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HEROÍSMO DE QUIXOTE Reversões de um Cavaleiro de Triste Figura Paula Mastroberti Artista plástica e escritora HEROISMO DE QUIXOTE Reversions of a Sad Figure Knight Paula Mastroberti Artist and writer Graduada pela UFRGS em Artes Plásticas, expôs em Porto Alegre, Rio de Janeiro e São Paulo. Desde 1995, é responsável pela Série Reconto, Editora Mercado Aberto, onde faz uma recriação texto-visual dos contos de fadas, e pela Série Reversões, Editora Rocco, onde dialoga com clássicos da literatura universal, contando sete livros publicados até o momento. Além disso é colaboradora de jornais e revistas e participa de projetos de inclusão cultural através da literatura e das artes.Site da autora: www.mastroberti.art.br . Paula Mastroberti is graduated in Arts by the Federal University of Rio Grande do Sul State, and had already exhibited her work in many localities in Brazil. As writer and illustrator, she has seven books published by Mercado Aberto(RS state) and Rocco(RJ state) publishings, and colaborates with reviewes about art and litterature to press and digital brazilian magazines and newspapers. Site www.mastrobert.,art.br .

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HEROÍSMO DE QUIXOTE

Reversões de um Cavaleiro de Triste Figura

Paula Mastroberti∗

Artista plástica e escritora

HEROISMO DE QUIXOTE

Reversions of a Sad Figure Knight

Paula Mastroberti

Artist and writer

∗ Graduada pela UFRGS em Artes Plásticas, expôs em Porto Alegre, Rio de Janeiro e São Paulo. Desde 1995, é responsável pela

Série Reconto, Editora Mercado Aberto, onde faz uma recriação texto-visual dos contos de fadas, e pela Série Reversões, Editora Rocco, onde dialoga com clássicos da literatura universal, contando sete livros publicados até o momento. Além disso é colaboradora de jornais e revistas e participa de projetos de inclusão cultural através da literatura e das artes.Site da autora: www.mastroberti.art.br .

Paula Mastroberti is graduated in Arts by the Federal University of Rio Grande do Sul State, and had already exhibited her work in many localities in Brazil. As writer and illustrator, she has seven books published by Mercado Aberto(RS state) and Rocco(RJ state) publishings, and colaborates with reviewes about art and litterature to press and digital brazilian magazines and newspapers. Site www.mastrobert.,art.br .

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Resumo

A autora discorre sobre o processo criativo da obra Heroísmo de Quixote (2005), o diálogo que ela

estabelece com a obra Dom Quixote, de Cervantes, e com o romance O Idiota, de Dostoiévsky, bem como as

conexões evidentes destes textos com os super-heróis em quadrinhos e o cinema épico americano, além das

referências visuais que nortearam o trabalho gráfico e as ilustrações deste livro.

Palavras-chave

Mastroberti, Paula. Dom Quixote; Cervantes. O Idiota; Dostoiévsky. Cinema Épico Americano; Super-

Heróis em Quadrinhos.

Abstract:

The author discours about the creative process of a work of her own, Heroismo de Quixote (2005), the

obvious dialogue that it establishes within the Cervantes and Dostoievsky works, respectively, Don Quijote and

The Idiot, the comics super-heros and the american epic movies, as well as the visual references that influenced

the illustrations made to this book.

Keywords:

Mastroberti, Paula. Don Quijote; Cervantes. The Idiot; Dostoievsky. American epic movies; comics

super-heros.

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INTRODUÇÃO: REVERSÕES

A Série Reversões, editada pela Rocco (Rio de Janeiro, RJ), é um projeto desenvolvido

como uma tetralogia cuja intenção é estabelecer uma linha de continuidade entre os temas e

motivos abordados por algumas das mais pontuais obras da literatura universal e as novas

linguagens gráficas e textuais contemporâneas. Não se trata aqui de fazer meras adaptações,

mas de dialogar com textos pré-escolhidos aos quais são incorporados novos juízos ou valores

estéticos.

O critério de escolha foi baseado na identificação pessoal com as personagens

protagonistas masculinas de cada uma das obras de referência. Para cada uma, é feita uma

análise de sua constituição arquetípica, que posteriormente será transferida para uma tipologia

e linguagem contemporâneas, a modo de uma “reencarnação”.

A fim de conceituar de forma breve todo o trabalho desenvolvido para a Série

Reversões, invoca-se um termo utilizado pela jornalista Juliana Monachesi1 – ecologia

midiática2 – que parece se adequar a esta recombinação criativa que parte de uma busca

arqueológica de um ou mais textos literários afins, reciclados de forma original, incluindo os

elementos gráficos e artístico-visuais que dialogam com os textos selecionados para o projeto,

e que aludem às inúmeras referências da cultura de massa contemporânea, como os

quadrinhos, graphic novels, signos e ícones visuais, conferindo um aspecto contemporâneo e

juvenil3.

Devido a estes aspectos, a Série Reversões, para fins de divulgação no mercado

editorial, focaliza sua atenção no público jovem adulto, ou seja: sua leitura seria interessante

ao público leitor que compreende uma faixa que vai dos quinze aos vinte anos. Entretanto, tal

estratégia não tem impedido a expansão desta faixa tanto para os que estão abaixo quanto

acima dela4.

1 colaboradora do Jornal Folha de São Paulo, Bien’Art e Trópico. Curadora Adjunta do Projeto Rumos Itaú Cultural Artes

Visuais, entre outras. 2 “Conceito que designa o modo como as novas mídias remodelam as mídias anteriores e como estas também se modificam para

responder aos desafios das novas mídias.” (Monachesi, Juliana. Depois do Remix, a Cultura de Colisão. Revista Bien’Art, São Paulo, SP. Julho de 2005).

3 O termo “juvenil” aqui não quer se referir exatamente a uma faixa etária específica, mas define um sistema ou cógigo criativo pré-dirigido a um público de formação incompleta, propensos, no pensar da autora, à experimentação de novos valores estéticos, não necessariamente simplificados, mas compostos a partir de uma linguagem criativa específica.

4 A autora tem recebido retornos de leitores cativos, via email, via encontros culturais, que variam entre onze a trinta e nove anos.

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O ensaio a seguir pretende evidenciar, do ponto de vista da própria autora, o processo

arqueológico e criativo do segundo volume da série, Heroísmo de Quixote, e os estímulos que

nortearam o resultado deste trabalho:

1. ESTÍMULO PRIMEIRO: A OBRA DE CERVANTES

Heroísmo de Quixote – segundo livro da Série Reversões que conta até o momento

com a publicação de Angústia de Fausto (recriação a partir da obra de Goethe e em outras

variações do mito fáustico2) e prevê o lançamento de Retorno de Ulisses e Loucura de Hamlet

– é baseado principalmente, como o próprio nome já diz, na obra de Cervantes. Esta consiste

na história de um aristocrata falido e viciado em livros de cavalaria medieval, gênero popular

apreciado na época, mas considerado menor pela nova intelectualidade renascentista.

Acreditando-se, em virtude da própria nobreza, um cavaleiro andante, Alonso de Quijano sai

pelo mundo, convertido em Dom Quixote, o Cavaleiro da Triste Figura, em busca de

aventuras que concretizem a sua fantasia de se tornar um grande herói. Acompanha-o à guisa

de escudeiro um camponês analfabeto, porém pleno da sabedoria popular e do espírito

pragmático, chamado Sancho Pança. Passam por diversas situações, algumas divertidas,

outras nem tão honrosas como Quixote gostaria, a maioria ridículas e malfadadas, em que

Quixote com freqüência confunde pessoas e lugares com castelos, princesas, feiticeiros e

gigantes. Entremeados a tais aventuras, os diálogos graciosos entre Quixote, Sancho e demais

personagens, como a simbolizar um embate entre o espírito augural dos tempos modernos e o

velho pensar medievo, e seu amor platônico por Dulcinéia Del Toboso, donzela idealizada a

partir da figura de uma campônia dos arredores, a quem dedica e por quem realiza todos os

seus feitos de bravura.

Por vezes, o leitor fica na dúvida sobre quem seja mais louco afinal: se o próprio

Quixote, que alterna desvarios e mirabolantes façanhas com frases de bom senso e uma

conduta elegante e honrada; se mais o seria Sancho, que sem deixar de questionar, não

consegue, contudo, desobedecer ou abandonar seu senhor (menos do que pela promessa de

ganhar uma ilha para governar, Sancho parece movido principalmente por uma fascinante

vida de sonho e aventura); ou se mais loucos seriam as incontáveis personagens periféricas

que cometem absurdos ao se divertir às custas da dupla ou na tentativa de demover Quixote

de suas fantasias.

5 Sobre “Angústia de Fausto”, há um texto de apoio escrito pela autora para a palestra “O Pacto com o Diabo na Tradição Literária”, publicado no site www.mastroberti.art.br .

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Na análise do texto, percebe-se nítida influência de alguns fatos da vida de Cervantes:

ele foi cativo dos árabes na Argélia e teve contato com a cultura e literatura árabe; era quase

um andarilho e passou algum tempo na Itália, onde deve ter ouvido muitas de suas

tradicionais anedotas populares (entre as quais eram comuns as que faziam piada dos

evangelhos, especialmente as que se referiam ao apóstolo Pedro, visto como preguiçoso,

comilão e mentiroso6). Além disso, vivia metido em aventuras e encrencas. Dom Quixote

pode ter sido escrito durante o período em que Cervantes esteve preso, por irregularidades nas

prestações de contas do dinheiro público.

Publicado originalmente em dois volumes com cerca de dez anos de intervalo, esta

obra pode ser dividida em três partes bem destacadas:

Parte 1: A Invenção do Herói, onde Quixote passa por várias aventuras com começo,

meio e fim, enfrentando seres ou elementos que confunde como fantásticos em sua

imaginação (moinhos de vento vistos como gigantes, tabernas vistos como castelos, etc), e

que lhe dão a fama de Cavaleiro da Triste Figura. Seu discurso cheio de basófia abarca teorias

sobre como um verdadeiro cavaleiro deve ser, enquanto ele próprio vai se construindo física e

psíquicamente (a invenção do elmo, a criação da musa Dulcinéia, o intimação a Sancho para

que seja seu escudeiro), e se inventa sob os nossos olhos.

Parte 2: O Herói como Farsa, onde Quixote cai em armadilhas provocadas pela própria

fama (Cervantes se auto-representa na figura de Cide Hamete Benengeli7) e se deixa envolver

em situações forjadas por personagens que desejam ora divertir-se às suas custas, ora

compartilhar de suas fantasias (o Duque e a Duquesa, e suas brincadeiras teatrais,

transformando Quixote e Sancho Pança em atores de si mesmo). É uma fase bastante ativa e

brilhante do personagem e também onde se revela em Sancho suas características mais

marcantes (sua conduta tosca, mas ética, baseada na prática rudimentar da vida de camponês,

sua mania por ditados e sua tagarelice engraçada, seus bons sentimentos e a ternura que

6 Algumas destas anedotas foram compiladas por Italo Calvino, em sua obra “Fabulas Italianas”, Ed. Cia das Letras, 1990.

Tradução de Nilson Moulin. A semelhança é reconhecida pelo próprio Calvino, em uma nota dedicada à anedota “Jesus e São Pedro no Friul”: “Pedro, nesta espécie de evangelho do vulgo, é o humano contraposto ao divino, e sua relação com Jesus assemelha-se um pouco à de Sancho Pança com o hidalgo.” (Calvino, Ítalo. 1990. Pg. 431.)

7 O sucesso da primeira parte da obra foi tão grande na época, que houve quem se apropriasse dela descaradamente, dando continuidade às suas aventuras. Entretanto, o falso Quixote não passava de um maluco vulgar, destituído do idealismo e da complexidade do personagem original. Irritado, Cervantes apressa a publicação da segunda parte, citando, de forma crítica, a versão falsificada, em 1615.

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dedica ao seu louco patrão o equalizam à figura de Quixote como protagonista) e onde se

afirma a interessante e original amizade da dupla.

Parte 3: A Crise do Herói, onde o herói, exaurido em suas forças físicas e mentais, é

cavaleiro mais no espírito do que na ação. Quixote, agora um ser quase monástico, vive uma

espécie de calvário que o conduzirá ao derradeiro momento de lucidez. Incapaz de viver a

realidade da sua época, escapa dela através da morte. Sancho então reconhece o vazio de uma

realidade sem a dose de aventura, fantasia e loucura compartilhada em companhia do patrão e

amigo.

As inserções e histórias paralelas funcionam, na minha impressão de leitora

contemporânea, como um descanso da trama central; sabe-se, entretanto, que tais recursos

eram comuns ao estilo novelesco da época, tendo por origem a narrativa árabe (uma história

dentro da outra ou entremeadas no mesmo contexto). Tratam-se de histórias de amor,

pequenos romances e contos de aventuras trançados à linha narrativa principal através das

mais diversas personagens que atravessam a trajetória de Quixote e que ironizam valores

apreciados pelo incipiente mundo burguês, além de servir de contraponto aos idealismos

antiquados de Quixote e seu amor platônico por Dulcinéia.

Apesar de ter sua obra apreciada para além das fronteiras da Espanha (Quixote já

havia sido publicado na França em 1615), Cervantes nunca foi realmente reconhecido e

valorizado como merecia. Era considerado um mero "contador de histórias", um novelista,

categoria literária que não possuía grande cotação no século XVII. Morreu pobre e esquecido

em seu país natal.

2. ESTÍMULO SEGUNDO: O IDIOTA, DE FIODOR DOSTOIÉVSKY E SUA RELAÇÃO

COM A OBRA DE CERVANTES

A escolha de O Idiota pontua a linha de conexão diacrônica entre o mito heróico tal

como tratado na obra clássica de Cervantes e sua dissolução definitiva no romance

contemporâneo. Esta pontuação é indicada pelo próprio Dostoiévsky, que cita o personagem

cervantino como inspiração para a criação do seu Príncipe Míchkin, além de fazer-lhe

referência explícita dentro do romance: ... — Há um mês a senhora examinava Dom Quixote e exclamou essas

palavras de que não existe nada melhor do que um “cavalheiro pobre”. Não sei a

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quem a senhora se referia naquele momento: se a Dom Quixote ou a Ievguiêni Pávlovitch, ou ainda a outra pessoa, mas se refriu apenas a um alguém, e a conversa foi longa...

(Dostoiévsky, trad. Paulo Bezerra. 1990). Como Quixote, Míchkin destaca-se como personagem por sua conduta inverossímil.

Também é um pária social, comporta-se ou é visto como louco (na verdade, epilético),

também é movido por ideais não compreendidos em sua época. Como Quixote, Míchkin

também ama de forma platônica uma mulher, e igualmente cumpre uma espécie de calvário

de incompreensão humana. Na obra de Dostoiévsky evidencia-se o sofrimento moral

conjugado ao sofrimento físico, um quê de martírio, de certa forma já antecipadas na última

parte da obra de Cervantes, ainda que descritas de modo mais objetivo – como se ambos as

protagonistas tivessem por obrigação suportar sobre si mesmos a carga do mundo em que

vivem. Nas duas obras se observa a mesma conotação com alguns aspectos da vida de Cristo

tal como narrada nos evangelhos, explicitada por Dostoiévsky em uma carta onde mencionava

suas idéias acerca deste romance, às quais se refere Paulo Bezerra, em sua apresentação da

obra para a Editora 34:

“Dostoievsky, em seguida, diz que para ele só Cristo é uma “personagem

positivamente bela” (...) o Cristo homem, capaz de imensa ternura e grande indignação (...)”.

(Bezerra, Paulo. Pg 10.)

3. ESTÍMULO TERCEIRO: CONEXÕES POSSÍVEIS COM O MITO DO HERÓI

QUIXOTESCO NA CULTURA POPULAR8

O herói dos quadrinhos

A minha primeira leitura de Dom Quixote feita aos nove ou dez anos, a partir de uma

adaptação de Orígenes Lessa9, foi constrangedora. Não que ela tenha sido pouco estimulante;

mas minha mentalidade juvenil ainda preferia a literatura de Dumas, de Walter Scott, onde o

herói era “de verdade” e não um louco ridicularizado por todos, que lutava contra moinhos de

vento e montava em cavalos de pau. Porém, restou desta experiência um travo, uma sensação

8 A partir deste segmento, a autora poderá eventualmente referir-se na primeira pessoa, quando nas citações autobiográficas de sua

formação cultural juvenil, auxiliares na composição deste trabalho. Tais referências se tornam sem dúvida necessárias na medida em que justificam a opção por uma linguagem que tenha por objetivo a redução da assimetria entre a autora e o leitor mais jovem. A redução da assimetria será sem dúvida tanto mais bem sucedida quanto mais o autor se reporta à época em que possuía a mesma idade do público que pretende atingir.

9 Lessa, Orígenes. Dom Quixote, adaptação. Ed. Abril, 2ª edição, 1972.

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de desafio, que me fez retomar o texto original depois de adulta. Percebi então que a minha

identificação com o tema quixotesco era bem maior do que imaginava.

O tipo do herói sempre me fascinou. Como também a do anti-herói, que no fundo não

passa de um herói mal-resolvido consigo mesmo e suas fantasias. Ao lado das leituras

"sérias", sempre destinei um tempo para me distrair com quadrinhos da DC Comics, Marvel,

graphic novels e mangás em geral. A opção por Quixote para compor esta tetralogia é,

portanto, resultado de um antigo desafio: encontrar um lugar dentro da literatura

contemporânea para a personagem heróica. Assim como Cervantes quis de alguma forma

reconfigurar o romance cavalheiresco medieval, eu reuní todas as minhas referências sobre

super-seres dos quadrinhos e do cinema épico predominantemente americano e, a partir disso,

fui elaborando o meu próprio personagem quixotesco, ou seja, a minha própria paródia.

Se pensarmos bem, veremos que Quixote e os super-seres das HQs (principalmente

em sua versão atual) tem muito em comum: um comportamento que foge à normalidade (em

muitas histórias os super-heróis são considerados uma ameaça àqueles aos quais dedicam seus

serviços); estranhas armaduras (para construir uma nova identidade), e um agente detonador

(a obsessão de Quixote pelos romances de cavalaria medieval é substituída por uma picada de

aranha, uma situação traumática como a morte de um ente querido, etc). Além disso,

sacrificam a vida pessoal pela causa em que acreditam, amam uma mulher com a qual jamais

consumarão uma relação completa (heróis não se casam, não tem vida sexual, que dirá filhos;

contudo, com freqüência são impelidos a salvar suas amadas de um perigo mortal). E, como

Quixote é acompanhado por Sancho Pança, assim alguns super-heróis possuem parceiros que

os auxiliam em sua luta contra o mal, seja na ação, seja no papel de conselheiro.

A medida em que o panorama sócio-cultural vai sofrendo transformações de ordem

axiológica ao longo do século XX, transformações estas que derivam de acontecimentos

marcantes como duas guerras mundiais e a crescente hegemonia norte-americana e tudo o que

ela representa enquanto transformações econômicas, políticas e culturais, os super-heróis dos

quadrinhos igualmente vão assumindo outros comportamentos e atitudes. De ingênuos e

fanfarrões (projeção dos seus criadores, então jovens roteiristas e desenhistas americanos a

exemplo de Stan Lee, fundador da Marvel Comics), aos poucos vão se comprometendo com o

sistema político-econômico dominante. De lineares, passam a viver conflitos que aprofundam

e adensam suas qualidades enquanto personagens (conflitos estes que derivam da

incompatibilidade entre o arquétipo heróico natural e o novo herói subserviente ou servilista).

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Inquestionáveis, obcecados pela verdade e pela justiça, passam a duvidar de si mesmos e dos

valores reduzidos que são obrigados a defender e acreditar. O cenário social que o abriga

igualmente passa a questionar sua presença e a duvidar de sua infalibilidade. Se na década de

quarenta temos o herói cegamente engajado, comprometido com ideais conservadores na luta

contra o Mal (o mal tal como entendido por uma sociedade aterrorizada pelo nazismo, pelas

tecnologias desconhecidas, pelo comunismo, etc.), na década de sessenta e setenta o herói

torna-se cínico, amargurado, um ser fechado sobre si mesmo, ou auto-irônico, um ser em

busca de uma saída para exercer sua função existencial.

Nos anos oitenta, uma graphic novel chamada Watchmen fez bastante sucesso e se

tornou um clássico no gênero. Nela, chamava a atenção o tratamento dado a personagem

super-heróica: ela é desmistificada, revelando, por trás da máscara, uma psiquê doentia, um

caráter conflitante. O que diferenciará um "watchmen" de uma pessoa comum, mais do que o

uso de fantasias ridículas, são seus traumas, seu exibicionismo, manias de grandeza ou um

idealismo levado às últimas conseqüências. Noções de certo ou errado tornam-se subjetivas e

se esvaziam numa sociedade onde mesmo o mais crédulo defensor da verdade e da justiça

pode se tornar um contraventor da lei e da ordem, onde o herói é um psicopata e o inimigo,

um gênio calculista. Os Watchmen são heróis em crise, atuam à beira da loucura que os

transformou em aberração social. Devem justificativas não só à comunidade que dizem

defender como também a si mesmos, e personificam a decadência dos valores morais e civis

ocidentais, já prenunciada no cinema épico do pós-guerra. Junto com o Batman de Frank

Miller, renovaram o gênero dos quadrinhos de super-heróis e marcaram época.

O herói cinematográfico

Em 1958, Willian Hanna e Joseph Barbera colocaram no ar, no primeiro programa de

desenho animado produzido para a televisão, um personagem canino sempre pronto para

aventuras. Dom Pixote, versão infantil do herói-quixote, doma leões, captura ladrões de banco

ou laça dinossauros. Além disso, este cachorro azul de fala arrastada acrescentava às suas

ações e as de seus coadjuvantes observações “filosóficas”, tal como o personagem que o

inspirou. Em 1960, Dom Pixote se tornou a primeira série animada de TV a ganhar o prêmio

Emmy, demonstrando, de uma forma ainda que simplista, a influência e a capacidade

ressignificativa deste clássico da literatura.

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Desde que inventaram o cinema, ou melhor, desde que a linguagem cinematográfica

foi transformada numa poderosa indústria de entretenimento, tem-se visto inúmeras versões

do tipo heróico projetados na grande tela, personagem caro e explorado à exaustão pela

filmografia americana. Em sua fase inicial e ufanista, temos o típico herói fabular, ingênuo e

romântico, porém invencível (como os personagens de Douglas Fairbanks, Errol Flynn ou o

Zorro de Tyrone Power), correto até a medula da alma, bonitão e vestido na maior parte das

vezes de roupas claras, salvando mocinhas em perigo e matando a tiros um vilão vestido de

preto. Contudo, as inúmeras transformações histórico-sociais e político-econômicas também

irão se refletir numa complexidade crescente da composição da personagem heróica – às

vezes é um xerife com um passado nebuloso, às vezes é um militar da segunda guerra cujo

sentimento de humanidade e de justiça entra em conflito com seus deveres oficiais, ou um

detetive-noir mercenário mas de bom coração. O herói torna-se então o anti-herói (tais como

alguns papéis interpretados por Humphrey Bogarth e Clint Eastwood).

Nos anos sessenta, já não basta que James Bond defenda sua credibilidade junto à

nova platéia cumprindo infalivelmente uma missão secreta: é preciso demonstrar ainda um

caráter cínico, o desrespeito a algumas regras e afirmar sua sexualidade com toda a mulher de

cilios postiços e cabelo laqueado que apareça a sua frente. Boa parte das vezes o espião 007

parece se importar mais com o glamour que sua profissão lhe proporciona do que com

ameaças bombásticas de destruição do mundo.

Os últimos filmes populares de ação heróica tem preferido, de um modo geral,

questionar os impulsos idealistas, lineares, definidos a partir da crença em valores absolutos,

humanizando e desintegrando o binômio herói-vilão, justificando os aspectos ameaçadores e

destrutivos deste último. Como nos quadrinhos, o herói do cinema também começa a ser visto

como um sujeito, no mínimo, tão "anormal" quanto seu inimigo, como se fossem os dois

lados da mesma moeda, ou o alter-ego um do outro. Sua obsessão por fazer justiça com as

próprias mãos já implica num custo demasiado alto (Jack Bauer, de 24 Horas, age sempre na

contramão das ordens que lhe são dadas, é mais violento e cruel do que seus inimigos,

prejudica seus afetos até a fatalidade, e está sempre à beira de um ataque de nervos. E temos

aí o retorno do cavaleiro solitário e triste, louco de pedra, execrado por todos, causando o

maior caos a sua volta ao abandonar uma vida tranqüila – e, porque não dizer, monótona – em

nome do binômio efêmero de paz e ordem, que só irá durar até a próxima série.).

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Uma interessante reflexão (ou leitura) quixotesca sobre a dupla herói-parceiro foi feita

pelo diretor M. Night Shyamalan no filme Corpo Fechado (Unbreakable). Neste, temos um

super-homem “fabricado” por um psicopata que joga para sua vítima a responsabilidade de

realizar concretamente o mito que idealizou para si mesmo. A vítima (personificada

admiravelmente por Bruce Willis) é então forçada a cumprir papel de herói ainda que não

queira ou não pudesse deixar de sê-lo, como se carregasse uma sina. No filme de Shyamalan,

Quixote é o sonho concretizado e manipulado por um Sancho Pança fora-da-casinha. Até que

ponto a loucura de um não corresponde aos desejos do outro?

4. ESTÍMULOS VISUAIS: A CRIAÇÃO VISUAL DOS PERSONAGENS DE

“HEROÍSMO DE QUIXOTE”

Sempre em busca de artifícios que auxiliassem a aproximar esta personagem

aparentemente distante da contemporaneidade, mas ao mesmo tempo propiciadora de

reflexões tão pertinentes e atuais, não se pode deixar de relatar todo o processo de

desenvolvimento das imagens que se encontram ora unidas de forma indissolúvel a este

trabalho textual.

A concepção visual do livro como um todo parte de uma contraposição entre realidade

e fantasia, loucura e sensatez, do cotidiano ordinário visto sob um prisma fantástico. Dentro

desta proposta, coube a utilização de imagens reais (fotografias de cenário e população

urbanos) retalhadas e reconstituídas de forma a simularem, e não reproduzirem, a realidade de

uma grande metrópole. Para obter este efeito, a perspectiva foi alterada através de recortes e

recomposição do espaço fotográfico, propositadamente bidimensionalizado, com interferência

de grafismos e efeitos artísticos de textura digitais. As personagens principais foram

desenvolvidas em desenho de gestual aparente e traços sujos, a partir de grafite e canetas

hidrográficas, harmonizadas aos seus fundos após a digitalização. Ao redor delas, transitam os

mais diferentes tipos urbanos, ora em desenho tal como os primeiros, ora reais, retirados de

fotografias.

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Fig 1: Ilustrações para Heroísmo de Quixote. (Mastroberti, Paula. 2005. Pgs 85, 114 e 65.)

Ainda que imaginários, o trio Quixote-Sancho-Dulcinéia teve sua concepção visual

orientada pelas seguintes referências reais:

Quixote:

Em 1973, o músico e compositor David Bowie criou para si mesmo uma espécie de

alter-ego alienígena, a quem chamava de Ziggy Stardust. Ao apresentar-se, assumia um

aspecto andrógeno tanto na maquiagem quanto no uso roupas extravagantes típicas do

conceito glitter ou glamour rock. As imagens de Bowie nesta época vinham de encontro ao

que eu buscava para o meu Quixote. Um ser exótico, um clown futurista, a quem ainda

acrescentei deliberadamente o mesmo defeito dos olhos do músico, causado por uma briga de

rua. Os olhos bicolores funcionariam como um sinal de predestinação do meu personagem.

No mais, ele foi concebido como um indivíduo literalmente fantasiado, um tipo de aparência

grotesca, cuja credibilidade se deve mais a uma aparição sempre surpreendente e inusitada do

que propriamente a poderes fantásticos, prodigiosos. Da roupa ao cabelo, tudo nele é

performático, recurso de teatro (tecidos fluorescentes, maquiagem, etc). É uma personagem

sem origem e sem destino definidos, vagando por uma grande metrópole, desejando sobretudo

destacar-se em meio a massa humana que acaba por folclorizá-lo.

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Fig 2: Ilustrações de Quixote para Heroísmo de Quixote. (Mastroberti, Paula. Pgs 4 e 63.)

Fig 3: David Bowie (arquivo da autora).

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Sancho Pança

Quixote jamais teria a mesmo brilho, não se realizaria aos nossos olhos com toda a

força de seus sonhos loucos e sua atuação extravagante, não fosse este parceiro de aventuras

criado por Cervantes, que teima em segui-lo ainda que à custa de muita encrenca e

humilhação. Combinando amizade e ambição, ignorância e senso prático, simploriedade

aliada a sentimentos nobres de lealdade e justiça, Sancho Pança é o outro lado da moeda

quixotesca que nos joga Cervantes, moeda essa que tive o cuidado de preservar, atualizando

apenas as circunstâncias da formação da dupla.

Inicialmente, tive medo de que o nome Sancho soasse ridículo. Contudo, uma das

regras colocadas para mim mesma em relação a série Reversões é a de alterar o mínimo

possível a identificação das personagens, evidenciando assim claramente a relação entre elas.

No decorrer da produção do texto, entretanto, ele já me parecia bem natural, como se não

pudesse ser outro. Tanto Sancho como Quixote são nomes sobre os quais nada se pode dizer

que não implique numa relação direta com a obra de Cevantes. Pois então, que seja: ao modo

de Dostoiévsky, fiz algumas citações que explicitam as fontes das quais se originaram minhas

personagens.

A concepção visual deste coadjuvante teria que se contrapor ao máximo a figura

quixotesca. O meu Sancho foi inspirado em tudo o que há de mais comum e ordinário no ser

humano: o corpo e os gestos deformados pelo sedentarismo, a expressão medíocre disfarçada

por óculos e cabelo de estilo, uma calvície insipiente, roupas próprias do dia-a-dia urbano. Ele

foi inspirado numa colcha de retalhos humana. Procurei surpreendê-lo em situações

cotidianas, às vezes nada elegantes. Um indivíduo comum, concreto, verossímil, humano, um

típico cidadão urbano e consumidor de todo tipo de produto de satisfação imediata (fast-

foods, tele-entregas, alimentos industrializados, etc), sem refinamento algum. Entretanto, eu o

fiz jornalista. Como tal, há nele uma inquietação que transcende este aparente conformismo, e

que o obriga a farejar o inusitado que por vezes floresce na rotina medíocre que o cerca.

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Fig 4: Ilustrações de Sancho Pança para Heroísmo de Quixote. (Mastroberti, Paula. 2005. Pgs 47 e 96.)

Dulcinéia

Dulcinéia del Toboso é uma personagem das mais estranhas da literatura: sua presença

se concretiza apenas por invocação. Contudo, ela não existe senão na imaginação de Dom

Quixote. É como um mise en abîme de pesonagens: Cervantes cria Quixote, que cria

Dulcinéia. Claro, há a "jovem lavradora de ótima aparência" que inspira a musa-donzela; mas

também ela não passa de uma citação do autor, que assim justifica a fantasia do nosso herói.

O nome completo, Dulcinéia, me pareceu anacrônico demais para ser utilizado.

Busquei um abreviativo - Dulci. E não pude deixar de comparar a idealização de Quixote do

amor e da mulher com a idealização que todos fazemos acerca da beleza e da juventude de

certas garotas - as top models. Como uma donzela cervantina, as top models são meras formas

sem conteúdo, ou seja, devem espelhar aquilo que projetamos sobre elas (roupas, glamour,

ascenção social, etc). Ainda que tenham personalidade, alma, coração, ou seja, ainda que

sejam de carne, osso e cores variáveis, a imagem geral que devem passar é a de uma beleza

asséptica, camaleônica, pronta para qualquer uso. Que papel melhor para Dulci Toboso senão

a de top model, onipresente em out-doors, revistas e televisão? A idealização quixotesca

explode assim de forma visível, e toma conta do cenário onde se passa a minha versão.

Na segunda parte da novela de Cervantes, Sancho, medroso e confundido pelas

loucuras do amo, chega a atribuir a identidade de Dulcinéia a uma campônia que lhe atravessa

o caminho. Esta cena servirá para justificar o encontro das minhas personagens Sancho-

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jornalista e Dulci-modelo. Na minha versão, Sancho concretiza a fantasia de Quixote: e Dulci,

objeto de desejo e idealizações finalmente concretizado, revela-se como sujeito, trazendo

consigo novas implicações.

Na concepção gráfica de Dulcinéia, inspirei-me na modelo Naomi Campbell,

procurando realçar um pouco mais as características de sua raça, principalmente na

composição do cabelo, que em Naomi vemos com mais freqüência se arranjar mais como o

cabelo da raça branca. Por que não escolhi Gisele Bündchen? Pelo simples fato de que

mulheres negras, além de raramente serem relacionadas com o protótipo de beleza ideal, não

são ainda comuns no trabalho de ilustração brasileiro. Detalhe: as características africanas de

Dulci só são informadas claramente nas ilustrações. No texto, ela passa imperceptível.

Fig 5: Ilustrações de Dulci Toboso para Heroísmo de Quixote. (Mastroberti, Paula. 2005. Pgs 36 e 93.) Naomi Campbell (arquivo da autora).

Além do trio analisado, merece menção a personagem não menos interessante, alter-

ego de Cervantes, de Cid H. Benengeli. Procurei fazê-lo à sua semelhança, dando-lhe ares

espanhóis, relacionando-o com paejas e vinhos da Espanha.

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Fig 6: Detalhe da ilustração do personagem Cide H. Benengeli para Heroísmo de Quixote (Mastroberti, 2005. pg 100). Cervantes (Doré, Gustave. 1863.)

RESUMO CONCLUSIVO

A obra Dom Quixote abrange em si todo o processo que vai do nascimento à morte do

mito do herói e sua função histórico-sociológica. A personagem quixotesca alegoriza os

princípios da fé numa ideologia conservadora, as atitudes práticas tomadas em nome da sua

confirmação e, por fim, a crise desencadeada pela constatação de sua impraticabilidade. A

novela se processa como paródia, posicionando o leitor para fora do contexto narrativo

forçando uma perspectiva mais reflexiva.

Assim, o personagem quixotesco inicialmente inventa a si mesmo como herói (ou

melhor, Alonso de Quijano, o protagonista, em sua loucura e a partir de uma obsessão,

transfigura-se num personagem heróico bem como transfigura todo um contexto que lhe

garanta a ação), tal como se compara ao super-ser dos quadrinhos e o herói do cinema épico

americano da primeira fase. Nestes, o nascimento de um herói, quando não ocorre por conta

de um estigma (como o Super-Homem, criado em 1934, que já nasce com super-poderes e

sensibilidade à kriptonita), é coagido em virtude de um acidente, um agente detonador, que

pode ser ação maligna cometida contra algo ou alguém da relação afetiva do próprio ser-

heróico, ou a interferência direta de um Poder Onipotente ou Desconhecido (acidente

tecnológico, poderes mágicos ou cósmicos com os quais é involuntariamente abençoado).

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Este agente detonador que transfigura o ser ordinário em super-poderoso é claramente

vinculado a um instinto de preservação – conservador, portanto – contra uma sociedade hostil,

ou contra o desconhecido que amedronta, um futuro sobre o qual não temos controle (em

todas as suas variantes: novos valores sociais, novos parâmetros culturais, novas tecnologias,

uma guerra, a morte).

Voltando ao personagem de Cervantes: ao assumir esta nova identidade, Dom Quixote

– ex-fidalgo decadente e pacato – assume o compromisso de exercer os poderes invocados a

si mesmo (é dever do herói fazer uso de suas bênçãos, em nome de valores metafísicos tais

como o que julga ou denomina o “Bem”, a “Verdade” ou a “Justiça”). Tal invocação (ou

benção) o impulsiona a entrar em confronto direto com tudo o que é contrário aos valores

axiológicos que defende, tomando para si a responsabilidade pela própria história (na paródia,

sua história inventada entra em conflito com o ambiente narrativo). Esta situação está

espelhada também no super-herói moderno da primeira fase: quando o conflito entre valores

defendidos pelo herói e os da nova ordem social estão claramente definidos (sempre a partir

da ótica do herói, pois só ele é capaz de enxergar tais definições absolutas), observamos uma

narrativa de ação direta e transparente, simples, sem sobras, frestas, ambigüidades, auto-

referências ou dúvidas. Neste caso, os valores representados pelo herói moderno entram em

correspondência direta com seus leitores ou espectadores, que acreditam nele. Na novela

cervantina, entretanto, esta correspondência está representada pela personagem de Sancho

Pança, que intermedia nossa relação com o herói quixotesco. Cervantes não inclui o leitor

neste jogo a não ser como observador, ainda que nos identifiquemos com Sancho Pança, e até

torçamos pelo Cavaleiro da Triste Figura. O universo desta obra, portanto, representa mas não

nos oferece da mesma forma o herói mitológico ou o da primeira fase dos quadrinhos ou do

cinema.

A medida em que adentramos na novela, o tom de paródia aumenta, incorporando uma

nova camada: usando de recursos metalingüísticos, Cervantes retira Quixote do mundo

representado como a realidade, e o imerge na encenação propiciada por um casal de duques.

O jogo heróico volta-se contra si mesmo, tornando-se uma farsa. Aos poucos, até o final da

história, o calvário do herói será este retorno lento à consciência de sua condição de ser finito,

frágil, desiludido dos valores supra-humanos nos quais piamente acreditou. Panorama que se

repetirá em ciclos em toda fase heróica da cultura de massa que lhe é correspondente: a

medida em que os valores que determinam a criação do herói vão entrando em crise, a medida

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em que se desmascaram conceitos tidos como absolutos no pensamento moderno-

contemporâneo, o super-herói torna-se igualmente uma farsa, um joguete ou fantoche à

serviço dos mesmos valores axiológicos que lhe deram vida. Por isso, por volta dos anos da

Segunda Guerra, começa a aparecer um outro tipo de herói nos quadrinhos e no cinema (O

Capitão América, criado no início da década de 40 para servir aos ideais e metaforizar o

exército americano, o detetive-noir, o gangster ou mercenário cínico personificado por

Humphrey Bogart, movido pelo dinheiro, mas cujas ações ambíguas ainda assim estão

moralmente corretas, como patriotismo, fidelidade amorosa, etc. Este herói cínico ou farsante

caiu na armadilha da hipocrisia social que confina suas ações bem-intencionadas a um redoma

conservador, fragilizando suas crenças, tornando-o ou um mero boneco de papel de ação

didática à serviço do mainstream, ou tão humano quanto qualquer um de nós (vide as edições

da DC e Marvel Comics entre as décadas de 50 a 60 — a chamada Era de Prata dos Super-

Heróis — e personagens rigidamente conservadores interpretados por John Wayne, Clint

Eastwood, cínicos como o agente 007 James Bond, ou ainda o Homem-Aranha, criado em

1962, por trás da máscara um universitário sempre às voltas com problemas pessoais e

financeiros, cujas ações justiceiras são mal-interpretadas pela própria sociedade que defende).

Após a segunda guerra, o herói da cultura popular, visto tal como um semi-deus, um cidadão

acima de qualquer crítica ou suspeita, jamais será o mesmo. Ele é agora vítima do sistema que

o originou, e se equaliza cada vez mais aos personagens marginais que tanto busca combater,

e que personificam o seu próprio alter-ego. Ele se torna um mercenário (como produto

destinado ao consumo e como personagem representante de um dado contexto axiológico)

para continuar a defender os valores nos quais acredita e pelos quais foi criado, perdendo com

isso sua idealidade. Antes cavaleiro solitário, desvinculado do cotidiano e das relações

emocionais e afetivas próprias de um sujeito normal, a fim de não comprometer os valores

que representa e defende (o que causaria sua anulação), após a segunda guerra é forçado a

descer degrau por degrau do seu pedestal apolíneo até o confronto com uma existência

absurda, correndo o risco de perder a credibilidade (e seu poder de sedução) junto ao leitor

que o consome (a exemplo do Surfista Prateado, criado em 1968 como um herói em plena

crise existencial, e a versão de Frank Miller para o Batman, nos anos 80).

O calvário do herói dos quadrinhos e do cinema atuais é a mesmo assumidos pelo

Cavaleiro de La Mancha em sua última fase: já na década de oitenta, ao reconhecer-se como

bufão de uma corte capitalista, portador de uma psiquê doentia em suas manias de grandeza e

delírios psicóticos, o time Watchmen prenunciava o casamento do Homem-Aranha, o agente

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Jack Bauer (Kiefer Sutherland) da série 24 horas, o Agente de Segurança David Dunn

interpretado por Bruce Willis em Corpo Fechado. Entretanto, ao descortinar – e antecipar em

quase três séculos – a problemática existencial do herói, Cervantes, como artista maior, não

cai nas armadilhas do julgamento ou da manipulação. Sua aparente crítica à sociedade da

época e aos idealismos antiquados do homem medieval na verdade transcendem na mais pura

compaixão, uma certa ternura amarga ao constatar o Homem como um ser solitário,

abandonado por Deus. Dom Quixote, um ser demoníaco, repete a queda do anjo, expulso do

paraíso da inconsciência existencial e da plenitude cósmica.

Por fim, se Cervantes pode dar a Quixote, com seus ideais anacrônicos e conduta

inadequada aos novos padrões augurados no século XVII, um final digno, já o herói

contemporâneo da cultura de massa, em suas atuais adaptações, seja dos quadrinhos para o

cinema ou o contrário, parece incapaz de salvar-se a menos que seja submetido a um urgente

tratamento psiquiátrico.

Setembro de 2005.

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