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A GUENIZA DE MARÍLIA: Um mergulho na memória junto com alunos de graduaçãoTRANSCRIPT
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Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista ―Júlio de Mesquita Filho‖, São Paulo, Brasil.
9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9
A GUENIZA DE MARÍLIA
Um mergulho na memória junto com alunos de graduação
Heloisa Pait 1
Resumo: A Gueniza do Cairo é um arquivo repleto de textos medievais, descoberto entre o fim do
século XIX e início do XX, que revelou todo um universo de trocas culturais, comerciais e hábitos
cotidianos de uma comunidade judaica com laços por todo o mundo islâmico da época. Ela nos
coloca inúmeras questões: o que é memória? como ela é repassada de geração em geração? que
significado tem para a geração presente?
Esse artigo retrata as peripécias de um curso de graduação inspirado em parte nos relatos sobre
a Gueniza do Cairo. O curso pretendeu, a partir de histórias familiares, refletir sobre a memória
e relatar a história usando recursos literários. As interações do cursos, as descobertas dos alunos
e da própria professora ao longo desse mergulho simbólico são trazidas para o leitor. A maior
parte dos alunos é originada de culturas fortemente orais. Mesmo assim, o passado remoto foi
resgatado através da observação de hábitos mais que de narrativas, mostrando uma pluralidade
de formas de lembrar: a cozinha, o cantar junto, presentes de viagem, lembranças de
assombração, uma barragem que causa uma cicatriz numa cidade de fronteira.
O curso, na fronteira entre o criar e o fazer científico, desmente o chavão de que “o brasileiro
tem pouca memória”: basta oferecer o espaço para que a memória dos fatos e da imaginação
venha à tona...
Palavras-Chave: Memória. Interior de São Paulo. Escrita criativa. Ensino superior. Oralidade.
1. A Gueniza do Cairo: forjando um curso
A Gueniza do Cairo é um arquivo repleto de textos medievais, descoberto entre o fim
do século XIX e início do XX, que revelou todo um universo de trocas culturais, comerciais e
hábitos cotidianos de uma comunidade judaica com laços por todo o mundo islâmico da
época. A existência do arquivo se deve ao respeito judaico geral pela palavra escrita; textos
que contenham, em especial, o nome de Deus, não podem ser descartados sumariamente. Os
responsáveis por uma sinagoga em Fustat, o Cairo Antigo, por precaução, amontoaram num
sótão todos os textos produzidos por aquela comunidade, desde registros civis até poesias,
certificados de compras a interpretações teológicas, cartas de gente importante a fuxicos
comunitários, e lá deixaram tudo por mil anos.
Cautelosamente estudados por pesquisadores ao longo do último século, os textos da
Gueniza do Cairo trouxeram de volta aquele mundo medieval, como contam Adina Hoffman
1 Heloisa Pait fo i bolsista da Comissão Fulbright e atualmente é professora de sociologia da UNESP de Marília.
Sua tese de doutorado, defendida na New School for Social Research, em Nova York, trata dos desafios
individuais diante da comunicação mediada. Agora ela investiga a participação de brasileiros na nova esfera
comunicativa global. Como educadora, Helo isa busca formar cidadãos aptos a pensar de modo autônomo e a
expressar suas idéias na vida pública. Helo isa escreve para o público não-especializado sobre mídia e cultura
política e também escreve ficção. Sua página na UNESP (www.marilia.unesp.br/helopait) contém informações
adicionais.
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e Peter Cole em seu fascinante livro ―Sacred Trash: the lost and found world of the Cairo
Geniza‖ (Hoffman e Cole, 2011). Cheguei a esse livro através de outro mais incrível ainda:
uma biografia de Yehuda Halevi, escrita por Hillel Halkin (Halkin, 2010), que resgata a
poesia do importante poeta Andaluz assim como sua vida na Espanha moura e cristã e sua
passagem por Alexandria e Fustat, no Egito. Ler o livro de Halkin me fez conhecer tão bem
esse Halevi — seus sonhos, suas perdas, seus negócios, sua poesia —, que me imaginava
tomando café com ele em alguma dessas paradas da vida para trocar idéias, quem sabe até
alguns textos (Pait, 2012a).
Acredito que nós, cientistas sociais, somos feitos de outra matéria de que os
historiadores. Pensamos na lógica das ações humanas, seja no mercado, numa briga de galo,
numa esquina de cidade grande ou num parlamento. Olhamos a sociedade um pouco assim de
cima pra baixo, como quando num passeio na mata nos deparamos, fascinados, com um
imenso formigueiro. Mesmo quando chutamos o formigueiro, pra ver o que acontece, logo
voltamos à posição de observadores atentos, curiosos para ver como se dará o novo equilíbrio,
que é o que fundamentalmente nos interessa. Os historiadores não. Eles vêem o mundo em
movimento. Ler ―O Mediterrâneo‖ de Fernand Braudel (Braudel, 1995), por exemplo,
equivale a deitar na grama e ficar olhando as nuvens se transformarem em cor, forma e
textura: Braudel resgata mundos passados e vai nos dizendo sutilmente como somos nós
filhos desses mundos, dessas gentes que vão pra lá e pra cá, abrindo negócios e portos.
Mas somos pessoas plásticas e com alguma ajuda conseguimos transpor essa barreira do
tempo. Assim é que eu, cientista social mesmo que sem um campo disciplinar definido, me
aventurei nos últimos tempos pela história humana que aconteceu antes da invenção da
imprensa, que é mais ou menos o Big Bang da ciência social e de uma tal ―modernidade‖. Li
sobre a invenção do alfabeto e até sobre a origem da linguagem, estudei o período bíblico e
me inteirei da sofisticação da civilização islâmica. Cheguei a dar um mini-curso sobre os
povos do Oriente Médio e coloquei em uma disciplina o Gilgamesh sumério como leitura de
abertura. Isso me torna tão historiadora quanto uma aula de Pilates nos faz bailarinas, mas é
fato que essas leituras têm me expandido a noção de tempo.
Quando uma aluna de mestrado percebeu que seu projeto teria mais sentido se ela
tratasse da memória da migração nordestina para o interior de São Paulo do que das razões
econômicas e sociais desta migração, uma porta se abriu para mim. Quer dizer que essas
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histórias todas — as que eu lia nos livros, as que eu contava na minha ficção, as que eu
simplesmente gostava de ouvir por natureza — podiam dar uma tese? E será que os alunos
iriam gostar se eu desse um curso inteiro sobre a memória? A proposta de conectar histórias
pessoais e familiares a um contexto social amplo seria factível, em nossas universidades que
teimam em cindir ciência e vivência? Eu havia dado um curso no semestre anterior dedicado à
arte, ao invés de à sociologia da cultura, onde alunos de relações internacionais produziram
fotografias, documentários, trilhas sonoras e literatura. A experiência foi bem sucedida e
então nesse semestre não pensei muito e montei o curso, ―Memória e Vivência‖, dentro de
uma disciplina que me atribuem anualmente cuja ementa não li.
O curso, cujo programa pode ser acessado da minha página na UNESP (Pait, 2012b),
prometia que ―Ao final, os alunos verão que processos culturais complexos são feitos de
ações muito reais e muito próximas de todos nós.‖ Também prometi um curso leve em
leituras mas exigente em reflexão; nós iríamos aprender a resgatar o passado e não a avaliar as
memórias dos outros ou, ainda, o modo como os outros avaliam as memórias dos outros. As
leituras tinham o papel de aguçar uma sensibilidade ou ensinar uma técnica de escuta ou
escrita mais do que de revisão bibliográfica sobre o tema da memória, a qual nem eu tinha
tanta familiaridade. Deixei para o final, depois da entrega dos trabalhos, por exemplo, um
maravilhoso texto de Appadurai, A vida social das coisas (Appadurai, 1988), pois como é que
eu saberia que ele seria útil, de antemão, para aquele aluno que tratou dos presentes do pai?
A estrutura do curso era idêntica à de meus outros cursos. Havia uma primeira parte
com textos informativos ou conceituais e com exercícios a serem feitos no ambiente Moodle
da Unesp (NEaD, 2012), um intervalo para discutirmos os projetos para os trabalhos finais,
uma segunda parte com textos enfatizando aspectos metodológicos e uma terceira parte com a
apresentação e discussão dos trabalhos finais, nas aulas e também online. Abri a possibilidade
para alunos da UNESP de outros campi fazerem o curso como extensão à distância, e dei uma
aula presencial na Casa Guilherme de Almeida, em São Paulo, para eles. Pelo caráter do curso
e pelo tamanho reduzido da classe, a discussão sobre os trabalhos finais não ficou reservada
apenas à aula do meio do curso; em todas as aulas fazíamos uma rodada para saber como iam
indo as pesquisas.
E o que os alunos pesquisaram?
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2. Vivendo a memória: conceitos e escutas
O primeiro texto que indico no curso é, descobri, o mais importante. É através daquelas
idéias que os alunos vão enxergar os outros textos e sua própria realidade. Descobri isso por
acaso, mas agora faço uso consciente desse dado, indicando um texto inspirador para a
segunda aula; na primeira introduzo o curso, mostro o Moodle, falo um pouco de mim,
converso com eles e conto um pouco dos textos que leremos. Nesse curso, o texto inicial foi
―Os meninos da Rua Paulo‖, de Ferenc Molnár, na tradução clássica de Paulo Ronái (Molnár,
2011). O resultado foi muito além do que eu esperava: os alunos, na aula e no Moodle,
trouxeram interpretações as mais variadas dos trechos que escolheram para fazer o exercício.
O tempo parecia se suspender num parágrafo escolhido por um aluno, naquele livro que era
todo ação. A memória era na verdade a memória do que imaginamos no passado, para uma
aluna. O adulto Molnár aparecia en passant em outro trecho. Eu mesma me perguntava se ele
não falava da sua guerra recente através daquele romance de jovem. E eu, que comecei o
curso com uma idéia linear do tempo e da memória, fui percebendo a riqueza das relações
entre passado e presente. Fomos percebendo juntos.
Uma coisa eu tinha a ensinar, ou melhor, a desensinar. Quando eles vinham com as
frases prontas, os clichés acadêmicos completos e coerentes sobre a seletividade da memória e
o uso político do passado, eu lhes dizia: e é assim que você mesmo se lembra da sua vida?
Pois não estamos estudando ―eles‖ nesse curso, mas sim como nós lembramos. Essa tensão às
vezes se resolvia facilmente, às vezes não. Um aluno me confessou, ao final do curso, que ele
quase desistiu da disciplina em certo momento. Pois às vezes eu, brava, dizia: escute o que
suas avós disseram, e não o que uma especialista em não-sei-quê falando de não-sei-quem
disse há não-sei-quanto-tempo. Por alguma razão torta, legitimar o discurso dos alunos, vide
Piaget, Freire, Dewey ou qualquer educador com bom senso, parece ferir certezas profundas.
É preciso ser bravo e dizer aos alunos que o que os olhos deles vêem é relevante, assim como
o que escutam de seus entrevistas e mesmo o que sentem...
Ao mesmo tempo, é preciso introduzir conceitos suficientemente robustos para que esse
olhar e essa escuta sejam efetivos; caso contrário teremos boas histórias mas não iremos além
do que vai uma boa história ouvida no ônibus. Comecei com um texto na minha opinião
dificílimo, de Luis Krausz sobre o escritor israelense Aharon Appelfeld (Krausz, 2011), tanto
conceitualmente quanto por trazer um contexto histórico distante e complexo. Fiquei surpresa
quando vi os alunos trabalhando as idéias do autor e também de Walter Benjamin, usadas por
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ele, para entender a idéia de memória. Krausz fala em ―recomposição‖, um conceito para mim
extremamente feliz. A memória não é um resgate do passado nem uma invenção do presente.
É um jogo de tentativa e erro por meio do qual conseguimos imaginar um passado possível,
usando tanto os fragmentos do passado como nossa imaginação, servindo- lhes de cola.
―Muito difícil o texto?‖, eu perguntei para uma turma depois que lhes pedi que ficassem
10 minutos pensando simplesmente no que é a memória. ―Não, não o texto,‖ um aluno me
respondeu. ―Pensar assim no vácuo no que seja a memória é que é difícil.‖ Com esse jogo
entre conceitos, deconstruções e reflexões fomos elaborando as perguntas que queríamos
responder ao longo do curso e buscando assuntos e histórias para investigar. E, como disse,
queria dar instrumentos para a escuta mais que textos sobre a memória. Então entraram na
bibliografia o missionário Jean de Léry (Léry, 2009), que nos mostrou que é possível manter
uma certa serenidade mesmo diante de canibais, e o antropólogo Clifford Geertz (Geertz,
1989), com sua técnica de descrição densa. Duas alunas leram esse último autor da mesma
forma: elas se viram como um ―Geertz às avessas‖, tentando se extrair de uma situação
familiar muito íntima mais que ser aceito numa comunidade estrangeira.
Na segunda parte do curso, vimos alguns textos sobre meios de comunicação, que é
minha área principal de pesquisa, analisando as complexas relações entre mídia e memória,
além de um texto que tratava do uso político da memória — mas agora sem o ranço cínico
que em geral se atribui em geral a esse ―uso político‖ — e um ensaio de Arthur Miller sobre
uma visita que fez à Cuba, que incluiu dois encontros com o então ditador Fidel Castro
(Miller, 2004). Esse último texto, junto com o próprio Léry e com Molnár, mostraram aos
alunos algumas técnicas de escrita que eles poderiam usar em seus trabalhos. Pois a descrição
dos fatos não prescinde dos recursos narrativos que temos, e que desenvolvemos ao longo dos
séculos de escrita e mesmo de cultura oral. Também dei para eles uma aula, que repito na
maioria dos meus cursos, sobre os vários níveis de interpretação com os quais os cientistas
sociais devem trabalhar, baseada nas idéias de Charles Sanders Peirce e tão didaticamente
explicadas por John Sheriff (Sheriff, 1989). Insisti que não estávamos tratando do passado em
si, ou seja, do que vivemos objetivamente ou do que viveram nossos avós. Nosso objeto era a
memória destas pessoas, os modos pelos quais resgatamos coisas, guardamos outras,
perdemos outras ainda.
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3. Contando o passado: achados em nossa gueniza
Marília, vocês devem saber, fica no Centro-Oeste paulista, ou seja, numa região que há
menos de um século era indicada nos mapas como ―terra dos índios bravios‖. Isso mesmo,
enquanto na capital rolava a Semana de Arte Moderna de 1922, profundamente conectada
com ciclos culturais globais, seja no design gráfico, no comportamento feminino, nas artes
plásticas e na ideologia, no interior de São Paulo continuava o choque brutal de duas culturas
muito distintas. Nas primeiras aulas que dei no campus da UNESP de Marília eu havia notado
traços indígenas nos rostos de meus alunos, mas como ninguém falasse dessa herança nas
aulas ou nos corredores, minha observação ficou apenas como curiosidade. Já nas aulas sobre
memória a herança ganhou voz.
Pois algumas alunas falaram das avós ou bisavós ―bugras‖, como elas mesmas se
referiam a essas figuras familiares. Uma havia sido roubada da aldeia pelo marido. A outra foi
depois obliterada da memória familiar. Ríamos das histórias, um riso um pouco nervoso por
estarmos desenterrando juntos, num espaço tradicionalmente asséptico, esses ossos todos. A
presença destas índias na família parecia trazer um certo estigma que era preciso abafar. Para
nós, no curso, ficou patente a necessidade de resgatar suas histórias assim como de analisar os
modos pelos quais elas foram suprimidas. ―Racismo‖, eu disse, ―é então algo que não es tá
apenas nas estruturas, no Estado, ‗neles‘. É algo que atravessa nossa própria história, nossos
sentimentos, nossa família.‖ Mesmo que nenhum aluno tenha abordado esse tema
especificamente no trabalho final, a discussão serviu para reforçar a idéia de que o que
acontece conosco é parte da história de nosso país. Estamos ligados por densas tramas à vida
de nossa comunidade, dependendo dela para nos situarmos e também a construindo através de
nossas ações e valores. Pode parecer um pouco óbvio, mas os alunos se mostraram muito
surpresos com esse fato; parecia que até então suas vidas eram meros detalhes diante dos
grandes movimentos nacionais.
O trabalho que mais me comoveu foi o de Mariana Franzolin, sobre uma avó da qual
mal tinha ouvido falar. Ela mesma, fazendo a pesquisa ao longo do curso, se deu conta de se
referia a essa pessoa como ―a mãe da minha mãe‖, como se com ela não tivesse relação direta.
Mariana resgatou fotos da avó, cartas que ela havia escrito para a mãe de Mariana quando esta
estava na faculdade, e principalmente um lugar em sua própria memória para essa mulher.
Além disso, com sua própria mãe, visitou a cidade de origem da avó e procurou parentes e
amigas da falecida senhora. O retrato que acabou fazendo da avó foi um pouco
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decepcionante; ali não havia nenhuma heroína, nenhuma personalidade carismática. Uma
mulher freqüentemente doente e às vezes difícil, apenas isso. Mas a busca dessa figura, ao
lado da mãe, aproximou as duas, que voltando a Marília puderam se ver como duas mulheres
inteiras, com sonhos próprios e uma história própria. ―A memória‖, concluiu Mariana, ―cria
laços entre as pessoas‖.
Divertidíssimos os relatos da aluna Cassia Lussani, especialmente os feitos em sala de
aula, sobre os hábitos de uma pequena cidade no Sul do país. As festas, as fofocas, os dramas
políticos, as visões conservadoras da estrutura familiar convivendo com a realidade da
fragmentação familiar em regiões de fronteira e grande mobilidade espacial. Cassia parecia
ter duas linguagens: a linguagem exuberante com que descrevia o leite das vacas e a vida no
campo, e a linguagem sem graça da academia, que lhe servia de camisa-de-força. ―Leite de
caixinha na minha cidade eu não tomo de jeito nenhum, me dá até nojo. Aqui até que tomo, é
diferente‖, ela analisava sua própria atitude em espaços distintos. Eu não conseguia
interrompê- la nas aulas, tomada por suas narrativas maravilhosas sobre um mundo muito
diferente do meu.
Então um dia ela começa a contar de um monumento, erguido pela prefeitura
endinheirada pela reparação pela barragem de Itaipu, projetado pelo arquiteto Oscar Niemeyer
em homenagem a Luís Carlos Prestes em sua passagem pela região. ―O problema é que o
monumento fica num lugar meio escuro, ermo, então o povo começou a dizer que era um
lugar mal-assombrado.‖ O monumento, duplamente comunista, mal-assombrado: o que mais
podíamos querer? A verdadeira história da cidade, marcada pela barragem que expulsou
agricultores, muitos dos quais estão hoje no Paraguai, e gerou uma renda sempre mal-
empregada pelos governos locais, essa não era lembrada, analisada, não servia de
ensinamento. No meio da mata, um não-monumento, parte de uma história anterior à chegada
dos primeiros moradores da pequena cidade...
Vai ser difícil esquecer a apresentação de João Souza, quando ele sacou da mochila um
canguru de pelúcia, dando concretude a suas narrativas sobre os presentes que o pai trazia ao
longo dos anos 1990 de suas viagens internacionais. Esse foi o trabalho que melhor articulou
a vida social geral com as histórias humanas, colocando o trabalho do pai, funcionário de uma
companhia farmacêutica, no contexto da abertura econômica brasileira da época. Presentes
que o pai comprava apressado em free shops de aeroportos ganhavam todo um significado
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para o menino que os aguardava em casa e que já vinha de uma família bastante conectada
com o mundo cultural global. É possível até que esses presentes — brinquedos, games —
tenham despertado no aluno a vontade de aprender inglês e até de fazer o curso de Relações
Internacionais.
O ensaio de Artur Gondo foi daqueles que mais mostrou trabalho emocional. Ele se
propôs a ouvir respeitosamente as histórias de sua mãe e de sua avó, ambas nascidas no Brasil
mas em comunidades com marcante cultura japonesa. Familiarizado com a literatura
feminista, muito crítica ao papel da mulher na sociedade japonesa, Gondo abriu espaço em
seu texto para as visões dessas mulheres, que talvez ocupem um papel subordinado na ordem
doméstica mas que, de qualquer forma, tiveram infâncias felizes em comunidades
acolhedoras. O trabalho doméstico era pesado, mas não humilhante, concluiu o aluno, num
exercício onde ele resgatou e repensou suas próprias concepções de respeito e deferência, tão
centrais à cultura japonesa. ―Talvez,‖ eu sugeri, você deva ter mais respe ito pelos seus
entrevistados que pelos seus mestres...‖ Um dos alunos disse ao final do curso: ―Entrevistar
não é apenas fazer perguntas e anotar as respostas.‖ De fato, o curso mostrou que escutar
exige abertura e atenção incomuns.
Cito ainda o trabalho impecável de Renata Menezes, com uma reflexão rigorosa sobre
os usos dos meios de comunicação numa trajetória familiar; a fascinante descrição do papel
das aventuras de Harry Potter na construção da infância feito por Ricardo Pacífico; o resgate
da história de um bairro da cidade de Mauá, na grande São Paulo, por Thais Camargo; a
descoberta de Débora Aleixo de que uma antiga canção familiar era na verdade um hit dos
anos 1960; o resgate da trajetória profissional de um ―caipira moderno‖ feito por seu neto,
Pedro Bernardes; e finalmente o trabalho de minha orientanda Cinthia Xavier, que me trouxe
para esse campo de estudos, e que nesse artigo reflete sobre os ―lugares da memória‖. Sim,
pois eu, vindo de uma cultura letrada e altamente narrativa, só via a memória nos textos e nas
histórias. Com a Cinthia, aprendi que na cozinha, fazendo uma peixada, o passado vêm à tona
e especialmente o passado silenciado dos ancestrais indígenas, assim como aprendi com
Gondo que nos silêncios da cultura japonesa também estão contidos tempos passados.
Pois é, aprendi. Numa aula me dei conta, por exemplo, de que gosto de imitar para
minhas sobrinhas os trejeitos de uma tia, mas que nesse imitar eu na verdade transmito quem
foi meu pai, um fantástico imitador de quem falo pouco pela dor que essa perda ainda me
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causa. Fui contando aos alunos as histórias dos meus bisavós, e em particular de um que
descrevi em um texto na internet, o que me pôs em contato com um neto seu italiano, primo
de minha mãe. Pois uma coisa é ensinar que os meios de comunicação aproximam as pessoas.
Outra coisa é ver isso acontecendo, essas teias humanas se refazendo aos nossos olhos. Eu
também precisava relacionar melhor teoria e prática!
Enfim, esse curso surgiu de uma inquietação pessoal, provocada por algumas leituras,
entre as quais destaco a de Krausz, e por uma orientanda, e é isso o que deu a ele o caráter de
workshop: consegui trazer os demais participantes para dentro desse campo investigativo.
Desse curso, onde eu insistia para que os alunos buscassem contextos sociais para suas
trajetórias tão pessoais, surgiu meu próprio texto (Pait, 2012c), sobre a relação de meus
bisavós com uma antiga sinagoga paulistana, onde minhas memórias, a história de São Paulo,
minha condição atual e o futuro da comunidade judaica local se embaralham em imagens,
frases, cadernos escolares e segredos familiares. Esse foi, digamos, meu ensaio final. Foi
através dele que fucei, literalmente, minha própria gueniza. Mas só cheguei a ela através de
minha aventura pela gueniza de Marília, com seu leite de vaca e sua peixada, suas
assombrações e silêncios, seus parentes perdidos e índias seqüestradas.
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Cambridge University Press, 1988.
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