heidegger - sobre o humanismo

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Sobre o Humanismo Na época em que a Carta Sobre o Humanismo fora impressa - em 1947, logo após o final da Segunda Guerra Mundial (1939-45) - a primeira parte da extensa obra de Heidegger já havia sido divulgada. Enquanto isso, na França de 1943, Jean-Paul Sartre publicara "O Ser e o Nada", fato que marcaria o advento do existencialismo francês. Heidegger, no entanto, sempre manteve-se desvinculado da corrente existencialista, não só porque era contra qualquer classificação do pensamento, mas, sobretudo, por causa do papel fundamental exercido pelo conceito de "nada", entre os franceses - para quem o nada poderia gerar a sensação de náusea existencial. Em Introdução à Metafísica (1953), ele irá propor a pergunta metafísica fundamental "porque há simplesmente o ser e não antes o nada?"(1) justamente para mostrar que toda confusão imposta ao conhecimento do ser ocorre por se supor que o nada nadificante possa existir em algum ente. Para Heidegger, essa noção de nada seria capaz de obscurecer o ser ao se tornar mais um ente entre os outros, fator pelo qual a questão metafísica fundamental não pudera ser respondida, até então, pela filosofia ocidental. Além disso, embora Heidegger já tivesse um renome respeitado no continente europeu, jamais ele escrevera uma obra com o teor explicitamente "humanístico" e "ético". Sua vinculação ao partido nazista, até o final da guerra, tornava ainda mais suspeitas as intenções do autor de Ser e Tempo. Diante desse cenário, Jean Beaufret, existencialista francês que tentava relacionar a obra de Heidegger ao existencialismo, escreve uma carta pedindo ao pensador alemão que ele esclarecesse qual significado poder-se-ia dar ao humanismo abalado por duas guerras mundiais sucessivas. Carta Sobre o Humanismo é, portanto, a resposta dada por Heidegger às indagações de Beaufret. Em linhas gerais, o filósofo alemão irá propor, tendo por base o fragmento 119 de Heráclito(2), que a ética abandone o moralismo superficial e o legalismo dos códigos de

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Heidegger - Sobre o Humanismo

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Sobre o Humanismo

Sobre o Humanismo

Na poca em que a Carta Sobre o Humanismo fora impressa - em 1947, logo aps o final da

Segunda Guerra Mundial (1939-45) - a primeira parte da extensa obra de Heidegger j havia

sido divulgada. Enquanto isso, na Frana de 1943, Jean-Paul Sartre publicara "O Ser e o

Nada", fato que marcaria o advento do existencialismo francs. Heidegger, no entanto, sempre

manteve-se desvinculado da corrente existencialista, no s porque era contra qualquer

classificao do pensamento, mas, sobretudo, por causa do papel fundamental exercido pelo

conceito de "nada", entre os franceses - para quem o nada poderia gerar a sensao de

nusea existencial. Em Introduo Metafsica (1953), ele ir propor a pergunta metafsica

fundamental "porque h simplesmente o ser e no antes o nada?"(1) justamente para mostrar

que toda confuso imposta ao conhecimento do ser ocorre por se supor que o nada nadificante

possa existir em algum ente. Para Heidegger, essa noo de nada seria capaz de obscurecer o

ser ao se tornar mais um ente entre os outros, fator pelo qual a questo metafsica fundamental

no pudera ser respondida, at ento, pela filosofia ocidental.

Alm disso, embora Heidegger j tivesse um renome respeitado no continente europeu, jamais

ele escrevera uma obra com o teor explicitamente "humanstico" e "tico". Sua vinculao ao

partido nazista, at o final da guerra, tornava ainda mais suspeitas as intenes do autor de

Ser e Tempo. Diante desse cenrio, Jean Beaufret, existencialista francs que tentava

relacionar a obra de Heidegger ao existencialismo, escreve uma carta pedindo ao pensador

alemo que ele esclarecesse qual significado poder-se-ia dar ao humanismo abalado por duas

guerras mundiais sucessivas.

Carta Sobre o Humanismo , portanto, a resposta dada por Heidegger s indagaes de

Beaufret. Em linhas gerais, o filsofo alemo ir propor, tendo por base o fragmento 119 de

Herclito(2), que a tica abandone o moralismo superficial e o legalismo dos cdigos de

costumes e procure encontrar a sua raiz na morada do prprio ser humano. A partir da

compreenso radical da morada do ser no homem, seria possvel entender como emergem

todos os comportamentos e costumes cotidianos de cada um.

Logo no primeiro pargrafo da Carta, a essncia do agir - tema da tica relacionado com o

consumir e produzir que s pode se realizar naquilo que j , ou seja, no prprio ser. No

homem, o pensamento forneceria o acesso linguagem e esta a manifestao da verdade do

ser que o habita. Ao pensar, o homem pode estabelecer a relao do ser consigo mesmo. O

pensar, assim, seria o engajamento numa ao que leva verdade do ser. Para entender isso,

seria preciso, segundo Heidegger, se afastar da concepo de pensamento prtico e tcnico

oriunda de Plato e Aristteles. Por conseguinte, a filosofia ocidental, pertencente a essa

tradio, deveria abandonar a pretenso de conhecer os objetos e os entes de modo cientfico.

O pensamento radical no se reduz s exigncias de uma "exatido artificial" dos sistemas

tericos, porm repousa sobre as expresses do ser exibidas em suas vrias dimenses(3).

Contrrio s demandas por um humanismo e s novas correntes de pensamento rotulados,

Heidegger vai dizer que "em sua gloriosa era, os gregos pensaram sem tais ttulos"(4). Para

ele, s quando o pensamento sai de seu elemento prprio que, por perder o poder de

guardar sua essncia, a tcnica passa a ser valorizada como atividade cultural e a "Filosofia vai

transformar-se em uma tcnica de explicao pelas causas ltimas"(5), numa crtica direta

metafsica feita por Aristteles, que buscava as causas ltimas das coisas(6). O humanismo, de

fato, deveria consistir numa meditao que preservasse o homem em sua humanidade, em sua

essncia.

A essncia do homem, contudo, no se resume em ser um organismo animal que pensa. Esse

tipo de classificao cientfica, apesar de no poder ser negada e declarada como falsa, por

Heidegger, revelaria "que as mais altas determinaes humansticas da essncia do homem

ainda no experimentam a dignidade propriamente dita do homem"(7). Ao homem cabe

proteger a verdade do ser e, por conta disso, o ser no pode se identificar com o ente, tal como

vem sendo feito pela filosofia ocidental.

Heidegger supe que o homem possa pensar a verdade do ser a partir da existncia, isto ,

daquilo que se apresenta como "ser-a", a prpria essncia humana(8). Todavia, para

experimentar sua essncia e morada preciso que se retome as questes originrias da

histria do ser: sua "ptria", que na concepo adotada por Heidegger, aqui, no tem uma

conotao nacionalista, mas apenas ontolgica-historial de um momento no qual o homem

esteve mais prximo do ser. O esquecimento do ser o resultado desse distanciamento do

homem de sua "ptria". Concebida nesses termos a metafsica heideggeriana revela um forte

apelo tradio clssica que se concretizaria pela volta ao pensamento originrio helnico.

O humanismo de Heidegger, nas suas prprias palavras, aquele que "pensa a humanidade

do homem desde a proximidade do ser"(9). O que est em jogo, portanto, no o homem, mas sua histria e origem, do ponto de vista da verdade do ser. O sucesso desse humanismo, para

alm do homem, depende da linguagem e do acesso do pensamento originrio quela verdade

que pertence a linguagem. Em suma, "a essncia do homem reside na ek-sistncia"(10), isto ,

o humanismo deve voltar-se no para o ente humano, mas sua existncia autntica na verdade

do ser-no-mundo. O mundo, aqui, concebido como o lugar no qual o ser aparece: uma

clareira, no sentido heideggeriano (11).

A verdade do ser ao ser pensada originariamente encontra a humanidade do homem, alm do

humano. Nesse contexto, a humanidade est a servio dessa verdade que abandona a

perspectiva tcnica do homem biolgico das cincias naturais. Caso contrrio, a exigncia por

uma tica da obrigao dever ser o meio pelo qual se ordenar e estabelecer a conduta do

homem da tcnica, dominado pelos meios de comunicao de massa. Sem o caminho da

origem, s atravs de uma tica de deveres o homem poderia "planejar e agir como um todo,

correspondente tcnica"(12): uma vida inautntica.

A tica, como os demais ramos da Filosofia, surge a partir de Plato, segundo Heidegger.

Antes dele os antigos pensadores helnicos no a conheciam. O thos - palavra grega da qual

se derivou tica; traduzida geralmente por morada ou costume - era a maneira originria pela

qual os helenos, como Herclito, pensavam essa questo (13). Isto significa que o homem a

morada (thos) do ser.(14) Ao pensamento cabe a tarefa de edificar a casa do ser, onde o

homem habitaria na verdade. O pensar originrio, concluindo, um agir que supera a noo

prtica e o produzir, uma vez que ele consome o mnimo do ser, ao pronunci-lo em seu meio:

a linguagem. O destino do pensar, afinal, o ser.