seja, a

    repetio dos jogos, favorece a cooperao, uma vez que ocorre uma

    "sombra sobre o futuro", ou seja, as aes do presente so influenciadas

    pela noo de que a interao se repetir, passando a ser interessante

    gerar a expectativa de cooperao. Estados com uma reputao negativa

    tero dificuldades em serem aceitos como parceiros de mecanismos de

    cooperao. Essa continuidade muitas vezes sustentada pelas institui-

    es ou organizaes internacionais.

    As instituies so identificadas como uma soluo possvel para

    os problemas de produo de bens pblicos ou coletivos. 18A literatura

    sobre bens pblicos salienta a dificuldade de prover esses bens ou esta-

    belecer quem ir arcar com os custos de sua produo. As OIGs podem

    criar incentivos para a produo de bens pblicos.

    c

  • 7/22/2019 HERZ, Mnica. Organizaes Internacionais - perspectivas tericas.pdf

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    As OIGs facilitam a ao coletiva a partir da ativao de uma srie

    de mecanismos que modificam as condies do ambiente internacional.

    Os mecanismos estudados diminuem os custos de transao, ou seja,

    criam um ambiente que facilita as negociaes. As normas estabelecidas

    diminuem os custos de transao, 19pois uma negociao j comea com

    alguns parmetros estabelecidos. Ademais, as instituies favorecem o

    cumprimento dos acordos, diminuindo os custos de controlar o com-

    portamento dos atores, lidando assim com os problemas de aquiescn-

    cia. Nesse sentido, o monitoramento, as sanes e a publicao de infor-

    maes so papis cruciais que podem ser exercidos pelas organizaes

    internacionais. Finalmente, as instituies estabelecem regras para dis-

    tribuio de ganhos da ao coletiva. As preferncias dos atores no so

    modificadas nesse processo, apenas a sua disposio de negociar e se

    ater aos acordos estabelecidos.

    Os liberais reformistas, por sua vez, salientam a necessidade de

    transformar o sistema internacional por meio da maior democratizao

    das instituies (McGrew, 2003). O dficit democrtico das organiza-

    es internacionais um tema recorrente e prope-se a busca de maisrepresentatividade, transparncia e responsabilidade (Falk, 1995; Co-

    misso para a Governana Global, 1995). Discutem-se assuntos como a

    presena de atores no-estatais e o papel da sociedade civil transnacional,

    e prevalece a viso de que a movimentao destes setores favorece a

    democratizao do sistema (Rosenau, 1990, 1997).

    As instituies internacionais tambm so tratadas por alguns au-

    tores liberais como estruturas que constrangem e moldam o comporta-

    mento dos Estados. Dessa forma, embora sejam criadas pelos Estados,

    elas, ao longo da sua histria, tm um impacto sobre seu comportamen-to, inclusive limitando as opes disponveis para suas polticas exter-

    nas e domsticas. O carter da hegemonia norte-americana no ps-Se-

    gunda Guerra ressaltado por G.]. Ikenberry (Ikenberry, 2001). Esse

    autor destaca que uma ordem multilateral foi estabelecida sob a lideran-

    a dos Estados Unidos, tendo como base os princpios do liberalismo.

    Todavia, como as instituies enrazam-se e os custos de substitu-las

    torna-se alto, elas acabam constrangendo o prprio exerccio do poder

    norte-americano.

    A perspectiva liberal contempla ainda uma preocupao com a es-

    fera domstica. Retomando a tradio da cincia poltica norte-america-

    na, grupos de interesse so tratados como atores centrais por Andrew

    Moravscik. O autor enfatiza a negociao que ocorre no mbito doms-

    tico entre governo e grupos de interesse. A formao de preferncias

    dentro de cada sociedade ter um impacto sobre a possibilidade de co-

    operao no nvel internacional e sobre a formao de instituies inter-

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    nacionais, gerando demandas que governos buscaro responder no m-

    bito intergovernamental. 20 O papel exercido pela barganha poltica do-

    mstica no impede que o Estado se comporte como um ator racional

    com preferncias estabelecidas, quando se envolve em negociaes in-

    ternacionais, j que ele exerce justamente a funo de agregar os dife-

    rentes interesses internos.

    As crticas s perspectivas liberais, comuns aos campos marxista e

    realista, se concentram na sua incapacidade de incorporar o exerccio do

    poder s anlises oferecidas, adotando assim uma postura ingnua em

    face do papel das instituies internacionais (Halliday, 2000). A perda de

    uma perspectiva tica e as limitaes impostas pelo modelo do ator racio-

    nal so ressaltadas por inmeros autores que sero discutidos adiante.

    Funconaltsmo"

    O funcionalismo est fortemente associado ao nome de David

    Mitrany, em particular a uma monografia de 1943 titulada A Working

    Peace 5ystem (Mitrany, 1946) e criao do sistema de agncias funcio-nais da ONU no ps-Segunda Guerra." Uma agenda fortemente nor-

    mativa propunha que uma rede de organizaes transnacionais, com

    base funcional, poderia constranger a poltica externa dos Estados e, em

    ltima instncia, evitar a guerra. O autor estabelecia pela primeira vez

    uma conexo clara entre a cooperao funcional, a ser discutida no Ca-

    ptulo 4, e a segurana internacional.

    Essa perspectiva concentra-se em uma proposta gradualista para o

    problema da ordem internacional, partindo da premissa de que a "for-

    ma" segue a "funo". Hbitos de cooperao seriam constitudos emreas mais tcnicas, nas esferas econmica e social, nas quais o interesse

    comum pode emergir mais facilmente. Mais tarde, o hbito de interao,

    a construo de valores comuns e instituies permitiriam que a prtica

    da cooperao transbordasse para a arena poltica (um processo referido

    pela bibliografia como spillover). A viso positiva da crescente

    interdependncia entre as sociedades, retomando a associao entre

    comrcio e paz presente no liberalismo do sculo XIX, a base para a

    proposta funcionalista.O bem-estar da populao no estaria sendo garantido pelo Estado

    nacional, e uma maior cooperao internacional, ao satisfazer necessi-

    dades nesse campo, levaria a uma transferncia de lealdade, permitindo

    a construo do que Mitrany chamou de um sistema de paz. A constru-

    o de uma comunidade poltica menos particularista do que o Estado-

    nao, a partir de um processo de aprendizado coletivo e da administra-

    o tcnica, seria o fundamento do sistema de paz.Duas avaliaes complementares esto presentes aqui. Por um lado,

    a possibilidade de cooperao aumentaria quando a natureza do proble-

    ma a ser enfrentado impusesse a coordenao de polticas entre as partes.

    Trata-se de questes em que o fluxo de bens, pessoas e formas de comu-

    nicao gera a necessidade de coordenar as diferentes aes do Estado.

    O avano tecnolgico seria um grande impulsionador desse processo.

    Por outro lado, a cooperao nessas esferas da ao do Estado no

    representaria uma ameaa frontal soberania e no teria implicaes

    para a formulao autnoma de polticas externas voltadas para o "inte-resse nacional". Assim, a cooperao torna-se aceitvel para os atores,

    que reagem negativamente s propostas de transformao das relaes

    entre os Estados que afetam de maneira direta o princpio da soberania.

    A soberania no seria superada, como em propostas de formao de um

    governo mundial, mas compartilhada; uma parcela de soberania seria

    transferida para uma nova autoridade. A cooperao em reas especfi-

    cas enfatizada, sendo que as prprias tarefas e necessidades delineiam

    o contorno dessas reas. A realizao dessas tarefas por meio de organi-

    zaes separadas que congregam especialistas e tcnicos vista de for-ma positiva.

    A preocupao com as causas da guerra, central para a literatura de

    relaes internacionais, est presente aqui em uma verso orientada para

    questes sociais. Os conflitos armados so associados a problemas so-

    ciais como: pobreza, fome, doenas e baixo nvel educacional. A coope-

    rao internacional poderia enfrentar essas questes. O trabalho das or-

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    ganizaes funcionais no campo da assistncia ao desenvolvimento, ainda

    hoje, tem como um de seus fundamentos essa perspectiva.

    Os especialistas que trabalham nas organizaes internacionais so

    atores centrais pois eles teriam uma identidade profissional com colegas

    de diferentes partes do mundo, que poderia vir a ultrapassar sua leal-

    dade com o Estado nacional. Enquanto os diplomatas tenderiam a de-

    fender o interesse nacional, os especialistas estariam em uma posio

    privilegiada para levar adiante a cooperao em reas especficas, con-

    centrando-se em aspectos tcnicos. Eles seriam os principais agentes do

    processo de aprendizagem de cooperao, que pode transbordar das

    reas tcnicas para a arena poltica. Por outro lado, abre-se a possibilida-

    de de pensar o processo de interao entre agncias especficas dos go-

    vernos, em vez de partir apenas da interao entre Estados como unida-

    des fechadas.

    As crticas mais veementes viso original de Mitrany apontam

    para a necessidade de politizar o debate; a separao entre poltica e

    cooperao funcional que fundamenta essa perspectiva no retrataria a

    realidade. A prpria distino entre uma esfera tcnica e uma esfera

    poltica pode ser questionada. A histria dos processos de cooperao

    funcional indica que a opo pela cooperao, distncia ou conflito muitas

    vezes emerge de objetivos polticos mais amplos. A cooperao no cam-

    po tcnico no transborda necessariamente para o campo poltico -

    em ultima instncia, decises polticas difceis devem ser tomadas (Haas,

    1964).

    Contudo, a perspectiva funcionalista avanou propostas que per-

    mitem compreender a realidade da imensa rede de organizaes funcio-nais existente hoje em dia em alguns aspectos relevantes. A idia de

    associar o exerccio de autoridade a agentes funcionalmente definidos,

    em contraposio ao prncipio que rege o sistema internacional con-

    temporneo, o qual associa a autoridade a um territrio definido, bas-

    tante inovadora. Ademais, a viso de um processo de transnacionalizao

    das relaes sociais tambm j est presente.

    Neofuncionalismo

    A partir da observao do funcionamento da CECA (Comunidade

    Europia do Carvo e do Ao), da Euratom (European Atomic Energy

    Community - Comunidade Europia de Energia Atmica) e da CEE (Co-

    munidade Econmica Europia) e das dificuldades de levar adiante o pro-

    jeto federalista no mbito da "alta poltica",23um conjunto de autores e

    lderes concluiu que o funcionalismo como teoria e prtica deveria ser

    reformulado e apropriado para a discusso sobre a natureza do processo

    de integrao em curso na Europa Ocidental. Tratava-se de pensar a for-

    ma como o processo de integrao regional europeu desafiava o sistema

    de Estados territoriais e construir uma teoria que pudesse captar o caso

    singular da Europa, mas tambm ter significado para processo de integrao

    regional em geral." Uma combinao de objetivos federalistas e do pensa-

    mento funcionalista gera uma discusso sobre as perspectivas de integrao

    em setores especficos." Nos anos 50 e 60, o neofuncionalismo tornou-

    se a teoria de integrao hegemnica e esteve presente nos debates pol-

    ticos voltados para uma maior integrao na Europa ocidental.

    Uma de suas principais premissas, baseada no funcionalismo,

    que um processo gradual de integrao em reas especficas pode

    transbordar para novas reas de integrao. Assim, se Estados adqui-

    rem maior integrao em reas particulares, como o setor carvoeiro,

    haver um incentivo para maior integrao em outras reas do setor

    energtico. Ademais, a integrao em reas especficas gera apoio para

    novas arenas polticas e novas formas de autoridade. medida que pro-

    blemas em determinadas reas so enfrentados, o apoio s instituies

    geradas aumentar. A existncia de rgos supranacionais, como a Co-

    misso Europia, eleva o nvel da cooperao e da integrao, j no se

    trata de encontrar um mnimo denominador comum, mas de trabalhar

    com interesses comuns, possivelmente chegando formao de uma

    nova comunidade poltica.Os neofuncionalistas tambm conferem um papel central s orga-

    nizaes internacionais, como agentes ativos do processo de coopera-

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    o, e tambm trabalham com a idia de atitudes que transbordam da

    rea tcnica para a rea poltica. Contudo, se para os funcionalistas as

    organizaes focalizadas no tm como referncia uma regio, os

    neofuncionalistas conferem papel central s relaes regionais. Alm

    disso, enquanto para os funcionalistas as agncias funcionais internacio-

    nais so os atores centrais do processo de transformao que propu-

    nham, para os neofuncionalistas o foco da anlise so os sindicatos,

    associaes comerciais, partidos polticos e burocracias supranacionais

    convivendo em constante negociao. A crescente interdependncia, daqual tambm partem os funcionalistas, s gera maior integrao no con-

    texto da barganha ocorrendo entre os atores relevantes. Processos

    decisrios graduais e demandas dos atores mencionados geram a trans-

    ferncia de autoridade para instncias supranacionais. Em ltima ins-

    tncia, a eroso da soberania do Estado transformaria as relaes inter-

    nacionais, gerando o tipo de consenso encontrado em sistemas polticos

    domsticos. Em contraposio ao Estado nacional, agncias

    supranacionais, como a Comisso Europia, poderiam realizar funes

    ligadas ao bem-estar no nvel regional (Haas, 1968; Schmitter, 1969;Lindberg &Scheingold, 1970; Nye, 1971). Ademais, os autores vincu-

    lados a essa perspectiva buscaram construir estudos mais sistemticos,

    baseados na anlise de um nmero limitado de variveis que concorrem

    para o processo de integrao, dentro do esprito do behaviorismo

    (Lindberg &Scheingold, 1970).

    Assim como no caso dos funcionalistas, as crticas a essa perspecti-

    va se concentram no conceito de transbordamento. A resoluo de pro-

    blemas em diferentes setores no leva facilmente a transformaes no

    campo poltico, em particular no que se refere identificao com umacomunidade poltica. Ademais, a predominncia dos interesses estatais

    se mantm, particularmente no que se refere rea da segurana inter-

    nacional, havendo grande ceticismo quanto possibilidade de realiza-

    o das previses neofuncionalistas. J em 1967, Haas admitiu que o

    processo gradual previsto em sua teoria havia sido interrompido por

    eventos da "alta poltica", tais como a poltica europia de De Gaulle,

    impedindo o avano em direo a supranacionalidade, salientando o

    du lo movimento de integrao e desintegrao (Haas, 1967).26

    p Os autores que adotam a viso neofuncionalista, assim como aque-

    les que analisam os mltiplos nveis de governana gerados pelo pro-

    o de ntegrao." percebem que est ocorrendo uma transforma-cess .. d

    o na natureza da comunidade poltica. Mas essa avaliao cntica a~ . dpelos autores que trabalham com o processo de integra~o a parnr .e

    uma perspectiva realista ou liberal, que afirmam a co~tInu~ preerm-

    nncia do Estado. A perspectiva intergovernamentahsta ~firma q~eapenas a convergncia de preferncias nacionais pode leva.rmtegraao.

    Isso porque a estrutura do sistema internacional determma o compor-

    tamento egosta dos Estados, buscando sempre maximizar ~eu poder.

    Os Estados guardam as portas entre as naes e o bloco regional, pre-

    servando sua soberania. Autores como Stanley Hoffmann, por ex~~-

    plo, criticaram a perspectiva neofuncionalista a p~rtir de uma Vl~ao

    realista, salientando a centralidade dos Estados, afirmando qu~ a ~n-

    tegrao regional apenas poderia ter sucesso no campo economlCO

    (Hoffmann, 1996). o'Tendo como pano de fundo a renovao da integrao. eur~peIa

    d d de 1980 houve uma reavaliao das teorias neofunclOnahstas;na eca a , . . 28alguns autores referem-se a isso como uma t~oria ~eo-neofunclOnahsta.

    A transferncia de papis sociais, ao coletIva e mteresses dos atores _do

    nvel nacional para o supranacional continua no centro das atenoes

    dos tericos voltados para o estudo da integrao regional. Entretanto,

    uma srie de expectativas da proposta neofuncionalista foi ~rustada, p~r-

    ticularmente no que concerne ao papel crucial das autondades nacio-

    nais em garantir o avano ou impulsionar o ret~ocesso do ~ro~esso de

    integrao. Assim, os ciclos decisrios que levam transferncia de au-

    toridade para a esfera regional so analisados deforma mais complexa,d - dgenas eenvolvendo uma srie de crises geradas por contra ioes en _

    _o ti em irreversvel e naotenses exogenas. Esse processo nao e automa ICOn

    homogneo para todas as reas temticas.

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    Marxismo

    omarxismo se desenvolveu sob uma perspectiva terica a partirdo trabalho de Karl Marx e, ao longo dos ltimos 150 anos, diversas

    vertentes foram geradas. A anlise da estrutura profunda do sistema ca-

    pitalista, um modo de produo que caracteriza uma parte da histria

    humana, um objetivo comum aos atores marxistas. Eles partem de

    uma viso da realidade social como uma totalidade, em que as relaes

    sociais esto interconectadas. Uma dinmica central das relaes econ-

    micas focalizada: a relao entre meios de produo e relaes de pro-

    duo. A tenso entre instrumentos, tecnologias e trabalho, os quais

    compem o mundo da produo, e as relaes que organizam esse mun-

    do, como o trabalho assalariado e a propriedade privada no caso do

    capitalismo, so o motor da histria. A perspectiva de emancipao,

    associada busca da autonomia, est tambm presente na maior parte

    dos escritos marxistas.

    Os marxistas consideram a estrutura do sistema capitalista, o proces-

    so de acumulao em uma escala global, as relaes entre classes sociais e

    o interesse das elites das potncias capitalistas em manter a reproduo

    do sistema elementos essenciais para a compreenso das instituies

    internacionais, e, mais especificamente, das organizaes internacionais.

    Os estudos sobre o imperialismo, no comeo do sculo XX, so os

    primeiros movimentos explcitos de aplicao da teoria marxista com-

    preenso das relaes internacionais. Lenin desenvolve o conceito de

    capitalismo monopolista, salientando a diviso entre o centro do siste-

    ma e a periferia menos desenvolvida." De acordo com a teoria de Lenin

    (Lenin, 1964) sobre o imperialismo, as instituies internacionais so

    arranjos possveis para as potncias imperialistas, em um dado momen-

    to histrico, que permitem administrar a competio entre as mesmas(Fernandes, 1992).

    O debate entre autores marxistas em torno da natureza do imperia-

    lismo, presente no incio do sculo XX (Kautsky, 1988; Bukharin, 1972),

    e reconduzido s plataformas de discusso sobre o sistema internaco-

    nal a partir do final dos anos 60, versa sobre a relao entre as potncias

    imperialistas, sua rivalidade ou a construo de coalizes para a repro-

    duo do sistema. Nesse contexto, o domnio do capitalismo norte-ame-

    ricano e a perspectiva de seu declnio so temas centrais (Poulantzas,

    1974; Van der Pijl, 1984).

    O debate marxista sobre o imperialismo e a bibliografia marxista

    em cincias sociais ou economia desenvolveram-se parte da disciplina

    de relaes internaconais." Somente a partir da dcada de 1970, o mar-

    xismo adquiriu um lugar como uma teoria de relaes internacionais. Aanlise sistmica, focalizada nos padres de dominao, e a crena em

    uma mudana revolucionria representam uma viso bastante distinta

    das perspectivas liberal e realista dominantes na disciplina. O conflito

    no opera apenas entre Estados, mas dentro e atravs dos mesmos. A

    crtica ao realismo empreendida por justin Rosenberg, por exemplo,

    apresenta o sistema de Estados historicamente contextualizado e pro-

    fundamente marcado pelas relaes sociais ou pelo modo de produo

    predominante (Rosenberg, 1994). A anarquia no uma caracterstica

    natural do sistema internacional, como propem os autores realistas, aocontrrio, est associada ao modo de produo capitalista.

    A discusso sobre governana global adquire aqui novo significa-

    do. A manuteno de uma forma de organizao da economia poltica

    internacional que garanta a reproduo do capitalismo, dominada pelo

    plo norte-americano, a chave explicativa para a anlise das institui-

    es internacionais que compe o triunfo do neoliberalismo nos anos

    80 e 90 (Panitch, 2000; Gowan,1999). Michael Hard e Antonio Negri,

    por sua vez, afastando-se da viso do processo de reproduo do siste-

    ma capitalista sustentado pelo Estado nacional, ou em particular o Esta-do norte-americano, avanam a idia de um aparato de poder descen-

    tralizado e desterritorializado (Hard &:Negri, 2001).

    A teoria crtica, assim como o trabalho de Antonio Gramsci, bus-

    cou responder frustrao dos marxistas diante da realidade europia

    nos anos 20 e 30. Em contraposio ao otimismo quanto ao seu projeto

    de emancipao, marxistas de todas as vertentes assistiam a ascenso do

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    fascismo. Assim, tanto tericos crticos quanto Antonio Gramsci, dentre

    outros marxistas, salientam que uma variedade de foras, alm daquelas

    que compem o mundo da produo, molda a histria humana.

    A teoria crtica, fortemente associada ao marxismo, foi introduzida

    ao estudo de relaes internacionais no contexto das crticas ao

    positivismo nos anos 80 (Lnklater, 1996; Cox, 1981). Esse grupo teri-

    co est associado a autores da Escola de Frankfurt como: Max

    Horkheimer, Theodor Adorno e ]ungen Habermas - autores que em-

    preenderam uma crtica epistemologia positivista e que criticaram aidia de que produzir conhecimento consiste em investigar a regulari-

    dade do comportamento, a partir de evidncias empricas e modelos

    abstratos. Opuseram-se tambm ao pressuposto de que podemos ter

    acesso a uma realidade objetiva e separada do observador. O debate

    sobre a relao entre interesses e a constituio do conhecimento cen-

    tral para esses autores. Outros eixos de conflito, para alm das relaes

    de classe, so incorporados s anlises. Assim, possvel pensar diferen-

    tes formas de excluso e incluso geradas por comunidades demarcadas.

    Alguns autores, como Robert Cox (Cox, 1989), enfatizam a reao dosEstados do Terceiro Mundo e de movimentos polticos ao processo de

    globalizao. Outros, como Andrew Linklater (Linklater, 1990), focali-

    zam as relaes entre as comunidades definidas pela existncia do Esta-

    do soberano e o resto do mundo. Linklater parte da concepo de

    Habermas de um processo de emancipao atravs da comunicao para

    propor a expanso das fronteiras morais da comunidade poltica

    (Habermas, 1999). Sua viso de uma relao tica, obrigaes e direitos

    que no estariam confinados pelas fronteiras do Estado-nao se aproxi-

    ma da perspectiva cosmopolita, que ser analisada na prxima seo.A influncia do trabalho do marxista italiano Antonio Gramsci molda

    o trabalho de um conjunto de autores que discutem a importncia de

    elites globalizantes na estruturao da economia poltica global (Cox,

    1986; Gill, 1994). O trabalho de Robert Cox foi pioneiro na proposio

    de uma anlise gramsciana das relaes internacionais, ainda no incio

    da dcada de 1980 (Cox, 1981; Cox, 1983). O tratamento do conceito

    de hegemonia se distingue da forma que tradicionalmente informa a

    literatura de relaes internacionais, estando associado a uma concep-

    o de poder como mistura de coero e consenso. A construo do

    consenso atravs das instituies da sociedade civil passa a ser um temacrucial.

    Cox se refere forma consensual que o poder adquire na consti-

    tuio de uma ordem mundial, podendo assim ser aceita pelas partes

    dominadas. Uma determinada classe social exerce a hegemonia quando

    transcende seus interesses econmicos particulares e capaz de conectardiversas aspiraes, interesses e identidades formando um bloco hist-

    rico." Os intelectuais tm um papel fundamental nesse processo, de-

    senvolvendo e sustentando imagens mentais, tecnologias e organizaes

    que vinculam os membros de uma classe e de um bloco histrico na

    formao de uma identidade comum (Cox, 1983). Enquanto a realida-

    de domstica a referncia para o conceito de hegemonia, em sua con-

    cepo gramsciana, especialistas em relaes internacionais buscam com-

    preender sua dimenso internacional.

    O FMI (Fundo Monetrio Internacional), a OMC (Organizao Mun-dial do Comrcio) ou o Banco Mundial so organizaes nas quais a atua-

    o dessas elites particularmente relevante, incidindo de maneira direta

    sobre as relaes entre o norte desenvolvido e o sul menos desenvolvido.

    Interesses e idias dominantes so apresentados como universais e re-

    produzidos a partir das OIGs, permitindo a continuidade da dominao

    capitalista (Murphy, 1994). O processo de integrao europia tambm

    foi interpretado luz da perspectiva gramsciana, a partir de uma crtica

    s teorias neofuncionalista e intergovernamentalista. O contnuo confli-

    to que gera o processo de integrao, e que poderia ter resultado emcaminhos muito diferentes, salientado (Bieler&: Morton, 2001).

    Partindo de uma crtica ao sistema capitalista, tericos marxistas

    salientam o papel das organizaes internacionais no processo de repro-

    duo desse modo de produo. Para autores que mantm a ortodoxia

    materialista, elas no so mais do que um epfenmeno das relaes

    estruturais econmicas e de poder. Outros, contudo, conferem ateno

    s organizaes internacionais, tratando-as como arena de formao de Estado-nao Abre-se assim o debate sobre a perspectiva de construo

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    s organizaes internacionais, tratando as como arena de formao de

    coalizes entre as potncias capitalistas, como produtoras de mecanismos

    de submisso de Estados na periferia do sistema e como espao de forma-

    o de hegemonia e reproduo das relaes de poder dominantes.

    Perspectiva Cosmopolita

    A relevncia do pensamento cosmopolita, uma postura filosfica e

    normativa para a discusso sobre organizaes internacionais, refere-se

    a dois temas centrais, tratados por um conjunto de autores: a existncia

    de valores universais e o dficit democrtico. Essa viso do mundo pode

    se associar ao liberalismo, perspectiva marxista, teoria crtica ou s

    vertentes do construtivismo porque essas perspectivas admitem a ado-

    o de uma atitude normativa e uma preocupao com a emancipao

    da humanidade. A perspectiva cosmopolita a verso mais antagnica

    noo de que o sistema internacional comporta um vcuo moral no

    qual apenas as relaes de poder so relevantes.

    A construo da democracia, que amplia lentamente o conceito de

    cidadania, teve como base o Estado-nao como comunidade poltica.A crescente importncia de estruturas de autoridades internacionais cria

    assim uma disjuno entre os direitos de cidadania, particularmente no

    que se refere participao no processo poltico, e o lugar de onde emer-

    gem muitas das normas que regem a vida de indivduos e grupos. Uma

    grande variedade de problemas no pode ser administrada no contexto

    domstico ou mesmo a partir da lgica de uma separao rgida entre as

    esferas domstica e internacional. O trfico de drogas, as pandemias, o

    uso de recursos naturais no renovveis, a alocao de lixo nuclear, a

    proliferao de armas de destruio em massa, o aquecimento global,a regulao de mercados financeiros so questes progressivamente

    percebidas como transnacionais, requerendo estruturas de autoridade

    internacionais e transnacionais para poderem ser enfrentadas. Por outro

    lado, os mecanismos de controle e participao democrticos, desen-

    volvidos ao longo dos ltimos 200 anos, tm como referncia bsica o

    Estado nao. Abre se assim o debate sobre a perspectiva de construo

    de uma cidadania cosmopolita.A incorporao de valores universais pelas instituies internacio-

    nais, ao longo dos sculos XX e XXI, tem sua base ideacional em postu-

    lados sobre a humanidade. A perspectiva cosmopolita prope uma an-

    lise da poltica partindo da idia de um ser humano universal. As formas

    de organizao poltica para o mundo devem ter como base princpios

    morais universais (Held, 2003). Podemos encontrar as origens dessa

    viso no estoicismo, que incorporou anoo de uma comunidade mais

    ampla do que a comunidade local, baseada em ideais humanos, aspira-

    es e na capacidade de argumentao. O julgamento moral no pode-

    ria assim ser baseado nos critrios de uma comunidade poltica espec-

    fica. No cosmopolitismo estico, j afirmado um vnculo universal

    entre os homens. Os conceitos de cidadania e Estado, com dimenso

    mais universal, nascem no ocidente como resultado da especulao filo-

    sfica grega e desenvolvem-se no imprio romano, sempre lembrado

    posteriormente como um modelo para um governo mundial. A idias

    de humanidade e imprio sobrevivem durante o perodo medieval, no

    sonho da reconstituio do imprio romano. O humanismo renas-centista e a viso de reconstituio do imprio pelo imperador Habs-

    burgo Carlos V retomam o tema durante a transio para a modernidade,

    quando o Estado territorial ainda no havia se firmado como a forma de

    organizao da poltica.Movimentos religiosos do sculo XVIe XVIIelaboraram as primei-

    ras crticas ao sistema de Estados modernos, inaugurando um dos as-

    pectos da tradio cosmopolita moderna. Protestantes, particularmente

    calvinistas, enfatizavam a corrupo e a perverso do sistema de Estados

    modernos, jesutas contrapunham a Cristandade diviso entre Esta-dos-nao. No mesmo perodo, Emric Cruc e outros faziam propostas

    para a unificao da Europa, tendo em vista o estabelecimento da paz,

    em contraposio ao movimento de diviso territorial imposto.

    No sculo XVIII, a perspectiva cosmopolita ganha sua forma mo-

    derna. A unidade crist ou imperial da Europa substituda pela dscus-

    ~ .srn

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    so sobre os direitos naturais dos homens. Propostas universalistas, que

    incorporam de formas distintas a possibilidade de traduzir a universali-

    dade da comunidade humana em termos de uma organizao poltica,

    so elaboradas. Os filsofos da ilustrao construram uma auto-imagem

    de uma elite cosmopolita transnacional, nas palavras de Thomas Paine,

    "meu pas o mundo" (Paine, 1969). A tenso entre a condio humana

    de ser poltico e a concepo de cidadania nacional inicia seu trajeto.

    O trabalho de Immanuel Kant (Kant, 1970) parte de sua discusso

    sobre razo e seu uso pblico para apresentar a possibilidade de partici-pao em um mundo cosmopolita, em contraposio participao em

    uma sociedade civil. O direito cosmopolita de se apresentar e ser ouvi-

    do, atravs de comunidades polticas; a existncia de uma comunidade

    universal e de uma cidadania universal so introduzidos pelo filsofo,

    que marcaria grande parte da literatura de relaes internacionais assim

    como de outras reas do conhecimento. As conseqncias da perspecti-

    va filosfica da ilustrao atingem a soberania interna e externa do Esta-

    do territorial. Isso porque suas propostas adiantavam a idia de uma

    sociedade internacional de Estados, expressa em particular na defesa dodireito internacional, e porque reclamavam direitos universais inalie-

    nveis, os quais o poder estatal no poderia atingir. Nesse contexto, as

    propostas federativas, como aquelas defendidas por I. Kant e]. Bentham,"

    tiveram maior impacto. Contudo, a idia de uma repblica universal

    chegou a ser discutida por Anacharsis Cloots."

    Kant acreditava na possibilidade de transformar as relaes inter-

    nacionais a partir do desenvolvimento histrico da vida moral e da for-

    mao de uma sociedade civil universal. Deveres e obrigaes inerentes

    humanidade permitiriam a extenso das fronteiras da comunidademoral e poltica. nesse sentido que Kant adianta-se ao debate atual

    sobre a necessidade de lidar com a incongruncia entre as fronteiras do

    Estado-nao e a criao de normas. A fora da lei deveria prevalecer em

    cada Estado, nas relaes entre os mesmos e nas relaes internacionais,

    que ultrapassam a esfera interestatal. Kant no era um pacifista, como

    um leitor desatento de seu panfleto, Apaz perptua, poderia concluir,

    mas um legalista. Sua formulao de um direito cosmopolita, distinto

    do direito internacional, refere-se s condies de hospitalidade univer-

    sal e fundamentou sua crtica ao colonialismo. Para ele, discutir uma

    das questes centrais para a poltica internacional- a guerra - impli-

    ca repensar o conceito particularista de cidadania. Segundo o autor, a

    paz seria alcanada no momento em que todos os Estados fossem repu-

    blicanos (Kant).A tradio cosmopolita, em relaes internacionais, marcada pela

    ofuscao da distino entre sociedades domsticas e internacional eentre estado da natureza e sociedade civil (Wight, 1991). A sociedade

    internacional apresentada como uma sociedade de indivduos e a cons-

    tituio ou presena de valores cosmopolitas defendida. Nesse senti-

    do, o aspecto particularista da cidadania moderna questionado. A cr-

    tica ao particularismo, inerente moderna concepo de cidadania,

    feita por diversos filsofos polticos que reivindicam critrios universais

    para a definio de direitos e deveres (Beitz, 1979). O impacto da cons-

    cincia e a interdependncia entre sociedades nacionais sobre o pensa-

    mento cosmopolita tm como marco a realidade nuclear. A Declaraode Montreux, por ocasio da Primeira Conferncia do Movimento Mun-

    dial para um Governo Federal Mundial em 1947, e a campanha de Albert

    Einstein, por um governo mundial, so exemplos representativos. Sub-

    seqentemente, a preocupao com a ecologia tem o mesmo efeito. A

    proposta federalista de criao de um direito mundial (e no interna-

    cional), de cortes globais e de um aparato para garantir que essas leis

    sejam respeitadas est presente em movimentos sociais e textos acad-

    micos. Por fim, os documentos que definem os direitos humanos, desde

    a Declarao Universal de 1948, podem ser inseridos na histria dasidias cosmopolitas.

    David Held resume os trs elementos que caracterizam as preocu-

    paes de autores hoje vinculados essa perspectiva (Beitz, 1994; Barry,

    1998): o princpio do igualitarismo individualista, ou seja, cada indiv-

    duo tem valor moral igual e os indivduos so as unidades ltimas de

    consideraes morais; o princpio do reconhecimento recproco, ou seja,

    t d t d d id t t t i i l (d li i i ifi d l li d l i

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    os argu~~ntos de todos devem ser ouvidos; e o tratamento imparcial pe-

    rante prticas, regras ou instituies (Held, 2003b). Ele resume sua posi-

    o afirmando que o cosmopolitismo implica a existncia de um espao

    tico e poltico que estabelece os termos de referncia para o reconheci-

    mento da igualdade moral, capacidade de ao das pessoas e para a gesta-

    o de sua autonomia e de seu desenvolvimento (Held, 2003a).

    A perspectiva cosmopolita, tendo um forte carter normativo, re-

    presenta um caminho fecundo para uma crtica s organizaes interna-

    cionais, em particular ao seu processo decisrio. Ademais, a visouniversalista da humanidade encontra expresso concreta em' diversos

    princpios, normas e regras gerados e realizados no contexto das organi-

    zaes internacionais, em especial no campo poltico. O regime de di-

    reitos humanos e a idia de proteo do ecossistema partem do princ-

    pio do igualitarismo individualista. A Declarao Universal dos Direitos

    Humanos de 1948, a Conveno sobre Tortura de 1984 ou o Estatuto

    da Corte Criminal Internacional, dentre outros, representam a presen-

    a, ainda que de difcil implementao, de princpios cosmopolitas. Es-

    ses convivem em constante tenso com a defesa de interesses e identida-

    des particulares. Finalmente, as organizaes no-governamentais po-

    dem ser estudadas como parte de um movimento para formao deuma cidadania global.

    Construtivismo

    Um nmero crescente de especialistas em relaes internacionais

    define seu trabalho como construtivista. A diversidade intelectual des-

    ses autores torna a tarefa de definir o construtivismo, como corpo teri-

    co, bastante difcil. Aqui, optamos por apresentar uma agenda mnimacomum aos construtivistas convencionais, segundo a categorizao dePeter Katzensten, Keohane e Krasner."

    Caracterizam o conjunto de trabalhos associados perspectiva

    construtivista: a nfase sobre a forma como identidades e interesses so

    socialmente construdos; a influncia da sociologia; e a tentativa de

    (desnaturalizar os conceitos mistificados pela literatura de relaes inter-

    nacionais, como anarquia e interesse nacional. Autores construtivistas

    conferem especial ateno ao processo de formao de identidades e

    interesses, como esses mudam e qual a relao entre os dois. Idias,

    valores, normas e crenas devem ser considerados de forma central nas

    explicaes sobre o funcionamento do sistema internacional. Seu trata-

    mento das instituies internacionais, e em particular das organizaes

    internacionais, moldado por essas preocupaes.

    Os atores no existem separados de seu ambiente social e dos siste-mas de significados compartilhados, ou seja, da cultura. Atores e estrutu-

    ras sociais so mutuamente constitudos. O ambiente social em que nos

    encontramos define nossas identidades como seres sociais; ao mesmo tem-

    po, a agncia humana cria, reproduz e muda a cultura atravs de prticas

    contnuas. No podemos nem partir das estruturas sociais para ento com-

    preender os atores, nem fazer o inverso. Ademais, as conseqncias no-

    intencionais do comportamento so consideradas.

    As prticas discursivas e de comunicao adquirem importncia.

    Elas permitem que os atores confiram sentido ao mundo e s suasatividades. As prticas discursivas e de comunicao tambm estabe-

    lecem relaes de poder, j que determinam a forma como problemas

    so delineados e quais perguntas so levantadas. Por outro lado, a ar-

    gumentao, a tentativa dos atores de justificar seu comportamento e

    a disposio de mudar sua viso a partir do processo de comunicao

    tambm so estudadas."

    O predomnio do debate entre realistas e liberais nos anos 80 teve

    como uma de suas conseqncias a ausncia do tratamento da forma-

    o de preferncias dos Estados pela literatura de relaes internacio-

    nais. Esse tema extraditado da literatura, seja pelo suposto da

    racionalidade estritamente utilitria e uma ontologia individualista tam-

    bm utilitria, adotadas por liberais e realistas, seja pela busca de fatores

    explicativos no nvel sistmico por neo-realistas. No contexto da crtica

    ao positivismo, que influencia grande parte da literatura de relaes in-

    ternacionais a partir dos anos 80, o pressuposto de que atores so movi-

    dos por uma racionalidade instrumental e convivem em um mundo F Friedrich Kratochwil e]ohn G Ruggie (Kratochwil &Ruggie 1~86)

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    dos por uma racionalidade instrumental e convivem em um mundo

    com estruturas predefinidas criticado." Nesse contexto, estudar como

    a racionalidade dos atores e as instituies do sistema internacional so

    construdas adquire novo sentido. Dessa forma, podemos falar de um

    eixo de discordncia, central disciplina a partir dos anos 80, entre

    construtivistas e racionalistas, anunciado em uma conferncia da ISA

    (International Studies Association), em 1988, por Robert Keohane

    (Keohane, 1988). Liberais e realistas se atm a uma viso do ator racio-

    nal que se move a partir de um clculo de custos e benefcios; constru-tivistas, por sua vez, se voltam para o processo intersubjetivo que pro-

    duz uma viso de racionalidade, podendo adquirir diferentes formas ao

    longo da histria e atravs de culturas variadas. Contrapondo-se a refe-

    rncia exclusiva racionalidade instrumental e estratgica pelos racio-

    nalistas, construtivistas trabalham tambm com o comportamento guia-

    do por normas. Os atores consideram qual o comportamento apropria-

    do em uma dada realidade social.

    F Friedrich Kratochwil e]ohn G Ruggie (Kratochwil &Ruggie, 1 86)

    elaboraram uma crtica perspectiva racionalista do estudo de regIm~s

    'internacionais, ainda em 1986, que indica o caminho que a c.ontesta.ao

    construtivista viso dominante no estudo de instituies mterna.clO-

    nas tomaria. Eles salientaram a negligncia quanto ao papel de sentidos

    intersubjetivos no estudo de regimes e defenderam uma agen~a de pes-

    quisa que desse mais atenes s organizaes internacionaIs. Mas o

    termo construtivismo e uma teoria complexa foram apresentados pela

    primeira vez por Nicholas Onuf, em 1989 (On~f, 1989). AlexanderWendt tornou o debate mais acessvel em seu artigo de 1992 (Wendt,

    1992) e posteriormente em seu livro (Wendt, 1999). Kratochwil tam-

    bm uma referncia central para essa literatura (Kratochwil, 1989).

    Para autores construtivistas, as instituies internacionais tm um

    papel fundamental, podendo mudar a definio de interesses e id~nt~-

    . dades dos Estados e de outros atores. Assim, as instituies no se limi-

    tam a constranger o comportamento dos atores ou a modificar a gama

    de opes disponveis para os mesmos. Da mesma forma, essas institui-

    es se transformam. Mesmo o conceito de soberania, a mais central das

    instituies do sistema internacional estaria se modificando (Reus-Smit,

    1999). Se interesses e identidades so construdos socialmente, as orga-

    nizaes internacionais, enquanto fruns, podem gerar um espao de

    interao que constitui os mesmos. Nesse contexto, compreender o pro-

    cesso de argumentao que ocorre quando diferentes atores interagem

    essencial. Esse processo "produtivo", pois gera resultados, mudanas

    nos interesses, nas identidades e na atribuio de racionalidade s prti-

    cas sociais. As organizaes internacionais so, freqentemente, um

    frum privilegiado para a realizao desse processo de argumentao.

    Elas podem ainda ser atores centrais do mesmo processo. . .Na medida em que Estados so tratados como entidades SOCIaIS

    embutidas em um sistema social internacional, eles podem ter seus in-

    teresses e identidades moldados por uma ao produzida no mbito

    internacional, possivelmente por organizaes internacionais. As polti-

    cas externa e domstica dos Estados podem ser influenciadas por nor-

    d li d d l i i b d

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    19/21

    mas internacionais, muitas vezes produzidas e difundidas a partir das

    organizaes internacionais.

    A contribuio de Wendt tem marcado o tratamento da relao entre

    interesses e identidade pela literatura aqui em foco." A presena ou au-

    sncia de cooperao no predeterminada pela estrutura anrquica do

    sistema internacional segundo o autor. Um contnuo de identidades -

    da egosta at a cooperativa - possvel, e a natureza do sistema tambm

    varia." o processo de interao que explica a construo de identidades,

    mas sem a formao de identidades no podemos falar em interesses, nopodemos saber o que queremos se no sabemos quem somos (Wendt,

    1999). A dinmica de gestao e funcionamento das instituies deve ser

    compreendida no contexto intersubjetivo e no apenas material. As orga-

    nizaes internacionais so uma arena em que normas e expectativas con-

    vergentes sobre o comportamento internacional so desenvolvidas. As

    organizaes internacionais produzem e ensinam normas, contribuindo

    assim para mudar as formas de interao no sistema internacional.

    Onuf comea sua anlise da vida social com a idia de regra, ou

    seja, uma proposio que afirma o que as pessoas devem fazer. As regrasprovem guias para o comportamento humano e permitem a existncia

    de significados compartilhados. Por meio da linguagem, essas proposi-

    es ganham realidade. Esse processo de construo est associado aos

    recursos disponveis aos diferentes atores e limitado por fatores mate-

    riais. Os atores movem-se em um contexto institucional em que pa-

    dres estveis de regras e prlicas associadas s mesmas esto presentes.

    Ao mesmo tempo, eles agem sobre esse contexto transformando-o. Onuf

    ressalta ainda a importncia das conseqncias no-intencionais da ao

    e os limites para as possibilidades de transformar o contexto institucional.Regras, instituies e conseqncias no-intencionais formam padres

    que ele chama de estruturas.

    Ao contrrio da perspectiva realista, que, como vimos, supe que

    os nicos atores relevantes so os Estados, o construtivismo prope que

    atores encontrados no nvel sistmico podem ser proativos. So elabora-

    das explicaes do comportamento dos Estados que emergem a partir

    da anlise de processos e de atores no nvel sistmico, observando-se o

    papel de idias, de relaes transnacionais, de comunidades epistmcas,

    entre outros. As organizaes internacionais fazem parte desse conjun-

    to. Ernst Haas j havia enunciado algumas dessas questes anos antes.

    Contudo, enquanto os neofuncionalistas buscavam explicar o processo

    de transferncia de autoridade do Estado-nao para organizaes inter-

    nacionais, enfatizando seu papel tcnico, os construtivistas objetivam ana-

    lisar o processo de aprendizagem intrinsecamente vinculado poltica.

    O estudo do lugar do conhecimento na compreenso do funciona-mento e relevncia das organizaes internacionais foi impulsionado

    pela literatura sobre comunidades epistrnicas. Essa literatura tem um

    carter mais descritivo e assim no participa do debate terico lanado

    pelos autores mencionados anteriormente. Contudo, seu alcance socio-

    lgico, em particular sua nfase em aspectos subjetivos, permite um

    amplo espao para o dilogo. O termo aparece em um nmero especial

    da revista Intemational Organization de 1992.39 Peter Haas definiu uma

    comunidade epistmica como uma rede de profissionais, reconhecidos

    como especialistas em uma determinada rea do saber, que adquire au-toridade sobre conhecimento relevante para a definio de polticas em

    uma rea especfica. Esses grupos podem identificar interesses, delinear

    debates pblicos, apontar para questes que devem ser objeto de nego-

    ciao, alm de propor medidas especficas. Eles compartilham crenas

    normativas (sobre como o mundo deve ser), crenas causais (sobre a

    relao entre polticas especficas e resultados possveis), noes de va-

    lidao do conhecimento e o envolvimento em prticas associadas a

    determinado conjunto de problemas.

    Ernst Haas, por sua vez, introduziu a discusso sobre a forma comoas organizaes mudam (Haas,1990). O autor busca explicar como as

    organizaes definem os problemas que buscaro resolver. Ele estabele-

    ce duas possibilidades bsicas: a adaptao e o aprendizado. As organi-

    zaes se adaptam quando adicionam novas atividades sua agenda e

    mudam gradualmente. O processo de mudana envolve os meios para a

    ao. Novos objetivos so incorporados, sem ser alcanado um encaixe

    lgico com os objetivos j estabelecidos. As organizaes aprendem quan- 2. A literatura ps-moderna e/ou ps-estruturalista no foi abordada, j que essa bibliografia

  • 7/22/2019 HERZ, Mnica. Organizaes Internacionais - perspectivas tericas.pdf

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    do as crenas so questionadas e os objetivos e a formulao de proble-

    mas so redefinidos. Nesse caso, as teorias que fundamentam as aes da

    organizao so questionadas. As comunidades epistrncas tm um pa-

    pel fundamental nesse processo. As mudanas ocorridas no Banco Mun-

    dial seriam um exemplo desse ltimo processo. Em uma fase anterior,

    havia uma preocupao com projetos de infraestrutura e hoje se observa

    uma nfase sobre o alvio da pobreza e a boa governana.

    medida que a perspectiva construtivista estabelece um dilogomais intenso com a literatura mais ampla de cincias sociais e busca

    estudar processos sociais, a literatura sobre organizaes apresenta-se

    como um conjunto bibliogrfico a ser explorado. Os estudos sobre cul-

    tura organizacional desenvolvidos por socilogos e antroplogos a par-

    tir da dcada de 1970 so um plo para um novo dilogo. A viso de

    mundo dos indivduos que colocam em funcionamento as organizaes

    internacionais incorpora regras, rituais e crenas enraizadas nas estrutu-

    ras organizacionais (Barnett &: Finnemore, 1999). Devemos por fim sa-

    lientar que estudos baseados na perspectiva construtivista analisam a

    constituio e o funcionamento de regimes (Hasenclever et al, 2000),

    assim como o processo de integrao regional (Risse, 2004).

    Leituras para Continuar seu Estudo

    Antje Wiener &Thomas Diez, European Integration Theory, Oxford, Oxford University Press,2004.

    David Baldwin, Neorealism and Neoliberalism: The Contemporary D ebate,Nova York, ColumbiaUniversity Press, 1993.

    Scott Burchill &Linklater, Andrew, Theories of Intemational Relations, Londres, Macmillan Press,1996.

    Steve Smith, Ken Booth &Marysia Zalewski, Intemational Theory:Postvism &Bey ond , Cam-bridge, Cambridge University Press, 1996.

    Notas

    1. Para obter uma viso ampla da histria da disciplina, veja os livros de Scott Burchill &

    Andrew Lnklater e Torbjorn Knutsen (Burchill &Linklater, 1996; Knudsen, 1992).

    L .

    no consolidou propostas sobre o papel das organizaes internacionais, embora a critica

    e a desconstruo dos conceitos que fundamentam as instituies internacionais possam

    ser encontradas.

    3. Salientamos que durante as primeiras dcadas do estabelecimento da disciplina, a maior

    parte dos textos publicados e adotados nos cursos no tinha um carter idealista, buscan-

    do descrever os processos diplomticos e no apontar para um mundo em que prevalecena

    a harmonia de interesses.

    4. Movimento que marcou a disciplina a partir do final dos anos 50, visando a transformar o

    estudo de relaes internacionais em um empreendimento cientifico, nos moldes da cin-

    cia social norte-americana. A nfase sobre estudos empricos e formas de medio afastou

    os especialistas de estudos voltados para interpretaes amplas da realidade internacional.Para esse ponto, veja o artigo de Michael Banks (Banks, 1984).

    5. O conceito definido na p. 20, Capitulo 1.

    6. Veja, por exemplo, os trabalhos de Virginia Haufler, Charles Lipson e Mark Zacher &Brent

    Sutton. (Haufler, 1997), (Lpson, 1986) e (Zacher &Sutton, 1996).

    7. Dentre os autores que produziram trabalhos importantes para esse debate podemos citar

    Robert Keohane e joseph Nye e james Rosenau (Keohane &Nye, 1977; Rosenau, 1990).

    8. Veja as publicaes da fundao norte-americana Heritage Foundation -www.heritage.org.

    9. possvel estabelecer uma distino entre o realismo clssico e o neo-realismo. A verso

    introduzida por Kenneth Waltz e Robert Gilpin busca produzir um conhecimento mais

    cientifico, lidando com um nmero menor de variveis e propondo um programa de pes-

    quisa empiricamente verificvel (Waltz, 1979; e Gilpin, 1981).

    10. Presidente norte-americano entre 1913 e 1921, apresentou em 1918 seus 14 pontos para

    a reorganizao do sistema internacional a partir dos princpios do liberalismo. Foi uma

    liderana central durante a Conferncia de Paris (Versalhes), ao final da Primeira Guerra,

    tendo proposto a criao da Liga das Naes.

    11. O termo perspectivas pluralistas utilizado por muitos atores para se referir literatura que

    critica a viso do sistema internacional baseada apenas nas relaes entre Estados. Os au-

    tores pluralistas seriam aqueles que propem uma viso do sistema internacional como

    uma rede de relaes entre Estados e diversos outros atores. Essa perspectiva est mais

    prxima do liberalismo, mas nem todos os atores liberais adotam essa viso.

    12. Durante os anos 80 e 90, o novo institucionalismo torna-se central para a cincia poltica

    norte-americana. No perodo anterior (1950-1980), as instituies estavam ausentes das

    anlises ou eram tratadas como epifenmeno, A partir do final da dcada de 1970 estudos

    sobre as instituies polticas domsticas americanas iniciam um movimento que enfatiza

    seu valor explicativo. O fenmeno atinge o campo das relaes internacionais no mesmoperodo,

    13. Keohane e Nye discutem a perda de autonomia do Estado, dada a presena de foras

    transnacionais em seu livro de 1977. Os mesmos autores retomam o tema dez anos dep