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MARIANA LIMA MARQUES HERDEIROS DA PAMPA POBRE: A TRAJETÓRIA DOS FILHOS DA OLIGARQUIA DIANTE DA REVOLUÇÃO BURGUESA BRASILEIRA, ANALISADA NAS OBRAS DO “CICLO DE PORTO ALEGRE” DE ERICO VERISSIMO Campinas 2015 i

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  • MARIANA LIMA MARQUES

    HERDEIROS DA PAMPA POBRE: A TRAJETÓRIA DOS FILHOS DA OLIGARQUIA DIANTE DA REVOLUÇÃO BURGUESA BRASILEIRA,

    ANALISADA NAS OBRAS DO “CICLO DE PORTO ALEGRE” DE ERICO VERISSIMO

    Campinas

    2015

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  • MARIANA LIMA MARQUES

    HERDEIROS DA PAMPA POBRE: A TRAJETÓRIA DOS FILHOS DA OLIGARQUIA DIANTE DA REVOLUÇÃO BURGUESA BRASILEIRA,

    ANALISADA NAS OBRAS DO “CICLO DE PORTO ALEGRE” DE ERICO VERISSIMO

    ORIENTADOR: PROF. DR. RUBEM MURILO LEÃO REGO

    Campinas

    2015 


    Tese de Doutorado apresentada ao Departamento de Sociolo-gia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universi-dade Estadual de Campinas para obtenção do título de Douto-ra em Sociologia.

    ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA TESE DEFENDIDA PELA ALUNA MARIANA LIMA MARQUES E ORI-ENTADA PELO PROF. DR. RUBEM MURILO LEÃO REGO, CPG, 31/03/2015

    iii

  • Ficha catalográficaUniversidade Estadual de Campinas

    Biblioteca do Instituto de Filosofia e Ciências HumanasCecília Maria Jorge Nicolau - CRB 8/3387

    Marques, Mariana Lima, 1982- M348h MarHerdeiros da pampa pobre : a trajetória dos filhos da oligarquia gaúcha diante

    da revolução burguesa brasileira analisada nas obras do "ciclo de Porto Alegre",de Érico Veríssimo" / Mariana Lima Marques. – Campinas, SP : [s.n.], 2015.

    MarOrientador: Rubem Murilo Leão Rego. MarTese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia

    e Ciências Humanas.

    Mar1. Veríssimo, Érico, 1905-1975. 2. Patriarcado. 3. Literatura brasileira. 4. Brasil

    - História - Revolução, 1930. 5. Rio Grande do Sul (RS) - Condições sociais. I.Rego, Rubem Murilo Leão,1943-. II. Universidade Estadual de Campinas. Institutode Filosofia e Ciências Humanas. III. Título.

    Informações para Biblioteca Digital

    Título em outro idioma: Heirs of poor pampaPalavras-chave em inglês:PatriarchyBrazilian literatureBrazil - History - Relovution, 1930Rio Grande do Sul (RS) - Social conditionÁrea de concentração: SociologiaTitulação: Doutora em SociologiaBanca examinadora:Rubem Murilo Leão Rego [Orientador]António Sáez DelgadoGilda Figueiredo Portugal GouvêaMaria da Glória BordiniSuzi Frankl SperberData de defesa: 31-03-2015Programa de Pós-Graduação: Sociologia

    Powered by TCPDF (www.tcpdf.org)

    iv

  • v

  • vi

  • RESUMO

    A presente tese de doutorado propõe a análise dos romances que configuram

    o chamado "Ciclo de Porto Alegre" em que Erico Verissimo enfoca as relações sociais

    no Rio Grande pós-1945. Assim, a pretensão é a de analisar nos sete livros que com-

    põem tal ciclo a herança da tradição patriarcal e os resquícios do iberismo na vida da-

    queles que apesar de terem pertencido à oligarquia gaúcha, tentam encontrar um novo

    espaço na sociedade que se urbaniza e se despersonaliza com a revolução burguesa bra-

    sileira.

    Palavras Chave: Erico Verissimo, 1905-1975, Patriarcado, Literatura brasileira, Brasil -

    História, Revolução de 1930, Rio Grande do Sul (RS) - Condições sociais

    vii

  • viii

  • ABSTRACT

    The present dissertation offers the analysis of the novels that shape the known

    “Ciclo de Porto Alegre” (Porto Alegre cycle) on which Erico Verissimo focuses the soci-

    al relations in Rio Grande post-1945. Thus, the intention is to analyze the seven books

    that compose such cycle with the focus on the inheritance of patriarchal tradition and the

    remains of iberianism on the lives of those who, despite having been part of the Gaúcha

    oligarchy, have been trying to occupy a new space in the urbanized society that deperso-

    nalizes itself with the bourgeois revolution.

    Keywords: Erico Verissimo, Patriarchy, Brazilian Literature, Brazil - History, 1930, Re-

    volution, Rio Grande do Sul

    ix

  • x

  • APRESENTAÇÃO 1

    INTRODUÇÃO 5

    CAPÍTULO 1: Filha do mundo: entre a Sociologia e a Literatura 17

    CAPÍTULO 2: Caminhos da Revolução à Brasileira 27

    CAPÍTULO 3: O desenvolvimento da economia mercantil no Rio 3.1 Porto Alegre como Palco 49

    3.2 Indústria e burguesia industrial no Rio Grande do 65

    CAPÍTULO 4: Herdeiros da pampa pobre 4.1 Clarissa Albuquerque 73

    4.2 Vasco, um flâneur no labirinto 81 4.3 O retorno ao campo 90 4.4 Novos rostos entre os gaúchos: os imigrantes 101 4.5 Coronéis na cidade 108 4.6 A ascensão em Porto Alegre 119

    CAPÍTULO 6 - Conclusão 133

    BIBLIOGRAFIA 141

    xi

  • xii

  • Pela vida , pela renovação e pela esperança,

    a Campinas, Lisboa e Sarajevo.

    xiii

  • xiv

  • I. AGRADECIMENTOS

    Antes de iniciar os agradecimentos necessários para a abertura dos trabalhos da

    presente tese de doutoramento, acabei por fazer a leitura da mesma seção de minha dis-

    sertação de mestrado, defendida no ano de 2009, e constatei mais uma vez o que para

    mim sempre foi óbvio. Que além de essa ser a parte mais gostosa de tecer no texto da

    tese, que o estudo da literatura veio contemplar a totalidade do meus quereres dentro do

    mundo acadêmico, que para mim foi se tornando frio, competitivo e por esses motivos,

    sem encanto.

    Porém, a Sociologia me encanta. A pesquisa me instiga. E foi na obra de Veris-

    simo que eu encontrei o incentivo para continuar na vida acadêmica, pois sem ternura

    não se vive. Dos livros, eu apenas não havia lido durante a juventude Saga. Sua leitura

    foi finalizada em uma viagem a Berlim na passagem de ano de 2011-2012. E o trecho

    que faz a epígrafe da presente tese faz deste o meu livro preferido de todos os tempos.

    Porque fala tanto de mim e das minhas escolhas. E também, porque não, do problema

    que vos apresento.

    E por falar em motivação, agradeço primeiramente meus pais Waldir e Marilza e

    minha irmã, Gabriela. Que possibilitaram o trabalho, que acompanharam de perto. Que

    xv

  • pularam de alegria e correram comigo atrás de documentos e até os aeroportos. E que

    continuam andando comigo pela vida.

    À Picchi, Vito, Max, Warzinho e Osório, que provendo alegria tornaram tudo

    possível de ser realizado.

    À minha família acadêmica formada por Gilda Figueiredo Portugal Gouvêa e

    Antônio Carlos Dias Jr, que estão novamente em meus agradecimentos com o mesmo

    status. O agradecimento pela atenção, pela leitura, pelas dicas e pela presença carinhosa

    em minha vida.

    Ao meu orientador Rubem Murilo Leão Rego e aos professores Suzi Frankl

    Sperber, Mauro Rovai e Maria da Glória Bordini pelo carinho e disponibilidade de sem-

    pre em ler e assinar documentos, escrever pareceres, participar de bancas de qualifica-

    ção, dando sempre credibilidade ao meu trabalho.

    Ao meu querido professor e orientador da Universidade de Évora durante o pe-

    ríodo de Doutorado Sanduíche, António Sáez Delgado, sempre tão acessível e atencioso

    ao me orientar nos estudos sobre Iberismo. Uma das experiências mais ricas de minha

    vida, com certeza.

    Aos companheiros de vida João Melo, Jade Jakobsen, Patrícia da Silva Santos,

    Edileuza Silva, Patrícia Lima, Ananda Filipi e Alessandro Iglesias: meu amor e amizade.

    Aos queridos amigos que tive o prazer de fazer além-mar e que são para a vida

    toda: Raimundo Fernandes, Valentín Cozar, Alfredo e Rosário Paixão, Sónia Lopes, Wil-

    son Kozlowski, Cátia Azevedo da Costa, Sara Costa, Dina Marques, Mafalda Chitas,

    xvi

  • Evelin e Mel Menezes, Lídia Pires, David Gomes, Maria Angélica Nunes, Vasco Nunes

    da Ponte, Iva Pasilova e em especial minhas amadas Joana Gomes e Catarina Torres,

    amizade para toda a vida.

    À Escola São Paulo de Holambra, que confiou em meu trabalho e me concedeu

    licença de um ano para que eu pudesse cursar o período de Doutorado Sanduíche em

    Portugal.

    E à CAPES, ao me conceder uma bolsa de pesquisa - dessa vez de Doutorado

    Sanduíche para que eu pudesse estudar os fundamentos do movimento iberista in loco,

    ampliando a visão sobre a minha pesquisa de doutorado.

    !

    xvii

  • xviii

  • “Atravessei o oceano para vir ao encontro justamente das coisas que mais

    odeio. Não posso culpar ninguém do que me aconteceu. Quando eu vivia no Brasil a

    minha vida de sonhos insatisfeitos, comparava-me ao peru que, segundo se diz, me-

    tido num centro dum círculo traçado a giz no chão, se julga irremediavelmente pre-

    so dele. Um dia achei que devia correr para a liberdade, saltando o risco de giz.

    Cortei as amarras que me prendiam a todas as convenções sociais e a esse manso

    comodismo dos hábitos. Dei o salto... E agora, moendo e remoendo as experiências

    recentes, comparando-as com as antigas, chego à conclusão de que a vida não passa

    de uma série numerosa de círculos de giz concêntricos. A gente salta por cima de

    um apenas para depois verificar que está prisioneiro do outro e assim por diante. É

    a condição humana.”

    Vasco, em Saga.

    xix

  • xx

  • I. APRESENTAÇÃO

    O presente texto configura o material final, resultado da pesquisa de douto-

    rado defendida no dia 31 de março de 2015 pela Universidade Estadual de Campinas –

    Programa de Pós-Graduação, Doutorado em Sociologia pelo Departamento de Filosofia

    e Ciências Humanas. Seu corpus é formado pelos resultados da pesquisa que se intitula

    Herdeiros da Pampa Pobre: a trajetória dos filhos da oligarquia gaúcha após a Revolu-

    ção Burguesa no Brasil, orientada pelo Prof. Dr. Rubem Murilo Leão Rego e que tem

    como foco a questão da Revolução Burguesa no Brasil, no que tange especificamente ao

    período que se inaugura a partir do processo de modernização brasileira, iniciado em

    1822 e intensificado entre os anos de 1889 e 1930. O estudo tem a pretensão de analisar

    como, nas obras do escritor Erico Verissimo, a aristocracia falida do meio rural do estado

    do Rio Grande do Sul se comporta ao migrar para a capital Porto Alegre.

    A tese que se apresenta é composta por um Resumo, uma Introdução à pes-

    quisa, pelo primeiro capítulo que explora a questão da literatura como material de traba-

    lho da sociologia, um segundo capítulo sobre a questão das heranças ibéricas e a Revo-

    lução Burguesa Brasileira, pelo terceiro que insere o caso particular do Rio Grande do

    Sul no contexto da Revolução Burguesa e um derradeiro capítulo que trabalha a análise

    de como tais mudanças são analisadas nas obras de Erico Verissimo que compõem o

    chamado “Ciclo de Porto Alegre”.

    O primeiro capítulo se intitula Filha do mundo: entre a sociologia e a

    literatura, e explora, sob o viés de Antonio Cândido, como se justifica uma análise da

    ! 1

  • literatura de certo momento histórico socialmente expressa e passível de análise socioló-

    gica, enriquecido com visões especificas sobre a obra de Verissimo embasadas em arti-

    gos de Regina Zilberman e Maria da Glória Bordini, além da análise de Luís Bueno em

    O Romance de 30.

    Florestan Fernandes e Luís Werneck Vianna servirão de base teórica para o

    desenvolvimento do segundo capítulo da presente tese, enfocando como a revolução

    burguesa se desenvolve no Brasil dentro de condições peculiares, servindo de base para

    a análise dos romances de Verissimo, onde reconhecemos a herança da tradição na vida

    daqueles que, apesar de terem pertencido à oligarquia da sociedade gaúcha, tentam en-

    contrar um novo espaço na sociedade que se urbaniza, principalmente nos anos que se-

    guem a Revolução de 1930, quando a chamada Revolução Burguesa se intensifica.

    O terceiro capítulo traz a questão do desenvolvimento industrial do Rio

    Grande do Sul assim como a crise agropastoril que levou muitos migrantes para a capital

    Porto Alegre. Também se faz necessária uma análise da formação da burguesia gaúcha,

    sobretudo entre os anos de 1889 e 1930, assim como a averiguação de como se deu o

    desenvolvimento da economia do estado e a formação dos círculos de poder gaúcho nos

    anos 30. Para isso, se utilizou como base os estudos da autora Sandra Jatahy Pesavento

    em A Burguesia Gaúcha, RS: A Economia & Poder nos anos 30 e RS: Agropecuária Co-

    lonial & Industrialização.

    Completando a tese, o quarto e último capítulo vem tratar especificamente

    da análise da trajetória dos herdeiros da pampa pobre na cidade de Porto Alegre e analisa

    ! 2

  • de fato as obras de Erico Verissimo. O texto prioriza o estudo pela divisão em temas dis-

    tintos: a descoberta da cidade evidenciada pela chegada de Clarissa, o refúgio do des-

    possuído na cidade grande e a flânerie na figura de Vasco, os coronéis deslocados em

    uma Porto Alegre aburguesada e despersonalizada, a importância dos imigrantes, as no-

    vas possibilidades de ascensão social e a surpreendente e metafórica opção que faz a

    personagem de Vasco pelo retorno ao campo.

    ! 3

  • ! 4

  • II - INTRODUÇÃO

    A presente tese prioriza o estudo das obras do chamado “Ciclo de Porto Ale-

    gre”, enfocando como Erico Verissimo retrata, através da construção de suas persona-

    gens e de suas respectivas relações, o deslocamento daquele que já pertenceu ao mundo

    tradicional e fora íntimo das esferas de poder para o mundo modernizado e racionalizado

    das cidades, sobretudo após a Revolução de 30. Além disso, quer-se analisar como o

    ethos tradicional tenta manter a supremacia sobre essa sociedade em transformação e

    averiguar se este ethos, de fato, permanece.

    A literatura de Erico Verissimo integra-se no chamado “romance de 30”, po-

    rém, não se caracteriza como os outros romances contemporâneos que, em sua maioria,

    primam pela adoção da análise das relações no mundo rural como principal forma de

    expressão. Embora muitas de suas personagens tenham origem no campo, como a prota-

    gonista Clarissa, Verissimo destaca as relações do mundo urbano, o desenvolvimento

    industrial e a constituição de grandes capitais, especificamente o caso de Porto Alegre.

    Embora concentre suas análises na capital gaúcha, já dizem autores como Jorge Amado e

    Flávio Loureiro Chaves que, ao abordar relações que descrevem a sociedade brasileira,

    sua obra se abre para reflexões sobre o Brasil como um todo.

    Embora O tempo e o vento tenha sido redigido posteriormente aos romances

    do chamado “Ciclo de Porto Alegre” – os três volumes foram escritos entre 1949 e 1961,

    enquanto que os sete livros que compõem o ciclo porto-alegrense foram compostos entre

    ! 5

  • 1933 e 1943 -, onde dar-se-á prioridade aqui à análise dos anos que seguem a revolução

    de 1930 e da trajetória de personagens que se deslocaram do mundo tradicional - conta-

    minado então por características sociais como a dominação pessoal e o patrimonialismo

    - e de como essas mesmas personagens serão objeto de análise na presente tese de douto-

    ramento.

    O Rio Grande se urbaniza, sobretudo sua capital, Porto Alegre, para onde

    migram as personagens que se deslocaram do mundo tradicional: a decadência de suas

    famílias, a vulgarização da figura do gaúcho, que agora anda a pé e a emergência dos

    imigrantes como uma das conseqüências da industrialização e modernização do Estado

    sulino contrastam com a permanência de caracteres advindos da herança tradicional, que

    não deixam de se imprimir na sociedade que se configura em novos moldes determina-

    dos pela urbanização e pelas relações menos marcadas pelo traço de pessoalidade.

    A literatura tem se mostrado um campo de grande valia no que diz respeito

    ao estudo das idéias, exemplificando como os grupos se comportam e evoluem dentro da

    sociedade e destacando em suas linhas as minúcias das relações sociais. Embora autores

    como A. A. Mendilow e Pierre Bourdieu concordem que o romance é formado por 1 2

    “fatias de vida”, a tarefa de estudar elementos sociais através da literatura esbarra na

    questão já bem trabalhada por diversos autores de que se pode incorrer no erro de anali-

    sar a obra literária como se ela fosse uma cópia fiel da realidade. Ao escrever, o autor

    MENDILOW. A. A. O tempo e o romance. Trad. Flavio Wolf. Porto Alegre: Globo, 1972.1

    BOURDIEU, Pierre. As regras da arte. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.2

    ! 6

  • cria um universo, imbuído de sua pessoalidade. Dessa forma, ao compor os romances

    que configuram o chamado “Ciclo de Porto Alegre”, Erico Verissimo aborda, através de

    suas personagens, os diversos caminhos que pessoas oriundas da antiga tradição oligár-

    quica - fundamentada em um histórico social que se traduz em patrimonialismo e domi-

    nação pessoal – percorrem na Porto Alegre que se urbaniza sobretudo a partir da década

    de 1930.

    Os moldes tradicionalistas da sociedade monarquista se perpetuaram durante

    a República Velha que, dentre suas diversas etapas, manteve a fisionomia oligárquica,

    sendo o poder estatal controlado na maioria das vezes de forma autoritária, sobretudo

    com relação às aspirações dos setores populares que almejavam conquistas democráti-

    cas. A política dos governadores preservava, durante a primeira fase da República (1889-

    1930), o poder da oligarquia agrária, sedimentando a distancia cabal entre o poder e o

    povo.

    Com a crise do setor cafeeiro e a chegada da Revolução de 30, há a

    transição do antigo modelo para um novo panorama que se apresenta mais dinâmico em

    setores determinantes, como a política, a cultura e a economia. As classes que emergem

    e passam a constituir o poder se dividem, fortalecendo a presença da classe média urba-

    na e a movimentação intensa das mais diversas categorias sociais da cidade, antes ausen-

    tes na sociedade. Tais eventos estão ancorados a importantes acontecimentos históricos,

    como a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Bolchevique e a crise de Wall Street,

    configurando um momento de impulso da industrialização e grande deslocamento da

    ! 7

  • população rural para as cidades ao redor do mundo. O período é, portanto, de ebulição

    social. Basta relembrar alguns dos importantes movimentos acontecidos na década de 20

    no Brasil, como Os 18 do Forte, a Coluna Prestes, a formação do Partido Comunista

    Brasileiro e a realização da Semana de Arte Moderna em 1922. Esta última, além de en-

    fatizar as características puramente brasileiras, criticava o modelo cultural vigente, além

    de explicitar sua censura ao federalismo oligárquico.

    Há, porém, durante os anos que se iniciam em 1930, um arranjo entre as

    classes urbanas e a burguesia agrária, fazendo com que os blocos de poder continuassem

    monopolizando o aparelho do Estado, tanto no âmbito urbano, quanto no rural, configu-

    rando uma combinação de setores na execução do poder. Trata-se, segundo a análise de

    Octávio Ianni , de crise de hegemonia, em que o poder não tem mãos certas para perten3 -

    cer. Nesse período de ebulição, as forças sociais e políticas são heterogêneas e são pola-

    rizadas, de um lado, pelas dissidências oligárquicas (lideradas principalmente pelo Esta-

    do de São Paulo), e pela parcela que almejava mudanças na estrutura política do país e

    conseqüentemente também gozar de alguns privilégios.

    O que se pode afirmar, porém, é que, com a crise cafeeira e com a inaugura-

    ção da nova política, a camada agrária se via enfraquecida, culminando na emergência

    das camadas urbanas que passavam a disputar posições em pé de igualdade com os seto-

    res rurais. Inaugura-se, com efeito, um novo patamar de desenvolvimento econômico e

    social que se apoiou no governo de Vargas e que instituía lei e tribunal eleitoral, modifi-

    IANNI, Octávio. O ciclo da revolução burguesa. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 1984.3

    ! 8

  • cando a forma de se fazer eleições vigente até então. Nesse contexto, o Estado do Rio

    Grande do Sul se via inserido num clima de verdadeiro entusiasmo cívico, dado o impor-

    tante papel desempenhado pelos gaúchos na Revolução de 1930.

    Nesse contexto, a ficção de 30 enfoca o romance social, que se caracteriza

    por reconhecer o espaço brasileiro por documentação e exposição de tipos característi-

    cos. A sociedade, nesse caso, representa a premissa de condição do indivíduo que se

    apresenta na realidade narrada no texto. Assim, Erico Verissimo inaugura, como diz Flá-

    vio Loureiro Chaves na literatura de 30 o “romance urbano”, levando além dos limites 4

    de São Paulo o enredo que enfoca a cidade moderna ainda que com características pró-

    prias do Rio Grande.

    O contexto histórico, nesse sentido, é fundamental. A estrutura inau-

    gurado com a Revolução de 30 prometia o fim dos privilégios e das formas personalistas

    de governo vigentes durante a República “café-com-leite”, engendrando uma proposta

    de modernização estatal que se concretizou em parte no plano econômico, porém inca-

    paz de mudar a herança cultural de uma sociedade que herdou de Portugal os moldes

    administrativos, baseados na forma estamental de poder, como bem argumenta Raymun-

    do Faoro . Assim, a sociedade se urbaniza e moderniza com base em modelos que pri5 -

    mam pela burocratização das formas de poder e continua recebendo imigrantes, vendo

    CHAVES, Flávio Loureiro. Erico Verissimo: realismo & sociedade. Porto Alegre: Mercado Aberto, 41981.

    FAORO, Raymundo. Os donos do poder: a origem do patronato brasileiro. São Paulo: Publifolha, 2000. 5v. 1 e 2

    ! 9

  • muitos destes emergirem socialmente, constituindo uma nova camada de proprietários

    que difere daquela tradicionalmente conhecida, ou seja, diversa dos grandes latifundiári-

    os, portadores de terras, gado e um exército de agregados dos quais também se alienam a

    vontade e juízo próprios.

    Max Weber define a dominação pessoal com base em moldes tradi6 -

    cionais, onde a legitimidade se dá na crença da santidade e poderes já estabelecidos. O

    dominador não é apenas um superior, mas sim um senhor pessoal. Os “funcionários” são

    companheiros tradicionais ou súditos, e, o que é decisivo, é a fidelidade pessoal do ser-

    vidor. Não se obedece a estatutos, mas à pessoa indicada pela tradição . A natureza afeti7 -

    va, como diz o autor, é importante, e, o senhor domina com ou sem quadro administrati-

    vo, contando com o auxílio de pessoas tradicionalmente ligadas a ele, por vínculos de

    piedade, que significa o recrutamento patrimonial e funcionários domésticos dependen-

    tes, sendo inerentes relações pessoais de confiança, pacto de fidelidade entre o senhor e

    os funcionários livres.

    Segundo Weber, toda dominação tradicional pende para o patrimonia-

    lismo, que é a dominação orientada pela tradição que se exerce em virtude de pleno di-

    reito pessoal , pois “os companheiros se tornam súditos, o direito do senhor interpretado 8

    WEBER, Max. Os tipos de dominação In Economia e Sociedade. Brasília: Editora UnB, 1994, vol. I.6

    Idem.7

    WEBER, Max. Os tipos de dominação In Economia e Sociedade. Brasília: Editora UnB, 1994, vol. I p. 8152.

    ! 10

  • até então como direito preeminente dos associados, converte-se em seu direito próprio,

    apropriado por ele da mesma.”

    A formação e ascensão de uma camada de grandes latifundiários, que tinham

    como objeto de exercício de poder as pessoas, as estâncias, as cidades, chegando a exer-

    cer influência nos âmbitos estadual e nacional (como é o exemplo de Rodrigo Terra

    Cambará, portador de um diploma universitário, dono de muitas terras, intendente de

    Santa Fé, deputado estadual e como descreve Verissimo, “um figurão do Estado Novo”),

    são bem descritas em O tempo e o vento.

    É justamente o último volume e são as últimas páginas desse romance que

    inspiraram a hipótese que objetivaram a presente tese de doutoramento: quando a velha

    Maria Valéria acende uma “vela para o negrinho”, a fim de que sua família retome seus

    elos, seu sobrinho-neto Floriano entende que o Continente se esfacelou, formando um

    arquipélago de ilhas perdidas. A metáfora que a personagem-autor (Floriano) utiliza para

    designar o destino de sua família serve também para analisarmos a condição do Rio

    Grande que se modernizou; o que se constituía como um Continente coeso se transfor-

    mou num arquipélago de ilhas distintas; o gaúcho desse novo Rio Grande anda a pé e se

    depara com rostos europeizados no comando dos negócios; o mundo da estância dá lugar

    ao mundo impessoal das cidades onde não se conta mais com a proteção do estancieiro.

    Erico Verissimo, natural de Cruz Alta, uma região conturbada politicamente

    devido à forte influência da camada oligárquica, também é uma “personagem” que se

    desloca do interior do Rio Grande para o meio urbano representado, sobretudo, por Porto

    ! 11

  • Alegre. Na capital gaúcha, Erico se envolveu a partir de 1931 nos projetos da Editora

    Globo e foi responsável por traduções de autores fundamentais da literatura universal

    como Thomas Mann e Virginia Woolf. Entre uma tradução e outra, escreveu seu primei-

    ro livro, Fantoches, e alcançou o grande público ao publicar Olhai os lírios do campo,

    em 1938. Todos seus livros foram editados pela editora que ajudou a erguer, a Globo de

    Porto Alegre.

    Foi nos escritórios da Editora que Verissimo compôs o primeiro volume de

    O tempo e o vento - O continente - que já tem seu enredo enunciado nas últimas pági-

    nas de O resto é silêncio, quando Tônio Santiago vislumbra em uma concerto os primór-

    dios do Continente de São Pedro, evidenciando a idéia de dívida para com a terra natal

    que entra em consonância com as que tinha Verissimo naquele momento: em 1937 se

    instaurava o Estado Novo, que ao mesmo tempo em que fazia enaltecer as diferenças

    regionais, procurava agregar um sentimento de pertencimento dos estados a uma unida-

    de nacional, caracterizado pela simbólica queima das bandeiras estaduais.

    Posteriormente, nos anos 40, no Rio Grande do Sul o novo tradicionalismo

    organizou-se em torno dos Centros de Tradições Gaúchas - CTGs -, recriação lúdica da

    antiga fazenda pastoril, onde um patrão protetor e benevolente confraterniza com seus

    peões. Recriando o passado segundo suas necessidades, o tradicionalismo ignorou o tra-

    balhador escravizado no passado sulino e nas fazendas pastoris. Os CTGs estão espalha-

    dos ainda hoje por todo o Estado do Rio Grande do Sul, denunciando a importância da

    preservação da tradição recriada durante os tempos de Getúlio, tendo sua manifestação

    ! 12

  • máxima na Semana Farroupilha, que acontece anualmente entre os dias 14 e 20 de se-

    tembro. A Semana, que tem para os gaúchos importância simbólica equivalente ao Car-

    naval para os cariocas, demonstra o caráter de apego à tradição mantida no Rio Grande

    do Sul.

    Nesse contexto é que se analisará como a herança tradicional se comporta

    quando se depara com uma capital urbanizada; como os homens acostumados ao man-

    donismo se posicionam nessa nova realidade social, como se tenta a manutenção de

    tais valores tradicionais, como eles de fato permanecem na sociedade que se moderniza

    e de que forma a geração que já chega “a pé” enfrenta e se posiciona nesse espaço tran-

    sitório: Clarissa, Fernanda, Vasco, Coronel Joaquim, personagens do “ciclo de Porto

    Alegre”, são herdeiros de sobrenomes que pesam como status social, mas que não mais

    se fundamentam na posse da terra.

    O panorama que tem Clarissa, aos 14 anos, ao escrever seu diário, é o mes-

    mo que apresenta a família Cambará em 1945: a decadência do patriarcado rural, que é

    justamente o tema do romance social de 30 e que coloca a aura do patriarcalismo em

    cheque, enfocando justamente a passagem do poder das mãos de uma aristocracia rural

    para a burguesia que se formou lentamente nos centros urbanos a partir do século XIX.

    ! 13

  • Nome do livro que inaugura o ciclo, Clarissa é a personagem que levará ao desenvol9 -

    vimento de todos os outros romances do “ciclo de Porto Alegre”, mostrando a visão

    que tem uma garota sobre a crise na atividade agrária de sua família, que arrasta seus

    pais para a derrocada econômica.

    Musica ao longe , por sua vez, constitui-se como um texto sugestivo neste 10

    sentido. O livro reúne um material de extrema importância quando se trata da análise da

    dominação pessoal, uma vez que enfoca a decadência de uma tradicional família de pro-

    prietários - os Albuquerque - que, mesmo destituída de propriedades e poder, ainda enca-

    ra o círculo social como um bastião de seu legado. Os Albuquerque vêem sua derrocada

    econômica, ao passo que alguns imigrantes italianos e alemães, chegados quase em esta-

    do de indigência, prosperam e se tornam proprietários de terras e estabelecimentos antes

    pertencentes aos clãs tradicionais da cidade. Assim, quem sofre as conseqüências da dis-

    puta política são as classes que têm o presente sufocado pela herança negativa do passa-

    do. Erico Verissimo prioriza, em sua escrita, os caminhos de personagens que não têm

    Publicado em 1933, Clarissa conta a trajetória de uma menina que vai de Jacarecanga, no interior do 9estado do Rio Grande do Sul para a capital Porto Alegre estudar para ser professora. Ao viver na pensão administrada por sua tia, Clarissa vive o despontar da adolescência e o amadurecimento diante de tipos tão diferentes que habitam o estabelecimento de D. Eufrasina, como o do erudito, porém falido Amaro. Do microcosmo da pensão, Verissimo traça um panorama do Brasil do início dos anos 30. Os passeios pelas ruas da capital mostram a modernidade advinda do processo de revolução burguesa aos olhos da menina Clarissa, enquanto que as cartas que chegam da estância do interior evidenciam a decadência pela qual passava a pecuária e o latifúndio gaúchos.

    Música ao Longe, publicado em 1936 retrata o retorno de Clarissa à Jacarecanga e a sua visão acerca da 10decadência de sua família. No decorrer do romance, a descoberta da paixão de Clarissa pelo primo Vasco serve de pano de fundo para a luta da família Albuquerque em não perder o último reduto tradicional da família, - o casarão. O romance enfoca a chegada dos Gamba, italianos que mais à frente tomarão dos Albuquerque os últimos resquícios da herança deixada pelo general Olivério Albuquerque, assim como a decadência moral e financeira da família, culminando no assassinato político de João de Deus, pai de Clarissa e a mudança do restante da família para a capital Porto Alegre.

    ! 14

  • autonomia em relação aos seus próprios destinos, em decorrência da pressão que a tradi-

    ção patriarcal e os novos rumos da sociedade exercem sobre tais homens.

    Da mesma forma, a parte inicial de Um lugar ao sol representa uma sátira ao

    caudilhismo como exposição do gauchismo. Emblemático, nesse sentido, é o general

    Campolargo, que permanece no poder político de sua região por mais de trinta anos, sem

    oposição alguma, numa metáfora que leva a crer que Campolargo representa o Rio

    Grande do passado.

    Caminhos cruzados também debate a questão da decadência do patriarcado 11

    rural e a ascensão da burguesia urbana: ao se deslocarem para a cidade grande, os filhos

    da aristocracia sentem o desencantamento com a sociedade, que transforma os atores

    sociais a medida que estes são inseridos em um ambiente mediado por hábitos diferen-

    tes, permanecendo vivo, porém, em tal processo, o espírito da tradição, ora alimentada

    pela história ou pelas ações das personagens. É nesse livro que se enfoca uma parcela da

    sociedade que se aburguesou, mas que não alcançou a tradição ou o status de família

    Anterior à Música ao Longe (embora este último tenha sido escrito antes), Caminhos Cruzados foi escri11 -to por Erico Verissimo em 1935 e apresenta uma escrita densa, surpreendendo os leitores entusiastas de Clarissa. Considerado subversivo por alguns críticos da época, o livro exibe o paradoxo da vida urbana em Porto Alegre à época do governo de Getúlio Vargas, a discrepância do luxo da vida da burguesia e a miséria dos esquecidos pelo sistema. O romance nos introduz à obra de Verissimo as personagens de Noel e Fernanda, que serão fundamentais para o desenrolar dos destinos de Vasco e Clarissa nos posteriores Um Lugar ao Sol e Saga. A técnica do contraponto, adotada de Aldous Huxley (do qual o próprio Verissimo fora tradutor) fica evidente. Um Lugar ao Sol começa num sábado e termina na quarta-feira. E é nesse contexto que um professor de meia-idade, uma família aristocrata, onde a matriarca D. Dodó posa em chás beneficentes, um ex-taberneiro de Jacarecanga recém premiado na loteria e sua filha deslumbrada, além dos já citados Fernanda e o aristocrata Noel, em contraponto com João Benévolo e sua miséria causada pela demissão ocasionada pelo marido de D. Dodó desenvolvem seus enredos ao longo de cinco dias, sem necessaria-mente se encontrarem.

    ! 15

  • como a dos Leiria; a classe média tem seu ponto de apoio na abordagem das profissões

    liberais.

    Outro grupo também é de destaque e ocupará lugar importante nos outros

    títulos que configuram o “Ciclo” – os coronéis, que disputam com a burguesia já estabe-

    lecida o topo da pirâmide social, assim como a classe média inferior que luta pela sub-

    sistência nas grandes cidades. Os romances que Erico Verissimo publica entre 1936 e

    1943 (Um lugar ao sol, Olhai os lírios do campo, Saga e O resto é silencio) têm como

    um dos temas a crise da oligarquia rural enfocando no contexto urbano a condição da-

    queles que abandonaram a vida no campo para viver em Porto Alegre. A condição da

    dominação antes exercida pela oligarquia gaúcha ultrapassa gerações, fazendo com que

    seus filhos, mesmo quando inseridos em uma estrutura mais racionalizada - a da cidade -

    se utilizem do mesmo ethos adquirido da tradição, contaminado pelo patrimonialismo.

    Os romances do “Ciclo”, ao que tudo indica, querem mostrar o papel dos herdeiros da

    tradição desempenhado na cidade aburguesada.

    ! 16

  • CAPÍTULO 1

    FILHA DO MUNDO - ENTRE A SOCIOLOGIA E A LITERATURA

    “Embora filha do mundo, a obra é um mundo (...)”

    Antonio Candido

    Os sete livros que compõem o chamado ciclo de Porto Alegre (Clarissa

    (1933), Caminhos Cruzados (1935), Música ao Longe (1936), Um Lugar ao Sol (1936), 12

    Um Lugar ao Sol (1936) marca o encontro de Vasco, Clarissa, Fernanda e Noel, que irão, juntos, enfren12 -tar as vicissitudes da vida na capital do Rio Grande do Sul. Ao auxiliar Clarissa no encontro de um lugar para viver, Fernanda estabelece para com a família Albuquerque um laço que ainda se fará presente em Saga. Em Um Lugar ao Sol, Clarissa passa arcar com a responsabilidade do sustento da família, enquanto seu primo Vasco erra em busca de sua personalidade e aproveita a novidade da vida em uma cidade mar-cada pela urbanização. Vale destacar a presença do Dr. Seixas, o médico que atende aos pobres sem a in-tenção do lucro, falecendo pobre. Em um texto enxuto, Erico Verissimo retrata a cidade de Porto Alegre e seus dramas. O título do livro se justifica ao ser o mesmo do composto por Noel, agora marido de Fernan-da. Ao receber a herança do pai, Noel e Fernanda abrem uma editora, da qual Vasco será ilustrador, con-quistando assim, seu “lugar ao sol”.

    ! 17

  • Saga (1940), Olhai os lírios do campo (1938) e O resto é silêncio (1943)), com13 14 15 -

    põem uma narrativa em que as personagens se encontram ao longo dos volumes e desen-

    laçam seus destinos ao mesmo tempo em que as histórias econômica e política do Brasil

    tomam rumos muito diferentes daqueles que as nortearam durante seus 400 anos de tra-

    jetória.

    Erico Verissimo inicia sua vida literária com o livro de contos Fantoches,

    conquistando definitivamente o público ao contar a história da menina que sai da peque-

    na Jacarecanga para se formar professora na crescente Porto Alegre: é com Clarissa que

    Verissimo se consolidou como autor literário. Clarissa ainda seria personagem de mais

    três romances escritos pelo autor: Música ao longe, Um lugar ao sol e Saga.

    Publicado em 1940, no contexto da Segunda Grande Guerra, Saga nos traz a figura de Vasco Bruno en13 -frentando duas guerras: a Civil Espanhola no campo direto e a guerra do retorno ao enfrentar as vicissitu-des de uma sociedade burguesa cada vez mais complexa. Em uma manobra que surpreende o leitor, Vasco, já casado com a sua prima Clarissa, opta pelo retorno às origens - a decisão pelo retorno ao campo e à simplicidade da vida bucólica, fechando o Ciclo de Clarissa.

    Olhai os lírios do campo, romance que fez Erico Verissimo despontar como um escritor de best sellers, 14e conta a trajetória de Eugênio Pontes, que renúncia à família, aos amigos e ao amor da mulher que verda-deiramente ama em nome da ascensão social por via de um casamento sem amor. O caminho de Eugênio, que vai da vergonha de ser pobre, do ingresso na Faculdade de Medicina, do encontro com Eunice Leiria, até sua volta - a tomada de coragem em confrontar o sogro e abandonar os negócios da família Leiria, o divórcio e o acerto de contas com Olívia e o posterior falecimento desta mostra ao leitor o crescimento pessoal de uma personagem em um contexto de plena revolução burguesa na capital do Rio Grande do Sul.

    ! Mais uma vez adotando a técnica do contraponto dramático de Aldous Huxley, Erico Verissimo engen15 -dra uma diversa gama de personagens no romance de 1943. O Resto é Silêncio tem seu ponto de partida no suicído - ou seria um assassinato, ou ainda um acidente? - de Joana Karewska. O corpo caído de um dos prédios centrais de Porto Alegre passa a ser enredo das conversas das diversas personagens, encabeça-das pelo escritor alter-ego de Verissimo, Tônio Santiago. A partir dele, outras personagens misturarão ao acontecido suas questões pessoais. É o caso do Doutor Lustosa, um desembargador aposentado, de Nori-val, um homem de negócios à beira da falência, de Aristides Barreiro, um ex-deputado e rico advogado, do carismático Sete-Meis, um menino vendedor de jornais, de Chicharro, um boêmio e de Marina, uma mu-lher angustiada que vive à sombra do marido maestro, Bernardo Rezende. O resto é silêncio nos traz ainda a figura do coronel Quim Barreiro, emblemática ao mostrar o comportamento de um ex coronel na cidade urbanizada e despersonalizada, marcada por um desastre característico urbano - um corpo que caiu (por motivo que fica à mercê da imaginação do leitor e das personagens) de um prédio, chocando a multidão.

    ! 18

    http://www.infoescola.com/profissoes/desembargador/

  • Música ao longe mostra a decadência da família de Clarissa, a tradicional

    estirpe dos Albuquerque, culminando no assassinato de João de Deus, seu pai; já Um

    lugar ao sol desenha os passos de Clarissa e seu primo Vasco pela hostil Porto Alegre e

    o encontro dos protagonistas com a valente e determinada Fernanda, que tivera o pai as-

    sassinado em condições muito parecidas com as que ocorreram com João de Deus, o pai

    de Clarissa. Juntos, enfrentarão as vicissitudes e dificuldades de uma Porto Alegre em

    que a história construída pelos Albuquerque nada significa e em que os traços de impes-

    soalidade começam a se delinear. Já em Saga, há a incrível narração de Vasco e sua par-

    ticipação na Brigada Internacional durante a Guerra Civil Espanhola, culminando em

    seu casamento com Clarissa e em seu retorno com a esposa para a vida bucólica que tan-

    to renegara.

    Caminhos cruzados enuncia a história daquela que pode ser considerada a

    verdadeira heroína do ciclo de Porto Alegre, a humilde Fernanda e seu encontro, roman-

    ce e casamento com o aristocrata Noel, que rompe com a família para poder assumir o

    relacionamento com a antiga colega de infância. Considerado subversivo justamente no

    ano em que estourou no Brasil a Intentona Comunista, Caminhos cruzados despertou

    diferentes opiniões da crítica por revelar os contrastes sociais de uma capital em desen-

    volvimento. Olhai os lírios do campo, o romance mais lido e traduzido de Verissimo,

    trabalha a questão de um jovem ambicioso, Eugenio, que troca o amor verdadeiro pela

    oportunidade de ascensão social e o seu tortuoso caminho até o arrependimento, mos-

    ! 19

  • trando uma Porto Alegre onde imperam o impessoalismo, a desigualdade social e a pos-

    sibilidade de ascensão dos profissionais liberais.

    Para o enfoque na presente tese abordado, o mote de O resto é silêncio pou-

    co importa, ou seja, Tônio Santiago, escritor consagrado, tenta descobrir o que teria le-

    vado uma de suas leitoras a cometer suicídio. O mais interessante para a análise aqui

    proposta seria, então, a trajetória coadjuvante do coronel Joaquim Barreiro e sua pitores-

    ca transposição do interior para a capital Porto Alegre, assim como o comportamento

    antagônico de seus filhos Aristides e Marcelo na cidade grande.

    Erico Verissimo nasceu em 1905, em Cruz Alta. É filho de uma família

    decadente e se viu obrigado a se deslocar, assim como suas personagens, do ventre pro-

    tetor do interior rural marcado pelas relações caracterizadas pelos traços pessoais e se

    enveredar por uma Porto Alegre hostil, já caracterizada pelo aburguesamento crescente.

    Iniciando suas atividades literárias na editora que ajudou a estruturar – a Globo de Porto

    Alegre -, Verissimo dedicaria sua vida, então, a contar histórias que bem poderiam ser

    (ou são?) inspiradas na sua, embora seja ele mesmo um crítico da sociedade em que vi-

    veu.

    Os romances de Erico Verissimo, com exceção de O tempo e o vento, se

    caracterizam por serem urbanos e expressarem uma Porto Alegre que muda e se desen-

    volve sob a influência do contexto histórico marcado sobretudo pela Revolução de 30.

    Dessa forma, o autor viveu intensamente as transformações pelas quais o país passou e

    suas experiências se transformaram, então, em componentes da estrutura de suas obras

    ! 20

  • literárias. O conhecimento de tais estruturas nos permite como orienta Antonio Candi-

    do , compreender a função sociológica dessa obra em conjunção com o período históri16 -

    co estudado. O alcance de uma obra é decidido por sua constituição e pela sua recepti-

    vidade e neste campo, a literatura de 30 é exemplar, uma vez que insere o desvalido na 17

    expressão artística escrita, atribuindo-lhe lugar inclusive como protagonista das obras.

    Aponta ainda Bueno que esse novo enfoque se apresentava como um problema para o

    intelectual que enveredasse por seus caminhos, já que muitas vezes este não era oriundo

    da mesma classe sobre a qual se propunha escrever.

    Insere-se então no campo da literatura, o problema de se trabalhar e vivenci-

    ar a experiência de outros mundos. No caso específico dos romances urbanos de Erico

    Verissimo, as nuances da vida social e política não são ignoradas pelo autor: sejam nos

    serões protagonizados por Vasco, Fernanda e Noel, em Saga ou Um lugar ao sol, seja

    nas conversas acaloradas em família no casarão de Tônio Santiago, o externo, ou seja, os

    fenômenos sociais agem como veículo da corrente criadora , atuando na constituição e 18

    desenvolvimento dos enredos.

    Em Sociologia, há de se ter cautela, pois como alerta Antonio Candido, “a

    mímese é uma forma de poiese” , e a tarefa do sociólogo não é a de substituir a do teó19 -

    rico literário, não ignorando, porém, que as obras não se desligam do contexto em que

    CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. São Paulo: Publifolha, 2000. p. 1. 16

    BUENO, Luís. O Romance de 30. São Paulo: EDUSP, 2006. 17

    Idem, p. 6.18

    Idem, p. 13.19

    ! 21

  • foram escritas. No caso brasileiro e mais especificamente dos romances regionais, os

    autores e entre eles, Verissimo, usam os planos político e social como cenário, já que se

    configuram como o caldo de cultura de suas obras. No caso da presente tese, o autor

    trabalhado pode se utilizar da mímese para transpassar a realidade, na criação de mundos

    intencionais , para demonstrar a transição de uma sociedade que aos poucos se destra20 -

    dicionaliza, evidenciando os conflitos enfrentados pelas personagens na sociedade que

    se aburguesa.

    O momento em que se produzem os romances regionalistas modernistas

    configura-se como uma época marcada pela catástrofe e a quebra de paradigmas que de-

    limitavam a certeza de se viver num mundo seguro. No caso brasileiro, a inocência se

    perde, de certa forma, com os resultados das rupturas ocorridas em contexto mundial - a

    Primeira Grande Guerra, o colapso da Bolsa em 1929, para dar dois exemplos (que oca-

    sionaram além do colapso físico, o de valores e instituições). Internamente, a sociedade

    sofreu a quebra da ordem de sucessão política vigente durante a República Velha. Luís

    Bueno diz que os personagens atuam num tempo de homens partidos, e a metáfora se 21

    faz muito apropriada. Entre o campo e a cidade, entre a tradição e a contemporaneidade,

    eles tentam escrever sua própria história. Como já abordado em A dominação, o tempo e

    o vento: dominação pessoal e patriarcalismo no romance histórico de Erico Verissimo , 22

    ROSENFELD, Anatol. et. al. A Personagem de Ficção. Perspectiva, SP, 2007.20

    BUENO, Luís. O Romance de 30. São Paulo. EDUSP, 2006. p. 399. 21

    MARQUES, Mariana Lima. A dominação, O tempo e o vento : dominação pessoal e patriarcalismo no 22romance histórico de Erico Verissimo. Dissertação de Mestrado. IFCH, Unicamp, 2009, disponível para download em http://www.bibliotecadigital.unicamp.br/document/?code=000447075.

    ! 22

    http://www.bibliotecadigital.unicamp.br/document/?code=000447075

  • uma das grandes características de um romance como O tempo e o vento é a de consistir

    na tentativa única de abranger as características brasileiras a partir de certa zona agrária,

    no caso, o Rio Grande do Sul. Os vários exemplos de obras compostas durante a década

    de 30 remontam à realidade brasileira. São Bernardo de Graciliano Ramos, Cacau, de

    Jorge Amado e O tempo e o vento são exemplos de produções que enfatizam a figura do

    coronel-pai e seu exército de agregados no engendro da sociedade brasileira.

    Não há aqui a pretensão de se tomar o lugar da Teoria Literária. Mas

    almeja-se fazer uma Sociologia da Literatura, onde a prioridade é o estudo da estrutura e

    a sua influência na escolha de temas e desenrolar de destinos em um determinado con-

    texto histórico-social. No caso do que se representa nos romances do Ciclo de Porto

    Alegre, a realidade matizada pelos acontecimentos evidenciados pela Revolução de 30

    agem para o escritor como elementos de estrutura literária, podendo ser estudado em si

    mesmo, em decorrência do importante cenário social e político que representam. Nesse

    sentido, o contexto social e histórico tem um papel decisivo nas obras que são compostas

    por Erico Verissimo no período entre 1933 e 1946. Não por acaso, muitos críticos atribu-

    em ao ciclo composto por Verissimo o cognome de “Romance Urbano”, escrita justa-

    mente no momento crucial da consolidação da Revolução Burguesa no Brasil. Os ro-

    mances se constituem naquilo que os caracteriza como textos modernistas da década de

    30. Assim, o Ciclo de Porto Alegre, se pensado como inscrito em sua condição histórica

    e levando-se em conta a experiência pessoal de Verissimo, pode, sim, ser pensado como

    uma obra que representa os novos moldes do Brasil, o qual se modernizou após a passa-

    ! 23

  • gem pela Revolução Burguesa. Ao tratar de problemas inerentes à formação de uma das

    principais capitais do Brasil, não renegando seus problemas sociais, o autor faz uma am-

    pla análise da capital Porto Alegre, tornando sua obra uma expressão da sociedade gaú-

    cha. Se posicionarmos tal idéia à proposta da presente tese, podemos antever que os

    modernistas, e no nosso caso específico, Verissimo se utilizam de tal artifício para que

    seus personagens se firmem na nova realidade social que se configura após a queda da

    República Velha, tentando se ajustar à nova realidade que se delineia sob seus pés.

    Erico Verissimo, além de exprimir a mesma intenção genealógica de

    definição da tradição local , cerne da vertente regionalista do movimento modernista, 23

    insere em seus romances algo mais: a crítica à transição do homem que se deslocou do

    campo para a cidade e os problemas e dilemas que estes personagens enfrentam neste

    cenário que lhes é inteiramente estranho. Segundo Antonio Cândido, o movimento mo-

    dernista rompe com o estigma do brasileiro idealizado na literatura, numa proposta de

    reinterpretação das deficiências como superioridades , o que Luís Bueno reescreve 24 25

    dizendo ser uma reconciliação do intelectual com a sua realidade. O autor de O romance

    de 30 nos diz que o herói de 30 incorpora aspectos da realidade social brasileira ao invés

    de se apresentar como um transformador. Bueno ainda nos coloca que o retorno ao pas-

    sado resulta como uma recusa às transformações mais severas em uma estrutura muito

    ROSENFELD, Anatol. et. al. A Personagem de Ficção. São Paulo: Perspectiva, 2007, p. 156. 23

    CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. São Paulo: Publifolha, 2000, p.11024

    BUENO, Luís. O Romance de 30. São Paulo: EDUSP, 2006, p. 16825

    ! 24

  • enraizada por aspectos tão tradicionais. A trajetória de Vasco Bruno, como se analisará

    adiante, é exemplar deste caso. Nas palavras de Maria da Glória Bordini,

    essa tendência secular de representar o que de passa no País na litera-tura, para conferir-lhe uma feição própria, se radicaliza na Geração de 30, que lhe atribui uma função não apenas identificadora, mas formati-va: o romance deve expressar o modo de ser das sociedades mais ou menos reacionários do Brasil, para, denunciando-as, conscientizar o povo para reagir contra elas. Ao nacionalismo tradicional reúne-se em 30 (na verdade, de 22), um projeto de modernização que lê o Brasil conforme a malha ideológica de cada grupo. Todos continuam buscan-do uma identidade, que varia segundo o ideário adotado e as formas de luta nele implicadas. 26

    Em O discurso e a cidade , Antonio Candido nos diz que o escritor, ao 27

    compor sua obra, constrói um mundo novo, em um processo em que o ponto de partida é

    a sociedade e o ponto de chegada, o texto em si. Para a realização desse novo universo, o

    autor do romance moderno se utiliza daquilo que Candido conceitua como redução es-

    trutural. Valendo-se dela, o autor usa de seus artifícios para dotar a sua obra da impres-

    são de verdade.

    Erico Verissimo se apropria da realidade que lhe é tão cara – a de Porto Ale-

    gre – para evidenciar a situação de uma capital brasileira que se transforma em decor-

    rência do período pelo qual o Brasil passa - A Revolução Burguesa. Ao construir seu

    mundo urbano naquele que denominamos de “Ciclo de Porto Alegre”, destaca trajetórias

    daqueles que são oriundos de uma oligarquia falida e que representam um Rio Grande

    BORDINI, Maria da Glória. Criação literária em Erico Verissimo. Porto Alegre: L&PM e EDIPUCRS, 261995, p.56.

    CANDIDO, Antonio. O Discurso e a Cidade. São Paulo: Duas Cidades, 2004, 27

    ! 25

  • que só se faria presente, a partir de então, nas tradicionais festas do 20 de setembro . Ao 28

    fundar a estrutura da obra em um contexto histórico de profundas transformações soci-

    ais, políticas e econômicas para o Brasil, Erico Verissimo faz da realidade o cenário para

    o desenlace de destinos daqueles que migraram para Porto Alegre e que se sentem deslo-

    cados numa nova ordem de coisas que não corresponde à formação de seu ethos.

    Assim, ao trabalhar a dinâmica de uma nova realidade, a posterior à

    Revolução de 30 no Brasil, Erico Verissimo transforma os dados históricos em elemen-

    tos de composição da estrutura de suas obras, que são assim, dotadas de realidade. Nas

    palavras de Candido, a capacidade do autor de “intuir” associa-se com o elemento oculto

    que totaliza na obra aquilo que parecera mero elemento parcial. Dessa forma, a genera29 -

    lidade que se cria dá consistência à junção do real com fictício, que darão forma à obra

    que se constrói.

    20 de setembro é o dia em que se comemora, no Rio Grande do Sul a Revolução Farroupilha, e por ex28 -tensão, o Tradicionalismo gaúcho.

    CANDIDO, Antonio. O Discurso e a Cidade. São Paulo: Duas Cidades, 2004, p. 30. 29

    ! 26

  • CAPÍTULO 2

    O CAMINHO DA REVOLUÇÃO À BRASILEIRA

    “Sem dúvida, nenhuma revolução sepulta o passado de um povo” Florestan Fernandes

    Os romances que delineiam o chamado “Ciclo de Porto Alegre” são

    concomitantes ao novo desenho que também toma os rumos do Brasil, que se depreende

    da chamada República Velha para inaugurar um novo ciclo de sua vida política com a

    Revolução de 30, embora esta consista mais numa tentativa de modernização conserva-

    dora que uma revolução de fato.

    Para tecer tal análise, se fará o contraponto entre algumas teses acerca da

    Revolução Brasileira: a da revolução burguesa, adotada por Florestan Fernandes em Re-

    volução burguesa no Brasil e a tese defendida pelo autor Luiz Werneck Vianna em A 30

    revolução passiva , que contemplam bem o estudo das mudanças sociais, econômicas e 31

    políticas da época na presente tese abordada, assim como a análise da Revolução de 30

    feita por Bóris Fausto em seu livro homônimo.

    Dessa forma, se adotará a teoria de que nossa Revolução de fez de forma

    passiva, com influência de componentes inerentes à nossa formação política e social ad-

    vindas da herança ibérica que possuímos devido aos mais de trezentos anos de coloniza-

    FERNANDES, Florestan. A Revolução Burguesa no Brasil. São Paulo: Globo, 2005. 30

    VIANNA, Luiz Werneck. A Revolução Passiva. Rio de Janeiro, Revan, 1997. 31

    ! 27

  • ção portuguesa. Para Weneck Vianna , o iberismo que nos é tão inerente não foi herda32 -

    do: ao incorporá-lo, a ex-colônia tem para com a metrópole uma atitude de solidarieda-

    de, da qual o Estado que se forjou foi convertendo a ordem em uma outra que lhe seria

    conveniente. Neste sentido, o iberismo seria então a formalização das práticas e institui-

    ções do Estado metropolitano que se ampliaram no Brasil na tentativa conservadora de

    modernização comandada por uma elite que não conseguiu ser responsável pela integra-

    ção política. O novo que se instaura não cancela a antiga ordem social, onde a principal

    direção que se tomou foi a de conservar mudando, configurando então aqui um processo

    intimamente ligado às características ibéricas . 33

    O Brasil seria então uma Ibéria renovada, onde, para não se perder o “bonde

    da história”, os estamentos políticos tomaram para si a tarefa da industrialização do país

    principalmente durante os anos vigentes da política econômica do Estado Novo. Mesmo

    que a industrialização fosse impulsionada pela intenção burguesa, os estamentos tradici-

    onais acabaram atuando em setores importantes como gestão da administração e exérci-

    VIANNA, Luiz Werneck. A Revolução Passiva. Rio de Janeiro, Revan, 1997, p. 19. 32

    Vale ressaltar que o que em muitos livros sobre pensamento social brasileiro e análise de nossa forma33 -ção se denomina iberismo, não se configura com o mesmo sentido ao ser estudado na Ibéria. Na Espanha e em Portugal, o Iberismo representa uma importante vertente ideológica que renasceu apoiado nas manifes-tações do liberalismo e nos exemplos de unificação da Alemanha e da Itália, na segunda metade do século XIX. Muito embora possam ser observados intentos a esse respeito desde a mais tenra história da Penínsu-la Ibérica (sendo consolidada a união em 1580, depois da morte de D. Sebastião, até a Restauração em 1640), a formalização de um projeto se tornou realidade com este movimento que teve características tanto políticas como intelectuais. A questão do Iberismo ficou, porém, adormecida durante o período ditatorial que assolou a Península, sendo o tema posto em pauta apenas após a queda de Salazar e Franco, na década de 70 do século XX. Dentre os intelectuais que colocaram o Iberismo em pauta, está, por exemplo José Saramago. No Brasil, quando trata-se de iberismo na herança social brasileira, diz-se da influência dos padrões administrativos de Portugal e Espanha no cerne social e suas consequências em nossa formação. Tais vissicitudes foram alvo de pesquisa durante o período de Doutorado Sanduíche, financiado pela CA-PES no período de Agosto de 2013 à Julho de 2014, sob orientação do professor António Sáez Delgado, na Universidade de Évora.

    ! 28

  • to, por exemplo. Nesse sentido, o governo Vargas, a partir daquela que se denomina Re-

    volução de 30, proporcionou às massas uma série de reformas que deram a impressão da

    democratização de direitos aos excluídos do processo revolucionário, mesmo que o Bra-

    sil da desordem sempre imperasse sobre o Brasil da ordem, como bem trabalhou Antô-

    nio Cândido . Assim, pode-se dizer que a política atuou como libertadora das forças 34

    produtivas e não o contrário, como aconteceria numa revolução autenticamente liberal.

    Nossa estrutura social, singularmente marcada pelo advento de uma inde-

    pendência sem ruptura, pela manutenção do legado ibérico de governo em decorrência

    de um processo de independência que fora orquestrado pelas elites e de uma transição

    republicana que se engendrou sob os mesmos moldes, caracteriza-se desde então pelo

    diálogo entre a ordem, caracterizada pelo mundo burocratizado e maculado pelo libera-

    lismo; e a desordem, onde prevalecem os desígnios tradicionais e paternalistas de nossa

    formação social e política.

    Segundo Luiz Werneck Vianna, no Brasil, os movimentos revolucionários

    são articulações que atuam com a intenção de evitar que mudanças incisivas aconteçam

    de fato: tais movimentos atuam na intenção de evitar a revolução , Tal fato que pode35 -

    Para analisar Memórias de um sargento de milícias, Antônio Cândido desenvolve a chamada dialética 34da malandragem, onde o indivíduo recorre à prática da malandragem por se situar no limiar da ordem e a desordem social. O conceito fora retomado por Roberto Schwarz em “Pressupostos, salvo engano, de ‘Dialética da Malandragem’”, no livro Que horas são?, servindo como base para o trabalho que aqui se apresenta. Schwarz apresenta a malandragem como sabedoria genérica de sobrevivência em um mundo sem culpa, intermediando a vida do homem livre em uma sociedade de características marcadas pela he-rança da escravidão. Desse modo, o malandro vive numa esfera intermediária, não prescindindo da ordem nem vivendo fora dela. Cf. CANDIDO, Antonio. O discurso e a cidade. Duas Cidades: São Paulo, 2004 e SCHWARZ, Roberto. Que horas são? São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

    VIANNA, Luiz Werneck. A Revolução Passiva. Editora Revan, RJ, 199735

    ! 29

  • mos analisar em momentos decisivos de nossa história, como no processo de Indepen-

    dência, na chamada Revolução de 30 e no golpe militar de 1964, insistentemente deno-

    minado por alguns de forma errônea como “Revolução”. A revolução passiva é a revolu-

    ção sem revolução, sem a presença fundante das massas, pois se “evita varrer demasiado

    resolutamente todos os restos do passado” da história social. 36

    No prefácio da 5ª edição do livro de Florestan Fernandes, José de Souza

    Martins diz que “o país do futuro” não tinha futuro. O futuro do Brasil, a partir dos mo-

    vimentos de ruptura - mesmo que ocorressem sem ruptura no sentido marxista do termo

    (a exemplo do que se pode analisar nos processos de 1822, 1889 e 1930), se configuraria

    como uma repetição de referências de estruturas do passado, que viria “maquiada por

    uma modernidade postiça relutante” . A partir daí teríamos a luta entre os dois Brasis: o 37

    arcaico e o moderno, num processo revolucionário oposto ao que sucedeu na Europa e

    que legaria ao Brasil um capitalismo dependente.

    Segundo a tese de Florestan, aquilo que poderíamos considerar como

    germe do espírito burguês teria tido seu impulso após o processo de Independência do

    Brasil, em 1822, mesmo que a figura do capitalista de fato tenha aparecido aqui tardia-

    mente. Outrossim, até 1888, ano em que os escravos deixaram as senzalas para contri-

    VIANNA, Luiz Werrneck. A Revolução Passiva. Editora Revan, RJ, 1997, p. 98. 36

    MARTINS, José de Souza. Prefácio, In: FERNANDES, Florestan. A Revolução Burguesa no Brasil. 37São Paulo: Globo, 2005, p. 16.

    ! 30

  • buírem para a monetarização da economia, tivemos aqui apenas um arremedo de capita-

    lismo , ainda mediado por conjunturas puramente estamentais. 38

    O processo que se engendra através da modernização iniciada com a

    transferência da corte portuguesa para o Brasil em 1808 é o de que os senhores rurais

    são capazes de romper o seu isolamento com a organização de um Estado Nacional que

    os faz emergir e os projeta para o cenário econômico das cidades em pleno desenvolvi-

    mento. Surgem então novos tipos sociais, estes menos ligados às formas estruturais da

    tradição senhorial. Na tese defendida por Florestan, a Independência seria a primeira

    grande Revolução, que marcaria a era colonial. Com ela se iniciaria a sociedade nacional

    de fato no Brasil, sacramentando o rompimento com o status colonial, muito embora te-

    nha sido este um processo inteiramente comandado pelas elites, que mantiveram várias

    de suas prerrogativas. Estas, a partir da formação ou forja deste novo Estado Nacional,

    passaram a manipulá-lo como forma de garantia de seus interesses.

    Logo, temos uma via de mão dupla no processo que se configura: ele

    revoluciona, na medida em que transforma toda uma estrutura e atua como conservador

    na medida em que mantém uma ordem que anteriormente não detinha autonomia neces-

    sária para engendrar o florescimento de uma nação. Nesse sentido, a herança ibérica se

    reconstrói no movimento por meio do qual as elites se apropriam do Estado, transfor-

    mando-se em estamento político e se reconfigurando em elites modernas.

    FERNANDES, Florestan. A Revolução Burguesa no Brasil. São Paulo: Globo, 2005, p. 35.38

    ! 31

  • O liberalismo atuou como uma forma de quebrar as amarras com o

    estatuto colonial, redefinindo a condição do Brasil que continuaria a estar dependente

    dos mercados externos durante ainda boa parte de sua história econômica. Embora tenha

    apresentado suas influências, principalmente no período dos anos que sucedem 1822, o

    liberalismo se constituiu como uma realidade histórica apenas para uma minoria privile-

    giada, fazendo com que o elemento senhorial se transfigurasse para o status de

    cidadão . Em outras palavras, o liberalismo à brasileira teria sido climatizado e serviria 39

    como pano de fundo para o desenlace da revolução forjada, tendo como base tradições

    decididamente ibéricas. Como forte exemplo disso destaca-se a tradição territorialista

    do Brasil.

    Os estamentos assimilaram a nova ordem e a converteram em dominação

    estamental propriamente dita: sociedade civil e estamentos sociais dominantes passaram

    a ter, então, o mesmo significado. Há uma dualidade representada por tradição e buro-

    cracia, mas há na estrutura que se forja em nosso país a prevalência da tradição, o que

    impede, de certa forma, a quebra entre passado e presente. Nas palavras de Florestan,

    “(...) a chamada massa de cidadãos ativos servia de pedestal e de instrumento aos cida-

    dãos prestantes, a verdadeira nata e os autênticos donos do poder naquela sociedade ci-

    vil” . Nosso liberalismo não aconteceu para consagrar a liberdade, mas sim para sus40 -

    tentar a ordem e a autoridade do Estado Nacional forjado em revoluções que de fato não

    FERNANDES, Florestan. A Revolução. Burguesa no Brasil. São Paulo: Globo, 2005, p 58.39

    Idem, pp. 59-6040

    ! 32

  • foram. Dessa forma, a nossa revolução passiva é obra dos estamentos políticos que cri-

    am uma nação para o Estado que os representa e se apresenta como oposta à revolução 41

    norte-americana, cuja herança racionalizadora acaba criando uma internalização do Es-

    tado, suprimindo a oposição aqui existente entre o público e o privado . 42

    Sérgio Buarque de Holanda, no clássico Raízes do Brasil, diz que no Brasil

    imperou desde os anos iniciais da colonização o modelo de família patriarcal. Tal estru-

    turação acarretou um desequilíbrio social, onde os futuros dirigentes dos centros urbanos

    advindos da experiência de dominação senhorial, teriam dificuldade em fazer a separa-

    ção entre os aspectos públicos e privados. Nossa tradição consolidará a prática de atri-

    buir funções do serviço público àquelas pessoas de confiança pessoal, desrespeitando a

    ordem burocrática. A instituição familiar, então, será decisiva na constituição da estrutu-

    ra das cidades e as relações da vida doméstica serão parâmetro para as composições so-

    ciais brasileiras.

    Emerge das profundezas das estruturas senhoriais tradicionais com os

    novos moldes aquele que vem ser chamado por Florestan Fernandes de “senhor-cida-

    dão” , que dimensiona o poder em novas bases, tendo como foco o alcance do poder 43

    político: o poder do senhor tem a perspectiva, agora, de ir além das barreiras do enge-

    nho. Mesmo que acanhada, a ordem legal se mostrou e teria permanecido ainda mais

    VIANNA, Luiz Werneck. A Revolução Passiva. Editora Revan, RJ, 1997. 41

    FERNANDES, Florestan. A Revolução Burguesa no Brasil. São Paulo: Globo, 2005, p. 80.42

    Idem, p. 6043

    ! 33

  • fechada se não fossem as influências do liberalismo. Porém, “(...) a ordem legal perdia

    sua eficácia onde ou quando colidisse com os interesses gerais dos estamentos senhori-

    ais” , num movimento onde se pode inferir que aqui, o liberalismo não se configurou 44

    como uma ideologia de massa, confinando-se aos quadros políticos das elites . 45

    A herança ibérica, então, se faz presente. Transferiu-se para a colônia toda

    a cultura política da Ibéria, cerceando os caminhos do Brasil em direção à modernização

    do Estado que então tentava se consolidar. Os domínios rurais e os tipos de família regi-

    das pelas normas clássicas do direito canônico da Península Ibérica serão a base de toda

    a nossa organização social . Tal transplante gerou aqui a formação de um patriarcado 46

    rural de vocação doméstica que, formando todo um complexo social dentro da esfera dos

    grandes latifúndios, faria desta unidade autárquica, nas palavras de Werneck Vianna, a

    nossa maior escola social . Tal ordem de acontecimentos teriam legado aos burgueses 47

    não o costumeiro papel revolucionário, mas uma atuação secundária, sendo que os pró-

    prios centros urbanos seriam subordinados ao domínio dos ‘senhores’. Sendo cada lati-

    fúndio uma unidade distinta, a solidariedade social não se desenvolveu entre nós, os her-

    deiros ibéricos. As diversas esferas de poder se organizavam através de vínculos biológi-

    cos e afetivos, formando um todo indivisível, onde o amalgama associativo se configura

    FERNANDES, Florestan. A Revolução Burguesa no Brasil. São Paulo: Globo, 2005, p. 64. 44

    VIANNA, Luiz Werneck. A Revolução Passiva. Rio de Janeiro, Revan, 1997, p. 18.45

    HOLANDA, Sergio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, p. 81. 46

    Idem, p. 17147

    ! 34

  • na rede regida por sentimentos e deveres e nunca por interesses e idéias, como diz Sérgio

    Buarque de Holanda . 48

    Nesse sentido, podemos dizer que o passado colonial de certa forma

    acaba se convertendo em modelo para a situação que irá se configurar no presente ou

    ainda, que a dominação que se inaugurou com o modelo instaurado pela metrópole não

    foi superada e se prolongou, o que nas palavras de Richard M. Morse , impede que o 49

    presente se torne história. Para as elites senhoriais, manter essa prerrogativa seria a único

    caminho para delinear o futuro do país. Acontece, então, uma revolução dentro da ordem

    a partir do movimento de Independência de 1822, que funcionou como via de autorreali-

    zação dos estamentos senhoriais, dando a eles privilégio político e exclusivismo social,

    configurando a “necessária” comunidade solidária que se consolida na emergência de

    um “Estado Nacional”. A manutenção dos estamentos senhoriais seria a condição para o

    rompimento com o estatuto colonial, construindo uma nova ordem a partir das heranças

    deixadas pela colonização. Os estamentos transformaram o Brasil em nação, estendendo

    a dominação do plano do domínio para a coletividade através da burocratização. A mo-

    dernização então é feita de cima para baixo por aqueles que são dissidentes das oligar-

    quias rurais, não apresentando nenhum elemento novo na tentativa de constituição do

    Estado burguês. Nossa modernização foi feita compromissada com as estruturas funda-

    das no passado.

    HOLANDA, Sergio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, p. 79. 48

    MORSE, Richard M. O Espelho de Próspero. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. 49

    ! 35

  • Os estamentos senhoriais agiram de forma produtiva na emergência da na-

    ção, controlando ao mesmo tempo a economia e o Estado, assim como a vida social.

    Dessa forma, foram responsáveis pela modernização incipiente do país naquele determi-

    nado momento histórico que se configurava nos anos que sucederam 1822. Algumas

    áreas apresentaram o salto positivo, porém, no que tange às instituições políticas e jurí-

    dicas, pode-se dizer que se converteram em instrumentos de dominação patrimonial e

    estamental . Assim, a influência do liberalismo ocorreu apenas quanto aos aspectos re50 -

    volucionários “formais”. Nas palavras de Florestan Fernandes,

    “(...) por ser um amálgama, ele preencheu as funções mutuamente ex-clusivas e inconsistentes a que devia fazer face, estendendo a organiza-ção política e a ordem legal através e além do vazio histórico deixado pela economia colonial, pelo mandonismo e pela anomia social” . 51

    O nosso popular é um homem que por sua natureza procura um chefe e

    sofre um doloroso dilema pessoal quando tem que agir por si só . A forma de solidarie52 -

    dade deturpada que se estabelece aqui na América ibérica é baseada no compadrio e nos

    laços de dependência, impossibilitando a emergência do cidadão de fato. Tal centraliza-

    ção na figura paternal do compadre, do coronel, ou do caudilho, paradoxalmente atribui

    ao popular alguns direitos ou liberdades apenas possíveis dentro desta esfera protecionis-

    ta. O Estado aparece como o único capaz de se responsabilizar pela construção da ordem

    FERNANDES, Florestan. A Revolução Burguesa no Brasil. São Paulo: Globo, 2005, p. 87.50

    Idem, pp. 90-91. 51

    VIANNA, Luiz Werneck. A Revolução Passiva. Editora Revan, p. 172. 52

    ! 36

  • viável através do poder pessoal, características ibéricas. Nas palavras de Morse , o 53

    mundo ibero-americano se fundou sob uma base ainda não desencantada pelo cientifi-

    cismo que ajudara a moldar a América anglosaxônica. Assim sendo, as pessoas percebe-

    riam os sistemas de poder como a elas exteriores e passíveis de manipulação mediante o

    controle do sistema de votos e promessas particulares em mundo mediado por estruturas

    de dominação.

    As mudanças que se deram a partir do processo de independência não con-

    sistem em uma reviravolta econômica propriamente dita, já que a emergência dos esta-

    mentos senhoriais acabou por revitalizar a empresa agrícola como força motriz da eco-

    nomia brasileira então fortemente dependente do uso da mão-de-obra escrava. A ordem

    que se consolidaria persistiu à desagregação patrimonial e à abolição da escravatura.

    O que se propõe em A Revolução Burguesa no Brasil é que houve duas

    linhas de desenvolvimento capitalista no país: uma primeira, engendrada pela coloniza-

    ção e ligada à empresa agrícola e o mercado exterior, e uma segunda representada pela

    autonomização política e a criação de um Estado Nacional, que acabou não acarretando

    em uma autonomização econômica ou estamental . Apesar do alavancamento econômi54 -

    co que se processou com as alterações políticas no país, a situação de mercado aqui vi-

    gente não condizia com a condição de país dependente e perifErico, sendo o desenvol-

    vimento brasileiro essencialmente interno e mais ligado aos núcleos urbanos em desen-

    MORSE, Richard M. O Espelho de Próspero. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. 53

    FERNANDES, Florestan. A Revolução Burguesa no Brasil. São Paulo: Globo, 2005, p. 106.54

    ! 37

  • volvimento. Nosso principal aspecto de modernização econômica se deu sob a influência

    das elites nativas, responsáveis pelo controle do Estado. Embora organizada através de

    uma ordem legal e política controlada de dentro e para dentro, a economia brasileira tan-

    to produzia quanto consumia para fora . 55

    Estabeleceu-se no Brasil, então, uma ética econômica que tinha íntimo

    interesse em coordenar-se com interesses econômicos que prevaleciam na relação que

    tinha o país com o exterior. Mesmo que preso ao capital exterior e apesar de considerar

    Florestan que não tenha sido em condições revolucionárias, houve sim transformações

    econômicas no que tange ao liberalismo, que passou a organizar as novas bases da eco-

    nomia, podendo se observar no Brasil, pela primeira vez, o palco propriamente burguês e

    uma situação de mercado emergente. Havia, porém, um movimento pendular que oscila-

    va entre o liberalismo e o controle estamental da economia do país: ordem e desordem

    sempre presentes. Mesmo que a elite fosse entusiasta de mudanças e partilhasse de al-

    gumas idéias civilizatórias, as atitudes autoritárias que se fizeram presentes em nossos

    processos revolucionários denunciavam fortemente a nossa herança ibérica. Ao compa-

    rar a revolução burguesa tardia que ocorre na Íbero-América ao caso alemão, por exem-

    plo, destaca Morse que ambos os casos apresentam um modelo desenvolvimentista bu56 -

    rocrático que acabou por entrevar a prática parlamentar em governos com tendências

    fortementes autoritárias.

    FERNANDES, Florestan. A Revolução Burguesa no Brasil. São Paulo: Globo, 2005, p. 111. 55

    MORSE, Richard M. O Espelho de Próspero. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. 56

    ! 38

  • O Estado brasileiro do pós-independência é territorialista e se baseará no

    trabalho escravo que fora incentivado pelas intenções mercantilistas da metrópole ibéri-

    ca. O compromisso que se tem é o de realizar um Estado que se pretende liberal com

    meios caracteristicamente pré-capitalistas. Nas palavras de Werneck Vianna, no Brasil,

    “o liberalismo é prisioneiro do iberismo”, já que o liberalismo, aqui, não renovou ati57 -

    tudes ou instituições coloniais. A bem da verdade, a vinda e a ação inovadora dos imi-

    grantes acabaria, como diz José Carlos Mariátegui , por permitir a evolução da demo58 -

    cracia burguesa em países como o Brasil e a Argentina, sendo ainda mais tardia em ou-

    tros países da América ibérica pelo que o autor chama de “resquícios feudais”.

    Segundo Florestan Fernandes, o novo setor que se inaugurou a partir da

    autonomização política “possuía um circuito capitalista suficientemente diferenciado e

    complexo para ordenar-se e crescer em função das condições materiais e morais do am-

    biente” . Assim, podemos dizer que os senhores rurais deslocavam suas atividades para 59

    a economia urbana, direcionando suas ações para o setor capitalista. A modernização

    influenciou uma nova visão cultural, a do mundo mercantil, ao mesmo tempo em que

    contrastava com a ética estamental. O nosso homem de negócios ia se transfigurando em

    homo economicus.

    VIANNA, Luiz Werneck. A Revolução Passiva. Rio de Janeiro, Revan, 1997, p. 46. 57

    MARIÁTEGUI, José Carlos. Siete ensayos de interpretación de la realidad peruana. Santiago de Chile: 58Editorial Universitaria, 1955.

    FERNANDES, Florestan. A Revolução Burguesa no Brasil. São Paulo: Globo, 2005, p. 126. 59

    ! 39

  • Se, no começo de nosso processo revolucionário, o senhor agrário renegava

    o status de burguês para se garantir na aristocracia rural e conseqüentemente no coman-

    do do Estado, no contexto da Proclamação da República houve a inversão de valores: o

    senhor se aproxima do elemento burguês para se transformar no “cidadão

    republicano” . Porém, a perpetuação da tradição senhorial indica que a defesa do status 60

    seria para esse cidadão tão importante quanto a riqueza adquirida. Nesse sentido, a fa-

    zenda representaria a base material do domínio e círculo de poder do senhor, direcionan-

    do a metamorfose do senhor agrário em homem de negócios como a única saída. Assim,

    a inauguração do ciclo do café nos apresenta uma visão dual: o barão é ao mesmo tempo

    coronel e homem de negócios. Em contrapartida, não democratiza seu comportamento,

    estabelece controles pessoais que propiciam a continuidade de seu mando. Para isso, o

    barão apegou-se ao poder político para preservar sua dominação estamental e recorreu

    ao nepotismo para se fazer sobreviver entre os estratos dominantes. A garantia que se

    procura é a de domínio mercantil dentro da ordem, favorecendo, assim, a formação de

    verdadeiras malhas de poder . 61

    Os barões do café apresentam uma nova mentalidade econômica, uma vez

    que se relacionam de forma diferente com o mercado. Seu poder não advém somente do

    status senhorial: precede também de sua situação econômica e visam expandir através de

    seu poder financeiro a sua produção agrária. Tal situação contrasta e muito com a dos

    FERNANDES, Florestan. A Revolução Burguesa no Brasil. São Paulo: Globo, 2005, p. 130. 60

    Idem, p. 142. 61

    ! 40

  • produtores agrários originais. “Estabeleceu-se uma ruptura entre as ‘normas ideais’ e o

    ‘comportamento prático’ em matérias essenciais para o código senhorial” . O barão 62

    nega e supera o senhor agrário ao ceder à pressão estrutural do capitalismo comercial.

    No Brasil, a ordem competitiva foi se instaurando paulatinamente a partir

    da desintegração da ordem escravocrata, que possibilitou a reorganização das relações de

    produção. O que se almejou foi modificar a ordem sem se colocar em risco o privilégio

    daqueles que a controlavam. Os estamentos, ao terem em seu horizonte a prática capita-

    lista, não aceitaram o autocontrole do mercado. O suporte que a economia precisaria vi-

    ria do controle senhorial, tanto da economia quanto da sociedade. Porém, todo seu poder

    não seria suficiente para modificar dinamismos, flutuações e situações de mercado ad63 -

    vindas da nova situação que aos poucos ia se configurando.

    A relação senhor - escravo teria prejudicado as bases da vida moral e

    política, tornando difícil a individualização ou a transformação do indivíduo. Nas pala-

    vras de Florestan, “seria preciso lembrar que no cosmos senhorial só pode existir um

    tipo de individualismo, que nasce da exacerbação da vontade”.

    Não houve ruptura do burguês com os estamentos senhoriais justamente

    porque quem mais encarnava o espírito burguês neste período, os barões do café, identi-

    ficavam-se com o ethos estamental consolidado em anos de Brasil Colônia, firmando-se

    o poderio burguês durante a fase de transição entre o Império e a República. Não há in-

    FERNANDES, Florestan. A Revolução Burguesa no Brasil. São Paulo: Globo, 2005, p. 148. 62

    Idem, p. 185.63

    ! 41

  • tenção alguma de ruptura em tal processo: nossa revolução se fez de forma passiva, onde

    o latifundiário coexistiu com um trabalhador livre peculiar, que detém fortes laços de

    dependência para com esse senhor que se mercantiliza na nova realidade social.

    A burguesia incipiente vinha de meios provincianos e rurais e era for-

    temente atraída pelo ethos oligárquico, além de inserida em um horizonte caracterizado

    por práticas estamentais. O mesmo mandonismo de outrora seria posto em prática pelo

    burguês em formação, que agiria de forma conservadora sempre que necessário. Havia a

    construção e a existência formal de procedimentos democráticos. Porém, eles eram ino-

    perantes dentro da nossa tradição. A democracia que se constitui a partir de então é do

    tipo burguês brasileiro: é restrita às rodas de poder; o liberalismo serviu de impulso para

    a Independência, porém, não entrou em concordância com as estruturas que estavam

    aqui impostas, como trabalho escravo e traços de clientelismo. O liberalismo foi utiliza-

    do a favor da formação do Estado Nacional e não para consagrar a liberdade e a igualda-

    de de direitos.

    Constituiu-se uma nova aristocracia. Neste sentido, foi a oligarquia que de-

    cidiu os rumos de nossa Revolução Burguesa, pois inovar e preservar estruturas só lhe

    interessava como instrumentos econômico e político. Logo, há, no Brasil a fusão do ve-

    lho e do novo, da antiga aristocracia comercial e dos imigrantes emergentes, prevalecen-

    do a lógica burguesa da oligarquia, visando a preservação e a renovação de estruturas de

    poder.

    ! 42

  • No período da República Velha, (1889-1930) o Estado não representa qual-

    quer classe: ele representa a si próprio e em sua engrenagem articula grupos de classes

    sociais emergentes da realidade que se apresenta no pós-1889, mantendo, porém, os tra-

    ços de uma sociedade tradicionalmente patrimonialista . É um período também caracte64 -

    rizado por avanços econômicos que priorizaram interesses regionais em detrimento de

    um projeto nacional: as regiões obtiveram um desenvolvimento desigual, e, às vésperas

    da Revolução de 30, aqueles que controlavam o governo já não representavam de modo

    direto os grupos sociais hegemônicos.

    Durante os anos que caracterizam a República Oligárquica, houve um surto

    imigratório com ênfase no que tange ao Centro-Sul do Brasil. Com isso, há o crescimen-

    to de uma classe média urbana e o surgimento do primeiro núcleo de classe operária. O

    cenário político caracterizado pela sequência de presidentes paulistas até o início dos

    anos 20 demonstrava a harmonia existente entre as classes dominantes e as dirigentes. A

    partir da década de 20, os paulistas tiveram que dividir o poder com mineiros e gaúchos,

    estes últimos que aos poucos iam rompendo seu isolamento enquanto os paulistas iam,

    nas palavras de Boris Fausto, se entrincheirando em seu estado . 65

    Houve, então, com a Revolução de 30, a abreviação do poder oligárquico por

    meio da instituição de um poder autoritário impul