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Heather Terrell

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PRÓLOGO

Observei as cortinas do meu quarto esvoaçarem ao vento que soprava pela janela aberta,

marcando o início do outono. A noite acenava para mim, e eu respondi ao seu chamado.

Levantei as cobertas, andei em direção à janela e flutuei rumo à escuridão da meia-noite.

O vento se agitou atrás de mim enquanto eu flutuava pelas ruas obscuras da cidade. Enquanto

ziguezagueava entre as casas de telha tão familiares, onde meus vizinhos dormiam, me deleitei

com o prazer absoluto do voo e o segredo da minha jornada.

Estava tão absorta que não notei o alto campanário da igreja do século XVIII da minha

cidade surgir inesperadamente diante de mim. A torre alongada e caiada de branco da igreja me

impediu de continuar, fazendo com que perdesse altitude por um instante e pairasse no ar

diante da janela de vidro com manchas circulares da igreja. Embora a janela fosse opaca no

escuro da noite, eu poderia jurar que ela me encarava como um padre no púlpito, me julgando.

Como eu nunca a vira antes, em Outros sonhos?

Sem aviso, o vento ganhou força e me açoitou o rosto. Era frio e úmido, trazia o perfume

do mar. De repente, a igreja e a cidade, até mesmo as ruas, me pareceram minúsculas, e ansiei

pela amplitude do oceano. Ergui e aprumei as minhas costas, posicionando os membros de

maneira aerodinâmica, para ganhar velocidade. Com uma curva acentuada à esquerda para

desviar da igreja, fui em direção ao mar, revigorante e libertador.

A cidade desapareceu conforme acelerei ao longo do penhasco recortado e das praias

rochosas da costa do Maine. O vaivém das ondas do oceano gigantesco se chocando com a costa

sob mim começou a me atrair cada vez mais para o mar.

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Notei um raio de luz brilhante batendo no promontório rochoso que me chamou a

atenção. Apesar da noite sem luar, a luz surgiu, inexplicavelmente brilhante, e me tirou do

encantamento hipnotizante que a maré exercia sobre mim. Desci até o promontório para

investigar o significado daquela mudança inesperada em meu sonho. Conforme me aproximava

do pico rochoso, vi que a luz na sua superfície não vinha de fogo nem de um farol, mas do

cabelo dele, tão branco que reluzia na penumbra da noite.

A figura encarava o mar, com a mão nos bolsos da sua calça jeans. Sua aparência era

jovial; tinha mais ou menos dezesseis anos, como eu. Voei um pouco mais para perto, mas não

me aproximei muito. Queria vê-lo, mas não queria que ele me visse.

Apesar de seu rosto estar pouco nítido por causa da escuridão, me senti fortemente ligada

a ele. E atraida. Seus olhos eram verdes, e sua pele, surpreendentemente queimada de sol. Com

um cabelo tão claro, esperava que também tivesse a pele bem clara.

Ele mudou de posição e então pude ver melhor seus olhos em forma de amêndoa e o

queixo com uma covinha no centro. Porém, quanto mais observava seu rosto, mais ele mudava.

Os olhos agora pareciam azuis, e não verdes; o nariz tinha um aspecto um pouco mais

alongado, e os lábios, mais carnudos. Ele já não aparentava ser tão jovem quanto eu nem mais

velho como meus pais; parecia não ter idade. Seus traços se tornaram mais bem feitos e

angulosos, a pele cada vez mais pálida, quase como se sua pele humana estivesse se

transformando em mármore, liso e frio. Parecia que um escultor esculpira uma criatura etérea

onde antes havia um ser humano.

Então ele se virou e me encarou, como se soubesse que eu estava lá o tempo todo. E deu

um sorriso horripilante e astuto. Seu rosto perfeito já não lembrava a escultura de um anjo, mas

a de um demônio, e então eu percebi que tinha olhado para o rosto do demônio em pessoa.

Abri a boca para soltar um grito de horror. E então caí.

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UM

Cai no chão, fazendo um barulho surdo. Ou pelo menos foi o que pensei que tivesse

acontecido.

Abri os olhos e vi minha cama. Estava deitada em minha cama marquesa; o sol fraco do

início da manhã atravessava a persiana. O sonho tinha sido tão real que eu esperava me

encontrar estatelada no promontório, e não debaixo das cobertas quentinhas, em minha casa.

Mesmo assim, o sonho não saía da minha cabeça. Esfreguei os olhos para afastá-lo e ouvi

uma voz conhecida me chamando das escadas.

— Ellie.

Sentia como se eu estivesse entorpecida pelo sonho. Mexi os lábios para responder, mas só

consegui emitir um grunhido.

— Ellspeth? É hora de levantar.

O encanto do sonho desapareceu no momento em que a voz da minha mãe ficou mais alta

e ela me chamou pelo meu nome inteiro. Ela só me chamava de Ellspeth — um nome

antiquado, que ela sabia que eu detestava quando estava muito irritada comigo. Minha voz

voltou, e respondi:

— Já desço em um minuto!

Saí debaixo das cobertas, pulei da cama e caminhei até a cômoda, onde separei a roupa

que ia usar naquele dia. Tremi; podia ver minha respiração no ar. Por que estava tão frio?

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Examinei o quarto e notei que a janela estava entreaberta. Havia apenas uma pequena

abertura, mas suficiente para deixar entrar o frio da manhã outonal do Maine. Não me

lembrava de tê-la deixado aberta antes de me deitar. Era estranho, mas às vezes eu me distraía.

Fechei a janela, peguei minhas roupas e percorri o pequeno corredor até o banheiro.

Fechei a porta e liguei o chuveiro — bem quente. Depois ensaboei a esponja úmida com o

sabonete de limão e me olhei pela primeira vez no espelho.

Ignorei o máximo que pude meus olhos azuis claros, quase translúcidos, me olhando de

volta no espelho: a cor estranha e perturbadora daqueles olhos não me trouxera nada além de

olhares por anos. Em vez disso, me concentrei nas coisas que podia controlar. Examinei meu

rosto, imaginando pela milésima vez como iria domar meu cabelo castanho rebelde e

obstinadamente liso. Peguei a escova e comecei o processo doloroso e demorado de desfazer

todos os nós, bocejei e despertei devagar para enfrentar a manhã ensolarada.

O brilho do sol afastou o final aterrador do meu sonho e me animou um pouquinho.

Pensei que talvez eu conseguisse, no final das contas, chegar até o fim do meu primeiro dia no

colégio. E, depois disso, eu ainda provavelmente desejaria apertar um botão e pular toda a

baboseira que havia na escola — os corredores e as classes repletos de pessoas cheias de pose e

fofoqueiras que nos tiram a concentração dos estudos — e passar direto para a faculdade.

Dentro de uma hora, lá estava eu, cambaleando pelos corredores lotados de calouros e

veteranos conhecidos. Aproximei-me do meu novo armário pedindo em silêncio: ‚Por favor,

por favor, ao menos uma vez permita que o arm{rio da Piper não fique perto do meu‛. Por um

golpe infeliz do destino, eu tinha que aguentar a superpopular Piper Faires em casa — ela era

minha vizinha — e na escola. Por causa de nosso sobrenome — Faires e Faneuil, — meu destino

também era ser vizinha de armário de Piper para sempre. Ela sempre me ignorava na escola,

mas fingia ser minha amiga em casa, o que tornava a situação ainda mais desagradável. Mas eu

tinha de admitir: nossa proximidade inevitável na escola e nossa amizade em casa me deixavam

um tanto imune às brincadeirinhas do seu grupo de amigos.

Não precisei examinar os armários com muito cuidado e nem por muito tempo para achar

meu número, vinte e quatro, e perceber que minhas preces não tinham sido atendidas. Lá estava

Piper, com seu séquito de amigos, como abelhas em volta de sua rainha, Missy. Bem

bronzeados, vestiam calças jeans perfeitamente desbotadas e calçavam chinelos coloridos; eram

radiantes e despreocupados — e jovens — de um jeito que eu nunca tinha sido. Meus pais

tinham participado de várias missões ambientais em países pobres, por isso me imbuíram de

um grande senso de responsabilidade em relação ao mundo, o que nunca permitiu que eu me

sentisse realmente despreocupada. Se eu tivesse um minuto livre, sentia como se devesse passar

mais tempo no meu trabalho voluntário, oferecendo sopa para os pobres da região, em vez de

me divertir. Eu sabia que não deveria ligar para o bando de Piper e, na maioria das vezes, não

ligava mesmo. Afinal, Piper tinha me ‚convidado‛ para fazer parte do seu grupo de amigos

mais chegados no ensino médio e eu não aceitara. Eu não teria estômago para fazer parte de um

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grupo que costumava votar em quais amigos deveriam ser ‚excluídos‛ da mesa de almoço e

realocados em alguma mesa escondida, destinada aos ‚perdedores‛, até que eles os aceitassem

de volta. Mesmo assim, tão próxima do brilho daquelas pessoas, eu não conseguia deixar de me

sentir um buraco negro, com meu cabelo e meus jeans escuros.

Missy, a mais malévola do grupo, apoiou-se no armário vinte e quatro. Revirei os olhos só

de pensar que teria de enfrentar a maldade de Missy para chegar ao meu armário antes de o

sinal tocar. Ela percebeu meu gesto, e me preparei esperando alguma reação sua. Mas, em vez

disso, Missy jogou os cabelos castanhos dourados sobre os ombros e disse, com um sorriso:

— E aí, como foi seu verão?

Olhei para trás para ver com quem ela estava falando. Por causa da minha amizade com

Piper, Missy não se incomodava em me espezinhar, mas tampouco se incomodava em ser

simpática.

Ela repetiu:

— Como foi seu verão, Ellie?

— Legal — respondi, com cautela, enquanto abria o armário. Ocupei-me arrumando

vagarosamente meus livros dentro do armário, torcendo para que ela tivesse sumido quando eu

acabasse.

Não deu certo.

— Para onde você foi dessa vez? — perguntou Missy enquanto eu espiava de dentro do

armário.

— Para o Quênia — contei, fechando o armário. Para mim, não fazia sentido ela assumir

que sabia meu nome e o fato de que eu costumava viajar para o exterior no verão.

— Você tem tanta sorte de seus pais levarem você em suas viagens ao exterior. Eu fiquei

presa aqui em Tillinghast o verão inteiro.

Não sabia o que dizer a ela, especialmente porque Piper e o resto do grupo de eleitos

estavam assistindo à conversa com um sorriso no rosto, em sinal de expectativa. E

especialmente porque eu tinha certeza de que a visão glamorosa que Missy tinha das minhas

viagens pelo terceiro mundo não combinava com a realidade. Portanto, não disse nada.

Missy ficou em silêncio.

— Eu e as meninas estávamos combinando de nos encontrar ao meio-dia para almoçar.

Quer ir com a gente?

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Eu estava prestes a perguntar o porquê do convite quando Ruth caminhou até mim pelo

corredor.

Ruth diminuiu o passo e tencionou os ombros quando me viu conversando com Missy.

Ela sabia que teria de passar por Missy para chegar a mim e que a imunidade que minha

amizade com Piper me trazia não se estendia a ela, mesmo sendo minha melhor amiga.

Vi quando Ruth corajosamente ajeitou os ombros, colocou o cabelo ruivo comprido atrás

da orelha e se aproximou de mim. Em comparação ao bronzeado perfeito de Missy e seus

amigos, Ruth não parecia nada atraente, com sua pele branca, óculos de aros grossos e camiseta

e jeans básicos. Eu sabia, contudo, que por trás daquela camuflagem havia uma beleza

escondida; o problema era que ela detestava chamar a atenção, mesmo que de uma maneira

positiva.

— Acho que o sinal já vai tocar, Ellie — disse Ruth. Nossa primeira aula era de inglês

avançado, e todos diziam que a senhorita Taunton era rígida quanto aos horários.

Antes que eu pudesse responder, Missy golpeou o ar, perguntando à pequena platéia:

— Vocês ouviram alguma coisa?

As outras meninas riram. Olhei rapidamente para Piper, que estava surpreendentemente

quieta. Não esperava que Piper defendesse Ruth, mas fiquei feliz em ver que ela não estava

participando.

— Não? — Incitada pela risada das amigas, Missy fez outro gesto no ar e continuo com

seu showzinho. — Deve ser alguma mosca nojenta.

— O que você acabou de dizer para Ruth? — perguntei sem conseguir esconder a raiva na

minha voz, o que me deixou brava comigo mesma. O grupinho de Missy adorava depreciar

aquelas que não podiam — ou não queriam — usar o jeans skinny ‚perfeito‛ ou namorar o

atleta mais velho ‚perfeito‛. Quanto pior a reação dos outros, melhor para eles. Não gostava de

agradá-los — ou dar corda para seus joguinhos — com nenhum tipo de reação. Ainda mais

porque Ruth era perfeitamente capaz de se defender na classe e nos corredores, se quisesse. E

naquele dia ela não queria.

Missy agitou a mão novamente e, dessa vez, quase bateu no rosto de Ruth.

Senti a raiva percorrer meu corpo como uma onda, algo que prometi à minha mãe, que

odiava brigas, evitar porque tinha me metido em uma discussão desagradável no verão com um

membro mal-intencionado da nossa missão. Senti minha pele branca ficar vermelha e algo

estranho aconteceu: minhas escápulas se ergueram e se aprumaram.

Sem pensar, agarrei o pulso de Missy. De repente, o corredor da escola sumiu diante de

mim e tive uma visão muito vívida de Missy aos seis anos. Ela estava à beira da piscina do clube

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de campo chique de Tillinghast de que ela tanto falava. Na imagem, um grupo de meninos e

meninas caçoava dos seus dentes proeminentes e joelhos tortos. Missy se virou para procurar a

proteção e o consolo da mãe. Ela estava mesmo olhando para a filha, mas, em vez de responder

ao seu olhar, que pedia ajuda, pegou o copo de gim-tônica e foi até seu grupo de amigos, muitos

deles pais das crianças que zombavam de Missy. A mulher continuou fingindo nunca ter visto a

fraqueza nos olhos da filha. Naquele momento, a pequena Missy prometeu a si mesma nunca

demonstrar fraqueza novamente. Em vez disso, jurou fazer com que os outros se sentissem

frágeis e se arrastassem aos seus pés.

Comecei a ter outra visão, mais recente. Missy estava abraçada fortemente a um rapaz. Ao

olhar através dos olhos de Missy, não conseguia ver o rosto do rapaz, mas pude ouvir sua voz

grave e baixa sussurrando em seu ouvido. No começo, não conseguia escutar o que ele dizia,

mas podia sentir um leve calor percorrendo a espinha de Missy. Então as palavras começaram a

ficar mais nítidas e posso jurar que ele disse ‚Ellie‛. Só Missy poderia ter dito meu nome ao

garoto, mas por que ela se importaria em falar com ele sobre mim?

Eu ainda estava pensando nisso quando Ruth me trouxe de volta à realidade ao tentar

tirar minha mão de Missy e sussurrar:

— Vamos, Ellie, não vale a pena.

A imagem desapareceu tão rapidamente quanto surgiu, me trazendo de volta à presença

terrível e real de Missy adolescente. Porém, das duas imagens, a cena da infância permaneceu

tão vívida para mim que experimentei os sentimentos e pensamentos que Missy teve aos seis

anos como se eu fosse ela, e senti muita pena.

Não era a primeira vez que eu tinha esse tipo de visão (como eu as chamaria depois). Elas

vinham acontecendo mais frequentemente depois do meu décimo sexto aniversário, em junho,

apesar de, quase sempre, não significarem nada muito importante. Em geral, eu via o que as

pessoas comiam no almoço ou o que elas pensavam sobre a roupa dos amigos. No começo,

pensei que era minha imaginação, mas não demorou muito para eu perceber que o que eu ouvia

e via na minha cabeça não era invenção. Era verdade. Uma das primeiras vezes em que tive

uma visão, imaginei a garota que se sentava atrás de mim na aula de espanhol pensando se

terminava ou não com o namorado; alguns segundos depois, ela se virou para a amiga sentada

ao seu lado e perguntou se deveria terminar o namoro. Mas a quem eu poderia contar meu

segredo sem acabar presa, como uma maluca?

Apesar de Ruth tentar me afastar de Missy, apertei ainda mais o seu punho enquanto

meus sentimentos por ela variavam da compaixão à raiva. Ela não se mexeu; acho que estava

atordoada, com medo de que eu a insultasse, como ela costumava fazer, ou mesmo arrancasse

sua mão. Ficamos paradas até que senti a mão de Ruth tirar meus dedos do punho de Missy e

me levar dali.

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— O que você está pensando, Ellie? Você sabe que eu sei me cuidar quanto a esses idiotas

— sussurrou Ruth enquanto me empurrava para a classe. Notei que ela estava mais zangada

porque me coloquei em risco; Ruth sempre foi muito protetora comigo.

— Desculpa, Ruth, eu sei que você sabe se cuidar. Não sei o que me deu — sussurrei de

volta.

Ficamos em silêncio enquanto ziguezagueávamos pelo corredor lotado. Senti alguém me

encarando e me virei, torcendo para que não fosse Missy ou seu bando atrás de nós, prontos

para nos dar o troco.

Não era. Um garoto alto e inacreditavelmente loiro estava apoiado na moldura da porta,

me encarando. Ele deu um sorriso irônico como se tivesse assistido à cena com Missy e

companhia, mesmo sendo impossível ter testemunhado tudo de seu lugar privilegiado. Sua

beleza não era convencional, mas aparentava ser mais velho que a média do pessoal do ensino

médio. Ele parecia à vontade de um modo que eu nunca havia visto antes em outros caras. Em

geral, eu odiava gente arrogante, mas aquilo era diferente. Ele tinha uma autoconfiança natural

que me atraiu na hora, e me surpreendi com isso. Eu tinha certeza de que não o conhecia — algo

difícil, considerando que eu havia nascido na cidade e conhecia quase todo mundo.

O sinal tocou.

— Ai, meu Deus, não podemos nos atrasar no primeiro dia com a senhorita Taunton —

exclamou Ruth, e então acelerei o passo. Deixei-a me arrastar para longe daquele olhar

penetrante. E do meu próprio coração acelerado.

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Dois

Esqueci o garoto durante a semana seguinte na escola. Essa foi a mentira que contei a mim

mesma enquanto embarcava nas aulas de inglês avançado, história, química, espanhol e cálculo,

todas cheias de atividades para fazer, supostamente para nos preparar para a faculdade no ano

seguinte.

Mas a verdade era que eu não conseguia me concentrar em nada. Procurava por ele em

todos os lugares. O fato de nossa escola ser relativamente pequena — tinha apenas cem alunos

do penúltimo ao último ano do ensino médio — tornava sua ausência ainda mais estranha.

Parecia que eu o tinha inventado na minha imaginação.

Eu não podia perguntar a Ruth se ela também o tinha visto. Ela não ia parar de falar no

assunto. Durante anos, eu demonstrei ser indiferente e imune aos garotos da nossa idade. Eles

sempre me pareceram bobos e egocêntricos, e nunca achei que tivesse algo em comum com eles.

Ou eles comigo.

Na sexta-feira, na hora do almoço, examinei as mesas e a fila do refeitório em busca dele.

Podia ouvir o murmurinho de vozes à minha volta, mas minha atenção estava em outro lugar.

O fato de eu estar exausta não me ajudava. Meus sonhos eram cada vez mais vívidos e, quando

eu levantava de manhã, parecia que tinha passado a noite toda acordada. Conforme o dia

passava, os detalhes dos sonhos iam ficando cada vez mais confusos, mas toda noite eu voltava

para o céu e voava sobre a cidade.

— Ellie, você está me escutando?

Virei-me para Ruth.

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— Desculpe, o que você disse?

— Juro, esses dias você anda parecendo um fantasma. Onde você está com a cabeça?

Pensei em uma maneira de responder à pergunta. Deveria contar a ela sobre as tentativas

suspeitas de Missy e companhia em serem simpáticos e dizer que estava distraída pensando

nisso? Eu sabia que Ruth não ligava muito para a panelinha de Missy, mas ninguém gosta de

ser ignorado, e eles a estavam excluindo, apesar de Ruth e eu sermos unha e carne. Ou deveria

dizer que estava preocupada por causa do excesso de estudos? Eu não queria colocar a culpa

em um garoto misterioso que vi no corredor.

— Desculpe, acho que os professores falam tanto em faculdade que me distraí. O que você

estava dizendo mesmo?

— Estava falando sobre faculdades. Nossa, você está mesmo com a cabeça em outro lugar,

né? Conheceu algum cara no Quênia e não me contou, é?

A ideia de Ruth era ridícula diante da dura realidade do verão que eu passara no Quênia,

e quase ri. Até eu notar sua expressão. Ela parecia realmente chateada diante da ideia de que eu

pudesse ter escondido alguma coisa dela. Eu deveria ter pensado que minha melhor amiga

durante sete anos — praticamente a irmã que eu nunca tive — perceberia que havia alguma

coisa.

Mas Ruth era complicada. Qualquer um próximo a ela percebia que ela era esperta,

inteligente, confiável e tão leal que, às vezes, se tornava meio possessiva. Era preciso se

aproximar dela para conhecer todas as suas qualidades maravilhosas, mas isso não era fácil.

Ruth perdera a mãe vítima de câncer quando estava no primeiro ano do ensino fundamental —

apenas alguns meses antes de nos conhecermos, por isso não permitia que os outros se

aproximassem, pois temia perdê-los, como ocorrera com a mãe. Para se proteger, ela erguera

enormes barreiras entre ela e as pessoas, portanto, não era fácil se tornar sua amiga; eu fui umas

das únicas que conseguiu trespassar esses muros.

— Não, juro. Fique fazendo compostagem e lidando com estrume de animal africano o

tempo todo. — Não era uma atmosfera muito glamorosa para se conhecer um cara.

Ruth riu.

— Que nojo! Mas, conhecendo seus pais, não fico surpresa.

Satisfeita, ela começou a falar sobre sua lista de faculdades preferidas e os critérios de

admissão, quem entrara e que notas tiraram, essas coisas. Desejei que Ruth não se preocupasse

tanto; tinha certeza de que ela saberia escolher a melhor faculdade quando chegasse a hora,

mesmo que tivesse de contar com uma bolsa de estudos e com financiamento para pagar as

mensalidades. O salário de seu pai, que trabalhava como jardineiro na universidade, não daria

para pagar o curso.

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Levamos nossas bandejas e combinamos de nos encontrar no café após a escola. Fui até

meu armário para deixar os livros de inglês e pegar os de espanhol, torcendo para não

encontrar Missy e seus amigos. Suspirei de alívio ao me aproximar do número vinte e quatro

sem avistar o rabo de cavalo castanho avermelhado de Piper, sua marca registrada. De repente,

avistei aquele garoto parado em frente ao meu armário.

Não era possível que ele estivesse me esperando, só podia ser uma coincidência. Não

importava a razão; desejei ter parado no banheiro depois do almoço para, ao menos, pentear o

cabelo.

Ele era ainda mais bonito de perto, apesar de ser mais marcante que propriamente bonito.

Seus olhos verdes e claros eram perturbadores, assim como, logo percebi, os meus. Era a

primeira vez que via algo como aqueles olhos em outra pessoa.

Quase não conseguia falar quando cheguei ao armário. Mas não era preciso dizer nada.

Em poucos segundos, ele disse:

— Você está diferente.

Lembrei a mim mesma que não conhecia aquele garoto. O que ele queria dizer e quem ele

pensava que era para falar comigo com tanta intimidade?

— Diferente do quê? Não consigo imaginar como posso estar ‚diferente‛, j{ que nunca

nos vimos antes — falei, me enfiando dentro do armário.

— Nos vimos, sim. Três verões atrás. Na Guatemala.

Parei ao ouvir aquela frase. Eu já tinha ido para a Guatemala. Para ganhar tempo e pensar

em algo, fiquei mexendo nos livros. Três verões antes eu tinha ido com meus pais, que

participavam de um programa de treinamento da universidade em que trabalham, até uma área

rural e longínqua da Guatemala. Meus pais eram professores universitários especializados em

agricultura biológica e, durante os verões, eles organizavam viagens para vários destinos do

mundo todo, com o intuito de ensinar aos agricultores locais como aumentar a produção de

uma maneira ecológica. Não era exatamente uma sofisticada viagem pelo mundo, como Missy

imaginava. Eu pretendia arregaçar as mangas como os outros professores, estudantes e

agricultores locais, por isso conhecia muito bem todo mundo envolvido no programa. Mas não

me recordava daquele garoto. E ele era o tipo de garoto de quem eu me lembraria.

Só podia ser alguma brincadeira. Talvez fosse um plano alternativo de Missy para me

humilhar, já que suas tentativas de amizade falsa tinham dado errado. Por que mais um aluno

novo, estudante do último ano e bonito se aproximaria de mim, mentindo me conhecer do

passado? Não que me achasse sem graça, imagine, mas eu não era do tipo que um estudante do

último ano bonitão escolheria.

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Eu não deixava me fazerem de boba, especialmente os idiotas que se achavam populares.

Como se esse rótulo tivesse alguma importância no final das contas.

Bati a porta do meu armário e falei:

— Não sei do que você está falando.

Quando comecei a me afastar, ouvi-o dizer:

— Você não se lembra do programa de extensão agrícola da Universidade do Maine, na

Guatemala? Três verões atrás? Nós dois estávamos acompanhados dos nossos pais.

Sua voz parecia meio confusa. E ele conhecia detalhes da viagem. Não havia como Missy

saber daquilo tudo. Piper não se lembraria de tanta coisa, mesmo que eu tivesse contado algo

em nossas poucas conversas como vizinhas. Virei-me. Ele de fato parecia magoado.

Estava quase arriscando uma conversa, quando Riley — um dos alunos do último ano

mais populares e uma estrela dos esportes — veio e agarrou o braço do garoto. Se ele era amigo

de Riley, eu definitivamente não fazia seu tipo. Presumindo que aquilo não era uma

brincadeira, é claro.

Antes que pudesse dizer qualquer coisa, Riley o puxou pelo corredor.

— Vamos, Chase. Vamos nos atrasar para o treino.

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TRês

— Vocês se lembram de um garoto chamado Chase? De uma de nossas viagens de verão?

— perguntei, como quem não quer nada, durante o jantar daquela noite. Mantive os olhos

baixos e brinquei com o macarrão no prato para não olhar para os olhos perspicazes dos meus

pais. Não costumava guardar-lhes segredo; não havia nada interessante para esconder. Mas

fazer a pergunta em voz alta fez com que eu me sentisse estranhamente exposta.

— Chase? — quis saber minha mãe.

Não tirei os olhos do prato, mas jurei ouvir um tom alarmante em sua voz, geralmente

serena. Ela quase nunca se alterava, o que era bem irritante; entre os dois, minha mãe era a mais

durona. E, a propósito, exasperadamente bonita, apesar de sua aversão assumida a maquiagem

ou a qualquer coisa que parecesse ‚da moda‛. Somente nos dois anos anteriores apareceram

algumas rugas em seu rosto totalmente natural e poucos fios brancos em seus cabelos cor de

chocolate. De todos os seus colegas e amigos, apenas meu pai era tão bonito quanto ela; era

muito irritante ter pais tão atraentes.

— Sim, Chase.

— Acho que não conheço — afirmou ela.

Meu pai lançou, quase casualmente:

— Também não me lembro de nenhum Chase. Por que a pergunta?

— Porque ele veio falar comigo na escola hoje. É aluno novo. Disse que se lembra de mim

da viagem à Guatemala.

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Pelo canto do olho, vi meu pai olhar para minha mãe.

— Pensando bem, esse nome não me é estranho. Chase, você disse?

— Sim.

— Hummm, lembro de um casal bonito que tinha um filho. Acho que os pais eram

etnobiólogos. Chase era o sobrenome deles, se não me engano.

Soltei um grunhido.

— Agora me sinto uma completa idiota.

— O que você quer dizer com isso?

— Quando esse garoto, Chase, veio falar comigo, me deu um branco.

— Bem, faz três anos, e aquela equipe era grande. Na verdade, foi um de nossos maiores

projetos, com muita gente, por isso não me surpreende que você não se lembre dele — interveio

rapidamente minha mãe.

— Sua mãe está certa, Ellie — falou meu pai ao se levantar da mesa e começar a limpar os

pratos.

— É muito estranho que eu não me lembre dele de jeito nenhum, especialmente porque,

em geral, não há garotos da minha idade nessas viagens. Vocês se lembram do primeiro nome

dele? — quis saber.

— Michael, acho — respondeu meu pai. Ele tossiu, limpando a garganta, e ligou a água da

pia. — Esse Michael, se for esse mesmo o nome dele, disse por que sua família se mudou para

Tillinghast?

— Não conversamos muito. Fiquei com vergonha porque não lembrava quem era ele,

mesmo ele afirmando que nos conhecíamos, então fui meio grossa. Bem grossa, na verdade. —

Grunhi mais uma vez. — Me sinto péssima agora.

— Não se preocupe com isso, querida. Sempre é possível pedir desculpas.

— É verdade.

Levantei e comecei a ajudar meu pai com a louça. Quando lhe passei um prato para que

ele o colocasse na máquina de lavar louças, encostei o dedo levemente em seu braço e pensei

que eu nunca tinha tido uma visão sobre meus pais ao tocá-los — todas as minhas visões

ocorriam quando eu tocava outras pessoas. Mas logo voltei a pensar em Michael.

— Para responder à sua pergunta, aposto que os pais dele trabalham na universidade.

Quero dizer, onde mais eles trabalhariam como etnobiólogos em Tillinghast?

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Apesar de Tillinghast ter tido uma indústria de chapelaria bem movimentada nos anos

1800, agora era uma cidade sem muita oferta de emprego. Quase todos trabalhavam na

universidade fazendo uma coisa ou outra — como professores, donos de lojas ou algo assim.

— Não acho que tenha visto o nome deles na lista de professores visitantes. Você viu

algum Chase na lista, Hannah? — perguntou meu pai à minha mãe.

— Não, Daniel, não vi. — Ela falou, calmamente, permanecendo sentada em vez de se

levantar para nos ajudar a limpar a cozinha, como costumava fazer.

‚Por que ser{ que ela estava se comportando de um jeito tão estranho?‛, pensei. Foi tão

esquisito assim perguntar sobre um garoto? Era melhor eu nunca ter tocado no assunto. Talvez

eles só estivessem sendo inábeis, como de costume; eles sempre pareciam interpretar o papel de

pais, procurando, sem muita certeza, pelo caminho certo. Eu achava que isso acontecia porque

eles eram muito acadêmicos — não viviam totalmente no mundo real.

— Bom, provavelmente você está certa, Ellie. Tenho certeza de que eles vieram para cá

por causa da universidade. Nós, provavelmente, vamos esbarrar nos pais do Michael nos

corredores a qualquer momento — explicou meu pai.

— Tenho certeza de que vamos encontrar a família toda logo, logo — completou minha

mãe, finalmente se levantando da mesa. — É uma cidade pequena, afinal de contas.

Enquanto eu continuava a limpar os pratos e a passá-los para meu pai, me senti

pequenininha por dentro ao pensar na minha conversa com Michael. Por um lado, fiquei

aliviada em saber que ele não estava enganado, mas, por outro, eu sabia que teria de pedir

desculpas a ele na próxima semana.

O telefone tocou. Meu pai atendeu e conversou um pouco antes de me passar o aparelho.

— É a Ruth, querida.

Antes que eu dissesse ‘alô’, Ruth lançou:

— Onde você estava? Liguei no seu celular, mandei mensagens e nada. Acabei voltando

para casa. Isso não foi legal, Ellie.

— O que você quer dizer com isso? — eu estava realmente confusa.

— O Daily Grind? Depois da escola?

Aturdida, pensando em Michael, acabei me esquecendo que combinamos de nos

encontrar no café. Entrei na sala para que meus pais não ouvissem a conversa.

— Ai, Ruth, me desculpa. Esqueci completamente. Você me desculpa?

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Senti-me péssima. A experiência de Ruth com a perda da mãe fez que ela se preocupasse

muito com o bem-estar das pessoas.

— É claro. Não seja ridícula. Mas você me deixou preocupada. Você nunca esquece nada.

O que está acontecendo com você?

— A culpa é do ‚jet lag‛. Voltamos de viagem menos de uma semana atr{s. — Eu tentava

achar uma desculpa de todo o jeito, qualquer desculpa.

— Tá bom, mas, por favor, me prometa que vai andar com seu celular, ok?

Ruth se irritava muito porque eu sempre esquecia de ligar o celular. Ninguém me ligava a

não ser Ruth e, em caso de emergência, meus pais.

— Prometo.

— Agora não vai esquecer nossos planos de ir ao cinema amanhã à noite, né?

Ri de alívio ao ouvir a bronca, em tom de brincadeira, de Ruth.

— É claro que não. E eu perderia o último filme de Audrey Tautou, por acaso?

Nós duas adorávamos filmes estrangeiros, embora por razões diferentes, e íamos ao

cinema quase todo final de semana. Ruth adorava ver como as diferentes culturas contavam

histórias, enquanto eu me atraía pelos cenários exóticos. Ruth nunca entendeu por que eu não

achava minhas viagens de verão suficientes. Não adiantava explicar, ela não compreendia que

lidar com agricultura em uma área rural do Quênia ou da Guatemala não tinha absolutamente

nada a ver com a cultura dos cafés parisienses.

— Tá certo. Te vejo às sete no Odeon.

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Quatro

Na segunda-feira, esperei que Michael, ao passar pelo corredor, me tratasse, no mínimo,

com frieza. Na verdade, não me surpreenderia se ele me acusasse de grosseira; sua atitude seria

justificável. Certamente eu não merecia — e não poderia prever — que veria Michael me

esperando com um sorriso amável no rosto. Mas lá estava ele.

Ele me aguardava apoiado na parede perto do meu armário de maneira tão casual que,

mais uma vez, pensei que talvez não estivesse me esperando. Mas então ele acenou e sorriu

para mim. Um forte rubor se espalhou pelas minhas bochechas brancas quando notei que ele

me esperava. Como sabia onde ficava meu armário?

Apesar de sorrir e acenar de volta com timidez, fiquei ainda mais ansiosa ao caminhar em

sua direção. Michael vestia um jeans comum e uma camiseta preta, mas parecia diferente, talvez

mais maduro que a média dos rapazes de Tillinghast. E eu ainda precisava me desculpar com

ele.

O sorriso caloroso de Michael tornou meu pedido de desculpa bem mais fácil. Encarei-o e

disse:

— Ei, me senti muito mal por não ter reconhecido você logo na sexta-feira...

Ele me interrompeu.

— Não precisa. Já faz três anos e nós dois estamos diferentes. Você, especialmente — ele

falou com um olhar compreensivo que me fez corar. Eu odiava ficar vermelha. Ele pareceu

notar meu incômodo e tentou me deixar mais relaxada, brincando:

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— Espero estar diferente do que era há três anos, também. Melhor talvez?

Ri um pouco, mas não soube o que dizer depois. Nunca sabia o que dizer aos garotos, só

falava sobre as tarefas da escola e agricultura orgânica. Obviamente nenhum dos assuntos

rendia uma conversa muito animada, mas eu, em geral, não ligava para isso. E, de qualquer

maneira, ainda sofria daquela amnésia estranha que não deixava me lembrar de Michael na

Guatemala e não sabia como evitar o assunto em uma conversa, já que só tínhamos a viagem

em comum.

Um silêncio incômodo, que me pareceu eterno, se abateu sobre nós. Para evitá-lo, andei

pelo corredor e ele rapidamente me seguiu.

Mas o silêncio sumiu quando eu disse impulsivamente:

— Então, seus pais querem salvar o mundo, hein? — Imaginei que ele pudesse me contar

se seus pais o arrastavam às missões remotas na Guatemala, como faziam os meus.

— Algo assim — respondeu amavelmente. Talvez eu tivesse vencido o primeiro obstáculo

da conversa. — Sem dúvida viajamos para muitos lugares por causa do trabalho deles.

— Seus pais mudaram para cá para trabalhar na universidade, M...? — disse, quase

pronunciando seu nome, e então recuei. Tecnicamente, ainda não havíamos nos apresentado, e

eu não queria confessar de jeito nenhum que tinha falado sobre ele com meus pais, então deixei

por isso mesmo.

— Nos mudamos para Tillinghast para passar o verão, para meus pais trabalharem em

um projeto especial.

— Então é uma mudança temporária? — Mesmo sem conhecê-lo direito, fiquei

decepcionada com o fato de ele talvez ficar pouco na cidade.

— Vamos ficar aqui até o projeto terminar, eu acho.

Antes que pudesse fazer outras perguntas educadas, ele se virou para mim com um

sorriso largo e indagou:

— Então, aonde estamos indo?

— Para a aula de inglês.

— O que você está lendo?

— Orgulho e preconceito.

— Tive de ler esse livro para o curso de inglês no ano passado. Achei que minha

professora não ia parar de falar no livro nunca mais.

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— Acho que ela ainda procura o seu senhor Darcy.

Ri. Eu tinha ouvido falar a mesma coisa sobre minha professora de inglês, a senhorita

Taunton.

Começamos a falar sobre o livro, que eu tinha lido nas noites quentes e longas do Quênia,

quando não havia muito o que fazer. Na verdade, havia lido todo o Orgulho e preconceito para

a escola e me dedicado à obra de Jane Austen no verão. Ele me perguntou o que eu achara do

romance. Eu adorara, e ele confessou que o achava meio lento e pouco interessante. No entanto,

disse isso com um sorriso que me fez perdoá-lo por ter uma visão tão negativa do livro que eu

amara. Nunca tinha tido uma conversa como aquela com outro garoto. Na verdade, com

ninguém além de Ruth. Meus pais e seus colegas só liam textos científicos e sobre os problemas

que acometiam o mundo, e meus outros amigos eram muito superficiais. E, mesmo que

discordássemos, era tão bom encontrar um garoto com quem conversar — depois de tanto

tempo fingindo para mim mesma e para os outros que eu não ligava por não saber falar a

‚língua‛ dos meninos da minha idade.

Logo chegamos à entrada da minha classe de inglês; parei perto da porta. Eu não sabia

bem como interromper a conversa. Será que eu pareceria uma garota dos anos 1950 se eu lhe

agradecesse por ter me acompanhado até a classe?

— Bom, foi muito legal te ver de novo... — deixei a frase escapar enquanto pensava se

devia dizer seu nome ou não. Tive esperança de que ele não tivesse percebido.

Ele percebeu, é claro.

— Michael. Michael Chase — ele interveio e deu aquele sorriso desarmador novamente.

— Caso você esqueça.

— Tá certo. Obrigada, Michael. Meu nome é...

— Sei seu nome, é Ellie Faneuil.

Ele começou a caminhar pelo corredor em direção à sua classe, mas virou-se de repente,

com um sorriso meio malévolo, e falou:

— Na verdade, seu nome é Ellspeth Faneuil, né? — E então acenou e desapareceu.

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Cinco

Para minha surpresa, Michael me procurou todos os dias da semana. Era só eu sair da

classe e lá estava ele, me esperando. Quando eu deixava o refeitório após o almoço, ele surgia e

me acompanhava pelo corredor até meu armário. Sua presença constante nunca me pareceu

estranha. Na verdade, ele tinha um jeito tão tranquilo e nossas conversas fluíam tão bem — na

maioria das vezes, falávamos sobre as aulas — que sua companhia me parecia natural. Na tarde

da sexta-feira, todas as reservas que eu tinha em relação a ele haviam desaparecido.

Pouco antes das duas da tarde, eu esperava por Ruth atrás do ginásio para nos sentarmos

juntas na primeira reunião do ano letivo com o diretor. O lugar estava lotado de bancos e

cadeiras, substituindo o material esportivo de sempre. Os estudantes continuaram a chegar aos

montes.

Vi que Missy e seu séquito costumeiro se aproximavam de onde eu estava e não queria ter

de falar com eles, portanto, me dirigi a um canto escuro, próximo aos bancos. De lá, podia ver

as portas do ginásio e chamar a atenção de Ruth quando ela chegasse, mas não teria de

enfrentar Missy e sua tentativa chata de se tornar minha amiga.

Enquanto observava o ponteiro pequeno do relógio aproximar-se do dois, vi que os

assentos estavam quase todos ocupados e fiquei imaginando onde Ruth estaria. Ela era sempre

pontual e organizada, quase nunca chegava atrasada. Não a um evento como aquele. Não ousei

me sentar em uma das poucas cadeiras disponíveis sem ela; ela ficaria brava em ter de ficar

sozinha.

Ruth. Ao pensar nela lembrei que não havia lhe contado sobre Michael. Tínhamos

horários distintos, portanto, ela não me vira com ele. E eu ainda não tivera vontade de lhe

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contar sobre nossas conversas. Ruth era superprotetora, e eu não queria contrariá-la, ainda mais

porque nem tinha certeza de que havia algo entre mim e Michael de que Ruth precisaria me

proteger.

Quando o ponteiro marcou duas horas, o diretor atravessou o palco. Estiquei o pescoço e

examinei o ginásio para me certificar de que não tinha visto Ruth. O local estava cheio de

alunos, mas Ruth não estava entre eles. Sentei em meu cantinho e esperei. Eu ia lhe dar mais um

minuto, depois me sentaria em um dos poucos assentos livres perto de mim. Ela teria de

entender.

Sem aviso, senti alguém ao meu lado. Não tinha visto ninguém se aproximar, então

estranhei a sensação. Olhei em volta. Não havia ninguém do lado esquerdo nem do direito.

Então senti uma mão nas minhas costas. A leve pressão da mão me fez sentir calafrios na

espinha, e meu coração disparou. Nem precisei me virar para saber quem era. De algum modo

eu sabia que Michael estava atrás de mim.

Ele tirou as mãos das minhas costas e se aproximou:

— Tem alguém sentado aqui? — sussurrou enquanto se esgueirava ao meu lado.

Nunca havíamos ficado tão perto um do outro. Eu mal podia respirar, quanto mais

responder. De onde vinha essa atração física tão forte? Nos últimos dias, eu começara a gostar

dele de verdade, mas nunca tinha sentido nada como aquilo. Com ele ou com quem quer que

fosse, aliás.

— Não — consegui, por fim, responder, engolindo a seco.

— Legal. Acho que vou só ficar do seu lado, não vou me sentar, assim podemos sair mais

cedo.

— Claro — respondi com uma voz que me esforcei para fazer parecer calma, apesar de

não me sentir nada tranquila.

As luzes diminuíram, tornando nosso cantinho ainda mais escuro. O diretor começou a

mexer nos papéis no pódio. Ele bateu no microfone, fazendo um ruído estridente. Eu e Michael

nos olhamos, tapamos os ouvidos e rimos. Então nos aproximamos em um silêncio cúmplice

enquanto o diretor começava o discurso.

Ouvi o diretor Robbins dar as boas-vindas aos alunos do penúltimo ano e cumprimentar

os mais antigos, mas eu não estava escutando de verdade. Ouvi a multidão rir educadamente

de alguma piada sem graça contada pelo diretor e sorri junto, como se estivesse prestando

atenção. Contudo, tudo o que eu podia ouvir, ver e sentir era Michael.

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O diretor Robbins apresentou o vice-diretor e quase caiu sobre a platéia enquanto cruzava

o palco rumo ao pódio. Fez-se um breve silêncio, e Michael se inclinou sobre mim. Pude sentir

sua respiração quente em meu rosto e fiquei imaginando o que ele iria fazer ou dizer.

Ele me cutucou com o cotovelo, mostrando-me a porta do ginásio ,e falou:

— Acho que alguém está olhando para você.

Dei uma olhada. Na escuridão do ginásio, vi a silhueta de uma pessoa contra o feixe de

luz brilhante que saía da porta entreaberta. Era Ruth.

Mais do que tudo no mundo, eu desejava ficar sozinha com Michael, mas sabia que era

impossível. Eu tinha de fazer um sinal para minha amiga.

Antes que eu me mexesse para chamar Ruth, voltei para agradecer Michael por tê-la me

apontado. Mas ele já tinha saído.

Conforme ele se distanciava tive a impressão de ouvi-lo dizer:

— Talvez eu te veja neste fim de semana.

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Seis

O fim de semana seguinte foi longo e cheio de dúvidas. Michael não aparecera para me

ver como pensei tê-lo ouvido dizer. Então eu tinha muito tempo livre para encarar meu celular

esquecido e pensar em Michael.

Não conseguia deixar de imaginar por que Michael insistira tanto em andar atrás de mim

durante a semana anterior. Não que ele tenha declarado algum interesse específico ou algo do

gênero, mas ele forçara um pouco a barra para me ver durante a semana na escola por amizade

ou algo mais, não sei dizer direito. Será que tínhamos ficado assim tão ligados na viagem à

Guatemala? E por que justo eu? Ele parecia ter feito outras amizades no pouco tempo em que

estava em Tillinghast, com o tipo de garotos que saíam com as meninas mais populares e

ignoravam o resto de nós. Não consegui deixar de sentir que Michael logo começaria, um dia, a

me ignorar também.

Na segunda-feira de manhã, eu estava insegura. Assim, quando saí da aula de inglês,

confirmei meus receios: Michael não estava sozinho me esperando, mas conversando com um

grupo de atletas. Temi que ele tivesse desistido de nosso breve relacionamento, de que ele não

estivesse de fato interessado desde o começo. Deixei meu cabelo cair sobre o rosto e fui em

direção oposta para evitar passar por ele, embora eu tivesse de ir para outro lado para assistir à

próxima aula.

Ao caminhar pelo corredor o mais rápido possível, ouvi alguém me chamando.

— Ellie.

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Reconheci a voz de Michael, mas estava tão envergonhada por ele ter me visto olhar e sair

apressada que continuei a andar.

— Ellie. — Sua voz foi ficando mais alta, e pude ouvir seus passos se aproximando.

Continuei fingindo que não o tinha escutado.

Michael se pôs do meu lado e pegou no meu braço. O local em que ele tocou começou a

formigar.

— Ellspeth — ele sussurrou, e seu hálito me deixou arrepiada. Meu fim de semana longo

e decepcionante não tinha sido capaz de anular a reação física que ele causava em mim.

Parei e olhei de volta para ele. Ele parecia chateado.

— Você sabe que me viu. Por que saiu andando?

— Você estava ocupado — expliquei. — Eu não queria atrapalhar.

— Você deveria saber que não estou nem aí para eles. Estou interessado em você.

— Jura?

— Juro.

Nosso olhar se cruzou por um segundo, e notei que Piper e Missy se aproximavam de

nós. E nos observavam.

Michael também deve ter notado, porque parou de me encarar e mudou de assunto.

— Desculpe, não pude te ligar. Seu fim de semana foi bom? — ele quis saber, enquanto

começávamos a caminhar pelo corredor novamente.

— Sim, acho que sim. — Eu queria desesperadamente perguntar por que ele não tinha me

ligado, mas não queria que ele achasse que eu tinha ficado pensando no que me falara na sexta-

feira.

— Você gostou do filme de sábado?

— Você estava no Odeon? — Fiquei chocada. Qualquer garoto do último ano com um

mínimo de amor próprio morreria se tivesse de ir ao Odeon, onde só passavam filmes

estrangeiros e produções independentes. E, pelo que me lembrava, o cinema estava

praticamente vazio.

À simples menção do nome do Odeon, Piper e Missy riram e saíram andando. Naquele

segundo elas haviam claramente decido que Michael não importava se ele era bonito e aluno do

último ano — não valia a pena. Ele havia se revelado um idiota aficionado em filme indie. Senti-

me aliviada.

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Michael respondeu como se nem tivesse percebido nada, ou melhor, nem ligado para o

que Missy e seu grupo pensavam dele.

— Eu cheguei atrasado. Você e sua amiga pareciam estar se divertindo tanto que não quis

interrompê-las.

— Você estava lá sozinho? — deixei a pergunta escapar e, então, minhas bochechas

ficaram vermelhas. Eu queria saber se ele tinha levado alguma namorada, mas por que eu tinha

de dar na cara daquele jeito?

Ele sorriu.

— Sim, estava. Isso provavelmente não é muito legal, né? Ir ao cinema sábado à noite

sozinho? — Ele não parecia estar nem um pouco envergonhado. Na verdade, sua capacidade de

fazer o que quisesse sem se preocupar com as consequências sociais de seus atos era uma das

coisas de que eu mais gostava nele.

Fiquei ainda mais vermelha, se é que isso era possível. Não quis ofendê-lo, mas, pelo

menos, ele não entendeu o verdadeiro motivo da minha pergunta. Ou, pelo menos, teve a

decência de fingir que não entendia.

Michael continuou:

— Morei em muitos lugares e aprendi a não me preocupar em parecer legal. Aprendi a ser

suficiente para mim mesmo. E, de qualquer maneira, Tillinghast é uma cidade pequena. É bom

fugir um pouco, mesmo que seja apenas para ir ao cinema. Se é que isso faz algum sentido.

— Faz, sim. — Ele falou de um jeito que parecia aceitável, e não estranho, passar a noite

de sábado no Odeon. E eu realmente entendi o que ele queria dizer. Como havia passado muito

tempo em contato com outras culturas, compartilhava da mesma compulsão por escapar dos

confins de Tillinghast rumo a outros mundos.

Ele voltou a falar do filme, um filme francês. Logo ficamos novamente absortos em uma

discussão sobre os melhores filmes franceses.

Meu favorito era a trilogia Três cores, enquanto ele gostava mais de La a Femme Nikita e

suas cenas de ação estilizadas.

Chegamos à porta da sala da aula de cálculo rápido demais (para mim, pelo menos). Mais

uma vez, tinha de enfrentar o momento constrangedor da despedida. Antes que eu dissesse

qualquer bobagem, Michael falou:

— Eu gostaria de te perguntar...

— Ellie, aí está você! — bradou Ruth enquanto se colocava entre nós. — Você deve ter

esquecido isto no meu carro de manhã, e saiu da aula de inglês antes que eu te entregasse. —

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Ela esticou a pasta e me entregou. Peguei a pasta de sua mão com cuidado para não tocá-la.

Desde que começara a ter as visões, tomava muito cuidado para não ter nenhuma visão sobre

minha amiga. No final do ano passado, na escola, eu tocara seu braço sem querer quando ela

olhava para Jamie, um aluno do penúltimo ano que ela sempre chamara de ‚burro‛, e vi que, na

verdade, ela sentia algo intenso por ele. Não queria mais ter nenhuma visão sobre Ruth. Isso

tornaria nossa amizade esquisita.

Comecei a mexer na pasta que Ruth tinha colocado na minha mão e percebi que meu

trabalho de cálculo estava lá.

— Nossa, obrigada, Ruth, não acredito que quase esqueci.

Ruth estava diante de Michael, pasma — e sem palavras. Percebi que ela estava entre mim

e Michael sem se dar conta de que estávamos conversando. Por que ela acharia que eu

conversaria com ele? Por fim, decidi conscientemente não falar nele para Ruth. Mas, com base

em sua reação, percebi claramente que tinha tomada uma péssima decisão. Como eu queria já

ter falado sobre ele para ela!

O que mais eu poderia ter feito naquele momento além de apresentá-los e tentar agir

normalmente?

— Acho que vocês não se conhecem. Ruth Hall, este é Michael Chase. Michael, esta é

Ruth.

— Prazer, Ruth — falou Michael.

Ruth, mesmo assim, não disse nada, ficou só olhando. Parecia que ela nunca tinha visto

um garoto conversando com sua melhor amiga antes.

Como Ruth não respondia, Michael virou-se para mim e continuou:

— De qualquer jeito, Ellie, sei que ainda é começo de semana, mas gostaria de saber se

você tem compromisso para sábado à noite. A gente poderia ir ao Odeon juntos.

Olhei para Ruth, que estava literalmente de boca aberta. Já tínhamos falado em ir ao

Odeon assistir ao novo lançamento no próximo sábado à noite.

— Na verdade, eu e Ruth combinamos...

Num sobressalto, Ruth saiu de seu encanto.

— Ellie, esqueci de te dizer que tenho uma festa de família no sábado à noite. Então você

está livre, totalmente livre.

Festa de família? Ruth não tinha nenhum parente além de seu pai. Esse era um dos

motivos pelos quais ela ficara tão próxima de mim e dos meus pais, e seu pai ficara tão próximo

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dos meus pais. Isso e o fato de seu pai e os meus dividirem uma quase obsessão por tudo que

estivesse ligado ao meio ambiente. Ruth realmente se sentia responsável por mim, apesar de

chocada por me ver conversando com Michael.

— Legal — disse Michael sorrindo para Ruth. Ele me olhou de novo. — Nos encontramos

lá às seis e meia?

Fiquei um pouco surpresa por ele não ter se oferecido para me buscar, mas, afinal, o que

eu sabia sobre encontros amorosos? Esse seria meu primeiro.

— Claro, vejo você lá.

Ele riu.

— Tá bom, mas hoje ainda é segunda. Acho que a gente ainda vai se ver antes disso.

Fiquei corada.

— Claro, claro.

O sinal tocou. Despedimo-nos rapidamente e cada um foi para sua classe.

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Sete

Esperava que Ruth me aguardasse no fim do dia. Eu sabia que tinha explicações a dar.

Não tinha falado nada sobre Michael e, de repente, íamos sair juntos. Era algo sério, do qual

Ruth só tomara conhecimento porque encontrara comigo bem na hora. Não tinha certeza de

como ela reagiria à novidade, mas o fato de ela ter sacrificado nossos planos para eu sair com

Michael era um bom sinal. Pelo menos assim eu esperava.

Ela estava me esperando na entrada principal distraída, mexendo nos cabelos compridos e

ruivos, claramente perdida em seus pensamentos. Ruth ficou quieta enquanto caminhávamos

para o estacionamento. Tínhamos combinado de ir à biblioteca fazer nosso primeiro trabalho

importante de inglês, e ela foi dirigindo. Meus pais ecologicamente corretos não queriam que

tivéssemos mais de um carro por causa daquela história da pegada de carbono. Eles achavam

que eu podia e devia ir a pé a qualquer lugar de Tillinghast, mesmo durante o inverno.

Irritavam-se com o fato de eu descumprir sua vontade, andando de carro com Ruth para todos

os lugares.

Eu também fiquei em silêncio, esperando por seu veredito.

— Por que você não me contou sobre Michael? — ela soltou finalmente.

Ainda não sabia exatamente o que ela estava pensando, então falei com cautela:

— Contei o quê?

— Sobre seu relacionamento com ele.

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— Relacionamento? Nós só nos vimos algumas vezes na escola durante a semana e

conversamos, no máximo, umas cinco vezes. Hoje foi a primeira vez em que falamos sobre sair

juntos.

— Não leva a coisa ao pé da letra, Ellie. Você conversou com ele várias vezes e não me

falou nada sobre ele. E você teve várias chances de falar sobre isso; passamos a noite do sábado

juntas.

Eu já tinha a resposta: Ruth estava brava. Tanto quanto uma pessoa reservada como Ruth

poderia estar. Pensei que seu sentimento não era motivado por ciúmes do meu sucesso

insignificante com um garoto, mas por eu não ter contado nada a ela. Eu sabia que a simples

ideia de guardarmos segredo uma da outra era inconcebível. Na verdade, para ela, isso era o

equivalente a uma traição. Feria sua ideia de lealdade.

— Desculpe, achei que não havia muito que contar.

— Pensei que a gente contasse tudo uma para outra. Mesmo que fosse uma coisa à toa.

— Ruth, ninguém sabe melhor do que você que eu não tenho nenhuma experiência com

garotos. Não sei se ele está sendo legal porque estivemos juntos na Guatemala anos atrás,

naquele programa cansativo de verão. Então eu não realmente não sabia o que te contar...

— Ele estava em uma das viagens que seus pais costumam fazer? — indagou, fazendo

uma pequena pausa para processar aquela valiosa informação. — Então por isso ele ficou nos

encarando no primeiro dia de aula...

Ruth havia visto Michael naquele dia. Fiquei perplexa diante do fato de ela tê-lo visto e

não ter dito nada a respeito e chateada porque ela achava que a única razão para um garoto me

olhar era por me conhecer. Mas era eu quem estava em uma posição delicada, e não ela, então

concluí:

— Sim, nossos pais trabalham mais ou menos na mesma área. Ele me reconheceu no

corredor, e foi estranho, porque não me lembrei dele...

Ruth não conseguiu conter a raiva e me interrompeu:

— Entendi, Ellie. Mesmo estando um pouco brava porque me escondeu isso, fico feliz por

você — resumiu com sinceridade. — Então, que roupa você vai usar no sábado?

Eu estava perdoada, e Ruth havia começado bem, escolhendo mentalmente a roupa que

eu deveria vestir em meu guarda-roupa restrito. Meus pais não eram partidários de acumular

muitos bens além do estritamente necessário. Ruth ficava consternada, pois estudava moda

secretamente, apesar de ser impossível saber disso apenas olhando para seu ‚uniforme‛ escolar

sem graça: calça jeans, camiseta e malha. Após ouvir Ruth discorrer sobre as vantagens do jeans

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sobre a saia, arrisquei fazer uma pergunta sobre Michael. Uma que eu desejara fazer a semana

toda, mas hesitara com medo de trazer à tona o lado protetor de Ruth. Até aquele momento.

— Você não sabe nada sobre ele, né? — perguntei e senti minhas bochechas ficarem

vermelhas como tomates de novo. — Quero dizer, você ouviu alguma coisa sobre a mudança de

Michael para cá?

— Bem, vamos ver.

Eu praticamente podia ver Ruth procurando nas pastas que ela guardava sobre cada

pessoa do ensino médio em seus arquivos internos — mais um de seus passatempos secretos.

Ela coletava fofocas, mas não as espalhava. Pelo menos não para ninguém além de mim. Ela

dizia que guardava essas informações por necessidade, e não por interesse real; para ela,

conforme aprendêramos em A arte da guerra, que havíamos lido para a aula de história no ano

anterior, precis{vamos ‚conhecer nossos inimigos‛. Para Ruth, j{ tínhamos vivido situações

desagradáveis o suficiente por causa do grupo de populares e aspirantes a descolados.

Novamente, sua personalidade protetora vinha à tona — para proteger a ela e a mim.

— Sua família se mudou para Tillinghast neste verão. Ele joga futebol americano e acho

que maravilhosamente bem. De qualquer modo, foi isso o que disse o novo técnico. Todos os

diferentes grupos de garotos o tratam bem — os jogadores de futebol americano, de futebol, até

os junkies —, mas ele não pertence a nenhum grupo. Parece preferir a própria companhia e

fazer as coisas porque quer, e não porque os outros querem. Ah, e é inteligente.

Assustadoramente inteligente, pelo que ouvi.

Apesar de vermelha, lancei a pergunta que de fato eu queria fazer.

— Ele namorou alguém?

— Não — ela riu. — Algumas garotas já estão a fim dele, mas não ouvi ninguém falar que

ele prestou atenção em alguma em especial. — Ela parou e sorriu para mim. — Até agora.

Sorri de volta. Minha ligação íntima com Michael tinha, de repente, se tornado real.

No fim da semana, já não aguentava mais falar sobre o que eu deveria vestir no meu

encontro. Ruth tinha ficado frustrada ao tirar todas as peças do meu armário; ela considerou

completamente inadequada minha coleção de jeans escuros, calças de veludo, malhas, camisetas

e blusinhas. Então me levou até seu armário, que continha peças difíceis de usar, mas

definitivamente descoladas e informais. Mas nenhuma servia em mim, que era mais magra e

alta. Desesperada, Ruth, por fim, me arrastou até o shopping — um lugar que meus pais

desaprovavam e consideravam um triste templo do materialismo — para procurar algo

‚apropriado para um encontro‛, fosse lá o que isso quisesse dizer.

Havia apenas uma coisa boa na procura tresloucada de Ruth pela roupa perfeita para um

encontro: entre isso e minhas atividades escolares, fiquei tão distraída que mal arrumei tempo

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para pensar no objetivo de toda aquela loucura. Então, quando o sábado às seis e meia da tarde

chegou e meus pais me deixaram em frente ao Odeon meio desconfiados com o fato de Michael

não ter ido me buscar eu não estava tão nervosa.

Fiquei parada sozinha na porta do Odeon vendo o relógio percorrer quinze minutos.

Aqueles quinze minutos me deram bastante tempo para rever todas as minhas conversas com

Michael e sentir vergonha dos meus comentários inconvenientes, de imaginar sobre que diabos

iríamos conversar e de verificar pela terceira vez a roupa que Ruth escolhera. Comecei a ficar

tão ansiosa que pensei se deveria ir embora.

Então Michael apareceu na esquina. Quando vi que ele usava uma calça cáqui e a camisa

abotoada até o pescoço, fiquei feliz por estar vestindo um blazer vintage, uma blusa preta de

manga comprida da loja J. Crew e calças skinny pretas que Ruth insistira que eu usasse. E fiquei

muito, mas muito feliz por tê-lo esperado.

— Desculpe ter feito você esperar, Ellie — disse Michael, me entregando uma sacola de

presente dourada, linda. — Isto não serve de desculpa, mas espero que justifique meu atraso.

Peguei a sacola com um leve e cauteloso sorriso. Abri-a e tirei de dentro uma caixa de

trufas de chocolate recheadas com canela caríssimas. Não conseguia acreditar. Durante a

semana, Michael havia perguntado casualmente qual era meu bombom favorito, e eu havia lhe

contado qual era meu objeto de desejo. Nunca imaginei que ele fosse comprá-lo para mim.

— Não acredito que você lembrou.

— Você não me falou que era difícil encontrá-lo em Tillinghast.

— Não acredito que você achou isto na cidade. Só consigo comprar no free shop quando

viajo com meus pais no verão.

Ele sorriu envergonhado:

— Não achei exatamente em Tillinghast.

— Por favor, não vá me dizer que você precisou ir muito longe.

— Vamos apenas dizer que a loja daquele grande hotel de Bar Harbor tem uma coleção

bem legal de bombons. — Ele me pegou pela mão e falou: — Vamos, não queremos perder o

filme, né?

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Oito

Nem que eu tivesse escrito o roteiro teria pensado em um programa mais agradável. A

escolha do filme fora perfeita: as cenas de ação e filosofia agradaram aos dois e ainda ficamos

livres das cenas de amor constrangedoras. Para mim, já bastava ter de tentar me concentrar no

filme enquanto meu braço ficava encostando no de Michael, imagine se ainda tivesse de encarar

cenas de amor na tela. A lanchonete onde depois jantamos hambúrgueres e batata frita pareceu

se transformar em um bistrô francês saído diretamente de uma das cenas do filme. E nossa

conversa fluiu tranquilamente durante toda a noite.

Dividimos a sobremesa e conversamos animadamente sobre outros filmes estrangeiros.

Quando terminamos o bolo de chocolate e nossa discussão acalorada, ele disse:

— Meu Deus, estou feliz por você estar em Tillinghast.

Senti minhas bochechas ficarem bem vermelhas. Eu não sabia bem o que ele queria dizer,

então mexi no bolo sobre o prato e indaguei:

— Está?

— Quero dizer, é tão bom encontrar alguém inteligente e interessada no mundo além de

Tillinghast nesta cidade pequena. Alguém que tenha viajado para os mesmos lugares pouco

conhecidos e que também tenha pais que só pensem na mesma coisa.

O modo como Michael dissera ‚alguém‛ me fez hesitar. Ele estava feliz por achar alguém

com quem ele pudesse se relacionar ou estava feliz em me encontrar?

Como se soubesse o que eu pensava, Michael admitiu:

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— Estou tão feliz por ter te achado aqui, entre todos os lugares possíveis. Imagine ver

você de novo em Tillinghast depois de conhecê-la na zona rural da Guatemala.

Sorri e levantei o olhar.

— Mesmo que eu não me lembre de você da Guatemala? — Tentei muito evocar nem que

fosse uma única imagem de Michael na Guatemala, mas não deu certo. Era como se houvesse

um muro em minha cabeça e eu não conseguisse escalá-lo ou olhar em volta, não importa o

quanto tentasse.

Ele sorriu de volta.

— Mesmo que seja fácil me esquecer da Guatemala.

Rimos por causa da minha falta de memória, e fiquei muito aliviada. Até aquele

momento, tínhamos evitado falar da Guatemala e da minha estranha amnésia. Mas a verdade é

que eu me sentia mal quanto a isso. Não mais.

Quando ele me ajudou a colocar o casaco, pensei em como eu tinha adorado tudo que vi

em Michael. Ele era engraçado, cavalheiro e atencioso, sempre abria a porta para mim e até

tinha parado para ajudar uma mulher mais velha que tentava atravessar a rua entre o cinema e

o restaurante. Ele era viajado e brilhante e tinha apenas um defeito: parecia muito bom para ser

real. Na verdade, ele estava tão à vontade que fiquei imaginando que ele já tinha ido a dezenas

de encontros antes.

Conversamos na porta da lanchonete e pensei que talvez devesse ligar e pedir para que

meus pais me buscassem. Afinal, Michael não dissera nada sobre me levar para casa de carro e

havia me pedido para encontrá-lo no cinema. Talvez ele não tivesse carro, e eu não queria

parecer atrevida.

Peguei o celular e comecei a digitar o número. Ele perguntou:

— Para quem você está ligando?

— Para os meus pais.

— Você sempre tem de ligar para eles no meio de um encontro? — falou, rindo.

— Não. Bem, eu não costumo ir a encontros... — respondi, ficando vermelha diante da

minha confissão não intencional. — Quero dizer, não preciso ‚avis{-los‛, ou algo assim...

Ele riu.

— Estou só brincando, Ellie. Se você precisa ligar para os seus pais por algum motivo, é

claro que pode ligar.

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— Só pensei que a gente provavelmente tivesse indo para casa e eu ia ligar para eles

virem me buscar.

— Te buscar? Eu esperava te levar para casa de carro.

— Jura?

— Claro. Se estiver bom para você.

Concordei com a cabeça, feliz.

Michael ficou em silêncio enquanto me ajudava a entrar no Prius azul-marinho dos seus

pais e me levava para casa. Fiquei pensando se eu tinha feito ou dito algo errado e tentei

preencher o silêncio puxando papo. Mas Michael parecia perfeitamente satisfeito em dirigir

quase sem dizer nada, com uma mão na direção e outra quase encostando na minha.

Ele parou em frente à minha casa. Nossa pequena casa branca de estilo vitoriano, com um

pórtico amplo, pintado com capricho de verde palmeira e bem cuidado que meus pais haviam

ressuscitado de uma demolição, pareceu especialmente convidativa. As luzes acesas na cozinha

eram sinal de que meus pais estavam me esperando acordados.

— Quer entrar? — Não tinha certeza de que deveria perguntar, mas me pareceu a coisa

mais natural a fazer. Além disso, eu estava nervosa. Nunca tinha saído com um garoto antes —

muito menos beijado — e fiquei tentando adivinhar o que viria depois. Parte de mim esperava

por isso, apesar de eu não ter a menor ideia do que fazer.

— Talvez seja melhor eu entrar e ver seus pais da próxima vez. Preferia ficar só com você

esta noite.

As palavras ‚da próxima vez‛ me soaram docemente. Deram-me a certeza de que ele

tinha gostado da noite, mesmo tendo ficado quieto. Pus minha mão na maçaneta da porta do

carro e falei:

— Até a ‚próxima vez‛, então.

Michael alcançou minha mão e a tirou gentilmente da maçaneta.

— Você não tem mais nada para fazer comigo ‚desta vez‛? — Se sua voz não tivesse

oscilado quando fez a pergunta, ela teria soado suave. Em vez disso, soou encantadora.

Mesmo ansiosa, eu também não queria que o encontro acabasse. Balancei a cabeça e baixei

os olhos.

Com a mão livre, Michael passou os dedos em minhas bochechas e nos meus lábios, e

pousou a mão atrás do meu pescoço, levantando meu rosto para que eu ficasse de frente para

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ele. Ele deixou a outra mão escorregar pelas minhas costas e me puxou para perto, tão perto que

senti seu hálito na minha pele.

Ele se inclinou para me beijar, e eu me rendi. Seus lábios eram macios e delicados, como

se Michael tivesse ficado comigo a noite toda. Respondi intuitivamente, seguindo-o conforme

ele ia ficando mais insistente.

Devagar, bem devagar, sua língua invadiu meus lábios. Seu movimento delicado, mas

intenso, me deixou sem fôlego. Esperei enquanto ele passava a língua na ponta da minha e em

cima dos meus dentes superiores com uma vagarosidade sedutora. O movimento causou

arrepios em minha espinha.

Quis provocar a mesma reação nele. Hesitantemente, toquei sua língua com a ponta da

minha e depois procurei seus dentes superiores. Imitando seus movimentos, passei a língua

sobre os dentes dele, mas eles eram muito afiados. Gritei de dor enquanto meu sangue enchia

nossa boca.

O instinto me mandou recuar e me desculpar, mas Michael me segurou. Assim, a

intensidade do beijo aumentou, tornando-se insistente, e me senti dominada pelo nosso ardor.

Minha dor não diminuiu meu desejo. O sentimento era tão novo... Mas aquela urgência me era

quase familiar. Como a que senti quando sonhava, à noite, que voava sobre a cidade.

Arfando, Michael se afastou primeiro. Olhamo-nos com nossos olhos claríssimos, e vi um

apetite voraz igualável apenas ao meu. Nunca havia imaginado que um beijo fosse daquele

jeito. Nem mesmo nos filmes.

— Acho que devemos parar — ele afirmou.

Nunca sonhara em sentir tanta coisa em tão pouco tempo. Não queria parar e, como se

estivesse em um sonho, falei:

— Não, não quero parar. — E tentei alcançá-lo.

— Sim, Ellie — disse ele, colocando a mão sobre a minha para evitar que eu me

aproximasse.

Mesmo assim, eu queria mais.

— Por favor, Michael. — Tentei ir adiante, indo contra a pressão de sua mão.

Ele me empurrou em direção ao meu banco. Gentilmente, mas foi o suficiente para

quebrar o encanto.

O que tinha acontecido comigo? Estava morta de vergonha diante do meu

comportamento agressivo e por causa de sua rejeição. Encostei no banco, fugindo para o mais

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longe de sua rejeição que consegui. Mas não foi o suficiente. Mais do que tudo no mundo, eu

queria sair daquele carro.

Enquanto eu procurava a maçaneta da porta, ele segurou minha mão.

— Ellie, por favor, acredite que parei só porque quero ficar com você. E isso é só o

começo.

Tentei me soltar dele.

— Não precisa me dispensar assim, Michael. Posso não ter experiência, mas não nasci

ontem.

Michael pegou minhas mãos.

— Por favor, Ellie.

Olhei para ele como se tivesse entendido — e aceitado — suas desculpas. Mas concordei

com a cabeça apenas para que ele soltasse minhas mãos. Quando me livrei dele, abri a porta e

corri para longe do carro. Para longe dele.

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Nove

Revirei-me na cama durante horas depois do encontro com Michael. Estava agitada,

mental e fisicamente. Minha mente repassava toda nossa noite juntos, enquanto meu corpo

estava atormentado por um desejo tão forte por Michael que nem a lembrança dele me

empurrando conseguia afastar.

Quando finalmente consegui dormir, já era quase de madrugada, e voltei a sonhar meu

sonho recorrente. Começou como sempre: eu saía pela janela do quarto e voava sobre a cidade.

Demorei-me, como de costume, sobre o parque gramado e a igreja antes de partir rumo ao mar.

Antes de alcançar o penhasco rochoso que ladeava o oceano, vi uma luz brilhante vindo

de uma casa próxima da praia — algo diferente em meu sonho habitual. Era a única iluminação

visível na paisagem escura. De alguma maneira, meu corpo sabia exatamente o que fazer, então

posicionei meus membros, de modo que ganhasse velocidade.

Em segundos me aproximei da rua e dei uma volta em torno do perímetro da casa. Notei

poucas lâmpadas acessas na sala e na cozinha vazias, mas a luz que eu vira não eram essas.

Apesar de o resto da casa estar escuro, logo percebi que a luz azul vinha do quarto de cima — o

quarto de Michael.

Michael estava sentado à escrivaninha, olhando para o mar. Eu não conseguia ver de onde

vinha a luz azul, então voei em direção à sua janela. Ele estava tão bonito e contemplativo que

me deu vontade de tocá-lo. Mesmo sabendo que ele não me via, estendi a mão em direção a ele.

Mas então o vento me golpeou e implorou por minha atenção. Vi que o vento bateu com força

as macieiras do jardim de Michael, movendo ligeiramente os galhos e as folhas do final do

verão.

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Por um instante, deixei Michael de lado e segui minha inegável compulsão por voar mais

alto. Inclinei a cabeça para cima, em direção ao céu, e meus ombros se aprumaram como se eu

estivesse abrindo as asas. Fechei os olhos enquanto o vento me levava em seus braços, e o céu

me puxou em direção ao firmamento. Rendi-me à alegria que o voo e a liberdade me

despertavam.

Porém, meu corpo deu uma guinada para baixo, se emaranhando nas macieiras. Olhei

para as árvores, esperando ver alguma mão me segurando pelos tornozelos ou galhos sinuosos

enrolados nas minhas panturrilhas. Mas não havia nada a não ser o poder da terra.

A próxima coisa de que me lembro é do telefone tocando. Levantei-me sobressaltada,

surpresa por ver a luz do sol brilhando através das ripas da persiana da minha janela. Que

horas eram? Busquei o relógio e não acreditei que já eram quase dez horas da manhã. Nunca

havia dormindo até tão tarde, mesmo nos fins de semana. Acordar tarde não fazia meu estilo.

Enquanto pegava minhas coisas para tomar banho, vi que o alerta de chamada do meu

celular estava piscando. Verifiquei as chamadas e vi que eram de Ruth e de Michael. Podia

adivinhar que Ruth estava louca para saber as novidades, mas o que Michael queria? Dar suas

desculpas esfarrapadas de novo? Eu ainda não era capaz de ouvir nenhuma.

Em vez disso, percorri o corredor até o banheiro. Esperava que uma chuveirada quente e

demorada levasse as lembranças do meu sonho e os pensamentos sobre Michael que voltavam à

minha mente. Depois de secar o rosto e o cabelo, ouvi minha mãe me chamando lá de baixo.

— Ellie? Ellie, querida, você já se levantou?

A porta do banheiro se abriu rangendo, e eu respondi:

— Sim, mãe.

— Que bom, precisamos sair em quinze minutos. — Apesar de meus pais não serem

frequentadores assíduos da igreja aos domingos de manhã, eles haviam insistido que

trabalhássemos como voluntários para servir a sopa aos pobres no domingo. Eles acreditavam

que deveríamos adorar a Deus por meio de ações, e não de palavras.

— Já vou.

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Então não ia dar para tomar um banho quente e demorado naquela manhã. Mas talvez

passar a manhã distribuindo sopa fosse exatamente o que eu precisava. A dura realidade iria

afastar Michael da minha cabeça.

Corri para me arrumar, mas a escova ficava presa a toda hora em um nó especialmente

dificil de tirar. Tentei separar as mechas com o pente. O nó não desatava, e percebi que havia

algo mantendo os fios enroscados. Por fim, joguei a coisa no chão e me curvei para pegá-la. Era

uma folha de macieira.

Coloquei a folha no alto, perto da luz do banheiro, para me certificar que era. Não havia

nenhuma dúvida. Eu não conseguia lembrar a última vez em que estivera perto de uma

macieira. Exceto em meu sonho, na noite anterior.

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Dez

Consegui evitar me encontrar com Michael na segunda e na terça. Ele tentou chamar

minha atenção algumas vezes, quando eu saía das aulas, mas fingi não perceber. Eu não queria

relembrar a humilhação e meu desejo selvagem no final do nosso encontro. À luz do dia,

enquanto caminhava perto da escola, era dificil acreditar que eu, de fato, tinha agido daquele

jeito. Para não correr nenhum risco, mantive Ruth do meu lado como um escudo. Ruth achou,

mesmo depois de ouvir tudo que eu contara, que eu estava fazendo tempestade em copo

d’{gua, mas me apoiou. Como sempre.

Na quarta-feira, não vi Michael me esperando em lugar nenhum. Inicialmente, senti um

alívio enorme por não ter mais de fingir. Mas, com o passar do dia, não consegui deixar de me

sentir decepcionada. Mesmo morrendo de vergonha do meu comportamento e da reação de

Michael, eu me sentia atraída por ele.

Após uma reunião depois da aula da quarta-feira, fui até a biblioteca da cidade,

caminhando sozinha. Ruth também fora a uma reunião para preparar o anuário escolar da sua

turma, mas ia ficar até mais tarde, portanto, não pôde me levar de carro para casa. Para falar a

verdade, eu queria dar uma volta para aproveitar o ar fresco do outono sozinha. Eu precisava

ficar um pouco sozinha para tirar da cabeça os pensamentos obsessivos sobre Michael e me

concentrar novamente nos estudos, que tinham ficado de lado.

Após uma curva fechada, avistei a biblioteca a alguns quarteirões de distância. Era um

prédio de mármore e granito datado do século XXI quando as proeminentes famílias

milionárias da região ainda tinham dinheiro para gastar em Tillinghast; os fundadores da

cidade não pouparam gastos na escadaria da entrada, digna da grandeza do edifício. Eu estava

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prestes a subir seus degraus imponentes quando avistei o carro de Michael parado no

estacionamento em frente à biblioteca. Será que ele sabia que eu ia para lá?

Subi as escadas rapidamente, com a cabeça baixa. Quando ia abrir a enorme porta de

bronze e suspirar aliviada, senti uma mão tocando meu braço.

— Por favor, Ellie, apenas me ouça por um segundo.

Eu não podia mais fingir. Virei-me e olhei para os olhos verdes claros de Michael. Ainda

segurando meu braço, ele sussurrou apressado, como se tivesse medo de que eu fugisse:

— Ellie, nunca tive tanta certeza de alguma coisa como tenho dos meus sentimentos por

você. Na verdade, é algo tão forte que às vezes me assusta. Eu te afastei naquela noite porque eu

queria muito você. E tive medo de assustá-la se eu cedesse aos meus sentimentos.

Michael me encarava enquanto falava, sem vacilar o olhar ou as palavras. Como eu pude

negá-lo a chance de se explicar durante aqueles dias? Virei o rosto e olhei para meus pés. Não

tinha certeza de que merecia sua persistência.

Ele colocou o dedo embaixo do meu queixo e levantou meu rosto para olhar nos meus

olhos, mas desviei o olhar.

— Ellie, você não precisa se envergonhar de nada do que aconteceu sábado à noite. Eu

também queria. Segurei nosso impulso porque queria que as coisas entre nós fossem perfeitas.

Minhas bochechas ficaram cor-de-rosa, e continuei olhando para o chão.

— Eu também, Michael. Eu fiquei tão sem graça. Nunca tinha me comportado daquele

jeito, nem tinha sentido nada parecido na vida, e então você...

Ele colocou os dedos sobre meus lábios e sussurrou:

— Shh, Ellie, eu também nunca tinha me comportado daquele jeito nem sentido nada

parecido. E desculpe por ter empurrado você.

— Mesmo? — perguntei sem olhar para ele, com medo de que, se eu olhasse, ele

desapareceria, como um personagem de um dos meus sonhos, ou me rejeitaria de novo. Mais

uma vez, Michael pareceu muito bom para ser real.

— Mesmo. Podemos começar de novo?

Por fim, olhei para ele e sorri envergonhada, enquanto dizia:

— Eu adoraria.

Michael desceu comigo as escadas íngremes da biblioteca e fomos até seu carro. Após

abrir a porta para mim, enquanto eu esperava que ele entrasse do lado do motorista, vi um casal

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subindo as escadas da biblioteca. Seu jeito atraente chamou minha atenção logo de cara, e

percebi que conhecia a garota. Era Missy. Ela andava ao lado de um garoto alto e loiro que

definitivamente não era Charlie, o rapaz do último ano com quem eu pensava que ela estava

saindo desde o ano anterior.

Michael abriu a porta do lado do motorista e entrou no carro. Antes de dizer qualquer

palavra, inclinou-se para me beijar. Seu gesto inocente foi bem diferente do da outra noite, mas

ajudou a aplacar meus medos e afastou todos os pensamentos sobre Missy e quem ela estava

namorando.

— Que tal se fôssemos até o mar? Há um ótimo lugar de onde poderíamos ver o pôr do

sol — perguntou Michael.

— Claro, parece uma boa ideia.

Para meu alívio, Michael falou apenas sobre temas amenos, como lição de casa e aulas,

durante o percurso até a costa. Mal notei a mudança de cenário, porque estava totalmente

absorta em Michael e feliz por ter voltado a ficar com ele.

Encostamos o carro na rua e saímos. Michael estacionou na área plana de um precipício

escarpado que dava para a praia. Inclinei-me na beira do precipício e olhei para baixo, para uma

enseada pitoresca que eu nunca tinha visto antes, mesmo morando em Tillinghast todos esses

anos.

— Que lugar é esse?

— Chama-se Ransom Beach.

O sol estava começando a se pôr. Logo surgiram, lá embaixo, na areia branca da praia,

sombras púrpuras. Michael segurou minha mão e começou a me guiar por uma trilha irregular

quase invisível que cortava o precipício. Ele demonstrou tanta habilidade na descida que não

pude deixar de pensar que ele certamente já estivera lá várias vezes. Em minutos, descemos as

pedras até a areia onde as enormes rochas escarpadas da enseada nos envolviam como um

abraço gélido.

Michael colocou o braço em volta do meu ombro para me proteger do vento, que uivava

com força enquanto olhávamos o sol. Conversamos um pouco sobre a beleza do sol e então ele

perguntou baixinho:

— Eu queria falar sobre a noite passada, se não tiver problema para você.

Fiquei tensa, então tentei melhorar um pouco o clima.

— Nos já não falamos tudo que tínhamos para falar sobre isso?

Ele riu.

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— Quase. Quero falar com você sobre o motivo pelo qual acho a gente se sente tão atraído

um pelo outro, Ellie.

— Nos sentimos?

— Você já sentiu que é diferente dos outros?

Ri de novo, e não apenas porque ele estava sendo tão melodramático. Olhei para ele e

respondi honestamente:

— Se com ‚diferente‛ você quer dizer desajeitada, então, sim.

— Desajeitada? Você está brincando, né?

Balancei a cabeça. Mesmo achando meu jeito desajeitado engraçado às vezes, eu

definitivamente não estava brincando.

— Se você está realmente falando sério, então precisa entender que só você se vê assim.

Todo mundo te acha inteligente, intimidante, viajada e bonita.

Quase explodi em uma risada, mas recuei.

— Tá bom.

— Piper e Missy foram muito simpáticas com você recentemente, não foram?

— Sim... — Fiquei tentando pensar em como ele descobrira isso e aonde ele estava

querendo chegar com a pergunta.

— Mas elas ainda ignoram você às vezes, né?

— Sim.

— Pessoas idiotas como Piper e Missy se aproximam de você e te esnobam ao mesmo

tempo porque você as assusta. Elas não sabem como agir diante de alguém como você. Alguém

atraente e brilhante e completamente desinteressada nos joguinhos delas. Alguém que elas

sentem que é diferente e especial, mas não sabem como.

Fiquei chocada de verdade.

— Ah, Michael, eu já gosto de você, não precisa me bajular. Não sou diferente e especial.

Meus pais sempre insistiram muito para que eu me achasse inteligente, importante e

amada, mas, ao mesmo tempo, tinham o cuidado de me lembrar de que eu era uma garota

comum, como qualquer outra. Com responsabilidades para com os outros e o planeta.

— Se você pudesse ver como é bonita e especial... — Michael falou enquanto se inclinava

para me beijar.

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O vento e o frio crescente diminuíram enquanto me perdia em seus braços. Ele me

abraçou e me beijou com uma intensidade rápida e crescente, como quando estávamos no

ginásio e no seu carro. Eu só consegui ver, pensar e sentir sua presença.

Ele me deitou na areia com suavidade. Seus beijos se tornaram mais insistentes, e adorei

aquele arroubo crescente. Com um gesto familiar, sua língua invadiu meus lábios e tocou a

minha. Michael recolheu a língua na boca e passou-a nos dentes, e então a senti tocar a minha

levemente.

De repente, um gosto metálico invadiu minha boca. Michael tinha deixado uma pequena

gota de sangue cair na minha língua. A areia, o vento e a enseada desapareceram, e tive uma

visão impactante — muito mais intensa do que as que eu já tinha tido. Vi-me no primeiro dia de

aula, andando pelo corredor com Ruth depois da discussão entre ela e Missy. Vi-me virando a

cabeça em direção a Michael e não pude crer em minha aparência. Minha pele e meus olhos

claros contrastavam com meus cabelos escuros e brilhantes, e meu corpo comprido e ágil estava

envolto por uma luz brilhante. Através dos olhos de Michael, notei que eu estava realmente

linda, dona de uma beleza quase etérea.

Sem mais nem menos, o corredor da escola desapareceu e surgiu outra imagem de mim

mesma, bem mais desconcertante. Vi-me voando até a janela do quarto de Michael, que ficava

no segundo andar da casa, e esticando a mão para ele, convidando-o a voar. Era uma cena do

meu sonho.

Recuei do beijo de Michael e a imagem desapareceu. Levantei da areia e perguntei:

— O que foi aquilo? Como você sabia...

— Como eu sabia que você tinha visões como aquela? Que você invade o pensamento, os

sentimentos e as bobagens que os outros pensam?

— Sim. — Eu mal conseguia respirar.

— Como eu sabia que você sonha que está voando? E que, na noite passada, você voou

até a janela do meu quarto no seu sonho?

— Sim.

— Ellie, eu te disse que você é diferente. Nós somos diferentes. E essa diferença significa

que fomos feitos um para o outro.

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Onze

Diferente — o que Michael quis dizer com isso? Eu estava muito assustada para

perguntar. Também estava apavorada — por causa dele, das imagens e até de mim mesma —

por estar junto dele naquela praia longínqua, ainda mais àquela hora, quando já estava ficando

escuro. Senti-me traída também. Será que ele tinha planejado reconciliar-se comigo apenas para

me levar para aquele lugar e me assustar? E como ele sabia das minhas visões? E dos meus

sonhos? Algo não esta claro. Afastei-me dele e virei a cabeça em direção à trilha rochosa que

levava à estrada.

Michael correu atrás de mim.

— Desculpa, Ellie, não quis lhe assustar.

Virei-me e falei:

— Bem, você me assustou. — E então continuei andando.

Senti suas mãos tentando me alcançar:

— Vem cá, deixe eu ajudar você a voltar pela trilha.

Grudei as mãos junto ao meu corpo enquanto seguia em frente, disse:

— Não, obrigada, você j{ me ‚ajudou‛ bastante. Vou sozinha.

Eu não queria que ele me tocasse. E se seus pensamentos e imagens passassem para mim

ou, pior ainda, os meus passassem para ele?

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O sol já havia se posto quase totalmente no horizonte, e a trilha estava muito escura; era

dificil enxergar. Continuei em frente como se soubesse o caminho e o que estava fazendo.

Enquanto andava pela trilha estreita, ouvi algumas pedras deslizarem pelo penhasco íngreme.

O barulho me assustou, me fazendo perder a confiança e o passo. Escorreguei, porém Michael

me segurou bem nessa hora.

Sentei por um momento para recuperar o fôlego. Como não tinha tido nenhuma visão

quando ele me segurara, achei que podia aceitar sua ajuda para percorrer o resto do caminho.

Andamos juntos, ele segurando meu braço até finalmente chegarmos ao topo. Lá, tentei afastar

a sua mão para ir até o carro sozinha, mas ele me segurou com força.

— Ellie, olhe para mim.

Eu não queria olhar para ele. Enquanto subíamos pelo caminho perigoso, pensei no que

havia acontecido entre nós. Não importava se as sensações tinham ou não sido reais e eu ainda

não estava pronta para enfrentar aquilo nesse momento —, eu estava brava. Como ele ousara

me levar a um lugar tão isolado e perigoso para me fazer passar por tudo aquilo? Eu não queria

que a raiva diminuísse e temia que isso acontecesse caso olhasse em seus olhos.

— Por favor, Ellie.

Fiquei olhando firmemente para o chão.

— Por que eu deveria, Michael? Você me arrastou até essa praia distante para me assustar

com algum tipo de brincadeira.

— Brincadeira?

— Sim.

— Você acha que as imagens que dividi com você foram brincadeira? — Ele parecia

espantado, até um pouco bravo. Não ousei olhar para seu rosto.

— Sim. — Na verdade, eu não tinha certeza. Já tinha tido muitas visões, ou lampejos, ou o

que quer que fossem para suspeitar que elas talvez fossem reais. Mas não quis admitir isso em

voz alta para ele — porque aí eu teria de enfrentá-las. E eu ansiava desesperadamente por ser

comum, como meus pais sempre haviam me dito que eu era. Eu nunca tinha tido nenhum

problema pensando em mim nesses termos até aquele momento. Eu não queria ser diferente,

ainda mais desse jeito esquisito.

— Não teve nenhum truque, Ellie. Você é diferente. Nós somos.

— Não somos. Não sei como você fez aquilo, mas não há nada de diferente conosco.

Senti que Michael me encarava e não consegui mais manter o olhar afastado. Mesmo

estando quase escuro, eu podia ver o brilho verde de seus olhos. Não queria ficar sem graça por

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causa de seu olhar, então o encarei. Ele soltou minha mão. Então, de propósito, caminhou até a

beira do penhasco e olhou para o oceano.

— Michael, o que você está fazendo?

Virando-se para mim, perguntou:

— Você tem certeza de que seu voo foi só um sonho? Que você é apenas uma garota

comum?

Como não respondi, ele se virou para o mar. Ficou parado um momento, a silhueta escura

sobrepondo-se ao céu fervilhando de carmim. Por um segundo, pensei que ele quisesse ficar um

pouco sozinho, para se acalmar. Então me afastei em direção ao carro e depois me virei para ver

se ele vinha atrás.

Mas ele não veio. Ele nem sequer me olhou de volta. Em vez disso, naquele momento,

esticou os braços e pulou do penhasco.

Corri até ele, mas eu estava muito longe para alcançá-lo. Só parei próximo ao precipício.

Desesperada, caí com as mãos e os joelhos no chão e engatinhei até a beira do precipício.

Examinei bem o penhasco e a praia abaixo, mas não conseguia ver nada além das pedras cinza-

azuladas e a areia branca. E então gritei.

Em segundos, o susto passou e me ocorreu o óbvio: eu precisava descer para procurar

sinais de Michael no penhasco e na praia. Ele podia estar machucado ou, ainda pior, depois de

cair mais de dezoito metros. Só de pensar na palavra ‚pior‛ comecei a chorar. Senti-me tão

culpada, como se minha falta de fé nele o tivesse empurrado.

Mas as lágrimas não o trariam de volta. Então limpei o rosto e consegui ficar de pé.

Quando estava prestes a descer a trilha, senti alguém batendo em meu ombro. Virei-me

pensando que alguém que por ali passava tivesse me ouvido gritar. A ajuda era bem-vinda.

Mas eu estava errada.

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Doze

Era Michael.

Michael. São e salvo, sem nenhum machucado.

Minha vontade era matá-lo naquele exato momento.

— Como você teve coragem de fazer isso comigo? — gritei.

Ele teve a audácia de sorrir.

— Fazer o quê? Voar?

— Me enganar!

Virei para me afastar dele e ir em direção ao carro. É claro que ele havia me enganado. As

peças se encaixavam. Ele tinha me levado àquele lugar isolado com tudo planejado para me

fazer acreditar nas suas fantasias malucas sobre nossa ‚diferença‛, seja l{ o que isso quisesse

dizer. E como tentativa desesperada de me convencer, encenara um ‚voo‛, um pulo totalmente

premeditado em algum lugar do penhasco que ele obviamente conhecia bem, seguido de seu

reaparecimento ‚m{gico‛. Como ele tinha conseguido fazer aquilo, eu não sabia. Ele não

precisava recorrer a nenhum passe de mágica para me conquistar.

— Cara, a coisa não está rolando do jeito que imaginei — ouvi-o murmurar para si

mesmo.

Continuei andando.

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— Ellie, não teve truque nenhum. Você com certeza sabe que o único jeito de eu

sobreviver a um salto como aquele era voando. Pensei que você precisava ver a verdade para

acreditar no que eu estava lhe contando.

Parei ao lado da porta do passageiro, esperando-o abrir o carro. Não olhei nem falei com

ele. Logo percebi que não adiantava fazer nada, ele iria continuar com aquela história de todo

jeito. A última coisa que eu queria fazer era me sentar sozinha com ele no carro, mas eu não

tinha escolha. Queria ir para casa.

Ele continuou tentando se explicar — não parava de falar em ‚nós‛ — na estrada. Mas eu

literalmente não o ouvia. Agarrei-me à minha raiva para não escutá-lo. Para não ouvir todos os

sentimentos que eu ainda tinha por ele e toda a verdade que poderia de fato haver em suas

palavras.

Nem me preocupei em me despedir quando saí do carro. Em vez disso, corri para a porta

de casa, fechando-a atrás de mim. Senti uma vontade imensa de subir correndo as escadas até

meu quarto e me enterrar embaixo das cobertas. Só queria esquecer aquela noite, Michael, todas

as coisas esquisitas — e acordar descansada, em um novo dia. Porém meus pais me esperavam

na cozinha.

— Onde você estava, Ellspeth? — quis saber meu pai, com uma voz alarmada. Nunca

tinha ouvido aquela voz antes. E ele havia dito ‚Ellspeth‛, nome que ele nunca usava.

— Na biblioteca.

— Mesmo? — Agora era minha mãe que tinha um tom de voz totalmente estranho e

preocupado.

— Você quer nos contar alguma coisa, Ellie? — perguntou meu pai dessa vez.

— Não — respondi. Mas enquanto negava, lembrei que havia dito a eles que eu iria à

biblioteca com Ruth depois da escola. E eu não tinha telefonado para Ruth para avisá-la que eu

não estaria lá, que, em vez disso eu sairia com Michael.

Sabia o que minha mãe ia dizer antes mesmo de ela falar.

— Então por que a Ruth ligou aqui duas horas atrás procurando por você — da

biblioteca?

Dei a única desculpa que eu poderia dar naquela situação, mesmo sabendo que isso iria

trazer um monte de problemas.

— Eu estava na biblioteca, mãe. Mas com Michael, não com Ruth. E depois saímos para

tomar um café.

— O rapaz daquela noite? O garoto da Guatemala? — indagou minha mãe.

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— Sim.

Meus pais trocaram um olhar que eu não consegui decifrar.

— Ellspeth Faneuil, você nos disse explicitamente que estaria na biblioteca com a Ruth.

Você sabe muito bem que, se quisesse sair da biblioteca com outra pessoa, tinha de nos dizer.

Principalmente com um rapaz que não vemos há três anos — falou minha mãe, me

repreendendo pela primeira vez na vida.

— Desculpem, eu devia ter ligado para vocês.

— Sim, deveria mesmo. Devia pelo menos ter deixado o celular ligado — disse ela.

— Por que não ligou, Ellie? — meu pai pareceu tão magoado que fiquei com lágrimas nos

olhos pela segunda vez naquela noite.

— Eu esqueci, pai.

Ele suspirou.

— Ah, Ellie, se você soubesse como é importante para nós, não se assustaria assim, nem se

colocaria em perigo. Você é tão especial, não só para a gente, mas...

O que diabos meu pai estava dizendo? Chamar-me de ‚especial‛ ia contra tudo aquilo

que ele tinha me ensinado.

Minha mãe o interrompeu inusitadamente.

— O que seu pai quer dizer é que lhe amamos e não queremos que você corra perigo.

Achamos que tínhamos lhe ensinado a confiar em nós, mas dá para ver que a adolescência

mudou as coisas. Você vai ter de ser honesta conosco de agora em diante, ficou claro?

— Sim, mãe. — Naquele momento, eu estava sendo sincera. Eu faria qualquer coisa para

evitar aquele olhar sofrido no rosto tão perfeito dos meus pais. Eles pareciam ter envelhecido

dez anos em uma só noite.

Então, eles se levantaram e me abraçaram. O abraço me lembrou de que meu corpo doía

de cansaço por todo o tumulto daquela noite.

Eu ansiava por uma noite de sono.

— Vocês se incomodam se eu for me deitar? — indaguei.

— É claro que não, Ellie. — Meu pai me deu um beijo de boa-noite e sorriu. — Tem só

mais uma coisa.

— Claro, papai.

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— Vamos ter de ver esse Michael de novo.

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Treze

Eu achei que não conseguiria descansar, mesmo que meu corpo ansiasse

desesperadamente por uma noite de sono, e que não conseguiria fechar os olhos pensando em

Michael, na enseada e no mergulho no penhasco. Mas, no momento em que me meti debaixo

das cobertas e me deitei no travesseiro, apaguei.

Bom, apaguei neste mundo, adentrando o mundo conhecido com que costumava sonhar.

Despertei naquele mundo com uma vontade enorme de voar, como nunca tinha tido antes. O

impulso me atirou para fora da janela do meu quarto e me levou ao caminho de sempre. Voei

pelas velhas ruas de paralelepípedos de Tillinghast com uma velocidade diferente e um total

abandono. Embora, como costumava fazer, eu tenha parado no parque gramado onde ficava a

igreja caiada de branco, que me encarava como um olho ciclópico, a pausa foi mais rápida que

nunca.

Antes de ir à costa, como sempre, segui a 1uz azul que vinha da casa perto da praia.

Graças ao meu último sonho, sabia que era a casa de Michael. Embora eu lembrasse tudo que

tinha acontecido entre nós mais cedo, no mundo real, meu desejo de encontrá-lo não diminuiu

no sonho. Eu não tinha mais raiva dele, só sentia paz e entusiasmo por vê-lo.

Fui imediatamente ao quarto do segundo andar, de onde vinha a luz — o quarto de

Michael. Como da outra vez, ele estava sentado à escrivaninha, olhando o mar, o cabelo loiro

brilhando na escuridão.

Voei para perto de sua janela, mas, diferentemente do último sonho, o vento não tirou

minha atenção de Michael. Estendi a mão para ele.

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Dessa vez, Michael me viu. Esticou o braço e agarrou minha mão. Com esse movimento,

saiu pela janela e flutuou ao meu lado. Tudo pareceu tão natural e fácil que não precisamos

falar nada. Sorrimos um para o outro e partimos.

Primeiro voamos apenas sobre as ruas adormecidas de Tillinghast. Passamos rapidamente

sobre as lojas e casas e os prédios do campus, nos deleitando com a experiência de viajar juntos.

Ele me empurrou para voarmos mais alto, e o desafiei a acelerar comigo pelas ruas. Rimos de

pura emoção, e desejei que a vida real fosse fácil assim.

Então Michael pegou minha mão e me levou pela costa, para longe de Tillinghast. Nos

meus sonhos, eu sempre voava ao longo da costa, mas Michael me guiou por um caminho

desconhecido. Abri a boca atemorizada conforme passamos pelas pedras imensas e

pontiagudas e pela praia com areia, pedregulhos e enormes ondas de cristas repletas de espuma

branca.

E então ele parou. Examinado bem o lugar, percebi que já havia estado lá antes — de

carro, mais cedo naquele mesmo dia. Tínhamos chegado ao penhasco que dava para Ransom

Beach.

Bem devagar, baixamos em direção ao chão. Estudei o cenário: era a hora mais escura da

noite, e a lua estava apenas um quarto cheia, embora eu conseguisse enxergar cada rocha e cada

grama como se fosse meio-dia. Melhor ainda, na verdade, eu estava realmente gostando do

mundo do sonho.

Embora o cume plano do penhasco me lembrasse da raiva e do medo que eu sentira mais

cedo, nada abalava a calma e o prazer que impregnavam aquele sonho idílico. Eu curiosamente

não sentia mais raiva. A vida real entrou sorrateiramente por um momento, quando desejei em

silêncio poder guardar aquela paz em uma garrafa para usá-la sempre que Piper e Missy

realmente quisessem me aborrecer.

Michael se aproximou da beira do penhasco. Estranhamente, senti-me impelida a

acompanhá-lo. Enquanto andava até ele, meus pés ficaram pesados, como se fossem de

chumbo, contrastando com a facilidade e a leveza do voo. Michael sorriu para mim, como se

compreendesse como me era estranho andar depois de voar, e me ofereceu o braço. Agarrei-me

a ele com força e segui-o de volta ao precipício. De alguma maneira, eu sabia o que íamos fazer,

e aceitei aquilo.

Esticamos os braços e voamos.

O vento batia no meu rosto quando mergulhamos de cabeça do penhasco de dezoito

metros. Rochas irregulares e pedregulhos de bordas arredondadas passaram por mim zunindo,

mas eu não estava assustada; pelo contrário, estava muito entusiasmada. De qualquer forma, eu

sabia que, se a situação ficasse muito complicada, eu poderia acordar.

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Pouco antes de batermos na areia com a cabeça, reduzimos a velocidade. Sobrevoamos

alguns centímetros e pousamos — primeiro os pés na enseada, nossas mãos ainda dadas. No

luar brumoso, a areia branca da enseada brilhava em contraste com a escuridão do mar. Estava

tão feliz que Michael tivesse me trazido de volta a Ransom Beach. Ocorreu-me que ele talvez

tivesse, mais cedo naquele mesmo dia, desejado dividir a beleza daquele lugar comigo.

— Essa era minha intenção. Em parte — falou, como se estivesse respondendo meus

pensamentos. Ou eu tinha expressado meus pensamentos em voz alta?

— Percebi isso agora. Desculpe por ter ficado brava e abreviado nosso passeio.

— Não se desculpe, Ellie. Foi culpa minha. Eu também tive outra intenção, mas você não

está pronta para ela.

— O que você quer dizer?

— Eu queria lhe mostrar uma coisa. Mas era demais e muito cedo.

Não respondi. Sabia o que ele ia dizer em seguida, mas não queria que ele dissesse.

Queria permanecer naquele momento tranquilo, feliz com Michael e com aquele lugar. E

também sabia que ele não podia parar de falar — e não pararia — depois de ter começado, e

que suas palavras iam acabar com toda aquela serenidade.

— Eu quero lhe mostrar quem é você.

Tirei minha mão da de Michael.

— Michael, eu já lhe disse, não tem nada para me mostrar.

— Ellie, pense um pouco. O voo, as visões que você tem sobre os outros e o poder do

sangue. Especialmente o sangue.

Comecei a ficar brava com ele de novo.

— E qual é exatamente o resultado dessa equação bizarra?

— Eu acho... — Ele parou, como se suas palavras fossem duras demais, mesmo para ele.

— Acho que somos vampiros.

Eu não podia ter imaginado que ele viria com aquela teoria ridícula e fiquei em dúvida se

ria ou batia nele. Escolhi rir.

— Ah, Michael, isso é ridículo. De qualquer forma, isto é só um sonho.

— Isto não é um sonho, Ellie. Você não se lembra da folha da macieira do último sonho,

que ficou presa em seu cabelo?

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Não quis ouvir mais nada e desejei acordar. A enseada começou a ficar borrada, e me

senti desaparecer.

Antes de desaparecer totalmente, ouvi Michael me chamar. Sua voz estava abafada e

fraca, como se ele estivesse longe, mas posso jurar que ele disse: ‚Quando você sair de casa

amanhã para ir à escola, prometo que estarei lhe esperando. Assim, você vai saber que isto não

é um sonho.‛

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Catorze

Sentei-me na cama. O cobertor havia escorregado dos meus ombros, mas o sol que

entrava pelas persianas das janelas do meu quarto me manteve aquecida. O relógio marcava

sete horas da manhã. Eu só tinha vinte minutos para me arrumar antes que minha mãe me

levasse para a escola, então corri. Fiquei feliz por não ter muito tempo para pensar.

Bem depressa, lavei o rosto e penteei os cabelos. Passei um pouco de blush e rímel e fiz

um rabo de cavalo. Só precisava de uma calça jeans e uma malha, já que eu não podia me dar o

luxo de procurar uma roupa mais legal no armário. Ouvi minha mãe me chamando.

Uma torrada de pão integral com geleia de framboesa esperava por mim na mesa da

cozinha, ao lado de um copo grande de suco de laranja. Minha mãe me apressou, como fazia

todas as manhãs; ela gostava de ser a primeira a chegar no escritório. Não falou a respeito da

mentira sobre a biblioteca, e me senti aliviada por ela não parecer mais chateada. Pegamos

nossas bolsas e fomos para a porta.

Antes de ela abrir a porta, percebi que tinha esquecido meu trabalho de inglês na

escrivaninha do quarto. Disse à minha mãe que a encontraria no carro e corri pelas escadas para

pegar o trabalho. Enquanto descia correndo, ouvi vozes vindas do pórtico, na entrada de casa.

Abri a porta e vi minha mãe conversando — com Michael.

Parei. Por que ele estava ali? Vi a cesta de presente em suas mãos e supus que era um

pedido de trégua por causa da confusão do dia anterior — uma maneira de agradar meus pais.

A roupa de Michael — uma calça cáqui e uma camisa polo de mangas compridas, que

causavam boa impressão — confirmou minhas suspeitas e me fez desejar ter tido mais de vinte

minutos para me arrumar.

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Minha mãe se virou em minha direção.

— Veja, querida, seu amigo Michael nos trouxe um presente, pães caseiros.

Para ele, o tom dela provavelmente soara amigável, mas eu tinha notado, pela maneira

fria como dissera ‚seu amigo‛, que os pães não seriam suficientes para dobr{-la. Ela sabia que

era eu a responsável por ter agido errado na noite anterior — e não Michael — mas tinha

certeza de que o culpava em parte, julgando-o má influência. Minha mãe era bem mais durona

do que aparentava, mais até que meu pai, na verdade.

— Você deve ter passado a noite toda fazendo isso. Afinal, vocês voltaram bem tarde da

biblioteca. — A indireta era para nós dois.

Michael não olhava em minha direção, mas continuou encarando minha mãe.

— Senhora Faneuil, tenho de confessar que foi minha mãe que mandou este presente. Ela

disse que eu deveria entregar isto com seus cumprimentos.

— Que bonito da parte dela. Por favor, agradeça ela por mim. — Ela fez uma pausa. — E,

por favor, diga a ela que precisamos nos encontrar logo. Faz muito, muito tempo que não nos

vemos.

— Eu direi. Na verdade, ela disse a mesma coisa. Que faz muito tempo.

Habilmente, Michael mudou de assunto e começou a falar da nossa viagem à Guatemala.

Ouvi-o recordar pessoas e acontecimentos dos quais eu não me lembrava. Já havíamos

conversado sobre minhas falhas de memória, então não me senti mal com a conversa, embora

ainda fosse algo preocupante. Minha mãe olhou de repente para o relógio e disse que

deveríamos ir.

Por fim, Michael pareceu se lembrar de mim e perguntou:

— Senhora Faneuil, a senhora se incomodaria se eu levasse Ellie à escola?

Ela parou por um segundo; ninguém a não ser eu teria notado aquela pausa.

— Não, tudo bem. Só tome cuidado com nossa Ellie.

Que constrangedor!

— Ai, mãe...

Michael me interrompeu:

— Prometo, senhora Faneuil.

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Minha mãe me deu um beijinho na bochecha e ficou olhando enquanto Michael abria a

porta do carro para mim. Entrei e esperei por ele, sem saber direito o que dizer quando ele

fechasse a porta e ficássemos sozinhos.

Quando ele entrou, virou-se para me dar um beijo. Sua audácia trouxe as palavras certas

aos meus lábios. Afastei-me e disse:

— Boa tentativa, Michael. Você acha que me esqueci de que estou brava com você por

causa da confusão em que você nos meteu ontem, só porque trouxe pão para minha mãe?

Para minha surpresa, ele sorriu e falou:

— Não, Ellie, não acho que você me perdoou só porque minha mãe fez pão de banana.

Você tem todo direito de estar brava comigo; sei que lhe assustei ontem à noite.

— Ainda bem.

Encostei-me no banco e cruzei os braços, satisfeita. Sentindo-me vingada, dei uma olhada

para ele para ver como lidava com minha vitória. Para minha irritação, ele continuava a sorrir.

Michael colocou a chave na ignição e ligou o carro.

— No entanto, acho que você vai me perdoar porque mantive a promessa.

Congelei. A única promessa que Michael tinha feito era me encontrar aquela manhã — e

ele tinha prometido isso no meu sonho da noite anterior. Cruzei os braços com força no peito.

Como ele poderia saber sobre a promessa a menos que tivesse invadido meu sonho — ou a

menos que o sonho tivesse sido real? E, nesse caso, o voo também tinha acontecido de verdade.

E também as visões. Mas eu não ia me permitir pensar naquilo até o final.

Não falei nada quando ele saiu da minha calçada e entrou na rua. Andamos por vários

minutos sem conversar; minha mente estava muito acelerada para encontrar palavras. Michael

poderia estar mesmo certo?

Então, sem tirar os olhos da estrada, ele falou:

— Eu te disse que o voo não era um sonho. Só parece um sonho.

— Então você voou de verdade em Ransom Beach? E o voo no sonho de ontem foi real? —

suspirei alto a terrível verdade. Na verdade, aquilo não eram perguntas, pelo menos não mais.

Mas eu estava muito confusa. E assustada.

— Sim, Ellie. — Ele estendeu a mão para pegar a minha. — Nós sabemos voar. Mas acho

que é muito dificil para gente aceitar isso. Então, quando nos aventuramos a voar à noite —

quando nosso corpo se sente compelido a fazer aquilo para que ele foi programado —, nossa

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mente nos diz que os voos são sonhos. Porque aceitar que voamos mudaria tudo o que já

conhecemos. Ele fez uma pausa e olhou para mim. — Isso faz sentido?

— Mais ou menos. Mas como consegui acordar na minha cama hoje de manhã e não

lembrar o voo de volta de Ransom Beach ontem à noite, se os sonhos são reais?

— Provavelmente porque nossa mente não está pronta para aceitar a verdade. E, se você

se recordasse do voo de volta de Ransom Beach até a janela do seu quarto e depois se lembrasse

de ter entrado em sua cama confortável, talvez não tivesse como negar o voo, e aí teria de

assumir que ele foi real.

— Não sei se estou pronta para enfrentar a verdade agora — sussurrei para mim mesma.

Michael segurou firme a minha mão.

— Estou aqui para te ajudar.

Apertei a mão dele também.

— Você passou por tudo isso?

— Sim, mas daí a verdade ficou clara para mim, e eu não pude mais fingir que os voos

eram sonhos — disse ele, sorrindo. — De todo modo, agora eu quero que eles sejam reais. E

você também vai querer, você vai ver.

Eu me senti enjoada. Tudo aquilo era demais para mim.

Michael viu minha cara assustada e parou de falar; depois disse:

— Sei que é difícil aceitar agora, mas nós dois temos dons extraordinários.

— Não sei se consigo chamá-los de ‚extraordin{rios‛. Ou, na verdade, de ‚dons‛. Acho

que ‚maldições assustadoras‛ é um termo melhor.

Michael riu, embora eu não estivesse brincando. Quando ele percebeu que eu estava

falando sério, também ficou.

— Acredite em mim, sei que isso pode parecer assustador no inicio, mas vou estar aqui

para te ajudar. No começo, eu achava que só eu tinha esses poderes e me senti muito sozinho.

Tive um pensamento aterrador.

— Por isso você me procurou? Para não ficar sozinho no meio de toda essa loucura?

— Não, de jeito nenhum. — Estávamos perto da escola, e ele encostou o carro em um

estacionamento quase vazio, próximo ao ginásio. Estacionou, pegou minhas mãos e falou: —

Ellie, eu te procurei porque me senti atraído por você em todos os sentidos. Não apenas porque

percebi que você era igual a mim.

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Olhei bem em seus olhos verdes, e ele me pareceu sincero. Fiquei aliviada, mas não

totalmente confiante. Nossa relação era uma montanha-russa desde que nos conhecemos.

— Como descobriu que você e eu tínhamos esses... dons? — hesitei na hora de dizer

aquela palavra.

— Na primeira vez que te vi, não tive certeza. Você parecia diferente do resto das pessoas;

tinha um brilho. Sei que viu isso quando te mandei aquela visão. Mas, no nosso primeiro

encontro, quando provei seu sangue, tive certeza.

— O que você quer dizer?

— Seu sangue me fez entender tudo. Ele me mostrou suas visões e seu voo. Percebi que

você tinha a mesma suscetibilidade ao sangue que eu. E ele me mostrou que você estava

tentando agir como se nada disso estivesse acontecendo. Você estava apegada à imagem de

‚garota normal‛ que seus pais enfiaram na sua cabeça.

— Meu sangue lhe contou tudo isso?

— Bem, digamos que eu prestei bastante atenção. Mas o sangue pode contar quase tudo

sobre uma pessoa. Você não notou isso com meu sangue?

Fiquei vermelha ao pensar na minha cara quando havia experimentado o sangue de

Michael. Não sabia se estava pronta para tudo aquilo especialmente para a palavra que

começava com ‚v‛ que ele mencionara na noite anterior e na qual nenhum de nós tinha tocado

naquela manhã —, mas não poderia mais fingir que era um sonho.

Michael se inclinou para me beijar. Minha apreensão me fez hesitar por um segundo, mas

então ele acariciou minha mão. Seu toque me deixou arrepiada e me fez lembrar como seus

lábios, sua língua e seu sangue me fizeram sentir. Sem poder resistir mais, fui em sua direção.

Ouvimos uma batida na janela. Separamo-nos e olhamos para fora para ver quem era. Era

o professor de educação fisica, o senhor Morgans, avisando que o sinal ia tocar.

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Quinze

Michael foi para sua aula e eu para minha, mas antes concordei em encontrá-lo em seu

carro no final do dia. O sinal tocou antes que eu chegasse à aula da senhorita Taunton, e ela não

ia me deixar entrar de fininho.

— Senhorita Faneuil, conhece minhas regras quanto a atrasos. Você me deve uma

biografia de Jane Austen de dez páginas.

Fiquei boquiaberta; ela devia estar de péssimo humor, pois suas punições geralmente

eram trabalhos de mais ou menos cinco páginas. A senhorita Taunton percebeu minha cara de

surpresa.

— Não gostou da tarefa, senhorita Faneuil? Você pode ficar de castigo depois das aulas,

então.

Corri para aceitar o castigo mais leve. Se eu ficasse de castigo depois das aulas, meus pais

saberiam que Michael me deixara tarde na escola; eu podia imaginar o olhar deles.

— Não, não, senhorita Taunton. Fico feliz em aprender mais sobre Jane Austen.

— Bom, senhorita Faneuil, eu também. Tenho certeza de que você irá me surpreender

com algum segredo sobre uma de minhas autoras favoritas. Agora, classe, vamos ouvir...

Enquanto andava até minha carteira no fundo da classe, notei o olhar compreensivo de

Ruth. Eu não conseguia imaginar como iria descobrir alguma novidade sobre uma das autoras

cuja biografia já era uma das mais conhecidas do mundo, mas eu tinha preocupações mais

urgentes. Michael e nossos ‚dons‛, para citar apenas duas.

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Depois de me afundar na carteira e abrir o zíper da minha bolsa, notei meu celular vibrar

por causa de uma mensagem de texto. Aquilo era raro, o que me deixou intrigada; podia ser

Michael. Usei minha bolsa como barreira para poder checar a mensagem. Nada deixava a

senhorita Taunton mais furiosa que os alunos mexendo no celular.

Vi a mensagem: a frase ‚sinto muito‛ e o desenho de uma carinha triste. Era de Ruth.

Fiquei confusa. Olhei para ter certeza de que a senhorita Taunton estava entretida,

interrogando outro aluno, e respondi. ‚Por quê? Por causa da biografia de Austen?‛

O celular vibrou de novo. ‚Não. Seus pais.‛

Ah, não. Com a confusão do sonho e a visita inesperada de Michael naquela manhã, tinha

me esquecido completamente do telefonema de Ruth para meus pais na noite anterior. Senti-me

péssima. Por que ela se sentia mal por ter ligado para minha casa se eu tinha deixado de contar

sobre o encontro com Michael? Escrevi: ‚Culpa minha. Desculpe‛.

Arriscando atrair a ira da senhorita Taunton, Ruth se virou em sua carteira e sorriu para

mim, para mostrar que estava tudo bem. Isso fez com que eu me sentisse ainda pior, como se

tivesse traído minha própria família. Por anos, Ruth e eu tínhamos divido tudo. Como não

tínhamos irmãos, éramos como irmãs, e minha mãe fazia as vezes da mãe de Ruth sempre que

ela precisava. Eu deveria implorar perdão a ela por não ter lhe contado tudo e por tê-la usado

para acobertar meu encontro com Michael. E não o contrário.

E, o que era pior, eu ainda precisava guardar um segredo dela. Como eu poderia lhe

contar sobre os voos e as visões que eu tinha das outras pessoas? Ou sobre a maneira como o

sangue me afetou? Ela iria, com razão, correr para contar tudo aos meus pais, e eles me

internariam. Não, eu precisava investigar aquilo apenas com Michael, enquanto inventava um

conto de fadas para Ruth sobre meu relacionamento ‚normal‛ com ele.

A voz da senhorita Taunton havia ficado ainda mais estridente enquanto ela avaliava o

conhecimento ‚insuficiente‛ sobre Jane Austen de um coitado do primeiro ano chamado Jamie.

Peguei minha bolsa para guardar o celular, mas, de repente, me ocorreu que eu talvez tivesse

alguns minutos livres enquanto a senhorita Taunton continuava com sua tirania. Cedendo à

tentação, procurei a palavra ‚vampiro‛ na Wikipedia.

Desci a barra de rolagem da longa página e, entre as definições terríveis que encontrei

sobre os vampiros sugadores de sangue e assassinos, não achei nenhuma descrição parecida

comigo ou com Michael. Senti um alívio; Michael podia estar errado.

O nome do professor Raymond McMaster era citado constantemente na página. Havia

um link para o site da Universidade de Harvard, no qual estava sua biografia. Ele era

especialista em história de vampiros e outros seres sobrenaturais. Alguns de seus artigos

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acadêmicos me pareceram interessantes e quase cliquei em um cujo título era ‚À procura do

verdadeiro Dr{cula‛, mas ouvi alguém dizer meu nome.

— Senhorita Faneuil, eu estou te atrapalhando?

Levantei a cabeça rapidamente. A senhorita Taunton veio até mim. Corri para esconder o

celular debaixo dos papéis espalhados em minha carteira. Por cima, coloquei o trabalho que eu

deveria entregar. Ela parou a poucos centímetros de mim e esperou minha resposta, enquanto a

classe toda prendia a respiração.

— É claro que não. Eu apenas estava lendo mais uma vez o trabalho que devemos

entregar hoje.

A senhorita Taunton olhou o trabalho por sobre meus ombros, sorriu e pegou-o da mesa.

Sua mão roçou a minha, e tive uma visão muito intensa. Eu estava em uma sala cheia de objetos,

bem arrumada, forrada com papel de parede florido espalhafatoso e cujas mesinhas de canto

estavam cobertas com paninhos de renda. Por um segundo, fiquei perdida, mas então olhei no

espelho que havia de frente para o sofá onde eu estava sentada. A senhorita Taunton me

encarava. Em seu colo estava um exemplar de O morro dos ventos uivantes. Lágrimas rolavam

de seu rosto. Ela ia virar uma p{gina quando ouvi meu nome: ‚Ellie Faneuil‛.

A triste imagem se esvaiu, e me vi encarando os olhos da senhorita Taunton. Eu quis tocar

sua mão — sua vida tinha sido tão patética, tão macabra —, mas ela me dirigiu um sorriso

mórbido. Meu estômago deu um nó, e ela falou:

— Obrigada por nos entregar isso, senhorita Faneuil. Posso ver que este trabalho será

muito mais interessante que o que eu tenho a dizer sobre Jane Austen. Por que você não lê seu

trabalho em voz alta para a classe, já que ele parece tão fascinante?

Levantei-me da carteira, pronta para ser humilhada. O título do meu trabalho era ‚Sexo

em Orgulho e preconceito‛.

Pelo menos minha humilhação na aula de inglês tinha servido para alguma coisa: apagar

da mente de Ruth o incidente de domingo à noite. Como ela era uma amiga muito leal,

manifestou-se para me defender da gozação que sofri dos colegas logo após a aula. Na hora do

almoço, a história havia chegado até Missy, Piper e seus seguidores menos ilustres, e Ruth me

defendeu deles também. Ninguém queria acreditar que eu tinha usado a palavra ‚sexo‛ no

título para indicar ‚gênero‛, não importava quantas vezes Ruth tivesse explicado ou o fato de

eles terem me ouvido ler o trabalho.

Mal podia esperar aquele dia acabar, mesmo que a tarde também me reservasse seus

próprios desafios. Sozinha, por fim, andei até o estacionamento dos fundos, ainda vazio, onde

havíamos parado o carro. Lá estava Michael. Ele tirou um buquê de tulipas vermelhas de trás

das costas e me entregou.

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— Obrigada. São lindas. Onde você comprou? — quis saber. Eles quase nunca vendiam

flores no restaurante da escola.

— Posso voar, né?

Fiquei horrorizada, e minha expressão deve ter sido coerente.

Ele me puxou em direção ao seu peito.

— Desculpe, Ellie, eu estava brincando. Fui de carro até a floricultura aqui perto.

— Graças a Deus. — Continuei com o rosto enterrado em seu peito.

— Imaginei que você precisasse delas hoje.

Olhei para ele.

— Ah, não, você sabe o que aconteceu na aula de inglês.

Michael estremeceu.

— Acho que todo mundo sabe.

Gemi e afundei o rosto nas mãos.

— Não foi como todo mundo está dizendo — expliquei, ficando ainda mais

envergonhada. Ele deu um sorriso malicioso, e eu gemi de novo.

— Nunca vou superar isso.

— Tenho um plano para tirar isso da sua cabeça — ele disse, abrindo a porta do carro

para mim.

Enquanto eu entrava, perguntei com cautela:

— Qual é o plano?

— Acho que é hora de você praticar voo.

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Dezesseis

Michael não queria dizer que iríamos levantar voo ali mesmo. Em vez disso, ele me levou

até em casa, entrou para cumprimentar minha mãe, que tinha acabado de chegar do trabalho, e

ficou para jogar conversa fora com ela antes de ir para casa fazer seus deveres. Fez tudo que se

espera de um namorado novo — exceto pela ideia de me encontrar na janela do meu quarto à

meia-noite.

O jantar se arrastou naquela noite. Meus pais falaram sobre Michael algumas vezes, mas

me senti aliviada, porque eles pareceram mais calmos graças à sua visita de manhã e à tarde. Eu

estava muito inquieta; só queria levantar e ir para meu quarto me arrumar e espera-lo. O fato de

eu desejar tanto me entregar às nossas habilidades estranhas era surpreendente. Eu odiava ser

esquisita. Detestava o que Michael chamava de ‚dons‛. Até conhecê-lo. Não importava o que

fossem aqueles dons, não ter de enfrentá-los sozinha era uma bênção. E aquela noite íamos voar

juntos, e acordados, não mais escondidos nos sonhos.

Quando meu relógio marcou meia-noite, eu estava sentada perto da janela, no escuro, por

quase meia hora. Tinha escolhido um moletom parecido com um pijama, para o caso de eu

cruzar com meus pais de sair, e colocado travesseiros sob as cobertas, na cama, para fingir que

eu dormia. Olhava a janela e desejava que Michael aparecesse.

Porém, quando ele, por fim, chegou, vi que nada poderia ter me preparado para aquela

visão: seu rosto voando do lado de fora da janela. Seus cabelos loiros pareciam brancos em

contraste com a escuridão da noite, e seu sorriso largo lembrava uma abóbora de Halloween;

abafei um grito. Comecei a respirar bem fundo para desacelerar o coração, destranquei a janela

e rezei para que as vidraças antigas não rangessem e acordassem meus pais.

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— Pronta? — Michael quis saber.

Concordei com a cabeça, mesmo aterrorizada. Ele esticou a mão pela abertura da janela e

fez um gesto para que eu a segurasse. Minha mão tremia, mas agarrei a mão dele.

Confiando nele mais do que nunca, o deixei passar o braço em volta da minha cintura e

me levar pela janela, pelo ar. Voamos a uma altura de dois andares, e me agarrei ao seu braço

como se fosse um salva-vidas. Mesmo que eu já tivesse voado antes, sempre havia acreditado

que era um sonho — sem nada a temer, sem repercussões. Michael estava certo; uma vez que eu

compreendera que não era um sonho, tudo havia mudado. Aquela experiência era totalmente

diferente, quase hiperreal.

— Tudo bem? — ele sussurrou.

Ainda agarrada ao seu braço, sussurrei de volta:

— Acho que sim.

— Ok, vamos lá. Ele me puxou mais forte e levantamos voo.

Fiquei imaginando aonde estávamos indo, mas não tive coragem de olhar. Em vez disso,

afundei meu rosto no ombro de Michael. Senti e escutei o vento conforme aumentávamos a

velocidade, e mal consegui ouvir suas palavras.

— Ellie, você deveria abrir os olhos. É uma vista maravilhosa.

Balancei a cabeça. Michael passou o braço ao redor do meu corpo.

O silêncio só era quebrado pelo barulho do vento. Meu corpo começou a se lembrar de

como voar, e senti meus ombros se aprumarem e minhas pernas ficando em posição

aerodinâmica. Mas então minha mente foi dominada pelo medo, que permeava meus

pensamentos, e Michael teve de me guiar.

Diminuímos a velocidade, e pude notar que Michael tinha baixado em direção ao chão.

Abri meus olhos hermeticamente fechados e engoli a seco. Ainda estávamos a pelo menos doze

metros longe do chão. A que altura tínhamos voado? Jurei manter os olhos fechados até poder

sentir o chão soo meus pes.

Senti um baque, e então aterrissamos. Michael tirou o braço e vertiginosamente senti a

grama macia que cobria o chao. Vindo para o meu lado, ele tentou me ajudar, fazendo uma

piada:

— E você achava que nunca tinha voado.

Ri

— E não tinha. Pelo menos não acordada.

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— Você estava acordada, só não sabia disso.

— Acho que esse é o problema. Hoje eu sei que não estou dormindo.

Levantei e olhei ao redor, e consegui ver os pequenos detalhes da paisagem. Estávamos

em um campo plano e aberto, rodeado por pinheiros, O lugar me pareceu seguro e isolado, o

local perfeito para o primeiro voo. Esse pensamento me fez parar e pensar: o que estava

acontecendo com a minha vida?

— Vamos começar? — indagou Michael.

— Sim — respondi, mesmo sem querer realmente tentar. Eu não estava apenas assustada,

mas não queria fazer nada de que me envegonhasse, ainda mais na frente de Michael.

Ele falou:

— Quando tentei pela primeira vez, achei mais fácil começar de um lugar mais alto e

mergulhar para baixo, em vez de decolar do chão. Infelizmente, não temos essa opção hoje. Esta

é a única área segura para praticarmos.

Michael me colocou na frente dele, deixou meus braços retos e se posicionou sobre a

minha cabeça. E então sussurrou: ‚Relaxe‛ e afastou para assistir.

Senti-me uma idiota. Primeiro, não consegui sair da grama, mas depois segui o conselho

de Michael; fechei os olhos e me imaginei subindo. Tentei não analisar cada movimento e

evoquei a sensação dos meus sonhos. Com uma sacudida, levantei os pés e comecei a voar.

A sensação era diferente do meu sonho, mais vacilante e incômoda. Uma sensação que eu

conhecia bem do meu dia a dia. Meus instintos lutavam pela minha atenção, implorando que eu

esticasse os braços e as pernas e voasse. Quando me rendi aos meus impulsos, alcancei um

pouco da eleg}ncia encontrada nos voos do meu ‚sonho‛.

Comecei a gostar. Subi e mergulhei no céu escuro, como se estivesse em um playground.

Quando fiz um movimento para mergulhar, vi Michael me observando no campo. Aproximei-

me dele e, em vez de dar meia-volta e subir, resolvi aterrissar.

Mas eu não sabia como fazer uma aterrissagem suave. Aterrissei de bumbum, acertando

Michael enquanto descia. Caídos no chão, começamos a rir histericamente. Limpei as lágrimas

do rosto, me sentei e ele me puxou. Michael me beijou com tanta força que fiquei sem ar.

Esqueci tudo sobre o voo e o campo. Rendi-me às suas mãos enquanto elas subiam e

desciam pelos meus braços e minhas pernas, fazendo círculos por todos os lugares. Rendi-me à

sua língua enquanto ela explorava meus lábios, minha boca e meu pescoço com seu toque

suave. E depois, provei o sangue.

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Senti o sangue de Michael percorrer meu corpo. Ele me queimou como o vinho que eu

tomara escondido uma vez em um casamento, me fazendo sentir frágil e invencível ao mesmo

tempo. Conforme o sangue subia pelo meu corpo, uma imagem de tirar o fôlego penetrou em

minha mente.

Ele se afastou.

— Conte-me o que você viu.

Uma pequena gota de sangue permaneceu em meu lábio. Lambi-a antes de responder. Eu

queria mais.

Com esforço, disse:

— Eu vi uma linda mulher alada.

— Alada? — Michael pareceu confuso.

Fechei os olhos e tentei lembrar a imagem com mais exatidão.

— Bem, ela não tinha exatamente asas. Eram dois arcos de luz atrás dos ombros.

Ele concordou com a cabeça, como se essa descrição fizesse mais sentido.

— Você a reconheceu?

Logo percebi quem era ela.

— Sim, era eu.

Ele sorriu.

— Agora você acredita que somos especiais?

— Sim.

Eu era, mesmo que isso fosse contra tudo o que meus pais tinham me ensinado. Não sei se

era a influência inebriante do sangue, o voo ou apenas a proximidade de Michael, não

importava. Eu acreditava nele.

Michael me beijou mais uma vez. Senti-me dominada. Porém, uma pergunta me

incomodava, me impedindo de ser totalmente tragada por ele. Afastei-me.

— Como você descobriu o efeito que o sangue tem sobre você? Eu nunca teria descoberto

se você não tivesse me mostrado.

Mesmo estando muito escuro, minha nova visão, mais aguçada. me fez vê-lo enrubescer.

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— Eu levei uma garota ao baile da escola no ano passado, quando morávamos em

Pittsburgh.

— Sim — disse, recuando um pouco.

— Bom, nos beijamos no fim da noite e ela cortou a língua nos meus dentes. Você sabe

como eles são afiados...

— Sim, sei. — Fiquei mal ao pensar em Michael beijando outra menina.

— Senti algo muito forte, mais poderoso do que tudo que eu já tinha sentido por meio do

toque. Vi algo muito perturbador sobre a infância dela, algo que ela nunca tinha contado para

ninguém.

— O que era?

Ele hesitou.

— O pai dela costumava bater na mãe. Eles tinham se divorciado quando ela era pequena,

mas vi as imagens claras de sua infância. Fiquei tão incomodado que não consegui mais olhar

nos olhos dela.

— Desculpe ter feito você me contar isso — falei, apesar de não lamentar por ele não ter

conseguido mais olhar para a garota depois do incidente.

Ele me abraçou.

— Não peça desculpas. A gente precisa contar tudo um para o outro. Mesmo as coisas

desagradáveis, tá bom?

— Tudo bem. — Fiz uma pausa, pensando se eu devia mesmo dividir minhas

especulações ‘desagrad{veis‛ com ele. Não haveria momento mais adequado para isso. —

Então eu provavelmente devo te contar que sua teoria sobre vampiro é furada. Fiz uma

pequena pesquisa e não acho que a gente se encaixe naquelas figuras de mortos-vivos que saem

diretamente das covas e sugam sangue. Nós temos de ser outra coisa.

Ele ficou quieto.

— Não precisamos parecer com os vampiros dos filmes para sermos um, Ellie. Nós

voamos, e acho que você não pode negar a influência única que o sangue tem sobre a gente.

Não sei se o lance das ‚visões‛ se encaixa nessa classificação, mas, de verdade, o que mais

poderia ser?

Eu não tinha a menor ideia, mas pelo tom de voz de Michael pude perceber que ele não

queria discutir. Fiquei em silêncio. Eu não queria estragar a mágica daquela noite com

perguntas sobre nossa natureza.

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A voz de Michael ficou mais suave, e ele me apertou com força.

— De qualquer jeito, o que importa? Nós temos um ao outro, e somos um só. Seja lá o que

for. — Ele deu um risinho irritante e disse:

— Mesmo que eu continue achando que somos vampiros.

De certo modo, ele estava certo: não importava o que éramos.

Logo teríamos de descobrir quem — ou o quê éramos. Então relaxei nos seus braços e

deixei minhas perguntas de lado. Por um momento, — deixei apenas ser, seja lá o que fosse,

com Michael.

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Dezessete

Eu me transformei, embora a mudança não tivesse ocorrido do dia para a noite. Descobri

que meus poderes, conforme admitira sua existência para mim mesma, tinham aumentado.

Mais cedo do que imaginei, uma nova Ellie começou a lutar para emergir, uma Ellie que

gostava dos seus dons — suas diferenças que surgiam sob as aparências. Como se ela tivesse

dormido por muito, muito tempo e, de repente, acordasse.

No começo, tentei manter as duas partes do meu ser — o eu poderoso, que vivia à noite; e

o eu comum, que existia durante o dia — completamente separadas. Naquele momento,

contudo, meu lado noturno passou a aflorar de dia. Enquanto eu caminhava pelos corredores

da escola, sentia uma força poderosa percorrer meu corpo até a ponta dos dedos, e uma guerra

se iniciar dentro de mim, sob minha aparente normalidade. Eu sabia que tinha a capacidade de

ver a verdadeira identidade e os segredos mais obscuros dos outros — e eu estava louca para

fazer isso. Às vezes, era quase impossível evitar tocá-los e até mesmo ajudá-los com seus

problemas secretos. Essa compulsão fazia parte do que eu era? Aquilo era tentador e inebriante,

e eu mal conseguia manter a imagem da velha Ellie.

Mas eu precisava manter as aparências; de outro modo, minha dupla existência se

revelaria. E, para isso, eu tinha de fazer coisas, como parar para tomar um café com Ruth, jantar

com meus pais e também prestar atenção nas aulas e fazer a lição de casa. Como se nada tivesse

mudado. Mesmo tentando manter a rotina com Ruth — almoçar todo dia, tomar um café depois

da aula às sextas-feiras e até mesmo ir ao Odeon —, não havia como preservar nossa amizade

sem rachaduras. Eu tinha uma vida com Michael da meia-noite às cinco da manhã — sem falar

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no novo segredo —, e isso tornava o desempenho das minhas atividades normais no mínimo

desafiador. Interpretar esse papel me deixava cansada e em conflito, especialmente perto de

Ruth, a quem eu tinha prometido dividir tudo.

Uma manhã, após a aula torturante da senhorita Taunton, parei no banheiro a caminho da

aula de cálculo. Eu precisava ficar um minuto sozinha para me recompor.

O banheiro parecia vazio, mas, enquanto eu lavava as mãos, julguei ter ouvido um

barulho estranho no box do fundo. Desliguei a torneira e esperei um minuto em silêncio. O

silêncio absoluto me fez duvidar de ter mesmo ouvido alguma coisa. Pus a mão na torneira para

terminar de lavar as mãos quando ouvi um soluço abafado.

A garota deve ter achado que o silêncio era sinal de que eu já tinha saído, pois a porta do

box do banheiro se abriu um segundo depois. Para minha surpresa, essa garota era Piper.

Fiquei tão chocada em ver aquela garota popular e bonita chorando no banheiro da escola

que congelei. Meninas como ela nunca mostram fraqueza, pelo menos não na escola. Quando,

por fim, consegui recobrar a calma e me comportar de maneira normal, perguntei, com pena:

— Tudo bem, Piper? Deixe-me pegar um negócio — e fui buscar a toalha de papel. Apesar

de eu e Piper sempre nos ignorarmos na escola, mantínhamos uma relação cordial, embora

secreta, fora de lá.

A Piper da escola ressurgiu, fazendo um gesto com a mão para me dispensar, como seu

eu fosse sua empregada.

— Não, não Ellie, estou bem. Entrou um negócio no meu olho. — Eu odiei quando ela

voltou a se comportar como fazia na escola, como se eu não conhecesse seu outro lado.

Vi seu reflexo no espelho do banheiro enquanto ela jogava água no rosto. Um cílio não

poderia explicar o inchaço nos olhos, as marcas de lágrimas nas bochechas e o nariz vermelho.

Se fosse uma de suas amigas idiotas, por quem eu não teria o mínimo de simpatia, eu talvez

tivesse rido diante da desculpa esfarrapada. Mas não podia ridicularizar Piper naquela situação.

— Vamos lá, Piper, você parece muito chateada. Posso te ajudar em alguma coisa?

Ela parou de se lavar e me olhou com frieza.

— Sim, pode.

— O que você quer que eu faça?

— Não conte para ninguém que me viu aqui, chorando. — E, após dar a ordem, pegou a

bolsinha de maquiagem e começou a passar pó no rosto manchado.

— Contar a quem? À Ruth?

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— Tô pouco me lixando para a Ruth. — Ela fez um gesto de desdém. — E então mudou o

tom de voz. Mas todo mundo sabe que você e Michael Chase estão saindo. Não conte para ele,

tá bom? Ele conhece muitos caras, poderia espalhar isso por aí.

Piper não teria ligado tanto se as responsáveis por suas lágrimas não fossem suas amigas.

Eu estava muito curiosa para saber o que elas tinham feito para intimidar Piper, sempre tão

dificil de dobrar.

— Não se preocupe. Não vou contar para ele nem para ninguém — menti. E quando lhe

entreguei o papel que tinha pegado para ela, meus dedos tocaram levemente a sua mão.

A visão me atingiu em cheio. Vi Missy a poucos centímetros do rosto de Piper, como se eu

fosse Piper. Missy gritava, com uma expressão malévola. Senti Piper se contrair aterrorizada

conforme as palavras saíam dos lábios de Missy, como um açoite.

— Quem você pensa que é? Como ousa se meter nos meus planos? — gritou Missy.

— Desculpe, Missy, só achei que a gente talvez pudesse ter ido longe demais — explicou

Piper. Senti que, para ela, era muito difícil discordar de Missy, mas, pelo menos uma vez, ela se

sentira impelida a se opor à amiga.

Piper tremeu diante da expressão malévola de Missy, que foi substituída por um sorriso.

Piper parecia temer ainda mais o sorriso de Missy que sua cara de má.

— Mesmo? Longe demais? — perguntou Missy, ridicularizando a amiga.

— Sim — disse Piper, com a voz fraca.

Missy continuou sorrindo e deu a volta em torno de Piper devagar como se fosse um

falcão prestes a abocanhar sua presa. Havia alguém atrás de Missy, mas eu não conseguia ver

quem era, pois Piper não ousava tirar os olhos de Missy.

— De repente, pensei que talvez o plano funcione melhor para você do que para a pessoa

que eu tinha escolhido — concluiu Missy.

— Eu? — Piper se esforçou para manter a voz firme.

Missy parou de andar em volta de Piper e a olhou nos olhos:

— Sim, você.

Senti o coração de Píper acelerar.

— Eu estava errada, Missy, seu plano é perfeito, vamos colocá-lo em pratica do jeito que

está.

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O sorriso de Missy deixou de ser ameaçador e passou a ser triunfante, e ela sorriu para

Piper e para a figura misteriosa que estava atrás dela.

— Eu sabia que você ia entender. Começamos hoje à noite.

Piper olhou o chão, enjoada e assustada. Mesmo sem levantar o olhar, conseguiu ver

Missy e juntar-se de novo à pessoa atrás dela e andar com ele — eu sabia que era um garoto por

causa dos seus sapatos — em direção à porta. Quando o rapaz misterioso passou por Piper,

esticou o dedo e o passou sobre seu ombro. Senti Piper tremer com uma sensação estranha de

repulsa e desejo.

A imagem se dissipou, e então voltei ao banheiro. Eu ainda estava no mesmo lugar, com a

mão esticada depois de ter entregado o papel a Piper. Havia se passado apenas um segundo,

mas pareciam horas. Olhamos para o espelho, uma do lado da outra, como se nada tivesse

acontecido. Éramos apenas duas garotas arrumando os cabelos e passando maquiagem. Era

surreal.

Vi Piper me olhando de cima a baixo.

— Você está bonita, Ellie.

— Obrigada — agradeci, e me olhei no espelho. Em vez dos jeans e da camiseta de

sempre, estava vestindo uma blusinha estampada e uma calça jeans skinny preta que, de

alguma forma, me caíram bem. Michael e minha nova autoestima, que tinha aumentado,

tinham me encorajado a tentar outros looks. Eu ainda me sentia estranha, mas tinha gostado da

reação de Michael. As roupas pareciam um pouco mais adequadas à minha nova

personalidade.

— Michael mudou você para melhor.

Sorri. Ele tinha me influenciado, mas não da maneira que ela imaginava.

— Vou dizer isso a ele. — Fechei o zíper da minha bolsa, pronta para sair do banheiro.

Piper olhou para mim, implorando mais uma vez antes que eu saísse. A máscara tinha

caído, e ela me olhava com a expressão que costumava ter quando estávamos no bairro, e não

na escola.

— Por favor, Ellie, não conte para ninguém o que você viu aqui.

Se ela soubesse o que eu tinha visto...

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Dezoito

A visão não saiu da minha cabeça o dia todo e me afastou da tentação de tocar em outras

pessoas. Eu tinha tido uma reunião torturante com a senhorita Taunton depois da aula e,

quando ela acabou, praticamente corri para o Daily Grind para encontrar Ruth. Pensei que ela

talvez tivesse ouvido algo sobre o plano de Missy e Piper, e eu estava louca para saber os

detalhes.

Na minha pressa para abrir a porta do café, quase bati nas costas de um homem que

entrara um pouco antes de mim. Comecei a me desculpar, e então ele se virou em minha

direção. Era loiro, tinha os olhos azuis e usava uma malha e uma calça jeans. Mas eu não

conseguia saber sua idade; ele não era exatamente velho, mas parecia bem mais velho que os

adolescentes que costumavam rondar o Daily Grind. Talvez estivesse na faculdade. Eu não

podia negar que aquele homem, ou garoto, era lindo, mas havia algo perturbador em sua

aparência encantadora que o tornava atraente e repugnante ao mesmo tempo. Foi o que pensei

quando ele deu um sorriso estranho e desconcertante, perdoando minha falta de jeito.

Sem graça, acrescentei mais um pedido de desculpas e corri até a mesa onde Ruth me

esperava com meu café com leite. Fiquei tensa, com medo de que ela notasse meu nervosismo,

mas Ruth estava mais preocupada com o Baile de Outono. Jamie, o rapaz da aula de inglês,

aquele com quem Ruth fantasiara e que aparecera em minha visão, a havia convidado para o

baile, então nós quatro iríamos juntos ao evento. Dei um gole no café e ouvi Ruth jogar conversa

fora, enquanto esperava meu coração se acalmar por causa daquele encontro estranho.

— Então nós vamos sair para comprar seu vestido juntas? — perguntei, agradecida pelo

café. Eu precisava de cafeína; as noites maldormidas estavam cobrando seu preço.

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Ela sorriu.

— Sim, eu mal posso esperar. Dei uma olhada em umas revistas para ter uma ideia.

Inclusive, achei algo perfeito para você.

—É?

— Sim, um vestido azul vivo, vai combinar com seus olhos.

Não queria contar a Ruth, mas eu já tinha um vestido. Um dia, depois da aula, Michael e

eu passamos em frente à única loja legal que havia em Tillinghast, e ele praticamente me

arrastara para dentro. Enquanto esperava do lado de fora do provador, experimentei seis

vestidos. Recusei-me a sair do provador para que ele me visse com os cinco primeiros, mas

quando provei o sexto vestido, um tomara que caia de seda vermelho, franzido no corpete, não

consegui mais ficar escondida. Parecia e me sentia tão diferente, mas não tinha certeza disso.

Precisava da opinião de Michael.

Saí do provador, e a reação de Michael deixou claro que aquele era o vestido perfeito.

Quando fiquei de frente para o espelho, que refletia meu corpo inteiro, ele veio até mim,

colocou suas mãos nos meus ombros e sussurrou. Sentada à mesa com Ruth, quase tremi ao

lembrar o que ele disse: ‚Você est{ tão linda como quando voa‛.

Ruth parou um segundo, e percebi que era o momento certo para perguntar sobre a visão

que tivera de Piper. Discretamente, é claro.

— Em inglês, você ouviu alguma fofoca sobre Missy ou Piper recentemente?

Eu sabia que, se alguém fora os amigos mais íntimos de Piper tivesse alguma informação

sobre o plano, esse alguém seria Ruth. Sua aparência despretensiosa encobria uma curiosidade

insaciável; o disfarce perfeito, que permitia que ela escutasse tudo com uma extrema

competência. Sei que eu poderia ter tocado nela para descobrir se ela sabia de alguma coisa,

mas também sabia que, se eu lesse os pensamentos de Ruth, seria impossível agir como se nada

tivesse acontecido ao seu lado. Assim, resolvi não tocá-la.

— Não, só as bobagens de sempre sobre namorados e festas. Por que você está

perguntando? Você geralmente não liga para isso.

— Ouvi alguma coisa sobre um plano delas. Parecia algo bem ruim.

— Um plano das duas? Quem falou?

Como eu poderia explicar minha fonte? Pela milionésima vez, senti-me culpada por

guardar segredos dela. Olhei em volta, procurando uma explicação, e disse algo próximo da

verdade:

— Eu estava no banheiro e ouvi duas garotas conversando perto da pia.

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— Você reconheceu as vozes?

— Parecia um pouco com as de Missy e Piper.

— Vou ficar de ouvido ligado.

— Obrigada.

Não sei por que liguei para isso, afinal, os problemas de Piper diziam respeito somente a

ela, e ela nunca tentaria me ajudar caso eu precisasse. Mas desde que assumira meus dons,

vinha tendo um impulso muito forte de bancar a boa samaritana, e a visão que tivera de Piper

me deixara com vontade de ajudar aquela vítima desconhecida.

— Olha, Ellie, eu sinceramente acho que não vou conseguir ouvir nada. Piper e Missy são

tão pouco inteligentes.

Eu já discordar — talvez Piper e Missy não fossem alunas brilhantes, mas não eram burras

no que se refere a conspirar contra os outros — quando ela lançou:

— Tá tudo bem, Ellie?

Era a pergunta que eu tanto temia. Odiava ter de mentir descaradamente para Ruth.

— Sim, claro, por que a pergunta?

— Você às vezes parece tão distante.

— Desculpe, Ruth, é que... — Eu ia começar a dar a desculpa que eu tinha preparado para

essa ocasião quando Ruth se distraiu. Ela estava olhando para alguma coisa ou para alguém

atrás de mim. Eu não sabia se ela estava apenas tentando me mostrar como eu estava desatenta,

então me virei para seguir seu olhar.

Ruth estava boquiaberta, encarando um rapaz sentado na poltrona vermelha no canto do

café — o mesmo rapaz em quem eu quase tombara na entrada. De longe ele parecia ainda mais

bonito, já que a distância disfarçava seu jeito perturbador. Segurava uma xícara de café e um

jornal, como a maioria das pessoas no café, mas, de alguma maneira, ele parecia um objeto

cenográfico, saído de um filme, e suas roupas lembravam uma fantasia. Era bonito demais para

os padrões de Tillinghast.

Virei-me de volta para Ruth para comentar sobre o rapaz e logo vi que ela discordaria de

tudo que eu dissesse sobre ele. O rapaz a hipnotizara. Eu literalmente tive de estalar os dedos e

chamá-la para que ela tirasse os olhos dele. E, quando Ruth finalmente fez isso, fiquei grata por

ele ter ido ao Daily Grind, em vez do Starbucks do outro lado da rua, apesar do sentimento

inquietante que aquele rapaz despertara em mim e que persistia. Porque a simples presença

daquele estranho fez que Ruth esquecesse a pergunta que me fizera.

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Dezenove

Naquela noite, Michael e eu nos deitamos na relva, depois de voarmos ao longo da costa.

Minha cabeça repousava no braço de Michael enquanto observávamos o céu. A grama estava

fofa e macia depois da chuva leve que caíra à tarde, e parecia que estávamos sobre um cobertor.

Senti uma paz tão grande que não quis falar sobre minha visão de Piper. Contudo, não

conseguia deixar de pensar nisso.

— O que houve, Ellie?

Obviamente, minha tentativa de agir de modo normal não estava funcionando.

— Tive uma visão muito estranha hoje, e não consigo parar de pensar nela.

—O que você viu?

Contei a ele todos os detalhes da visão de que conseguia me lembrar: o diálogo entre

Missy e Piper, as alusões a certo plano, o rapaz estranho escondido atrás de Missy e o medo que

Piper sentira.

Michael me ouviu com atenção e perguntou:

— De todas as visões que você já teve, por que essa te atingiu assim?

Sua reação me decepcionou; ele não pareceu especialmente tocado. Talvez eu tivesse

esperado muito dele, que ele sentisse tudo que eu sentia. Afinal, nós éramos tão parecidos.

— Não sei. Mas senti que tenho de descobrir mais sobre isso e fazer alguma coisa.

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Michael enrolou uma mecha do meu cabelo nos dedos e então suspirou.

— Por que, Ellie? Elas são umas idiotas. Você não tem de salvar Piper de nada.

— Não estou planejando salvar Piper, e sim a vítima.

— Isso é muito nobre da sua parte, Ellie. Mas não somos super-heróis.

Sentei-me. Michael tinha acabado quase à força com minha ignorância, que de alguma

forma era boa, sobre minha nova existência. Ele basicamente tinha me feito abraçar nossas

‚diferenças‛ — e agora queria que eu ignorasse o impulso em ajudar que acompanhava

algumas de minhas visões. Aquela, especialmente.

— Não, Michael, não somos super-heróis. Mas também não somos apenas seres humanos

comuns.

— Eu sei. Mas não vejo como isso pode obrigar a gente a voar e consertar a confusão que

Missy e Piper estejam tramando.

— Michael, não consigo ignorar essa vontade de me envolver. Você nunca sentiu isso? —

Achava que ele sentia. Eu nunca tinha sentido tanta urgência em ajudar antes, mas sentia algo

parecido de vez em quando, quando algum colega de classe me transmitia uma visão de um

problema especialmente alarmante.

— Um pouco, eu acho.

— Desde que começamos — fiz um gesto em volta do campo — tudo isso, tenho tido uma

sensação forte de que não devemos usar nossos dons apenas para diversão, mas para algo mais,

como para ajudar as pessoas de quem lemos a mente. Você já sentiu isso?

Ele parou por um segundo. Vi que sua mão procurava a minha, mas me afastei um pouco.

Não queria que seu toque interferisse na conversa; eu estava muito suscetível.

— Acho que eu estava tão concentrado em você que não deixei esses sentimentos

aflorarem — explicou.

Apesar de todos os meus esforços para me manter distante, senti como se fôssemos um só.

Ali estava o garoto dos meus sonhos me dizendo que eu o distraía tanto que ele não conseguia

ver as coisas direito. Como eu podia ficar irritada com ele? Até porque eu sentia a mesma coisa.

Ainda assim, queria que ele estivesse comigo, no mesmo barco. Não apenas no incidente

envolvendo Piper e Missy; queria que Michael sentisse o que eu sentia. E como eu tinha

aprendido com meus pais a ajudar a humanidade, fiquei mais do que desapontada com o fato

de ele não querer fazer a mesma coisa.

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— Se você não pensou nisso — que temos um tipo de obrigação com os outros por causa

das nossas diferenças —, então o que você pensa?

Mesmo na escuridão da noite sem lua eu podia vê-lo sorrir para mim.

— Nunca ouvi falar em vampiros que fazem o bem — ele brincou, e eu revirei os olhos. —

O que eu deveria pensar? — continuou.

— Vou te dizer o que penso. Sinto que tenho sorte por você dividir essa experiência

comigo. E acho que vou te ajudar, porque mesmo não ligando a mínima para Piper e Missy, eu

ligo muito para você.

Rolei na curva do seu braço e sussurrei:

— Obrigada.

Conversamos um pouco sobre um plano para obter informações, e então Michael

murmurou:

— Ellie?

— Sim? — respondi. O tom de sua voz era tão suave e convidativo que imaginei que ele

fosse me beijar. Ele em geral fazia isso no final da noite, mas eu sempre tinha tomado o cuidado

de parar por aí; a experiência de beijá-lo realmente tinha mexido comigo, e eu não queria perder

o controle.

Seus lábios fizeram cócegas na minha bochecha, e seu hálito doce me aqueceu. Virei o

rosto em sua direção, pronta para ele.

Com a mesma voz doce, Michael falou:

— Você sabe que se usássemos o sangue delas descobriríamos praticamente tudo.

— Michael — falei frustrada. Ele sabia como eu me sentia quanto àquela história de

sangue. E, de qualquer modo, eu queria beijá-lo, e não discutir sobre aquele assunto.

— Vamos lá, Ellie. Seria uma chance de testarmos o poder do sangue.

Além daquelas primeiras e poucas ocasiões, que não haviam sido planejadas, eu não tinha

mais experimentado o sangue de Michael, nem deixado ele experimentar o meu. Lembrava-me

bem do gosto inebriante e viciante do seu sangue, e do susto que isso me causara. Tinha medo

de começar e não conseguir mais parar. Mas eu não podia dizer isso a Michael.

— Não.

— Seria por uma boa causa — falou sugestivamente, enquanto subia e descia o dedo no

meu braço.

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— Você é capaz de tudo para me convencer, né?

Ele sorriu sem conseguir negar.

— Vamos ver se encontramos outra maneira — conclui, beijando seu pescoço levemente.

— Agora quem está sendo persuasiva? — falou com uma voz mais grossa.

Foi minha vez de sorrir.

Ele disse:

— Tudo bem, vamos tentar do seu jeito primeiro. Mas me prometa que vai apenas

considerar...

— Prometo.

Beijei-o com força. Estava tão aliviada e feliz por ele ter me apoiado no assunto de Piper

que baixei a guarda. Em um segundo, estávamos enrolados nos braços um do outro. Senti sua

língua na minha e me rendi à sensação que isso trazia. Michael deve ter percebido que eu não

tinha forças para lutar contra ele, porque logo senti um corte pequeno na língua e provei o

sangue. O dele e o meu. Juntos.

A sensação foi de puro prazer, diferente de tudo que eu já havia experimentado antes.

Fechei os olhos e me entreguei àquele arroubo. Até que tive uma visão que mais parecia uma

visão que uma memória. A luz cegava; fechei os olhos da minha mente. Conforme minha visão

se ajustava, vi Michael e eu em uma praia virgem de areia branca, com arcos de luz nas costas.

Estávamos tão bonitos, tão serenos. E então notei algo muito estanho. Em nosso peito havia

letras, algo escrito com luz. Tentei fortemente ler o que estava escrito, mas as palavras estavam

em uma língua estranha.

Eu podia ter parado naquele momento, mas senti a língua de Michael passar sobre meus

dentes de novo e percebi que ele procurava mais sangue. Despertei daquela imagem,

compreendendo que, se continuássemos a dividir nosso sangue, nunca mais iríamos parar.

Empurrei Michael e me sentei. Tentei falar.

— Você entende porque não podemos fazer isso com mais ninguém? Porque não

podemos fazer isso nem entre a gente? Viu como, depois que começamos, não conseguimos

mais parar de ir atrás de mais sangue?

— Sim. — Sua respiração estava acelerada.

— Prometa para mim, Michael, que você nunca vai experimentar o sangue de mais

ninguém além do meu.

Ele me encarou com o peito ainda ofegante, mas o olhar firme:

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— Prometo.

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Vinte

Michael e eu havíamos concordado em dividir e conquistar a amizade do pequeno grupo

de amigas de Missy. A mim couberam Piper, por razões óbvias, e Missy, já que eu tinha

inventado tudo aquilo. Como eu ficara com as pesos-pesados, a Michael restaram as outras seis

— Hallie, Kristen, Elizabeth, Samantha, Jennifer e Shadley. Logo estávamos à solta na nada

suspeita Tillinghast Upper High School.

Ou pelo menos era isso que pensávamos. Achávamos que íamos andar tranquilamente

pela escola, encostar nelas e descobrir seus segredos. Mas a coisa não funcionava assim tão fácil,

pelo menos não quando a intenção era descobrir segredos específicos.

As estrelas tinham de estar perfeitamente alinhadas para que pudéssemos ver

determinado detalhe. Primeiro, tínhamos de manter contato fisico com a pessoa escolhida;

depois, ela tinha de estar pensando no plano no exato momento em que encostássemos nela; e,

por fim, a visão se tivéssemos sorte de termos exatamente a visão que desejávamos — precisava

fazer sentido. Havíamos aprendido que os pensamentos das pessoas não eram lineares, mas, em

geral, desconexos e misturados, a ponto de não conseguirmos compreender bem a imagem.

A parte mais difícil era encostar nelas. Como poderíamos tocá-las de modo que parecesse

acidental, e não algo inadequado? Também havia outro obstáculo. Em geral, eu evitava Missy e

Piper a todo custo, mas, naquele momento, eu precisava cruzar com elas de modo

aparentemente natural — e então encontrar uma maneira de tocar em uma ou nas duas meninas

mais inacessíveis do penúltimo ano. Não era fácil, principalmente porque elas tinham desistido

de conquistar minha amizade.

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Fiquei parada em frente ao meu armário, com a esperança de cruzar com elas. Tinha

decorado o horário das suas aulas, e mudei meu caminho para poder encontrá-las por acaso.

Sem sucesso. Forçara a pobre Ruth a tomar café no Starbucks em vez de irmos ao Daily Grind

porque elas costumavam frequentar aquele local. Nem sinal delas. Depois de tentar evitá-las

por semanas, sem sucesso, de repente eu não conseguia mais cruzar com elas.

Os esforços de Michael também tinham sido em vão. Embora ele tivesse tido mais sucesso

do que eu em manter contato físico com as figuras menos importantes do grupo — o que não

era surpresa, pois Michael, além de ser aluno do último ano, era uma graça —, não tinha

conseguido extrair nenhuma imagem relevante da mente delas. Nós não sabíamos se elas

ignoravam o plano ou se não estavam pensando nele quando Michael fez contato com elas. Mas

ele gostava de me atormentar com a descrição das imagens românticas de si mesmo extraídas

da mente de algumas das meninas.

Em desespero, pensei que talvez devesse tentar a estratégia inicial de ir até minha vizinha.

Desejei mais que tudo que a versão mais simpática de Piper, que ela deixava aflorar quando

saíamos da escola, fosse mais suscetível aos meus esforços. Porém, dia após dia, uma boa

oportunidade me escapava.

Uma tarde, enquanto minha mãe fazia cookies, senti que era minha chance. Minha mãe

ficou um tanto surpresa quando me ofereci para levar uma dúzia deles à casa dos Fairese como

um gesto de ‚boa vizinhança‛. Os pais de Piper trabalhavam o dia inteiro, a mãe secretária na

universidade, e o pai, professor associado de ciência política, e achei que eles estariam

trabalhando àquela hora. Avistei o carro de Piper na entrada da casa, então concluí que eu

talvez dispusesse de alguns minutos sozinha com ela.

Eu não possuía um plano concreto, mas tinha de tentar. Com um prato envolto em papel

alumínio nas mãos, percorri a curta distância entre as duas casas. Levantei o velho batedor de

porta e soltei-o, fazendo um ruído metálico. Como eu esperava, em segundos Piper abriu a

porta.

Ela estava boquiaberta, surpresa em me ver à sua porta. Como eu trazia um presente, ela

não teve outra alternativa a não ser me convidar para entrar. Enquanto ela segurava a porta

aberta para mim, encostei o dedo em seu antebraço. Vi uma imagem tênue, diluída como chá

com leite, em que ela se esforçava para fazer um trabalho sobre Shakespeare para a aula de

inglês. Eu certamente interrompera sua lição de casa.

Piper me levou até a cozinha, me agradeceu e me apontou um lugar vazio no balcão onde

eu poderia deixar os cookies. Após cumprir seu papel de vizinha, girou sobre o próprio eixo e

começou a andar em direção à porta. Eu ia ser dispensada como uma empregada;

aparentemente, a Piper simpática não iria aparecer. Não por bem, pelo menos.

Eu precisava fazê-la pensar no plano e encostar nela. E rápido.

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—E então, tudo bem? — perguntei, bancando a preocupada e compreensiva.

— Sim, por que não estaria? — disse com uma expressão indagadora que soava forçada.

Ela sabia do que eu estava falando.

— Você sabe, aquele dia no banheiro.

— Ah, aquilo — disse ela com um gesto de desdém. — Aquilo não foi nada, como eu já

disse.

Ali estava minha chance.

— Bem, se você precisar de alguém para conversar... — alcancei-a e encostei em seu

ombro.

Tive uma visão impactante: ela e Missy estavam na biblioteca da escola, com os olhos

fixos no laptop de Piper. Como estavam sentadas muito próximas, pude sentir o cheiro de café

no hálito de Missy. Olhando através dos olhos de Piper, vi uma página do Facebook aberta.

Missy estava latindo ordens para Piper.

— Vai logo, Piper, eu tenho de encontrar o Zeke no Tili em dez minutos.

O Tili era um bar frequentado basicamente por estudantes universitários, e tinha uma

política bem rígida quanto a não deixar menores entrarem. Como Missy achava que ia

conseguir entrar lá?

Piper digitava freneticamente em resposta, mas não olhava para cima. Em vez disso, pude

sentir seu coração acelerar e seu estômago revirar diante da menção do nome de Zeke. Talvez

ele estudasse na universidade.

Conforme Piper digitava, olhei a tela bem de perto; ela e Missy estavam criando um novo

perfil. Isso me pareceu muito estranho, já que as duas tinham um perfil no Facebook. Enquanto

eu tentava descobrir o nome do usuário, a imagem desapareceu. Voltei à cozinha de Piper.

Piper tirou minha mão do seu ombro.

— Ellie, eu não preciso da sua ajuda. — E então caminhou até a porta de entrada.

Segui-a, sorrindo por dentro. Eu não me importava que ela estivesse me dispensando,

pois eu finalmente tinha por onde começar.

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Vinte e Um

Eu estava errada. Quanto mais Michael e eu pensávamos na visão que eu extraíra da

mente de Piper, mais desanimados ficávamos. Analisando a situação mais de perto, a visão não

tinha jogado muita luz além do perfil no Facebook sobre o plano ou a suposta vítima. No fim,

tínhamos mais perguntas que respostas.

Embora eu odiasse admitir, estávamos um tanto frustrados e cansados com nossa

pequena investigação. Então, quando Michael sugeriu da maneira mais encantadora possível

que deix{ssemos nossa ‚pesquisa‛ de lado na semana anterior ao Baile de Outono, disse a ele

que iria considerar seriamente seu pedido. Depois de ele me dizer que eu parecia esgotada,

concordei em dar um tempo; queria estar bem para o baile, como ele bem sabia. Contudo, achei

muito difícil tirar o assunto da cabeça.

Tentei me distrair com os preparativos do baile. Quando Ruth, por fim, me perdoou por

ter comprado o vestido sem ela — depois que argumentei que isso me deixara com mais tempo

livre para me dedicar à procura do seu vestido —, passamos horas no shopping. Ela

experimentou vestidos de todas as cores imagináveis — preto, verde-claro, lavanda e marrom

chocolate e finalmente escolheu um cor-de-rosa claro que, surpreendentemente, combinou com

seu cabelo avermelhado. Superado o primeiro grande obstáculo, ela começou a pensar nos

detalhes menores (não que ela considerasse essas coisas insignificantes): penteado, maquiagem,

sapato e até unhas. Olhamos um monte de revistas e fomos a todos os lugares onde poderíamos

fazer maquiagem e a todas as lojas de sapatos de Tillinghast para encontrar os acessórios

perfeitos. Felizmente, deixei Ruth me arrastar para todos esses lugares e pude aproveitar a

sensação de ser uma adolescente normal, só para variar.

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Combinamos de nos encontrar — Ruth, Jamie, Michael, eu e nossos pais — na minha casa

antes do baile. Ruth ficava meio sem graça diante da ideia de Jamie buscá-la em casa com seu

pai por perto. E, além de tudo, meus pais e o pai de Ruth eram próximos. Como meus pais e o

pai de Ruth também iam, achamos que devíamos incluir os pais dos rapazes. Nunca pensei que

eles realmente fossem convidar os pais, mas, para minha surpresa, convidaram.

Na sexta-feira à noite, um dia antes do baile, estava tudo pronto: vestido, sapatos, bolsa e

maquiagem na cabeça, mesmo ainda tendo horas para nos arrumar no sábado. Terminei a lição

naquela tarde, assim não teria de pensar no assunto no sábado e no domingo. Eu até havia

pedido a Michael que me liberasse do voo; dissera a ele que eu precisava de pelo menos uma

noite de sono ininterrupto para estar bem para o baile. Ele relutou, mas concordou.

Porém, não consegui dormir. Estava agitada, sem saber direito o porquê. Pensava em

Missy e Piper, mas esse não era o único motivo da minha agitação. Às vezes, eu ficava ansiosa

ao pensar em meus poderes e em seu significado, mas tinha deixado as preocupações de lado e

aproveitado bem a semana anterior. Então, por que eu não conseguia dormir? Será que havia

me acostumado a passar a noite toda acordada? Ou era apenas o nervosismo natural de antes

do baile que todas as adolescentes experimentam? Eu não sabia responder.

Primeiro se passaram alguns minutos, depois meia hora, uma hora, duas horas. Eu estava

cada vez mais brava comigo mesma. Devia ter ido voar com Michael; voar sempre me deixava

cansada. Por fim. após três horas, saí debaixo das cobertas e me sentei diante do computador.

Precisava fazer alguma coisa além de ficar deitada na cama.

Entrei na página do Google. Antes que eu percebesse, meus dedos começaram a percorrer

o teclado. Olhei para a tela e vi o nome do ‚Professor Raymond McMaster‛ escrito no campo de

pesquisa antes em branco. De onde aquilo tinha vindo?

Eu não tinha pensado muito nele desde a humilhação sofrida na aula da senhorita

Taunton. Ou, pelo menos, eu achava que não tinha pensado nele. Pelo visto, sua presença

estava ativa em meu subconsciente. A verdade é que eu não me sentia uma vampira. Sempre

havia imaginado os vampiros como seres cruéis ou sem coração. Meus sentimentos eram...

grandiosos, calorosos, inclusivos. Precisava de um especialista para me ajudar a decifrar aquele

enigma. Entrei na página da Universidade de Harvard e li o curriculo do Professor McMaster.

Ele fizera a graduação em Harvard, seguida de uma pós-graduação em Stanford. Fora

professor-assistente em Stanford e depois se tornara professor-titular também em Harvard,

posto que ocupava até aquele momento. Impressionante, ainda mais para um especialista em

Drácula.

Examinando sua biografia, vi uma lista de trabalhos publicados. Não eram apenas sobre

vampiros; alguns tratavam de ‚folclores sobrenaturais e mitologias‛. Mas sua especialidade

parecia ser mesmo os vampiros. Cliquei no artigo que me pareceu interessante, ‚Origens

multiculturais da lenda do vampiro‛.

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Abri o arquivo. As primeiras palavras me deram arrepios terríveis. O professor McMaster

não era o aliado que eu esperava encontrar para convencer Michael de que não éramos

vampiros:

Os vampiros circulam entre nós. Sejam o baobhan sith escocês, o baital indiano, o Jiang shi

chinês, o kosci croata, o moroi romeno ou o tlahuelpuchi mexicano, toda sociedade e toda cultura

abrigam seus vampiros. A questão não é se os vampiros existem seja em nosso subconsciente

coletivo ou nas ruas —, mas sob qual forma e por quê.

Página após página, a tese do professor McMaster — toda baseada na ideia de que os

vampiros existem, dada sua presença em todas as civilizações — prendeu minha atenção. E me

deixou apavorada. Não se tratava de nenhuma teoria conspiratória maluca encontrada na

internet, mas era a tese de um estudioso respeitado de nada menos que a Universidade de

Harvard.

Mas o professor deixara a observação mais chocante — pelo menos para mim — para o

último parágrafo:

Esta pesquisa torna claro que, embora os vampiros de cada sociedade assumam formas

diferentes, eles dividem duas características perturbadoras: uma habilidade não humana de se

transportar e um fascínio por sangue. Mas, o que é interessante, a forma exata e a natureza da

cultura do vampiro não interferem em seu propósito. Não importa onde eles possam ser

encontrados nem que forma possam adquirir, todos os vampiros encarnam nossos medos mais

terríveis e primitivos do desconhecido e servem como chave para o mistério do que pode ser

encontrado, se é que há algo a ser encontrado, depois da morte.

De repente, a teoria de Michael sobre os vampiros me pareceu bem provável.

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Vinte e Dois

De manhã, não tive tempo de pensar no Professor McMaster, em vampiros, em Missy e

Piper nem em nada além do Baile de Outono. Ruth chegou às oito da manhã com o mesmo

número de sacolas que eu e meus pais costumávamos levar nas viagens de verão e uma agenda

feita no computador com todos nossos compromissos e atividades. Nunca tinha ficado tão feliz

em ver Ruth; eu não queria ficar sozinha apenas com meus pensamentos.

Durante todo o dia, Ruth me arrastou para sessões de manicure, pedicure e maquiagem.

Expliquei ao cabelereiro de Ruth como eu queria que ele penteasse meus cabelos — ninguém

era capaz de dar um jeito em meus cabelos grossos e extremamente lisos —, mas vi Ruth fazer

um penteado complicado que realmente lhe caiu bem. Achei que meus pais fossem dizer

alguma coisa sobre toda aquela demonstração de frivolidade e materialismo, mas eles não

disseram nada. Eles pareceram aliviados em levar a filha de dezesseis anos para se arrumar

para um baile, como uma pessoa normal. Fiquei aliviada em interpretar um papel em vez de ter

de encarar o fato de que eu era uma criatura esquisita, como as descritas pelo Professor

McMaster.

— Ruth, ElIie, desçam, meninas. O pessoal vai chegar em poucos minutos! — gritou

minha mãe da escada para nós, no quarto.

— Ai, meu Deus, são quase seis horas! — Ruth quase soltou um grito,

Olhei para o relógio sem acreditar. Nós realmente tínhamos passado dez horas nos

arrumando e nos emperiquitando? Se descontássemos todo o tempo gasto em cafés, com o

almoço, o trajeto e as fofocas, teríamos gastado algo como quatro horas nos embelezando. Mas,

mesmo assim, era dificil de acreditar.

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Ruth e eu nos dirigimos ao meu velho e único espelho, que nos permitia ver o corpo

inteiro. Com atenção, nos olhamos; primeiro dei uma olhada em Ruth, pois não estava pronta

para me ver toda arrumada.

— Você está linda, Ruth — disse com sinceridade. Com o cabelo avermelhado preso, dava

para ver bem seu rosto e o pescoço, e o vestido rosa claro valorizava seu corpo; ela tinha se

transformado em uma princesa.

Ruth me deu um abraço forte e se afastou rapidamente para que eu me visse.

— Ellie, o Michael vai desmaiar quando te vir. Você está tão glamurosa, parece uma

estrela de cinema ou algo assim.

Rindo, olhei para o espelho. Eu definitivamente não parecia urna estrela de cinema, mas

parecia mais bonita. De alguma maneira, o vestido vermelho e justo e a maquiagem nova

ressaltaram meu corpo, os cabelos escuros e lisos e os olhos azuis. Em vez de desengonçada,

com os olhos esquisitamente brilhantes, eu estava bem, imponente. Era estranho usar essa

palavra para me classificar, mesmo em pensamento.

— Meninas! — gritou minha mãe novamente. Aquele tom significava ‚corram’.

Giramos nos saltos e corremos até a escada. Quando íamos começar a descer, ouvimos

uma batida forte na porta.

— Tarde demais — minha mãe sussurrou, com a voz áspera, do andar debaixo.

Nosso atraso momentâneo em frente ao espelho nos saiu caro. Agora seríamos forçadas a

descer a escada comprida e cheia de degraus diante de uma plateia, como duas Scarlett Ohara

modernas. Essa não era exatamente a impressão que eu queria causar aos pais de Michael. Eu

queria parecer uma namorada legal, não uma rainha afetada.

Eu e Ruth nos olhamos primeiro com um misto de medo e animação, depois fizemos cara

de paisagem. Demos as mãos, sorrimos e descemos a escada. Meu pai abriu a porta quando

estávamos no meio da escada, e assim pude ver bem nossos convidados antes de chegarmos ao

andar de baixo.

Mantive o olhar no chão para não cair da escada e, no último degrau, por fim, olhei para

cima e vi Michael, tão lindo em seu terno escuro com uma gravata amarela. Seus olhos verdes

cortaram os meus, e não precisei lhe perguntar o que ele achava do meu visual. Sua expressão

dizia tudo.

Na frente de todo mundo, antes mesmo de me levar até seus pais, ele me pegou pelas

mãos e me deu um beijo leve nos lábios. E então amarrou um belo ramalhete de rosas no meu

pulso; ele já sabia que não haveria espaço no corpete do vestido. E sussurrou:

— Ele não é nem de perto tão bonito como você.

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Eu deveria ter ficado envergonhada, mas não fiquei.

Michael foi o primeiro a interromper o olhar ao dizer:

— Mãe, pai, vocês se lembram da minha Ellie?

Minha Ellie. Ele sabia exatamente como me fazer derreter. Estendi a mão a uma mulher

muito bonita, cujos cabelos castanhos estavam começando a ficar grisalhos nas têmporas. Como

meus pais. Eu já havia visto seus pais duas vezes — uma quando eles me levaram para jantar

fora e outra quando nos sentamos juntos para assistir ao jogo de futebol americano de Michael.

Eles eram muito agradáveis, embora um pouco distantes e formais, e, de alguma maneira,

conseguimos evitar falar no estranho assunto da viagem à Guatemala. Eu ainda não conseguira

recuperar uma imagem sequer de Michael dos confins das minhas lembranças de viagens.

— Senhora Chase, é um prazer vê-la de novo.

— O prazer é meu, Ellie. Você está uma graça hoje. Michael me contou sobre seu vestido,

mas a descrição dele não fez jus ao vestido — ou a você vestida nele.

Enrubesci ao pensar em Michael falando sobre mim a seus pais. Tentando ignorar minhas

bochechas vermelhas, cumprimentei o pai de Michael. Ele era atraente, com sua tez cor de oliva

e os cabelos quase pretos. Continuei procurando semelhanças entre Michael e o pais, mas ele

era loiro e branco, nada parecido com nenhum dos dois.

Meus pais se juntaram à nossa conversa. Pelo canto do olho vi Ruth, Jamie e seus

respectivos pais se apresentarem. O grupo passou à sala, e minha mãe serviu aperitivos

enquanto meu pai servia refrigerante para os jovens e vinho para os adultos.

Uma hora se passou com surpreendente tranquilidade. A escola e o baile eram assuntos

fáceis para uma conversa, e até o pai de Ruth, em geral resistente a aproximações, pareceu

relaxado e extrovertido.

Perto das sete horas, Michael e Jamie começaram a olhar os relógios e a dar indiretas de

que deveríamos ir. Os pais concordaram, mas apenas depois de tirarem um milhão de

fotografias.

Todos se despediram, e Ruth, Jamie, Michael e eu entramos no carro de Michael, pois

havíamos decidido ir em apenas um carro. Não sabíamos como era o estacionamento e, de

qualquer modo, haviam combinado de ir à minha casa depois do baile.

Michael estava prestes a sair da entrada de casa quando pedi que ele parasse o carro.

Como não estava acostumada a usar bolsa, havia deixado a minha em cima do balcão da

cozinha.

Michael me deixou em frente ao pórtico, e subi seus degraus o mais rápido que alguém de

salto alto pode conseguir. Ao abrir a porta da entrada, fiquei aliviada ao ver que nenhum dos

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nossos pais estava no corredor. Eu queria entrar e sair sem precisar parar para jogar conversa

fora.

Entrei na ponta dos pés pelo corredor dos fundos, que dava para a cozinha, e ouvi minha

mãe e a mãe de Michael conversando, sem se preocuparem em ser ouvidas. De repente, escutei

o barulho de água da pia da cozinha. Espiei e vi as duas de costas, como se estivessem lavando

louça. Talvez eu pudesse entrar e pegar minha bolsa e passar despercebida.

— Eu ainda não acredito que você e Armaros estão em Tillinghast — falou minha mãe,

em um tom não muito caloroso.

— Nós não tivemos outra escolha — disse a mãe de Michael, como se tivesse se

desculpando.

— Depois de fazermos tudo para que eles esquecessem que se conheceram na

Guatemala... — a voz da minha mãe vacilou.

— Eu sei. E deu tão certo com a Ellie. As mesmas técnicas não deram muito certo com

Michael, como você sabe.

— Nós precisávamos que eles se encontrassem pelo menos uma vez antes que atingissem

a maioridade para ver como reagiriam um ao outro, e para descobrir do que eram capazes

juntos. Precisávamos assumir o risco na Guatemala. Eu queria tanto que eles tivessem se

esquecido totalmente — afirmou minha mãe.

A maneira como minha mãe falara me fez imaginar o que de tão terrível deve ter

acontecido na Guatemala para que eles quisessem que eu esquecesse. Se eu pudesse extrair

alguma visão da viagem dos meus pais ou dos pais de Michael... Tentei sem sucesso. Continuei

encostada na mesma parede.

Meus pensamentos foram interrompidos pela mãe de Michael.

— Eu sei, e essa é a única razão pela qual nós os deixamos passar um tempo juntos. Mas

seria muito mais fácil mantê-los sem saber de nada antes da hora.

— Teria sido mais fácil se vocês tivessem ficado longe de Tillinghast — replicou minha

mãe, com a voz mais alta e mais brava.

— Você sabe que o melhor jeito de protegê-los é mantê-los no mesmo lugar. Para

podermos vigiá-los.

— Vocês deveriam ter falado com a gente antes.

— Não nos pareceu uma boa ideia. Você sabe disso. Hoje — com todos nós no mesmo

lugar — já corremos um grande risco. — A mãe de Michael parecia quase arrependida.

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— Mesmo os meninos tendo se encontrado por conta própria? Vocês não acharam que

tinham de falar com a gente, nesse caso? — A voz da minha mãe ficou mais alta; ela realmente

estava brava.

— Nós não poderíamos arriscar, Hananel. Pareceu melhor esperar e deixar que o

relacionamento deles fosse adiante por conta própria. E observar.

Hananel? Quem era Hananel? O nome da minha mãe era Hannah. E do que elas estavam

falando?

Minha mãe estava quase gritando.

— Observar? Essas são palavras grandiosas vindas de alguém que antes só vigiava e cuja

observação não era nada além de uma espera passiva. O que você acha que essa espera e

observação passivas vão nos trazer de bom?

— Tempo, Hananel. Achei que observá-los ia nos fazer ganhar tempo.

Minha bolsa caiu no chão e fez um barulho, fazendo com que as duas mulheres se

virassem em minha direção.

— Ellie, querida, pensei que você já tivesse saído — disse minha mãe, com a voz mais

doce do mundo.

Abaixei-me para pegar a bolsa e a brandi como uma espada. Sorri como se não tivesse

ouvido nada e falei:

— Eu não podia sair sem minha bolsa, né?

E então, sem saber o que dizer ou fazer, acenei e voltei correndo para o carro. A conversa

que eu tinha ouvido era bizarra, mas eu não a deixaria estragar o meu primeiro baile com

Michael.

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Vinte e Três

A expressão no rosto dos nossos colegas de classe quando entramos no ginásio valeu cada

minuto que gastamos nos arrumando. As garotas olharam para Ruth e para mim de cima a

baixo, com admiração e um tanto de surpresa, mas com os rapazes foi outra história: alguns

ficaram literalmente boquiabertos quando cruzamos o salão.

Ruth chamou bastante atenção, e achei que Jamie sentiu certa empolgação por estar ao seu

lado. No meu caso, experimentei uma sensação de poder diferente de quando tinha uma visão.

E, olhando para Michael, vi que ele também sentia a mesma coisa. A sensação ajudou a dissipar

a vozinha irritante dentro da minha cabeça que me lembrava da conversa que ouvira na cozinha

e que ainda não tivera coragem de contar a Michael. Eu não queria estragar nossa noite perfeita,

em que encarnávamos dois adolescentes comuns, lembrando-o de como éramos estranhos.

Respondíamos aos olhares que nos encaravam com um sorriso e tentávamos agir

normalmente. Nós quatro comentamos sobre como o comitê de organização do baile havia

conseguido modificar o lugar. Nosso ginásio não tinha mais a aparência antiga de anos atrás,

mas parecia uma boate dos anos 1980, cujo estilo retrô fora criado propositalmente.

Todas as vezes que Ruth fazia algum comentário sobre o vestido uma garota, sua voz

zunia como uma abelha em meu ouvido. Lexie, disse ela, estava ótima em seu microvestido

justo e azul, assim como Charlotte, cujo vestido de renda preto e branco lhe caíra muito bem.

Mas, notou Ruth, o que Nick havia pensado quando escolheu aquele vestido longo de cetim

dourado com cristais no decote?

Vi Piper e Missy num canto escuro, quase atrás da arquibancada. Aquele lugar longe das

atenções dos demais não combinava com elas; eu esperava vê-las cercadas de gente, dominado

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as atenções, especialmente em um evento como aquele. E onde estavam os seus respectivos

namorados? Eu sabia que Piper estava saindo com Lucas, mas não sabia onde estava o

namorado de Missy. Não a tinha visto com Charlie recentemente, mas a vira subindo as escadas

da biblioteca com outro rapaz. Pensei que ele fosse Zeke, o rapaz que apareceu na visão e que

eu vira escondido.

Talvez Piper e Missy estivessem isoladas no canto porque estavam bravas pelo fato de

uma delas (ou as duas) não ter sido eleita Rainha do Outono, e talvez isso tivesse algo a ver com

seu plano. Uma antiga amiga das duas, Vanessa, tinha conseguido de alguma forma reunir uma

maioria esmagadora de votos. Parei por um instante. Por que eu estava gastando um minuto

que fosse da minha noite pensando nelas, especialmente quando eu e Michael havíamos

combinado de parar um pouco com a nossa investigação? Deixei de pensar em Piper e Missy

para aproveitar a noite.

Uma das minhas músicas preferidas, ‚Lost‛, do Coldplay, começou a tocar, e Michael me

puxou para a pista de dança. Ele abriu um espaço para nós entre a multidão e passou os braços

firmemente em volta das minhas costas. Olhei em seus olhos verdes, que brilhavam mesmo no

escuro. Pela milionésima vez pensei em como eu tinha sorte de tê-lo encontrado.

A música ficou mais alta, e ele pressionou seu corpo contra o meu. Segurei seu braço forte

e deitei a cabeça em seu ombro. O ritmo da música ficou mais rápido, mas Michael segurou o

passo. Ele levantou meu queixo e se inclinou para me beijar.

Seus lábios eram tão macios, tão convidativos, que o beijei de volta, saboreando o toque

gentil de sua língua. Quando ele passou a lingua devagar sobre meus dentes, comecei a sentir

um desejo intenso por ele, diferente de tudo que tinha experimentado das outras várias vezes

em que estivéramos fisicamente perto. Essa não era uma vontade normal de beijá-lo ou ir além,

era diferente de tudo que já sentira antes. Era desejo por sangue.

Separamo-nos e nos olhamos. Michael também tinha sentido a mesma coisa. Tínhamos de

sair da pista de dança antes que acontecesse algo que não pudéssemos controlar. Algo que

assustaria todos à nossa volta.

— Vou ao banheiro lavar o rosto — disse, para o caso de alguém estar ouvindo.

— Quer que eu vá com você? — perguntou com a voz meio entrecortada.

— Não, não. — A última coisa de que eu precisava era Michael perto de mim. Ele me

olhou preocupado, então sorri e o acalmei: — Tá tudo bem.

Michael me acompanhou até a porta do ginásio perto dos banheiros. Ele me deu um beijo

na bochecha e se encostou na parede, como se precisasse de apoio.

— Vou te esperar aqui — falou, ainda respirando com um pouco de dificuldade.

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Fiz que sim com a cabeça e abri a porta. Sem conseguir me equilibrar direito — ainda mais

de salto alto —, fugi cambaleando do brilho fluorescente dissonante do salão. Pisquei várias

vezes por causa da luz brilhante e virei à direita, em direção ao banheiro feminino. Havia ma

enorme fila de garotas — sem dúvida, todas esperando por uma boa posição em frente ao

espelho — saindo pela porta e invadindo o corredor. Eu não conseguiria enfrentar toda aquela

energia feminina agressiva no estado em que eu estava.

Em vez disso, virei à esquerda e sai pelas portas do ginásio. Talvez uma boa caminhada

diminuísse o desejo que eu sentia. Andei pelo corredor vazio, ladeado por armários e portas de

salas de aulas. Era engraçado como o corredor perdia seu ar intimidante e parecia pequeno sem

os alunos correndo em volta. Depois que me acalmei, voltei em direção ao ginásio — e para

Michael.

Então ouvi um gemido vindo do corredor ao lado. Voltei alguns passos e dei uma olhada

no outro corredor. À primeira vista, ele me pareceu vazio, mas então notei um leve movimento

em uma entrada escura e ouvi o gemido novamente; hesitei um segundo. Eu realmente não

queria ter de lidar com os problemas de mais ninguém naquela noite, mas a boa samaritana que

havia em mim superou todas as minhas apreensões.

Sem me preocupar em não fazer muito barulho com os saltos, aproximei-me do local

escuro. O gemido se tornou mais forte e se transformou em um berro no momento em que

cheguei lá.

— Você está bem? — perguntei à garota encolhida à soleira da porta. Ela tinha o rosto

enterrado nas mãos, mas pude ver seu cabelo ruivo penteado para cima e seu vestido marrom

chocolate. Talvez a pobre garota tivesse brigado com o namorado.

A menina baixou as mãos. No início, só vi que ela tinha um vergão na bochecha,

consequência de um tapa forte, e um grande arranhão sangrando no braço, sem dúvida causado

pela unha de alguém. Só depois percebi que a garota era Piper.

Quase saí dali. Eu não precisava de mais um encontro ingrato com Piper. E, de todo

modo, aquela era minha noite especial com Michael.

Mas então senti um cheiro metálico forte e percebi que não podia sair dali, mesmo que eu

tentasse. O cheiro era do sangue de Piper que escorria do arranhão profundo no seu braço. Ele

vinha misturado ao cheiro perceptível do sangue de outra pessoa, talvez daquela com quem ela

tivesse brigado. Como eu pude notar e distinguir o cheiro do sangue de duas pessoas distintas?

Desejei mais do que tudo na vida tocar e experimentar o sangue, e não apenas para obter

informação do plano de Missy. Meu instinto me impelia a fazer isso. A promessa que eu e

Michael fizéramos de nunca provar o sangue de outra pessoa não importava mais.

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Enquanto eu pegava um lenço na bolsa, perguntei a ela:

— Quem fez isso com você?

— Não importa — ela respondeu soluçando.

—É claro que importa, Piper.

Com o lenço na mão, estiquei-me como se fosse limpar o machucado. Quando fiz isso,

toquei o sangue com a ponta do dedo. Então me afastei um pouco aparentemente para pegar

outro lenço na bolsa — e o lambi.

Quando desceu pela minha garganta, o sangue me queimou como uma bebida alcóolica, e

fiquei tonta imediatamente. E então tive duas visões diferentes tão violentas que quase caí dos

saltos; segurei-me na parede. Fora as visões que tivera de Michael, aquelas eram as mais fortes

que já tinha tido, e elas me mostraram tudo que eu queria saber. E mais, muito mais.

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Vinte e Quatro

Sem dizer uma palavra a Piper, livrei-me dos sapatos e carreguei-os comigo enquanto

corria pelo corredor. Mesmo que Piper merecesse, e não era o caso, eu não tinha um só segundo

para inventar uma desculpa a ela. Cada minuto era precioso; eu tinha de chegar ao ginásio e

evitar aquele, digamos, derramamento de sangue.

O corredor parecia ter dobrado de tamanho desde a hora em que eu o percorrera, poucos

minutos antes, como num sonho vago e frustrante. Quis voar pelo corredor, mas tive de confiar

em minhas pernas desengonçadas para me locomover. A caminhada lenta me deu bastante

tempo para pensar nas imagens malévolas que eu conseguira obter através do sangue. E me deu

muito tempo para pensar em Vanessa, a vítima de Missy e Piper.

Como não tínhamos pensado em Vanessa? Naquele verão, ela entrara em uma disputa

com seu grupo para tomar o trono de Missy. Desde então, Vanessa fora relegada à mesa de

almoço das ‚rejeitadas‛ sob a ordem de Missy. Michael e eu acreditáramos que Missy tivesse

considerado a humilhação no refeitório um castigo suficiente por seja o que for que Vanessa

tivesse feito à Missy. Mas não era.

A primeira visão de Missy me mostrou que, pouco antes de Vanessa ser coroada Rainha

do Outono, cada aluno do penúltimo e do último ano de Tillinghast receberia um e-mail no

celular com um convite para ser amigo de Vanessa no Facebook. O convite feito na hora certa

seria irresistível, e quase todos no baile presumivelmente o aceitariam, sendo logo depois,

transferidos para o perfil de Vanessa. Lá, por meio de uma conta falsa, Missy e Piper tinham

postado não apenas fotos falsas de Vanessa terrivelmente bêbada, mas — pior ainda —

supostos comentários de Vanessa que revelavam um monte de segredos horríveis dos

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estudantes de Tillinghast. Os segredos não eram bobagens comuns, mas coisas horríveis, como

traições, gravidezes escondidas e segredos familiares. O objetivo do plano era acabar com

Vanessa e, por meio das supostas revelações dos segredos íntimos de tanta gente, torná-la

odiada por todos. A única coisa positiva na visão de Piper fora o nojo que ela sentira ao

participar de tudo isso. Não que essa aversão a tivesse feito desistir.

Mas foi na segunda visão que pude ver uma maldade tão real que me senti mal. A visão

parecia vir de Missy, a dona do outro sangue. Pelos seus olhos, a vi abraçada fortemente a outro

rapaz. Como ela estava aninhada em seu ombro, não consegui ver o rosto do garoto, apenas o

tecido preto de boa qualidade do paletó de seu terno. Mas conseguia ouvir sua voz; em um

sussurro muito atraente, ele disse que ela estava linda e que merecia a coroa da Rainha do

Outono mais do que qualquer pessoa no mundo. Embora suas palavras parecessem um

lisonjeio inocente, de alguma forma elas encorajaram Missy a seguir seu plano e dar o suposto

banho de sangue em Vanessa no momento da coroação. Vi — em sua alma, aparentemente —

um desejo de maldade e destruição pior que no dos piores dos meus pesadelos.

Por fim, cheguei à porta do ginásio, abri-a e corri até Michael, que ainda estava apoiado

no mesmo lugar, na parede. Fiz força para falar; era impressionante como eu ficara cansada tão

depressa em correr, enquanto eu podia voar horas com facilidade.

— Eu sei o que Missy e Piper vão fazer.

Afobado diante do meu estado, Michael perguntou:

— Você está bem?

Pus as mãos de Michael de lado.

— Estou bem, Michael, não tenho muito tempo. Eles já anunciaram a Rainha do Outono?

— Não, Vanessa e Keith ainda estão esperando ali. Acho que a cerimônia de coroação vai

começar em alguns minutos.

Ainda ofegante, disse:

— Que bom, ainda tenho tempo para impedir que ela aconteça. Ou pelo menos desarmá-

la.

— Desarmá-la? Como uma bomba? — Vi seu olhar aterrorizado e percebi que ele tinha

pensado — por causa da escolha desastrosa da palavra ‚desarmar‛ que eu queria dizer algo

muito pior.

— Não se preocupe. Não é literalmente uma bomba, mas, ainda assim, é terrível.

Eu queria — não, precisava — salvar Vanessa e todos os outros garotos do virtual banho

de sangue que estava prestes a cair em cima deles. E só havia uma maneira de fazer isso com o

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tempo que eu ainda tinha disponível: me sacrificar, acusando-me de responsável pela criação

dos comentários no Facebook e dizer que eram falsos. Culpar outra pessoa pelo plano seria dar

chance para negarem — e para que acreditassem nas histórias terríveis contidas naquela página.

Eu não podia deixar isso acontecer.

Não tinha muito tempo para explicar minhas intenções para Michael antes que os

celulares começassem a tocar com convites de Vanessa para adicioná-los no Facebook. Coloquei

os sapatos novamente e peguei a escova de cabelo e o batom na bolsa. Enquanto Michael me

olhava sem poder acreditar, arrumei rapidamente o cabelo e retoquei a maquiagem. Como se eu

fosse uma fênix se transformando em cinzas, queria estar apresentável e até bonita — ao fazer

aquilo.

Dei um beijo em Michael e sussurrei:

— Sinto tanto por ter de arruinar nossa noite.

Virando em direção ao palco, ouvi-o me chamar:

— Ellie, o que está acontecendo?

Eu podia notar apreensão em sua voz, mas não conseguia olhar para ele. Sua preocupação

só iria me fazer hesitar, e eu não podia errar.

Endireitei os ombros e respirei fundo, depois andei até a frente do ginásio. Pelo canto do

olho vi Vanessa e Keith se preparando para subir ao palco. Tentei ignorá-las ao máximo, e subi

as escadas. Alguns garotos e pelo menos uma professora tentaram me desencorajar a subir, mas

sorri e continuei.

No palco, procurei o microfone. O presidente do conselho estudantil, nervoso, segurava-o

firmemente enquanto revia as fichas antes de fazer o discurso. Fiquei ao seu lado e disse com a

voz suave como nunca:

— Você pode me emprestar por um minuto?

Surpreso com o pedido, ele respondeu:

— Há, eu vou fazer um discurso.

Sorri agradavelmente e falei:

— Eu sei. Só preciso dar um recado rapidinho antes.

Claro concordou com um sorriso e me entregou o microfone.

— Muito obrigada, vou devolvê-lo em um segundo, prometo.

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Com o microfone na mão, encarei a multidão. Minha autoconfiança — em parte

verdadeira, em parte fingida — me abandonou enquanto eu examinava as quase duzentas

pessoas na pista de dança. Precisava ir adiante. Era levada por uma compulsão mais forte do

que qualquer coisa que eu já sentira, mais forte até que meu desejo por Michael.

Limpei a garganta e falei:

— Oi. Para quem não me conhece, sou Ellie Faneuil.

Mesmo tendo parado de dançar, os jovens continuavam a andar de um lado para o outro

e a conversar. Eles pareciam não se interessar nem se impressionar com a cerimônia de coroação

da Rainha e do Rei do Outono, assim como Michael. Dei um aceno tímido e bati no microfone.

Um ruído alto reverberou dos alto-falantes, e, de repente, todos prestavam atenção em mim.

— Desculpem por interromper a noite de vocês. Em poucos minutos, vocês receberão um

convite de Vanessa Moore, nossa Rainha do Outono, para se tornarem amigos dela no

Facebook. Se vocês aceitarem esse convite, serão direcionados para uma página que contém

várias fotos supostamente de Vanessa e alguns posts que ela teria escrito. Mas a página é falsa.

As fotos foram criadas com ajuda do Photoshop e os comentários são inventados. — Fiz uma

pausa; as palavras seguintes ficaram presas na minha garganta. — Eu inventei tudo.

Na multidão, vi o rosto de Ruth me encarando sem acreditar. A magnitude das minhas

ações me atingira, e minha voz vacilou.

— Queria pedir desculpas a Vanessa e a todo mundo citado no Facebook. Mesmo sabendo

que nenhum de vocês vai me perdoar um dia.

Antes de devolver o microfone ao presidente do conselho estudantil, que estava chocado,

olhei para a multidão. No centro estava Missy, terrivelmente furiosa porque seu plano fora

frustrado. Ao seu lado, estava um garoto loiro e bonito, que só podia ser seu namorado. O

garoto só podia ser o misterioso Zeke das visões.

Algo nele me parecia familiar, e não apenas das visões que eu tinha tido. No segundo em

que deixei o palco, vi-o um pouco mais de perto e percebi que ele era o rapaz do café. Ele notou

meu olhar e deu aquele seu sorriso estranho e desconcertante. Era como se ele esperasse que eu

estivesse naquele palco o tempo todo.

Derrubei o microfone e corri.

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Vinte e Cinco

Durante os dias seguintes, minha alma foi tomada pela escuridão.

Talvez fosse resultado da hostilidade que vi nos olhos e na mente dos meus colegas de

classe. Quando voltei após três dias de suspensão, com a qual fui ‚brindada‛ pela diretoria por

causa da brincadeira do Facebook, me tornei objeto do ódio de cada estudante da Tillighast

Upper High School. Meu armário foi vandalizado, minha lição de casa destruída antes que eu a

entregasse à professora e ainda cuspiram no meu rosto. Graças a Deus não toquei em ninguém

sem querer; a aversão que me dedicavam secara a ponta dos meus dedos. Mas eu não podia

dizer nada em minha defesa: eu dei a eles esse direito no palco do ginásio.

Talvez a escuridão viesse do mal que eu vira no coração de Missy, ou do seu sangue, que

eu provara por meio de Piper. Na minha visão, vi seu desejo por cometer atos tão indizíveis que

não me permiti revisitar as imagens. Era como me tornar um personagem de uma das pinturas

sobre o inferno de Hieronymus Bosch1.

Eu não sabia qual era a fonte da escuridão. Só sabia que a boa samaritana que antes

habitava em mim desaparecera na noite do baile.

Olhando para trás, eu não sabia por que havia feito o que fizera. Quando percebi que era

capaz de acabar com toda a dor que aqueles garotos sentiriam, apenas aceitei a

responsabilidade. Aquilo era parte do que eu era? Certamente não parecia o impulso de um

1 Jeroen van Aeken, cujo pseudônimo era Hieronymus Bosch, foi um pintor dos Países Baixos que

viveu entre os séculos XV e XVI. Uma de suas obras mais conhecidas é ‚O Jardim das Delícias‛, que se

encontra no Museu do Prado, em Madrid.

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vampiro. Mas de que tinha adiantado assumir a responsabilidade pela brincadeira? Se bem que

acusar Missy não teria adiantado nada.

De todo jeito, tudo aquilo tinha acabado. Preenchi o vazio que meu ato deixara em mim

com Michael.

Ruth não falava mais comigo desde o baile, e eu não sabia bem por quê. Como eu tinha

certeza de que ela devia saber que eu não criara o perfil no Facebook, só podia imaginar que ela

estava brava porque eu destruíra sua noite perfeita. E eu nem podia lhe dizer o motivo. Fosse

qual fosse a razão, seu abandono fez que eu me rendesse à escuridão com mais facilidade. Era

um laço a menos a me prender.

As únicas pessoas que não me odiavam totalmente eram Piper e Missy; ambas estavam

sem acreditar no que eu fizera e perplexas, mesmo não sendo mais amigas. Em vez de me

odiarem, elas pareciam ter medo de mim. E como minha necessidade de fazer o bem havia

sumido, eu certamente não sentia nenhuma vontade de encorajar o lado bom de Piper.

Somente Michael continuou do meu lado, embora parte dele desejasse que eu dissesse a

verdade sobre Missy. Só ele compreendia o que eu havia feito e por quê, e isso nos aproximou

ainda mais, tanto que não havia espaço para ninguém mais.

De dia, eu e Michael andávamos pelos corredores da escola de Tillinghast sem nos deixar

afetar por ninguém; eu me sentia poderosa de um jeito que nunca havia me sentido antes. À

noite, voávamos pelo céu como deuses. Como os vampiros que eu achava que éramos.

Rendemo-nos um ao outro. E ao sangue.

— Entre — pedi a Michael. Geralmente ele forçava a barra para que eu o seguisse, mas

agora era eu quem o desafiava a me seguir. A escuridão me deixou imprudente como nunca

antes. Agora eu me entregava — e só me preocupava com Michael, ninguém mais.

Ele não se mexeu.

— Entre — disse novamente.

— Tem certeza de que não tem ninguém aí dentro? — Michael não parecia convencido.

— Sim. Não sinto a presença de ninguém. — Desde que me rendera aos meus poderes,

minhas habilidades tinham aumentado. Eu podia olhar bem um prédio ou uma sala e descobrir

quantas pessoas estavam lá. Tinha certeza de que aquela casa charmosa e pequena construída

no século XIX estava vazia.

Sem esperar Michael concordar, abri a janela do terceiro andar e entrei voando. Quase

acertei uma pilha de caixas ao pousar com dificuldade no chão de madeira pouco firme. Outro

barulho se seguiu, e eu sabia que Michael vinha atrás. Meus olhos se adaptaram à escuridão, e

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vi um caminho iluminado que levava à escada do sótão. Peguei a mão de Michael e juntos

descemos a escada.

Saímos no Rose’s, o melhor restaurante da cidade, aquele para o qual todos os estudantes

arrastavam os pais nos finais de semana em que passavam com eles. Era nosso aniversário de

dois meses de namoro, e Michael queria comemorá-lo com um jantar especial, mesmo meus

pais tendo me deixado de castigo por tempo indeterminado. Ele tinha observado o restaurante

durante o dia para colocar seu plano em prática.

Após chegarmos ao térreo, Michael me levou a uma sala reservada onde havia uma mesa

posta para duas pessoas, assim como uma lareira, algumas poltronas espalhadas e um sofá

forrado de tecido de linho adamascado cor de marfim. Ele me fez sentar em uma das poltronas

e acendeu os candelabros de prata que estavam no centro da mesa e no consolo da lareira.

Depois desapareceu na cozinha.

Em poucos minutos, Michael voltou com uma bandeja enorme. Aromas deliciosos saiam

dos pratos cobertos com tampa de prata. Com vigor, desdobrou o guardanapo de linho e o

colocou sobre meu colo. Então pôs diante de mim um vaso decorado com rosas variadas, marca

do restaurante. Por fim, trouxe dois pratos para a mesa. Com um gesto largo, levantou as

tampas simultaneamente, revelando o prato encomendado por ele: lagosta acompanhada de

aspargos e risoto. Meu favorito.

Antes de se sentar, ajoelhou-se perto de mim e sussurrou em meu ouvido: ‚Feliz

anivers{rio de namoro‛. Passamos todo o jantar conversando e dando risadas — inclusive

risadas bobas como um casal normal. Mas durante todo o tempo sabíamos que estávamos

apenas interpretando um papel: Michael e eu éramos tudo, menos normais.

Após terminarmos as últimas mordidas do bolo de chocolate derretido, fiquei de pé e

estendi minha mão para Michael. Ele se levantou, e eu o guiei até o sofá virado para a lareira.

Nós não tínhamos ousado acender o fogo — a fumaça da chaminé poderia chamar a atenção —,

mas não precisávamos dele. Podíamos nos ver bem o suficiente à luz das velas; estávamos

acostumados a lugares bem mais escuros.

Deitei-me no sofá e fiz um sinal para ele se juntar a mim. Ele se abaixou e seu corpo se

misturou ao meu. Nossos lábios descansaram uns nos outros, e, por um longo momento,

respiramos o hálito um do outro. Por meio do seu hálito, vivenciei cada momento do seu dia,

como se eu estivesse estado o tempo todo com ele. Ele fez a mesma coisa comigo. Não

precisávamos de palavras.

Então o beijei. Primeiro, senti um prazer puro e simples. Meus lábios, seus lábios, nossos

lábios, nossas línguas. Naquele exato momento, começamos a desejar sangue, a mesma

necessidade que havíamos sentido no fatídico Baile de Outono. Mas não lutamos mais contra o

desejo. Rendemo-nos ao seu poder.

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Passei a língua sobre seus dentes no mesmo momento em que ele passou a sua sobre os

meus. Pequenas gotas de sangue pingaram em nossas línguas, e nosso sangue se misturou.

Intensas ondas de prazer percorreram nosso corpo. Então, como algo que queima lenta e

progressivamente, surgiram as imagens. Vi Michael e eu com grandes faixas de luz nas costas e

letras de luz no peito. Vi-nos voando por lugares e tempos que não pude identificar ou

compreender. Vi-nos em combate, ajudando os outros, lutando e salvando. Além de não

entender quem ou o que éramos, eu não compreendia muitas das imagens; a maioria parecia

vagamente futurística. Contudo, eu me divertia nelas.

As visões e o prazer diminuíram lentamente. Deitei-me nos braços de Michael, tranquila e

feliz; nunca falávamos sobre as imagens e poucas vezes conversávamos sobre o que éramos.

Mas eu sabia que, do momento em que eu acordava de manhã até o cair da noite, esperava por

aquele momento. Eu vivia isso — e por isso. E Michael também. Havíamos nos tornado viciados

no sangue um do outro.

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Vinte e Seis

Na noite seguinte, olhei o relógio. Os ponteiros pareciam congelados às onze e cinquenta.

Rezei e rezei para que eles andassem. Desejei desesperadamente que o ponteiro marcasse onze

e, depois, meia-noite. Só à meia-noite eu poderia me levantar da cama e voar para encontrar ele.

Eu achava que não ia conseguir segurar meu desejo — por ele e pelo seu sangue — nem um

minuto além da meia-noite.

Comecei a contagem regressiva assim que me levantei naquela manhã e passei o dia todo

assim. Quando me arrumei para ir à escola, quando me sentei para assistir à aula, quando andei

sozinha pelos corredores tentando ignorar os olhares de ódio, quando me sentei para jantar com

meus pais. Só pensava na noite que teria com Michael. Saber que minha doce libertação estava a

poucas horas de distância fez todo o tormento que eu vivia na escola parecer insuportável.

Os ponteiros do relógio finalmente se encontraram no doze. Meia-noite. Queria pular da

cama, mas, em vez disso, afastei as cobertas com calma e cuidado para não fazer barulho com os

lençóis. Depois que abaixei o pé para tocar o chão, coloquei um edredom debaixo das cobertas e

andei na ponta dos pés pelo assoalho conhecidamente barulhento. Calculei com cuidado cada

passo e cada movimento para fazer o mínimo possível de barulho; eu não queria correr o risco

de acordar meus pais.

Cheguei à janela fazendo pouquíssimo barulho e, então, parei para ver se ouvia algum

movimento dos meus pais. A casa estava silenciosa.

Aos pouquinhos consegui abrir a janela, mas, mesmo com todo o cuidado que eu tomara,

a vidraça da janela rangeu. Estremeci e me forcei a esperar um pouco antes de levantá-la até o

fim. Parte de mim tentava adivinhar o motivo por que eu me preocupava tanto em ser pega por

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meus pais. Na maioria das vezes, eu não me preocupava com isso, e essa era provavelmente

uma das razões pelas quais eu não contei a Michael a conversa entre nossas mães que eu

escutara. Meus poderes tinham aumentado tanto que meus pais não podiam me impedir de

encontrar Michael, não importava a tática que usassem. Sim, achava que uma boa parte da

velha Ellie permanecera para me fazer proteger meus pais. Mais especificamente, eu achava que

eu queria protegê-los de mim, da vampira, ou o que quer que fosse que eu me tornara.

Ajoelhei no consolo da janela e abri um espaço suficiente para passar por baixo. Tinha

pensado em fechar a janela quando eu estivesse no ar, no meio da noite, como se nada mais

depressa que uma rajada de vento fosse acordar meus pais. Passei a cabeça, os braços e o tronco

pela abertura e já ia passar as pernas quando senti um puxão forte no tornozelo. Por um

minuto, achei que tivesse prendido o tornozelo em um dos cobertores dobrados no consolo da

janela. Mexi um pouco a perna, tentando soltá-la do cobertor, mas o apertão ficou mais forte.

Congelei. O cobertor pareceu claramente uma mão.

Parte de mim quis se desfazer da mão e voar para fora, mas eu sabia que não poderia

fazer isso. Tinha de enfrentar ele ou ela. Ou pior, eu suspeitava, eles. Aterrorizada, deslizei o

corpo devagar pela abertura da janela. Demorei o máximo que pude para passar a cabeça.

Por fim, reuni coragem para me virar. Meus pais estavam sentados, com uma aparência

estranhamente vulnerável em seus pijamas.

Meu pai se sentara no consolo da janela — só podia ser sua mão a responsável por me

segurar —, enquanto minha mãe estava empoleirada em minha cama. Na verdade, bem em

cima do edredom que eu havia colocado debaixo das cobertas. Olhamo-nos em completo

silêncio. Eu não sabia o que dizer ou fazer, e eles também pareciam não saber.

— Aonde você pensa que está indo, Ellspeth? — perguntou meu pai, quebrando o

silêncio. Ele parecia magoado, pois usara aquele nome formal: Ellspeth.

—A lugar nenhum — sussurrei.

— Esse ‚lugar nenhum‛ significa encontrar Michael? — indagou minha mãe. Sua voz não

era suave, magoada como a do meu pai. Ela estava furiosa.

— Não sei do que você está falando. — Eu não conseguia convencer nem a mim mesma.

— Nós podemos ser crédulos demais, Ellspeth, mas não somos bobos — afirmou ela.

Eu não sabia o que dizer. Era óbvio que eu estava tentando fugir, embora eu esperasse

que eles não tivessem me visto voar. Eu não tinha ideia do que eles sabiam ou há quanto tempo

eles tinham conhecimento das minhas atividades noturnas. Como eu não tinha a menor

vontade de contar a eles os detalhes de que eles felizmente nada sabiam, fiquei quieta.

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— Ellspeth, deixe-me esclarecer para você o que sua mãe e eu achamos que você estava

fazendo. — O tom de voz do meu pai estava ficando igual ao da minha mãe — menos magoado

e mais irritado.

— Tudo bem — falei.

— Nós a deixamos de castigo por causa daquele incidente com o Facebook, que nos

deixou aturdidos. Mas você ainda quer ver Michael. Então vocês dois acharam que iriam fugir

de casa e se encontrar em algum lugar. Certo?

Pensei se eu deveria concordar com a história do meu pai. Afinal, sua teoria era quase

verdadeira, e seria menos penosa que a verdade toda. Além disso, sentia o desejo pelo sangue

de Michael pulsando. Se eu confessasse tudo, eles me deixariam sozinha e eu ainda poderia me

encontrar com Michael. Mesmo naquela hora, eu estava concentrada em Michael.

Enquanto pensava na resposta, minha mãe interveio:

— O Michael está te esperando no jardim?

— Não — eu praticamente gritei. Nós havíamos combinado de nos encontrar no centro da

cidade. Mas eu estava atrasada, e não podia jurar que ele não tinha vindo até em casa atrás de

mim. E eu não podia arriscar que minha mãe olhasse pela janela e o visse voando para me

procurar.

— Você admite que combinou de encontrá-lo em algum lugar? Só não foi aqui?

— Sim.

Meu pai concordou com a cabeça.

— Ellspeth, estamos muito decepcionados com você. Esse comportamento não tem nada a

ver com a filha que criamos e amamos. — Ele olhou para minha mãe, que balançou a cabeça

para encorajá-lo. — Não temos como deixar de pensar que Michael está influenciando suas

ações de alguma forma. Então, para sua própria segurança, resolvemos que você não vai mais

vê-lo.

— Não! — gritei.

— Sim, Ellspeth. — A voz do meu pai estava firme, diferente do costume. — Vamos fazer

o que for necessário para impedir que você o veja.

Eu não podia deixar que meus pais me separassem de Michael.

Não me importava mais em ser uma filha obediente — só me importava com Michael e

seu sangue. Percebi que eu ficava cada vez mais furiosa, como quando me excedi com Missy.

Não controlava mais minhas palavras e meus atos.

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Levantei-me do consolo da janela, com uma expressão que desafiava sua tentativa de me

prender.

— Vocês não podem me impedir de vê-lo.

Minha mãe se levantou e olhou direto para mim. Ela viu como eu me sentia.

— Ah, sim, podemos.

— Vocês não têm ideia do que sou capaz.

— Ellspeth, acho que seu pai e eu sabemos exatamente do que você é capaz.

Com as mãos no quadril, enfrentei sua expressão e sorri presunçosamente.

— Ah, é mesmo? Não acho que isso seja possível. — Não esperei por sua resposta; fui

direto para a janela. Eu tinha a intenção de voar para fora, para os braços de Michael. Não me

importava que eles vissem. Eu precisava chegar a Michael, e eu não os deixaria me deter.

Quando levantei a vidraça mais uma vez, ouvia-a dizer:

— Você acha que é uma vampira, não acha?

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Vinte e Sete

Virei-me e encarei minha mãe. Seu olhar transparecia tanta certeza e conhecimento, mas

não me julgava nem mostrava incredulidade. Ela sabia quem eu era, o que eu era. Eu queria

mais do que tudo perguntar o que ela sabia, mas as palavras não saiam dos meus lábios. Como

eu podia fazer uma pergunta tão inconcebível?

Agoniada e confusa, caí sentada no consolo da janela. Devia parecer desorientada e

atordoada, pois meus pais estenderam a mão para me segurar. Naquela atmosfera nociva, ouvi

meu pai dizer:

— Está tudo bem, querida, vamos lhe ajudar.

— Ajudar? — perguntei rindo. Como eles poderiam me ajudar? Eu não tinha um

problema na escola que pudesse ser resolvido com uma conversa encorajadora e um tapinha

nas costas. Não era um dilema que algumas poucas sessões com um psiquiatra resolveriam.

Não, meus pais não podiam me ajudar. Ninguém podia, nem mesmo Michael.

Senti o braço do meu pai deslizar pelo meu ombro e me puxar forte.

— Será que lhe ajudaria saber que você não é uma vampira? Ajudaria saber que os

vampiros, como você os imagina, não existem?

Não respondia nada, eu não conseguia. Toda aquela situação e a conversa estavam cada

vez mais surreais. Eu estava mesmo sentada em meu quarto à meia-noite conversando com

meus pais sobre por que eu não era uma vampira? Ou estava tendo um daqueles terríveis

pesadelos hiper-reais em que sabemos que estamos dormindo, mas não conseguimos acordar?

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Meu pai permaneceu em um silêncio ensurdecedor.

— Vou lhe contar uma história, Ellie. É da Bíblia — do ‚Gênesis‛, para ser mais exato —,

então precisamos ouvi-la com um pé atrás. Mas essa história em particular tem um pouco de

verdade, uma parte bem relevante de verdade. Então quero que você a ouça com atenção, muita

atenção.

Cresci acostumada às citações aleatórias do meu pai — e até as aguentava —, mas,

naquela hora, não tinha ânimo para aquilo. Mesmo porque escolher uma história do Gênesis era

estranho, pois meu pai dizia amar as mensagens e relatos da Bíblia, mas não suportava a

maneira como as religiões organizadas as utilizavam.

— Você disse que quer me ‚ajudar‛, pai. Como isso me ajudaria?

— Apenas ouça, Ellie. — Era uma ordem. Como ele geralmente fazia pedidos de maneira

mais educada, concordei com a cabeça.

— No inicio, por falta de palavra melhor, Deus mandou alguns dos Seus intermediários

espirituais — os chamamos anjos — à humanidade. Ele queria que esses anjos protegessem os

recém-formados seres humanos, que os ensinasse sobre Seu poder divino e os guiasse ao Céu

quando eles morressem. Em vez disso, os seres humanos conseguiram encantar anjos. Os anjos

se enamoraram pela pureza e pela inocência dos seres humanos e, é claro, por sua beleza fisica.

Os homens foram feitos à imagem de Deus, afinal de contas. Mas, mais do que tudo, os anjos

ficaram fascinados pela sede de conhecimento que os homens tinham sobre seu mundo e sua

origem. Porque, veja bem, os anjos sabiam as respostas.

— Então, sucumbindo ao próprio orgulho de saber os segredos do mundo, os anjos

passaram a ensinar aos seres humanos tudo o que sabiam sobre a Terra — as constelações, os

sinais da Terra, o sol, a lua, o conhecimento das nuvens, o funcionamento dos metais, o uso da

moeda e a arte da guerra. Eles inclusive se casaram com homens e mulheres e geraram uma

raça única de seres metade humanos, metade anjos. Esses seres se chamavam Nephilim. De

longe, Deus assistia aos atos desses anjos. E ficou bravo. Os anjos haviam se apropriado de Seus

segredos e corrompido Sua criação preferida, os seres humanos. Eles haviam inclusive ousado

se apaixonar por Sua criação e criar uma nova raça. E o que podia ser mais audaciosamente

parecido com um ato de Deus e desafiador que isso? Criar só cabia a Ele. Deus decidiu que só

havia uma maneira de desfazer o mal causado pelos anjos. Decidiu varrer os seres humanos

corrompidos e a criação híbrida, deixando apenas um seleto grupo de seres humanos puro.

Então, Ele instigou o dilúvio.

Meu pai disse essa última palavra como se ela merecesse um maiúsculo e como se eu

soubesse seu significado. Mas eu não sabia.

Então perguntei:

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— O dilúvio?

— O dilúvio de Noé — respondeu irritado, como se o dilúvio tivesse sido noticiado na

TV. Então, ele retomou a história. — De qualquer forma, mesmo permitindo que esses anjos

rebeldes vivessem, Deus não queria deixá-los sem punição. Ele os expulsou do Céu para sempre

e os mandou permanecer na Terra. Para tornar sua nova existência na Terra um tormento, Ele

os manteve imortais e conservou suas habilidades etéreas para que não se esquecessem do que

haviam perdido. Deus só não permitiu que eles continuassem a procriar com os seres humanos,

é claro.

Muitos desses anjos ficaram furiosos com as ordens de Deus, e decidiram reagir. Eles

aceitaram seu novo status de ‘caídos’ e fizeram esforços concentrados para transformar os

animais de criação de Deus — os seres humanos — remanescentes longe de Sua luz e fazê-los

refletir a sua. Esses anjos caídos ensinaram os seres humanos a adorar os encantos terrenos que

eles podiam controlar e manipular. Em tempo, eles começaram a pensar que os ideais desses

anjos — e mesmo os próprios anjos — eram divinos. A humanidade passou a não temer nem

adorar verdadeiramente Deus; eles começaram a adorar os ídolos criados pelos anjos — o

comércio, a tecnologia, o consumismo, a guerra e, é claro, eles mesmos. Por sua vez, os anjos

caídos capturaram — sugaram, se você preferir — a alma dos seres humanos. Mas alguns

poucos anjos perceberam o terrível engano que estavam cometendo. Decidiram tentar e se

esforçar para voltar a receber a graça de Deus, vivendo em silêncio entre os seres humanos e

redirecionando-os à luz divina. Esse pequeno grupo avaliou o mal que os outros anjos haviam

feito à Terra e à humanidade e criaram um plano de redenção. Alguns anjos decidiram cuidar

da corrupção do setor financeiro, outros trataram do crescimento do materialismo, e assim por

diante — e podemos ver os frutos desse trabalho atualmente nas notícias. Além disso, cada anjo

desse grupo, o grupo bom, tentou usar seus talentos naturais para guiar a humanidade até Deus

no momento mais difícil — a hora de sua morte. Então, usando seus dons — a percepção

poderosa da psiquê do indivíduo adquirida por meio do toque ou do sangue, seus poderes

intensificados de persuasão e sua capacidade de voar —, eles conseguem chegar ao máximo de

seres humanos possível.

Fiquei paralisada. Meu pai continuou a falar sobre os anjos, mas sua voz pareceu distante.

Só conseguia ouvir uma repetição constante da descrição das habilidades dos anjos. Eles tinham

as mesmas habilidade que eu. Era isso que eu era? Um tipo de anjo? Por alguma razão, aquilo

me pareceu mais estranho que ser uma vampira. Mais insolente.

— Dons? — interrompi. Eu precisava entender melhor quem o que eu era.

— No início, todos esses anjos receberam certas habilidades para ajudá-los em seu

trabalho de guiar as almas até a luz de Deus. Eles foram abençoados com o dom de voar para

poderem chegar rapidamente aos seres humanos moribundos, para ajudá-los antes que fosse

tarde demais. Os anjos conseguiam penetrar na mente e no coração dos seres humanos para

assim poderem entender como ajudá-los a despojar das coisas mundanas e escolher um plano

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superior. Eles conseguiam isso tocando o indivíduo ou o que ainda é mais poderoso —

experimentando seu sangue, sua força vital. Os anjos tinham um forte poder de persuasão, para

influenciar os seres humanos em suas decisões finais. Eles deviam usar seus dons para aquilo a

que estavam destinados para guiar as almas até Deus.

Pensei em uma coisa: e se os anjos não usassem seus poderes para atingir os objetivos a

que estavam destinados, para o bem? E se começassem a usá-los para propósitos egoístas, como

eu fizera recentemente com Michael? Isso poderia explicar por que eu me sentia tão sombria

ultimamente? Por que eu havia perdido a compulsão para ajudar os outros? Todas essas

perguntas só valiam se partíssemos do pressuposto que eu era um anjo, é claro. Perguntei a

meu pai:

—E se os anjos usassem seus dons para beneficio próprio?

Meu pai parou antes de responder. Acho que minha pergunta o deixou meio perturbado.

— Foi exatamente o que eles fizeram no começo, quando foram enviados para tomar

conta da humanidade. Afinal, até os anjos têm livre-arbítrio, a capacidade de optar pela

escuridão em vez da luz. Por isso foram banidos. Quando foram expulsos e se tornaram caídos,

submeteram seus poderes completamente ao serviço de seus desejos. Então, eles foram

dominados pelo mal — o desejo de servir a si mesmo, em vez de a algo maior. E foi muito — é

muito — difícil ir contra isso, é quase um vício.

Antes de continuar, ele estremeceu. Então se recompôs e falou:

— Através dos séculos, as pessoas de todas as culturas, todas as sociedades começaram a

tomar conhecimento desses anjos — especialmente dos anjos caídos que buscavam a salvação.

Lembre que o desejo de salvação desses anjos fazia-os tentar levar a alma dos seres humanos até

Deus no momento da morte. As pessoas às vezes os viam nesse momento e atribuíam a morte a

eles. As pessoas começaram a ter medo desses anjos. E como culpá-las? Às vezes, as pessoas

veem os anjos se aproximarem dos moribundos e sussurrar em seus ouvidos. Outras vezes,

veem as criaturas tocar seus entes queridos como se seu toque os levasse ao último suspiro. E,

em raras ocasiões, assistem à troca de sangue entre os moribundos e os anjos. É claro, as pessoas

creem que esses seres causam a morte — em vez de facilitar a jornada pós-morte de seus entes

queridos. As pessoas criaram lendas em torno desses seres. Os mitos diferem de cultura para

cultura, de época para época. Mas o cerne continua o mesmo e fez nascer a lenda. A lenda do

vampiro.

‚E você pode ver como essa lenda não é tão absurda assim para alguns anjos caídos que

continuaram a servir a si mesmos e rejeitaram a luz. Eles usaram seus dons para sugar a alma

humana e criar uma civilização em que eles são adorados, não Deus.‛

Meu pai fez uma pausa, e, no silêncio, não pude deixar de pensar que a última parte de

sua história parecia muito com o pensamento do professor McMaster. Desde quando meu pai,

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que era biólogo, se transformara em um estudioso de vampiros? Ou em um estudioso da Bíblia?

Olhei para ele e vi que, durante seu longo relato, seu lindo rosto havia ficado endurecido. Ele de

repente adquirira um ar tão triste e envelhecido que eu não podia desafiá-lo.

Ele esticou o braço para fazer um carinho no meu rosto.

— Então, minha filha amada, você não pode ser uma vampira, pois vampiros não existem.

Apenas anjos caídos. Bons e maus.

— Como você sabe tudo isso? — fiz, por fim, uma das muitas perguntas que guardava.

Antes de responder, ele olhou para minha mãe, que permaneceu parada e em silêncio

durante todo o monólogo. Ela balançou a cabeça uma vez, e meu pai se voltou para mim.

— Porque os seres humanos uma vez já acusaram a mim e à sua mãe de vampiros.

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Vinte e Oito

Sem chances. Meus pais eram perfeitamente normais, totalmente terrestres. Eles não

podiam ser anjos, ou vampiros, ou qualquer coisa do outro mundo. A simples ideia de minha

mãe e meu pai serem seres de outro mundo era ridícula.

Na verdade, tudo isso de repente me pareceu risível. Era demais para mim, e eu podia

sentir que estava chegando à beira da histeria. As lágrimas desceram pelo meu rosto. Meu

estômago doeu de tanto que eu ri. Quando percebi que meus pais estavam sérios, a graça

diminuiu um pouco. Então olhei para eles, melancólicos, respeitáveis e quietos, de camisola,

pijama e roupão de flanela, e a ideia de vê-los voando e adivinhando pensamentos me pareceu

tão histericamente ridícula que comecei a rir de novo.

Por fim, me acalmei o suficiente para perguntar:

— Vocês dois? Anjos?

— Sim — disse meu pai calmamente, quase se desculpando.

— Então somos como uma família de anjos? Vocês são anjos do tipo bonzinhos ou caídos?

— falei rindo.

— Somos anjos caídos. Mas agora estamos tentando nos redimir — respondeu meu pai

solenemente à minha pergunta pouco séria.

— Por favor, vai. — Não sei por que eu estava com tanta dificuldade em aceitar suas

explicações, já que eu havia pensado que era uma vampira por algum tempo. Com exceção de

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que eles eram meus pais — e pais devem ser normais e respeitáveis. Especialmente os meus,

que eram acadêmicos chatos.

Mas quanto mais eu pensava nisso, mais ridículo me parecia. Meus pais eram

descomunalmente bonitos; as pessoas sempre diziam isso. Eles se comportavam com uma graça

e calma incomuns, exceto quando reagiram ao meu comportamento recente, é claro.

Dedicavam-se a ensinar os outros a proteger o meio ambiente sem a necessidade de deixar de

alimentar o povo. Eram os únicos que eu podia tocar sem ter nenhuma visão. E eram meus pais,

aqueles que me criaram. Se eu era algum tipo de ser sobrenatural, por que não eles?

Ultimamente, coisas estranhas estavam acontecendo.

Esse pensamento me deixou mais realista — ainda que eu não estivesse pronta para

aceitar completamente aquela ideia.

Minha mãe lançou um olhar para meu pai, e ele saiu do quarto. Ela e eu nos sentamos em

um silêncio incômodo enquanto escutávamos o barulho dos chinelos do meu pai subindo e

descendo as escadas do sótão. Ele voltou com uma pequena caixa de madeira repleta de

desenhos feitos em metal, parecidos com as gravuras de estanho impressas em troncos de

madeira que os imigrantes irlandeses trouxeram em navios alguns séculos antes.

Minha mãe aproximou-se, de camisola, e tirou uma corrente de ouro comprida formada

por elos abertos e circulares. Na corrente havia um pingente liso, pesado, em formato oval,

também de ouro. Quando criança, eu adorava brincar com ele, passando-o pela corrente até

minha mãe se cansar da minha brincadeira e me repreender para que eu tomasse cuidado. Com

o passar dos anos, vi que a corrente era o único sinal de vaidade da minha mãe, o único enfeite

em seu guarda-roupa simples e funcional. Mas eu estava errada.

Ela girou o pingente e ele abriu inesperadamente. O movimento me fez pular; nunca

soube que o pingente era um relicário. Então ela tirou uma pequena chave de dentro e a

entregou ao meu pai.

Ele inseriu a chave na fechadura da caixa e a abriu ao girá-la habilmente. Devagar e com

cuidado, passou a mão nos objetos dentro da caixa, retirou um envelope amarelado e o colocou

em minhas mãos.

O envelope estava fechado. Com o dedo, vi que havia uma aba solta, e olhei para meu pai

aguardando sua confirmação para abri-lo. Ele concordou. Cautelosamente, soltei a aba da parte

de trás e olhei dentro do envelope, onde havia uma pilha de algo que pareciam fotografias.

Tirei-as do envelope. Eram mesmo fotografias, todas antigas. Algumas tinham sido

tiradas um pouco mais recentemente — eram fotos em preto e branco, datadas da década de

1940, talvez — e outras eram tão antigas que tinham sido impressas em tom sépia. No início,

folheei-as rapidamente e achei que eram cartões-postais, porque retratavam vários lugares

exóticos. Vi fotos das pirâmides de Giza, no século XIX, da Muralha da China, no início dos

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anos 1900, e até do prédio do Empire State em construção, com um casal atraente em primeiro

plano.

Quando examinei as fotografias mais de perto, elas me pareceram muito amadoras e

informais para serem cartões-postais. A luz era ruim e estavam fora de foco e descentralizadas.

Quando mais olhava para elas, mais elas me pareciam retratos de casais diferentes passando

férias. Por que meus pais estavam me mostrando aquilo? Ainda mais naquele momento.

Como se tivesse lido meus pensamentos, meu pai disse suavemente:

— Olhe de perto.

Olhei as fotos, torcendo para que fizessem algum sentido. Então, percebi que o casal das

fotos era sempre o mesmo. Usavam penteados e roupas diferentes, mas tinham sempre a

mesma aparência par cerca de cento e cinquenta anos. E só então percebi que os conhecidos

eram meus pais.

— Ah, então essa é sua prova de imortalidade? — perguntei. Meu ceticismo havia

voltado.

— Você acha que elas são falsas? — quis saber minha mãe. Ela parecia perplexa e um

tanto magoada.

— Qualquer um pode usar o Photoshop, mãe.

— Você acha que preparamos tudo isso para lhe inventar uma mentira bem bolada sobre

sermos anjos? — Agora ela não estava mais perplexa, mas furiosa. — E como você explica seus

voos?

Quando ela colocou a questão desse modo... O mais absurdo era que meus pais eram as

pessoas mais práticas e realistas que eu conhecia. Ou que, de todo modo, eu achava que

conhecia. Examinei as fotografias novamente. Lá, entre as fotos de lugares longínquos, havia

uma pequena foto de meus pais com roupas de época se olhando. A expressão alegre no rosto

deles me chamou a atenção, e olhei mais de perto. Eles estavam sentados diante da igreja branca

no gramado verde de Tillinghast, um cenário que me era bastante familiar. Com a exceção de a

igreja ser a única construção aparente; não havia nenhuma loja ou casa construídas ainda.

Segurei a foto no alto.

— Aqui é Tillinghast?

Meu pai se aproximou da foto e sorriu diante da memória evocada.

— Sim, é Tillinghast no final do século XIX. — Ele estendeu a foto para minha mãe. —

Lembra, Hannah?

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Ela sorriu para ele.

— Sim, éramos tão felizes aqui, apesar de todos os problemas.

— Que problemas? — indaguei.

O sorriso desapareceu de seu rosto.

— Como muitas cidades da Nova Inglaterra nos séculos XIII e XIX, Tillinghast sofreu

muitos surtos de tuberculose e devastação. Alguns de nós, os que tentávamos achar um

caminho que levasse à redenção, viemos para cá no início para levar os que morriam a Deus.

Infelizmente, esses esforços foram testemunhados por alguns moradores de Tillinghast, que nos

confundiram com vampiros, como seu pai contou. — O sorriso voltou ao seu rosto. Mesmo

assim, adoramos aqui. Por isso voltamos quando você chegou.

Encarei meus pais; parecia a primeira vez que os via. De repente, sem aviso prévio,

acreditei neles.

— Vocês dois são anjos. Anjos caídos, para ser exata. — Não era uma pergunta, mas uma

afirmação. — Do tipo bom.

— Sim — eles responderam em uníssono.

— Então vocês podem voar e ler o pensamento das pessoas? Por meio do toque ou do

sangue?

— Podíamos — respondeu minha mãe, sozinha dessa vez.

— Como assim? Achei que você tinha dito que os anjos podiam fazer todas essas coisas.

— Eles podem. Mas não podemos mais fazer essas coisas. A maior parte de nós —

afirmou minha mãe.

— Por que não?

— Essa parte não é importante. Escolhemos um caminho diferente.

— Que caminho?

— Parte do nosso caminho é ensinar às pessoas maneiras de cuidar da Terra para salvá-la.

Balancei a cabeça.

— Qual a outra parte do seu ‚caminho‛?

— Tomar conta de você.

— De mim?

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— Sim, de você.

O que havia de tão especial em mim que era necessário dois anjos me vigiassem? De

repente, ficou claro para mim. Os anjos não conseguiam procriar, mas meus pais obviamente

haviam ‚procriado‛.

— É porque vocês conseguiram ter uma filha, mesmo Deus — ou quem quer que seja —

tendo impedido que os anjos concebessem!

— Algo assim, querida. Sempre nos sentimos abençoados por ter de cuidar de você —

disse meu pai.

— Então sou um anjo caído? Como vocês dois? — Só em dizer essas palavras em voz alta,

associando-me a elas, me senti mais leve. Eu estava me livrando daquele segredo pesado e

obscuro que eu guardava — e vivia — nos últimos dois meses.

— Não exatamente, Ellie. Você é, de alguma forma, diferente do resto de nós, tanto

daqueles que se mantiveram na escuridão quanto dos que escolheram a luz.

— Mas eu consigo fazer todas as coisas que vocês descreveram — voar, ler o pensamento

das outras pessoas.

— Nós sabemos disso. Agora.

—O que eu sou?

Minha mãe deu um passo.

— Não podemos lhe contar ainda. Não é hora. Mas iremos lhe contar. Por favor, confie em

nós.

Meu pai estendeu a mão e tocou em meu rosto.

— Talvez seja bom descansar um pouco, querida. Podemos conversar mais amanhã e

responder algumas das suas perguntas. No jantar.

Dormir? Como dormir diante daquela revelação? Só de pensar nisso, fiquei enlouquecida.

Eles queriam que eu dormisse depois de conhecer um segredo que eles guardaram de mim

durante dezesseis anos. Um segredo enorme. Eu precisava de respostas sobre minha natureza,

meus poderes e minha imortalidade — pelo amor de Deus. E eu precisava disso naquele

instante.

— Nem vem. Não tem chance de vocês jogarem tudo isso em cima de mim e depois

esperarem que eu vá dormir. — Eu estava nervosa com meus pais como nunca estivera antes.

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— Sabemos que você está brava, querida. É perfeitamente compreensível, considerando as

circunstâncias. Mas há tempo o suficiente para suas perguntas depois que você tiver dormido

— explicou meu pai. Havia em sua voz um cantar curioso.

Eu tinha começado a discordar quando de repente dormir me pareceu a coisa mais lógica

do mundo a fazer. Meu pai me pegou pela mão e me levou à cabeceira da cama. Minha mãe

puxou as cobertas e fez um sinal para que eu entrasse debaixo do lençol. Eu não tinha escolha a

não ser segui-los como uma criança obediente. Mesmo que uma vozinha em minha cabeça

dissesse que, se eles tinham alguns desses poderes angelicais de persuasão, talvez os estivessem

usando contra mim.

Aconchegando-me debaixo das cobertas, olhei para meus pais. Minha mãe me lançou um

sorriso que só podia ser descrito como beatifico, como uma virgem. Ou talvez eu estivesse

vendo anjos e santos em todos os lugares.

As últimas palavras de que me lembro de ouvir antes de mergulhar no sono profundo

vieram de minha mãe. Ela falou:

— Ellspeth, trate de esconder em sua mente tudo o que você descobriu hoje de Michael.

O último pensamento que me lembro de ter tido antes de mergulhar no sono profundo é

que demorou um tempo curiosamente longo para eles falarem sobre Michael. Especialmente

porque ele e eu éramos iguais.

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Vinte e Nove

Michael estava me esperando na escola na manhã seguinte.

— Onde você estava ontem? Fiquei tão preocupado com você — disse antes mesmo de eu

abrir a porta do meu armário.

Olhei rapidamente o corredor para me certificar de que ninguém estava ouvindo.

Felizmente, todos pareciam apressados como eu; estava muito atrasada para a aula da senhorita

Taunton.

— Meus pais me pegaram — sussurrei.

— Pegaram você? — Inexplicavelmente, ele pareceu confuso.

— Me pegaram tentando fugir.

Uma expressão horrorizada dominou seu rosto.

— Eles não viram você...

Eu sabia que ele ia dizer ‚voando‛, então o interrompi:

— Não, eles não me viram fazendo isso.

Aquilo era teoricamente verdade — não literalmente. Meus pais sabiam que eu voava,

mas não tinham me visto voando na noite anterior. Por que eu contaria tudo a ele?

Fiquei pensando por que eu estava em dúvida. Tinha acordado confusa por causa do que

meus pais tinham me contado e brava por eles terem guardado aqueles segredos de mim.

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Porém, ao mesmo tempo, eu me sentia leve, como quando eles me contaram tudo, por pensar

que eu poderia fazer parte de algo melhor e maior que eu mesma. Aquela sensação de

esperança permaneceu comigo enquanto eu me arrumara logo cedo e depois, quando minha

mãe me levara para a escola — mesmo quando ela evitou responder minhas perguntas

insistentes, garantindo que conversaríamos mais tarde, inclusive quando comecei a ficar brava

com ela por não me dar explicações. Durante toda a manhã, mal pude conter minha agitação

para contar a Michael o que eu havia descoberto sobre minha identidade, sobre nossa

identidade, apesar de ter prometido aos meus pais não dizer nada.

Quando eu tive a oportunidade de fazer isso, vacilei. Havia algo diferente, mesmo

desagradável no comportamento de Michael — algo que eu não conseguia descrever bem —

que me fez hesitar. E eu não hesitava diante dele havia bastante tempo.

— Graças a Deus — falou ele.

— Graças a Deus — disse sorrindo de leve; a frase agora tinha um novo significado para

mim.

Ele me pegou pela mão e perguntou:

— Você acha que vai conseguir escapar depois da aula hoje? Sei que é difícil, porque você

está de castigo e tal, mas aconteceu uma coisa ontem à noite. Quero lhe contar o que foi.

— Não sei, Michael. O castigo não é meu único problema. Depois que meus pais me

pegaram tentando escapar ontem à noite, eles me proibiram de te ver.

Ele puxou a mão.

— De me ver? Por quê?

— Eles acharam que eu estava indo encontrar você. Eu não confessei.

— Que bom — falou ele, sarcasticamente. — Agora a gente só vai poder se ver quando

tiver gente por perto, durante o horário das aulas, das oito e meia às três e meia da tarde, e

depois da meia-noite. Isso se seus pais não acamparem no seu quarto.

— Isso se eles não acamparem no meu quarto — repeti com tristeza. Embora eu tivesse

quase certeza já que eu sabia que eles sabiam de tudo — de que era isso mesmo que eles iam

fazer.

Michael pegou minha mão de novo e me puxou para longe da multidão de alunos que

corria para as classes. Ele me levou a um corredor escuro que dava no auditório vazio.

Empurrando-me para um canto onde havia uma porta dupla, sussurrou em meu pescoço:

— Ellie, não vou conseguir ficar longe de você à noite. Uma noite já foi bem difícil. Diga

que você vai me encontrar na Ransom Beach depois da escola.

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Durante toda a manhã eu havia me sentido leve, como se a nuvem negra em que eu vivia

tivesse se dissipado. Mas, naquele momento, com Michael tão perto de mim, senti o desejo por

sangue de novo, com a escuridão inebriante. E soube que eu encontraria um jeito de vê-lo

depois da aula.

Consegui chegar à aula da senhorita Taunton pouco antes do sinal terminar de tocar.

Zigue-zagueando pelo corredor lotado, cheguei à minha carteira no fundo da classe e tentei

ignorar os olhares de ódio dos meus colegas. Na verdade, tentei com tanto empenho ignorá-los

que tropecei no pé de um aluno que o estendera exatamente com esse propósito. Fingi não

ouvir as risadinhas de prazer entre elas, a da senhorita Taunton quando levantei do chão e

limpei a calça.

Sentada na minha carteira, procurei o trabalho sobre Edith Wharton em minha bolsa. A

luz indicando que havia uma mensagem de texto em meu celular estava piscando, o que era

raro. Com as mãos ainda na bolsa, cliquei no icone de mensagem. Para minha surpresa, era de

Ruth. ‚Cê t{ bem?‛, ela perguntava.

Aquela mensagem era o primeiro contato que ela travava comigo desde a noite do baile.

Mandei uma mensagem de volta imediatamente ‚Tô bem. Acostumada. Obrigada por

perguntar.‛

‚Quer se encontrar no café depois da aula?‛, respondeu ela.

Corri para responder. ‚Sim!‛ Até o dia anterior, se Ruth tivesse me convidado para tomar

um café, eu não teria ligado. Mas agora que um raio de luz aparecera entre as nuvens, fiquei

feliz em reestabelecer contato com ela. Além disso, eu tinha outro motivo para ficar animada:

tinha uma desculpa para encontrar Michael.

Negociei com minha mãe uma pequena pausa — bem pequena em meu castigo, uma

negociação que incluiu passar o celular para Ruth para ela confirmar que iríamos rapidamente

ao café e que depois a Ruth me levaria diretamente para casa. No carro, a caminho do Daily

Grind, não falamos sobre nosso afastamento. Em vez disso, conversamos sobre as aulas e o

monte de lição que tínhamos pela frente. Esperei até nos sentarmos lado a lado em nossas

poltronas prediletas, com o café fumegante nas mãos.

— Ruth, estou muito triste por ter arruinado o seu baile e o de Jamie.

— Tudo bem, Ellie. Fiquei brava no início. Quero dizer, eu sabia que você não tinha criado

aquela página no Facebook. Sabia que Piper e Missy deviam ter feito isso. Mas por que você

correu até o palco e assumiu ter feito aquela coisa horrível? Pareceu tão sem sentido e... nada

típico de você. E, é claro, acabou totalmente com nossa noite. Mas não estou mais brava com

você. Não foi por isso que eu fiquei brava por um tempo.

Eu não queria ter de fazer a próxima pergunta lógica, mas não tive escolha:

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— Por que você ficou brava?

— Porque você mudou.

— O que você quer dizer com isso? — De novo, eu precisava fazer essa pergunta.

— Desde a noite do baile, você se tornou distante e fria. Andava como se estivesse num

outro mundo. Eu entendi que você precisou de uma espécie de barreira para lidar com a raiva

dos outros alunos, mas por que comigo? Especialmente comigo, que tentei muito me aproximar

de você.

Fiquei perplexa. Eu sabia que não tinha me importado muito com os outros, apenas com

Michael, mas honestamente não lembrava nenhum esforço especial de Ruth para derrubar

minha barreira.

Desculpe, Ruth, não sei do que você está falando.

— Você realmente não se lembra que eu tentei falar com você depois da aula de inglês?

Ou de andar do seu lado quando íamos para a reunião da escola? — Ela estava desconcertada.

Balancei a cabeça; não me lembrava de nada disso. Então, pela primeira vez desde toda

aquela confusão, toquei a mão de Ruth. Rapidamente, vi as últimas semanas através dos olhos

dela. Presenciei minha rejeição diante de suas investidas, senti a tristeza e a solidão que ela

experimentara após cada tentativa de aproximação frustrada e vi suas lágrimas derramadas à

noite. Eu podia jurar que havia mais, mas Ruth tirou a mão com rapidez.

Comecei a chorar.

— Ruth, desculpe-me. Eu...

Ela me interrompeu com um abraço.

— Ellie, sei que você está passando por algo difícil, algo que eu obviamente não consigo

entender. Vamos conversar sobre isso quando você se acalmar, tá bom?

Apertando-me com mais força, ela disse:

— Posso contar tudo sobre mim e Jamie em vez disso?

Passamos a meia hora seguinte conversando como se nada de mal tivesse acontecido entre

a gente. Ouvi tudo sobre seu começo de namoro, e adorei ver a felicidade em seu rosto. Isso me

fez desejar ser normal, que eu e Michael pudéssemos sair com minha melhor amiga e seu novo

namorado como adolescentes comuns.

Ruth olhou o relógio e deu um pulo. Ela tinha combinado de encontrar Jamie na

biblioteca, mas precisava me levar para casa antes.

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— Ruth, preciso lhe pedir um favor, mas não tenho coragem depois de tudo o que te fiz

passar.

— Ellie, você ainda é minha amiga mais próxima. Vou ficar feliz em ajudar. Você sabe

disso.

— Para isso você vai ter de desobedecer ao pedido que minha mãe te fez de me levar para

casa depois do café.

— Tudo bem — disse ela, hesitando um pouco.

— Você pode me deixar na Ransom Beach quando sairmos? E promete não dizer nada a

meus pais se o assunto surgir algum dia?

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Trinta

Ransom Beach pareceu ainda mais isolada e menos convidativa do que eu me lembrava.

A descida do penhasco escarpado, que dava no oceano de ondas brancas, parecia mais

vertiginosa, e não havia nenhuma alma viva naquele lugar no final do outono. De dentro do

carro, Ruth e eu podíamos ver que a praia estava mais fria e que ventava mais do que na cidade.

Era possível inclusive ouvir o som das gaivotas com as janelas fechadas, e elas pareciam

solitárias; seu canto não era o canto normal e cordial que anunciava o verão. Aquele cenário

deixou Ruth incomodada.

— O que vocês vão fazer aqui? — quis saber ela, meio incrédula.

— Queremos andar pela praia — menti. Sentia-me um pouco mal em mentir para ela, mas

estar com Michael era mais importante que não dizer toda a verdade.

— Com esse tempo? — Ruth não estava acreditando.

Antes de responder, abaixei a cabeça. Achava que eu não conseguiria contar outra mentira

a ela enquanto a encarava.

— É o único lugar onde podemos realmente ficar sozinhos para conversar.

Eu podia dizer que Ruth não tinha acreditado em mim, mas ela não iria me desafiar mais.

Ainda assim, não me deixou sair do carro até Michael aparecer. Passamos alguns minutos

jogando conversa fora enquanto ela olhava para o relógio do carro — eu podia jurar que ela não

queria deixar Jamie esperando e eu examinava a estrada vazia à procura do carro de Michael.

Quando ele finalmente chegou, nós duas demos um suspiro de alívio.

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Ela relutou em ir embora.

— Tem certeza de que vai ficar bem, Ellie?

Sorri com confiança.

— É claro, Ruth.

— Aqui não me parece um lugar muito seguro... — falou Ruth.

— Estarei com o Michael.

— Tudo bem. Mas não tenha medo de me ligar se precisar de mim. — Ela fez uma pausa

e, então, acrescentou com um sorriso: — E, por favor, vá para casa daqui a uma hora, conforme

prometemos à sua mãe. Não quero que ela fique brava comigo. Ela pode ficar assustada.

Dei-lhe um abraço — agradecendo pela carona e por ela ter voltado a ser minha amiga —

e saí do carro. Imediatamente, fiquei grata por Ruth não ter ido embora e me deixado sozinha

lá. O ar salgado era revigorante e forte, praticamente um tapa frio e úmido no rosto. Se eu não

confiasse tanto na minha capacidade de voar, talvez não tivesse saído da estrada e pegado

bravamente o caminho do penhasco perto do carro de Michael.

Ruth ainda estava esperando, então corri até o carro dele. Dei um adeus, abri a porta do

carro e entrei. Imediatamente, ele me puxou e me beijou por cima do câmbio do carro. Eu me

sentia culpada por mentir para meus pais e por usar Ruth para me ajudar, mas seus lábios e

suas mãos afastaram todo o sentimento de culpa. Eu precisava ficar com ele.

— Então, aonde vamos? Preciso estar em casa em uma hora.

— Na verdade, achei que a gente pudesse ficar lá embaixo, na enseada. — Ele sorriu. —

Foi lá um dos nossos primeiros encontros.

Ri.

— Você está dizendo que isso é um encontro agora?

Ele riu também.

— Você se anima? Ou está muito frio para você?

Ele estava me desafiando. Depois de todas aquelas semanas zombando e pressionando

Michael, ele estava virando o jogo.

— Depende de como vamos chegar até lá embaixo — respondi de maneira sedutora.

— Acho que as condições são ideais para um voo no meio da tarde. — Nunca havíamos

voado durante o dia antes. Era muito arriscado.

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Mas se havia um clima e um lugar seguros para correr o risco, o final do outono em

Ransom Beach era perfeito.

— Vamos — eu disse.

Olhei para ver se Ruth tinha mesmo ido embora e saímos do carro em direção à beira do

penhasco. Por um momento, lembrei a primeira experiência aterrorizadora de ver Michael pular

— sem saber que ele sabia voar — daquele mesmo lugar. Fiquei um pouco tonta diante da

intensidade daquela lembrança e parei para me recompor.

— Você não ficou com medo de altura de ontem para hoje, ficou? — Aprumei os ombros e

olhei para a queda de mais de dezoito metros que tinha pela frente.

— É claro que não.

Só para provar que eu estava certa, peguei a mão dele e mergulhei. Voar durante o dia era

diferente. Todas aquelas formas, sons e aromas que em geral adivinhávamos agora eram

claramente discerníveis. Todos os perigos antes escondidos agora estavam visíveis. A luz do dia

deixava a experiência ao mesmo tempo mais excitante e mais assustadora. Quando aterrissamos

na areia, eu ainda queria mais.

Mas Michael recusou o convite para outro voo. Ele queria ficar na enseada. A enorme

pedra do penhasco nos protegia do frio e a temperatura ficou surpreendentemente agradável;

os braços de Michael deixavam o clima ainda mais quente. Então ficamos um longo tempo em

nosso abrigo, abraçados e olhando o mar bravo.

— Eu queria, na verdade, preciso te contar uma coisa sobre ontem à noite — sussurrou ele

em meu ouvido.

Michael havia tocado no assunto antes. Mas, no caos do dia, eu não tinha dado muita

bola. Especialmente porque eu tinha minha própria novidade e havia decidido dividi-la com

ele.

— Eu também preciso te contar uma coisa — disse.

— Acho que eu devo contar primeiro — insistiu.

— Tudo bem.

De repente me senti incomodada e enjoada, como se ele fosse confessar que tinha saído

com outra garota na noite anterior.

Michael respirou fundo e abriu os lábios para falar quando — por cima dos ombros de

Michael — vi outra pessoa caminhando em nossa direção. Um homem. Ele usava calça jeans e

um casaco, mas estava descalço, com os sapatos pendurados casualmente no ombro, como se

estivesse passeando na praia em um lindo dia de verão. O que ele fazia ali?

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Coloquei os dedos sobre os lábios de Michael e falei:

— Espere. Tem alguém vindo ali.

Ele virou o pescoço para ver quem era. Virando-se para me olhar, ele me segurou com

mais força — como se tivesse medo que eu saísse voando — e disse:

— Tudo bem, Ellie, ele veio para nos encontrar. Era sobre ele que eu queria te contar.

Mesmo registrando as palavras de Michael em minha mente e sabendo que ele queria,

com elas, me acalmar, eu não conseguia parar de olhar para o homem com cautela conforme ele

se aproximava e era possível distinguir melhor seu rosto. O cabelo loiro, os olhos azuis, a beleza

dos traços e o rosto bem talhado eu sabia que já o tinha visto.

Era o rapaz que víramos no café semanas antes, aquele em quem trombei. Aquele de

quem Ruth não conseguira tirar os olhos. O rapaz que ficara ao lado de Missy no Baile de

Outono, o que vi escondido nas visões. Era Zeke.

O que diabos ele fazia ali? Viera nos encontrar?

O rapaz notou meu olhar e deu aquele sorriso assustador e desconcertante. E fiquei com

muito, mas muito medo.

O desejo de fugir se tornou difícil de controlar. Senti minhas escápulas aprumarem e se

abrirem, exatamente como fizeram antes do voo, mas agora o movimento era involuntário.

Michael percebeu isso, pois me segurou com mais força ainda. Tentei me livrar dele enfiando as

unhas em seu braço.

— Michael, o que está acontecendo?

— Ellie, o nome dele é Ezekiel. E ele vai nos contar o que somos.

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Trinta e Um

— Quem é você? — perguntei para o tal ‘Ezekiel‛ enquanto tentava me livrar de Michael.

Por que Michael estava me segurando com tanta força, me fazendo ouvir aquele homem?

— Ellspeth, deixe-me me apresentar. Meu nome é Ezekiel. É um prazer finalmente

conhecer você, mas peço desculpas pelas circunstâncias — disse Zeke — ou Ezekiel —, como se

estivéssemos sendo apresentados em um chá no hotel mais chique de Bar Harbor, e não numa

praia deserta em uma noite fria enquanto meu namorado me segurava. Durante todo o tempo

ele manteve aquele sorriso estranho estampado no rosto.

— Cadê sua amiga Missy? — perguntei enquanto tentava me soltar de Michael.

— Desculpe-me pela minha associação infeliz com sua colega de classe Missy. Entrei

nesse relacionamento com a esperança de que assim fosse mais fácil conhecer você e Michael.

Infelizmente, não foi o caso. Mas continuei com ela porque vi que ela pode servir a outros

propósitos. — Ele usava uma linguagem formal, quase antiga.

De repente entendi porque Missy se tornara tão simpática comigo no começo do ano

escolar. Era uma tentativa que Ezekiel fizera de se aproximar de nós através dela. E julguei

saber o que ele quis dizer com ‚outros propósitos‛ a que Missy serviria.

— Você colocou Missy naquela história do Facebook? — perguntei, sabendo que já o tinha

visto em minhas visões. Não que ele soubesse disso, é claro.

— Você mostrou ser uma espécie de salvadora naquele incidente, Ellspeth. E você me

mostrou bastante sobre você durante o processo.

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— Você não respondeu minha pergunta. Você orquestrou toda aquela coisa doentia?

Ele suspirou, como se estivesse decepcionado com as perguntas.

— Não, Ellspeth, não forcei Missy a perpetuar aquela história do Facebook. Missy não

agiu contra sua natureza e não agiu sob meu comando. Admito que estimulei sua natureza e

seu plano sobre o Facebook, já que o incidente me proporcionou uma visão importante... Ele me

permitiu ver como você se comportaria quando tivesse de enfrentar uma atitude realmente

insensível. E vi que, enquanto você estava se sacrificando para proteger a vítima em potencial

da brincadeira de Missy, não estava imune à atração das trevas que emanava daquilo. —

Ezekiel sorriu, evidentemente satisfeito com sua obra remota e com minha reação ao seu teste.

— Mas você deve saber que eu não fui uma marionete de Missy, Ellspeth. Deve ter visto que ela

agiu por escolha própria — em suas visões.

Meu sangue congelou como gelo em minhas veias.

— Como você sabe sobre minhas visões?

— Sei o que você é e o que pode fazer. Por isso, presumo que você tenha visto como o

plano se desenrolou, Ellspeth.

Michael, por fim, falou:

— Ellie, ouça o que Ezekiel acabou de dizer. Ele sabe o que somos e o que podemos fazer.

Ele pode nos ajudar a entender quem somos.

Por que Michael estava agindo com tanta deferência em relação a Ezekiel? Mesmo que

Michael acreditasse que Ezekiel tinha as respostas, isso não era desculpa para ele me segurar

com tanta força.

Ezekiel interveio, com a voz ainda calma.

— Está tudo bem, Michael. Acho que você deve soltar Ellspeth.

Como se tivesse obedecendo a um comando, Michael afrouxou o braço. Enfrentei Ezekiel

sozinha, completamente exposta a seu ar temível.

Ezekiel falou com Michael, mas me encarou diretamente.

— A reação de Ellspeth é perfeitamente compreensível. Ela não sabe quem sou eu. Ela não

sabe nem mesmo quem ela é. Ainda. Estou muito ansioso para compartilhar com ela sua

singularidade...

— Não preciso que você me diga quem eu sou. — Era minha vez de intervir. Graças aos

meus pais, eu sabia um pouco sobre minha identidade. Um pouco.

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— Ellie, por favor — implorou Michael para que eu ouvisse e reverenciasse Ezekiel. Senti

como se não conhecesse Michael. Ele parecia quase drogado diante da simples presença de

Ezekiel.

Virei-me para ele. Drogado ou não, como ele ousava fazer aquilo?

— Por que eu deveria? Você me arrastou até Ramson Beach com falsas alegações — mais

uma vez. Não tenho motivos para acreditar em você ou nele. — Estava grata por não ter

dividido meus segredos de família com ele.

Michael começou a balbuciar outra objeção, mas Ezekiel interrompeu.

— Michael, é claro que Ellspeth está desconfiada. Quando ela entender tudo o que você

entendeu, vai sem dúvida nenhuma renunciar suas suspeitas. Ela vai compreender — como

você — que eu só estou aqui para ajudá-los.

Mesmo que meus instintos me mandassem voar, eu sabia que ia ficar ali. Queria ouvir as

explicações de Ezekiel sobre minha ‚singularidade‛ para compar{-las com a história que meus

pais haviam me contado. Então enfrentei com firmeza seu olhar devorador e esperei. Eu obteria

as informações dele e voltaria a meus pais — com a nova informação em mãos. E eles me

ajudariam a entender tudo aquilo; eles me contariam os detalhes que não contaram na noite

anterior. De qualquer maneira, esse era meu plano.

Ezekiel aceitou minha aquiescência momentânea com um sorriso satisfeito de si mesmo.

Era um sorriso de quem estava acostumado a conseguir o que pedia.

Ele começou:

— Na noite passada, fui até Michael. Sozinho. Ele estava assustado e cheio de perguntas,

então as respondi. Como um pai responde às súplicas do filho. Porque, de várias maneiras,

Michael é meu filho. Como você, Ellspeth. Você e Michael vieram da mesma fonte que eu.

Vocês voam. Vocês podem ler e influenciar o pensamento dos outros por meio do toque e do

sangue. Vocês sabem que somos diferentes dos outros. Melhores. Mas o que somos nós?

Michael me contou que você resistiu ao rótulo de vampiro, embora todas as características

parecessem se encaixar. Como você estava certa em rejeitar o apelido. O nome ‘vampiro’ foi

dado aos seres como nós pelos seres humanos — motivados pela ignorância. Você pode ver, é

claro, e onde surgiu a lenda do vampiro. O voo, o sangue, a total incompreensão dos nossos

poderes deram asas à história fantasiosa dos vampiros. Mas você e Michael não são vampiros.

Nem eu sou. Ellspeth, somos seres selecionados, nascidos para liderar a humanidade. E vou

mostrar a você e a Michael o caminho para isso.

Ezekiel fez uma pausa dramática. Achei que ele esperava que eu ficasse extática ou

entusiasmada com seu discurso. Talvez essas fossem as reações que ele realmente despertava.

Mas, na verdade, aquilo parecia a história que meus pais haviam me contado na noite anterior,

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com exceção da parte sobre liderar a humanidade. Mas aquele detalhe estava começando a me

dar uma boa noção de quem era Ezekiel. Seu discurso soava cada vez mais com o de um anjo

caído impenitente. Eu estava cada vez mais assustada.

Enquanto Ezekiel esperava minha resposta, olhou em meus olhos.

— Seus pais lhe contaram uma história diferente sobre sua origem — falou, por fim. Não

era uma pergunta, era uma afirmação.

— Como você soube? — perguntei.

— Certamente não foi porque eles me contaram. Faz anos que não tenho contato com seus

pais, e eles não têm ideia de que estou em Tillinghast. Sei que eles lhe contaram uma história

diferente sobre suas origens porque eu tenho séculos — não, milênios — de experiência em ler

rostos. Posso ver que você não está surpresa com o que estou dividindo com você. Seus pais são

os únicos que poderiam ter lhe contado parte dessa história.

— Os pais dela? — Michael indagou como se tivesse despertado do transe.

Ezekiel se virou para ele:

— Ellspeth não lhe contou?

— Não — disse Michael devagar.

— Eu tinha planejado lhe contar, Michael. Antes de você despejar tudo isso em mim —

contei, me defendendo. Eu não sabia por que sentia que precisava me justificar a Michael depois

do golpe que ele me dera.

— Cuidado com o que Hananel e Daniel lhe contaram, Ellspeth — alertou Ezekiel. —

Afinal, eles não são seus pais de verdade.

Hananel. Era por esse nome que a mãe de Michael chamara minha mãe.

— É claro que eles são meus pais verdadeiros.

— De fato, eles a criaram desde que você nasceu. Olhando para você, posso dizer que eles

desempenharam seu papel maravilhosamente bem. Mas Hananel e Daniel não conceberam

você, não a carregaram nem lhe deram à luz.

— Você está mentindo!

Ele suspirou, como se lhe doesse ter de me dar aquelas notícias angustiantes.

— Quem dera eu estivesse mentindo, minha querida Ellspeth. Mas, veja bem, eu estava

aqui no dia do seu nascimento. E nem Hananel nem Daniel são seus pais.

Eu precisava me certificar de que ele estava dizendo a verdade.

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Mesmo que eu temesse chegar perto de Ezekiel, precisava tocá-lo. Precisava ver dentro de

sua mente.

Pensei se ele permitiria que eu fizesse isso. Então lembrei a descrição dos poderes de

persuasão dos anjos caídos que meu pai fizera e percebi que Ezekiel provavelmente estava

tentando controlar minha mente. Como parecia que ele tinha feito com Michael. Ezekiel

continuava com aquela voz repetitiva, certo de que estava me influenciando.

Era a hora certa. Agi como se ele estivesse me influenciando e me aproximei dele.

— Sempre houve inconsistências nas histórias que eles me contavam sobre meu

nascimento, discrepâncias que nunca fizeram sentido — disse eu.

— Não estou surpreso.

— Eles não são meus pais? É verdade? — Como se aquelas palavras tivessem me

convencido, deixei que meus olhos se enchessem de lágrimas verdadeiras. Lágrimas que eu

estava segurando por causa da traição de Michael.

— É verdade, querida.

— Então não posso acreditar no que eles me contaram sobre mim?

— Não, Ellspeth. Sinto muito em dizer que você não pode acreditar nas representações de

Hananel e Daniel.

— Mas você vai ser um pai para a gente? Michael e eu não vamos ficar sozinhos? Você vai

nos mostrar o caminho?

Ele sorriu; essa era a reação que ele queria ver.

— Sem dúvida, Ellspeth.

Sorri de volta para ele e me aproximei ainda mais do seu cabelo louro, dos seus olhos

azuis e seu perfume diferente, parecido com incenso.

— Estou tão contente — sussurrei.

— Eu também, minha querida — sussurrou ele de volta.

E então toquei nele.

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Trinta e Dois

O ódio que testemunhei no coração e na mente dos meus colegas de classe depois do

incidente do Facebook era brincadeira de criança em comparação às trevas que habitavam o

espírito de Ezekiel. Mesmo a malícia que eu vira na mente de Missy não podia ser comparada

àquilo. Através dos seus olhos, vi uma cena atrás da outra de dominação e degradação; ele

inventara maneiras engenhosas e doentias de atrair a atenção — e depois as almas — dos seres

humanos. Era implacável em estender seus tentáculos nefastos em direção à vida das pessoas —

nascimentos, casamentos, doenças, mortes, educação, negócios, governos, tecnologia, guerra,

dinheiro, nada lhe escapava. Ezekiel não iria descansar até dominar o pensamento e os desejos

dos seres humanos.

Ele desfrutava cada conquista, não importava se pequena ou grande. Cada vitória

afastava outra alma de qualquer traço de bondade. Ezekiel era um anjo caído e, de acordo com a

história bíblica, estava punindo Deus por bani-lo. E nunca iria parar.

Ele era as trevas que haviam invadido minha alma e meu coração depois do Baile de

Outono. Imaginei se ele também tinha contaminado o sangue de Missy que eu havia

experimentado. Será que ela tinha provado o sangue de Ezekiel e agora o carregava em suas

veias?

Achei que não poderia mais aguentar a maldade dos pensamentos de Ezekiel ou, ainda

pior, de suas ações. Ele havia desempenhado e planejado inúmeros atos de traição, decepção,

sedução, inclusive de assassinato — alguns com as próprias mãos, outros usando as mãos dos

outros. Eu não poderia sobreviver àquela violência mais um segundo sequer. E então a visão

acabou. Ezekiel percebera o que eu estava fazendo e fechou sua mente.

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Abri os olhos e olhei diretamente nos seus. Naquele momento< ele entendeu que eu o

tinha desvendado — como ninguém de fato havia feito antes. Por que Michael não conseguia

ver a maldade de Ezekiel? Ezekiel havia corrompido Michael antes que ele tivesse a

oportunidade de vê-lo? Ezekiel já havia me assustado, mas agora ele me apavorava.

Mas a visão me dera um momento de lucidez e liberdade, e voei. Nunca havia voado tão

rápido nem tão alto. Com um impulso para cima, passei pelas pedras da enseada acolhedora,

pela face pontiaguda da pedra atravessada pela trilha e pelo precipício que formava o topo do

penhasco. Precisava desesperadamente chegar à rocha que dava vista para Ransom Beach antes

de Ezekiel ou de Michael, de outro modo, a posição vantajosa em que se encontrava o topo do

penhasco de Ransom Beach lhes indicaria a direção precisa da rota quando eu a tivesse

descoberto.

Desci no topo do penhasco. Por um momento, só consegui ver o céu cinza, as rochas

acinzentadas e o asfalto negro da estrada< nenhum sinal do cabelo branco acinzentado de

Michael ou de Ezkiel. Respirei aliviada.

Cedo demais. Senti a terra tremer sob meus pés e, de repente, Ezekiel apareceu.

— Ellspeth — falou com seu terrível sorriso no rosto; era como se eu pudesse ver seu

esqueleto por debaixo da pele. — Aonde você pensa que está indo, querida?

Quando Ezekiel caminhou até mim, percebi que ele não estava sozinho. Michael estava à

sua direita.

Eles estavam me cercando. Devagar, mas intencionalmente. Quando recuei, vi o quanto

eles eram parecidos. Fiquei sem saber o que pensar por um minuto, mas depois retomei o foco.

Eu tinha poucas opções: voltar para a beira do penhasco onde eu tinha acabado de pousar ou

correr em direção à estrada deserta. Escolhi a estrada e a pequena chance de um carro passar

por lá. Não que um carro e um motorista pudessem impedir os dois.

— Ellspeth, você não tem para onde ir. Ninguém mais poderá compreender e gostar do

que você é — disse Ezekiel.

— Nós somos sua verdadeira família — ecoou Michael. O que estava acontecendo com

ele?

— Você pertence a nós, Ellspeth. Nasceu para dominar, comigo e Michael ao seu lado. —

Ezekiel continuava, com a voz suave e calma, mesmo após eu ter lido sua mente. Podia apostar

que ela atraía muitas pessoas, mas até agora não estava funcionando. Não que eu fosse dizer

isso; eu odiaria ver que tipo de tática terrível ele tentaria em vez dessa.

— Por favor, Ellie. Você sabe que eu e você devemos ficar juntos — lançou Michael. Como

ele pôde ter se juntado àquele monstro? Ele não vira o que eu vi?

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Continuei recuando enquanto eles continuavam a avançar lentamente em minha direção.

Eu não sabia como evitá-los ou para onde ir. Infelizmente, não conseguia evitar os pensamentos

agradáveis sobre minha casa. Eu queria muito estar com meus pais, e Ezekiel certamente lera o

desejo em meu rosto.

— Você está pensando em voltar para Hananel e Daniel, Ellspeth? Eles não podem mais

protegê-la. E sua presença só vai lhes fazer mal.

— O que você quer dizer com isso? — Parei.

— Eles não lhe contaram o segredinho deles quando lhe contaram o seu?

Balancei a cabeça, angustiada pensando no que ele ia dizer.

— Não? Hananel e Daniel abdicaram da imortalidade quando concordaram em criar você

como filha deles.

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Trinta e Três

— Ruth, você me disse que eu podia ligar se precisasse de você. Eu preciso muito, muito

de você.

Ruth fora muito legal em não perguntar o que tinha acontecido nem por que eu precisava

de sua ajuda. Só perguntou onde eu estava e disse que me buscaria em vinte minutos.

Vinte minutos? Isso parecia uma eternidade; eu sabia como Ezekiel e Michael podiam ser

rápidos, se quisessem. Rezei para que Ezekiel realmente tivesse sido sincero quando disse, antes

que eu decolasse:

— Deixe-a ir, Michael. Ela voltará para nós quando estiver pronta. — Vi que a água da

chuva formara poças sob meus pés quando coloquei o celular na bolsa. Limpei o rosto e o

cabelo o melhor que pude com uma camiseta seca que havia na bolsa e olhei para a The Maine

Event, a lojinha de conveniência de gosto duvidoso que havia ali. No verão, quando os turistas

enchiam as praias e até os moradores da região visitavam a costa, aquele lugar ficava cheio de

gente. Agora, com apenas um vendedor, não trazia exatamente o consolo de um lugar cheio.

Mas eu não tinha muitas opções enquanto dava uma volta pelo trecho vazio da estrada,

principalmente porque começava a chover forte.

Tentei aparentar ocupada e andei pela loja. Girei os carrosséis de cartões-postais e

examinei prateleiras com conchas e compotas da região. O vendedor me direcionou um olhar

curioso, então torci para parecer mais adequada e interessada do que eu realmente estava.

Minha mente zunia diante dos horrores que eu vira através dos olhos de Ezekiel e da

dificuldade que eu tivera para fugir.

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Depois de exatos vinte minutos, ouvi a campainha da porta da frente tocar. Meu

estômago embrulhou. Eu não sabia se era Ruth, que vinha me salvar, ou meus perseguidores.

Graças a Deus era Ruth.

Ela entrou correndo.

— Você está bem? Sua aparência está péssima.

— Estou bem. De verdade.

—O Michael fez alguma coisa?

Eu sabia que ela ia achar isso; afinal, tinha hesitado em me deixar com Michael na Ransom

Beach havia menos de duas horas. Fiquei pensando em um motivo para ter pedido que ela me

buscasse de repente e decidi continuar com aquela suposição.

— Nós apenas brigamos. E fiquei com medo de que ele não me levasse direto para casa.

— Entendi. — Ela me abraçou e me levou em direção à porta.

— Vamos lá, eu te levo para casa.

Minha casa. Desejei poder ir para casa, mas não podia. Eu teria de recorrer à ajuda

involuntária de Ruth mais uma vez — para proteger a mim e a meus pais. E a ela também, nesse

caso.

Ficamos em silêncio o caminho todo até eu perguntar sobre Jamie. Seu rosto se iluminou

enquanto ela descrevia como ele era inteligente e a ajudava na lição de casa. Incentivei que ela

falasse até chegarmos perto do gramado verde de Tillinghast. Quando chegamos à igreja caiada

da cidade, pedi que parasse o carro um minuto.

— Ruth, vou lhe pedir um favor enorme. O maior que já lhe pedi na vida. E não vou

poder lhe contar por quê.

— Tá bom — disse ela, hesitando.

— Você pode, por favor, me levar à estação de trem? E não contar nada a meus pais ou ao

Michael? Ou a qualquer um que faça perguntas?

Ela parou um instante, considerando com muito cuidado se diria a frase seguinte.

— Ellie, eu sei.

— Sabe o quê?

Fiquei abismada e sem palavras.

Ruth olhou para as próprias mãos, quase envergonhada com o que disse e sabia.

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— Eu lhe falei antes que não entendia totalmente o negócio do Facebook. Aquilo não tinha

nada a ver com você, e você agiu de modo tão estranho depois de tudo. Então comecei a xeretar

aqui e ali. Ouvi você dizendo a Michael que se encontraria mais tarde com ele naquela noite —

mesmo estando de castigo. Isso me fez pensar se vocês estavam fugindo e se Michael era o

responsável por você ter mudado tanto. Então comecei a te seguir — à noite. Foi aí que vi vocês

voando pela primeira vez.

— Você nos viu? — Não podia acreditar no que estava ouvindo.

— Sim. — Ela sorriu sem querer. — Foi impressionante assistir àquilo.

Balancei a cabeça sem acreditar.

— Ellie, essa ida à estação de trem tem alguma coisa a ver com você saber voar?

Ela fez outra pausa. Era esquisito para mim ter de ver minha melhor amiga há sete anos

tão incomodada diante de mim.

— O que você é, Ellie?

Eu não queria deixá-la, mas sabia que tinha pouco tempo.

— Então você vai me levar à estação de trem?

— Você precisa mesmo ir? Não sei o que vou fazer sem você, Ellie. Especialmente agora

que você voltou a ser o que era. A verdadeira Ellie, quero dizer.

Meus olhos se encheram de lágrimas diante da ideia de deixar meus pobres pais para trás.

E Ruth. E Tillinghast. Mas eu sabia que não podia mais ficar lá, Ezekiel me avisara.

— Eu preciso ir. Para o bem de todo mudo — disse, sabendo que Ruth não podia entender

— ou acreditar — no perigo que eu faria Tillinghast correr se não saísse.

— Leve-me com você, Ellie — pediu Ruth, de repente. Eu podia jurar que ela precisou de

coragem para fazer aquele pedido.

— Você não ia querer fazer parte disso. Eu juro.

— Ellie, eu não sei o que você é, mas sei que você é algo mais que um ser humano. — Ela

também começou a chorar. — Eu vi de perto o que significa ser um ser humano. Com a morte

da minha mãe. E não quero terminar daquele jeito. Eu preferia ser como você.

Ver Ruth chorar me fez chorar ainda mais.

— Ah, Ruth, mesmo que eu quisesse, não poderia lhe transformar no que quer que eu

seja. E, de todo jeito, não acho que minhas diferenças me tornem imune à morte.

Abraçamo-nos por um longo tempo. Ruth se afastou primeiro e ligou o carro.

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— Acho que tenho de levá-la à estação de trem.

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Trinta e Quatro

Entrei pelos fundos da sonolenta estação de trem de Tillinghast me sentindo mais solitária

do que nunca. O motivo não era o vazio completo da estação, com exceção da solitária

vendedora de passagens, nem minha indecisão quanto ao meu destino. Era o fato de eu estar

realmente por conta própria.

Não sabia quando ou como — minha solidão iria terminar. Não poderia ver nem mesmo

ligar para meus pais até ter certeza de que não lhes causaria nenhum mal. Quanto a Michael,

bem, ele havia escolhido Ezekiel em vez de mim; ele tinha ido embora. E não havia mais

ninguém.

Quando subi as escadas que levavam ao painel de destinos, uma lágrima rolou pelo meu

rosto. Por um segundo, fiquei feliz por estar sozinha. Eu não queria que ninguém visse minha

fraqueza. Precisava ser forte para enfrentar os dias seguintes.

Limpei as lágrimas e me concentrei no painel. Examinei a lista de trens que estavam

marcados para deixar a estação de manhã, mas imediatamente rejeitei os que iam partir muito

tarde. Não podia arriscar passar a noite na estação. Eu não duvidava que Ezekiel poderia ir até

mim se quisesse, mas eu não queria que meus pais me encontrassem e sofressem a fúria de

Ezekiel.

Então percebi que havia um último trem que sairia da estação à noite, pouco depois das

oito horas. Chamado de Downeaster, ele pararia em Tillinghast em quinze minutos e chegaria a

Boston em cerca de três horas — Boston. Eu já sabia meu destino; não poderia ser mais perfeito

se eu tivesse planejado.

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Esperei que o chefe da estação saísse de seu posto para comprar meu bilhete na máquina

de venda, com dinheiro vivo. Comprar o bilhete na máquina automática me pareceu mais

inteligente do que comprá-lo com o chefe da estação. Eu ganharia algum tempo de vantagem

caso Ezekiel e Michael mudassem de ideia juntos e resolvessem me seguir em vez de me

esperar, conforme Ezekiel havia instruído inicialmente.

Com o bilhete em mãos, fui ao banheiro feminino esperar até que eu escutasse o trem

parando na estação. Não queria que o chefe da estação tivesse tempo suficiente para me

identificar. Caminhei com o passo inquieto, tentando ouvir o trem e fazendo algumas pesquisas

importantes na internet antes de jogar meu celular fora. Eu também não queria que ninguém

me rastreasse pelo telefone.

Quando lancei as informações essenciais para fazer a pesquisa, ouvi o barulho do trem. E

então joguei o celular no lixo.

Saí pela porta do banheiro feminino e não vi o chefe da estação em nenhum lugar. Corri

do banheiro para o trem, sentei rapidamente no meu lugar e enfiei a cara em um livro que

achara na bolsa. Não queria que o chefe da estação de Tillinghast, caso entrasse no trem,

percebesse que eu havia acabado de embarcar.

Nem respirei direto até o trem deixar a estação de Tillinghast. Só depois examinei

furtivamente meus companheiros de viagem. Na parte de trás do vagão, havia dois executivos

conversando sobre uma reunião que teriam na manhã seguinte com um possível cliente. Nos

assentos ocupados próximos ao meu estavam alguns garotos que pareciam estar voltando para

a faculdade. Fiquei olhando para eles. O moletom, as mochilas e outras parafernálias traziam o

logo de Harvard, e pensei que os estudantes poderiam vir a ser úteis.

A porta que separava os vagões se abriu de repente, e dei um pulo. Era apenas o

condutor, pronto para receber meu bilhete. Fingi procurá-lo na bolsa, assim eu não precisava

olhar diretamente para ele, e o entreguei. Ele perfurou o bilhete e em seguida colocou-o na

fenda acima da minha cabeça. Após terminar o trabalho, deixou o vagão.

Eu tinha três horas antes de chegar a Boston. Três horas para preparar um plano de ação.

Não tinha planejado minha partida com antecedência, portanto, só tinha as coisas que trazia

comigo. Quando viajávamos, meus pais sempre insistiam que eu levasse todos os itens de

primeira necessidade comigo para o caso de me separar deles — duzentos dólares, carteira de

identidade, um nécessaire com itens básicos, cartões de crédito e um cartão telefônico que eu

agora evitava usar, a não ser em caso de extrema necessidade. Eu tinha adotado o hábito de

carregar essas coisas sempre comigo. Ainda bem. Isso me deixou preparada para um dia como

aquele. Talvez essa tenha sido sempre a intenção deles; talvez soubessem que um dia como esse

iria chegar.

Ao pensar nos meus pais — e eu sempre os consideraria meus pais, sendo meus pais

biológicos ou não —, meus olhos ficaram cheios de lágrimas de novo. Eu não estava mais brava

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com eles por terem me guardado segredos; entendi que só queriam me proteger. Eles inclusive

tinham abrido mão da imortalidade para cuidar de mim. E mesmo que Ezekiel não fosse

confiável, eu acreditava no que ele dissera sobre meus pais terem sacrificado a própria

imortalidade; eu via como eles tinham envelhecido nos últimos dezesseis anos e vi, nas fotos,

como haviam se mantido jovens por mais de cem anos.

Mas, se eles não eram meus pais, quem seriam? Meus verdadeiros pais ainda estariam

vivos? Por que Hananel e Daniel resolveram me criar? Com quem eles haviam combinado isso?

Eles deviam estar muito preocupados comigo naquele momento.

Fiquei pensando se chamariam a polícia ou me procurariam por conta própria. Torci para

que eles ainda tivessem algum poder.

Mas eu não podia me dar ao luxo de ficar emotiva e, certamente, não queria chamar a

atenção para mim chorando. Então, peguei um pedaço de papel e uma caneta da bolsa e escrevi

todas as minhas perguntas.

O trem balançava para frente e para trás e parou de vez em quando durante a viagem de

três horas até Boston. Eu estava tão absorta que nem notei direito nada disso. Na hora em que o

trem parou na North Boston Station, eu tinha feito uma lista de perguntas sobre minha natureza

e meu futuro.

Olhei minhas anotações:

O que eu era? Meus dons pareciam com os descritos por meu pai. Isso significava que eu

era um anjo, caído ou bom? Ou eu era outro tipo de ser sobrenatural? Minha mãe havia dito que

eu era ‚um pouco diferente‛ dos anjos.

Qual era meu objetivo? Meu pai dissera que os anjos deveriam usar seus dons — de voar,

ter visões e poderes persuasivos — para guiar as almas até Deus. Era isso que eu deveria fazer

com meus dons? Afinal, antes da história do Facebook, eu tinha sentido uma compulsão intensa

por ajudar os outros. Mas minha mãe e meu pai haviam falado algo sobre eu ter um papel

especial. Que papel era esse?

Quem era Ezekiel e por que ele estava tão interessado em mim?

Eu achava que ele era um dos anjos caídos, mas não dos que buscavam redenção. Nesse

caso, por que ele não usou seus poderes de persuasão para me forçar a ficar ao lado dele? Ele

parecia ter algum tipo de influência sobre Michael nesse sentido. E como Ezekiel nos achara,

afinal?

Se eu acreditasse no que Ezekiel dissera sobre meus pais, então quem eram meus pais

biológicos? E onde eles estavam? E por que Hannah (eu não conseguia pensar nela como

Hananel) e Daniel concordaram em me criar?

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Eu tinha perdido Michael para Ezekiel para sempre?

Rezei para que essas perguntas fossem respondidas em Boston, pois, sem as respostas, eu

estava paralisada. E terrivelmente confusa. Mas, em posse dessas informações, talvez tivesse

uma chance contra Ezekiel e pudesse proteger meus pais.

Os estudantes que viajavam ao meu lado iam para o mesmo lugar que eu, então os segui.

Esperava que, assim, eu parecesse apenas outra universitária. Segui-os enquanto eles faziam a

conexão no metrô de Boston, chamado T, e aguardei o trem Red Line, que ia para Cambridge.

Em nenhum ponto do caminho sentira que estava sendo seguida.

Desci quando os estudantes desceram e os segui — de longe enquanto eles entravam no

campus. Quando foram em direção aos quartos, comecei a me preocupar. O que eu ia fazer até a

manhã seguinte? Não me preocupava em ficar acordada até o sol nascer eu tinha passado várias

noites acordada com Michael para me preocupar com aquilo —, mas, sim, em ficar segura e

despercebida.

Então, me lembrei de que tínhamos passado em frente a um café que ficava aberto a noite

toda quando saímos do T e fomos em direção aos quartos. O café atendia os estudantes até

tarde da noite e tinha internet grátis. Assim, voltei em direção ao café.

Quando abri a porta, vi que ele estava repleto de estudantes com cara de sono estudando

e fazendo trabalhos, abastecidos com café e biscoitos. Vi que tinha um lugar onde esperar.

Eu tinha quase nove horas pela frente até as nove da manha — quando, então, tentaria

encontrar o professor McMaster.

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Trinta e Cinco

Eu não sabia por que tinha tanta certeza de que aquele homem sobre quem eu mal havia

lido alguma coisa na internet poderia responder minhas perguntas. Principalmente porque ele

era especialista em vampiros e eu descobrira que eu era algo totalmente diferente. Contudo,

estava desesperada por respostas, e o desespero gerou excesso de confiança, talvez. Pensei que,

se ele pudesse apenas me dizer o que eu era — e qual meu objetivo —, eu conseguiria

compreender toda aquela loucura.

Quando amanheceu, me arrumei o melhor que pude no banheiro do café e troquei meu

pequeno paraíso por uma livraria, indo acampar na loja Dunkin’ Donuts depois. De lá tinha

uma ótima visão do prédio onde o professor McMaster trabalhava. Quando faltavam

exatamente dois minutos para as nove, vi um senhor desgrenhado de cabelo grisalho e crespo

entrando no prédio. De início, o homem chamou minha atenção porque estava mal vestido para

o frio: usava apenas um blazer estropeado jogado por cima da camisa. Então, percebi que o

homem lembrava o da foto do site da Harvard, embora parecesse bem mais velho. Sem dúvida

era o professor McMaster.

Esperei dois minutos e, então, o segui até o prédio. Não queria abordá-lo suntuosamente,

mas precisava ser a primeira da fila no atendimento que ia das nove às onze da manhã. Em vez

de pegar o elevador, como ele fez, subi os dois lances de escadas até seu escritório. Passei por

um lugar que parecia a secretaria do departamento e andei até a porta do professor — que

estava fechada.

Conferi mais uma vez o horário dele para me certificar de que estava certo e bati na porta.

Só ouvi um barulho de papéis e o ranger de uma cadeira de escritório, então bati de novo.

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— Ouvi você da primeira vez. Já lhe atendo — respondeu uma voz áspera e com um leve

sotaque. E ele não parecia nada alegre.

— Obrigada disse, — envergonhada. Não era bem esse o começo que eu esperava.

Alguns minutos depois, ouvi o tilintar metálico dos armários.

Então, a porta rangeu e se abriu parcialmente. — Entre, — entre disse, impaciente, o

professor.

Entrei pelo pequeno espaço. Então, o professor McMaster fechou e trancou a porta.

Depois de ver a maneira como ele me cumprimentou e o seu estado de exaustão, não estava

exatamente animada em ficar trancada no escritório com ele. Mas quais eram as minhas opções?

Não queria parecer atrevida e ir logo me sentando sem ser convidada, então fiquei de pé e

esperei ele me pedir que sentasse do outro lado da mesa. O professor fez alguns grunhidos

enquanto pisava nas pilhas de papel jogadas no chão para chegar à sua mesa. Quando se

sentou, ficou apenas me olhando com seus olhos castanhos surpreendentemente brilhantes e

claros.

— O que você está esperando? — disse, apontando para a cadeira.

Corri para me sentar na cadeira de madeira detonada. Tinha planejado me apresentar

como uma aluna da Harvard que escrevia para o jornal diário — o Harvard Crimson — e que

viera fazer uma entrevista com ele. Até tinha vestido uma camiseta da Harvard e levado um

exemplar do Crimson por cima do meu notebook. Mas o professor se comportava de modo tão

grosseiro e estranho que hesitei, principalmente porque estava muito irritado.

Ele projetou a mão aberta em minha direção.

— Vamos, senhorita. Você trouxe ou não?

— Trouxe o quê?

— O trabalho do seminário. O atendimento de hoje é reservado exclusivamente para os

estudantes do seminário de Mitos e lendas da Europa Oriental.

Ele notou meu olhar vago e me olhou de soslaio.

— Você está no meu seminário, não está?

— Não, não estou. Na verdade estou...

Ele me interrompeu.

— Então devo pedir que você se retire. Você pode voltar durante meu horário de

atendimento geral na sexta.

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— Acho que não posso esperar até sexta, professor McMaster.

— Acho que você não tem escolha, senhorita...

— Faneuil.

— Vamos lá, senhorita Faneuil. Não há prazos iminentes em meus dois outros cursos,

portanto você vai ter de esperar até sexta-feira. Os estudantes do seminário têm prioridade.

Comecei meu plano. Achei que poderia tocar em sua vaidade com a entrevista para o

Harvard Crimson — todo mundo gosta de falar de si mesmo — e então fazer minhas perguntas.

Desse modo, eu não o assustaria muito. Cruzei os dedos para que ele não pedisse minha

carteira de identificação do Crimson.

— Prometo não tomar muito seu tempo, professor McMaster. Escrevo para o Harvard

Crimson, e gostaríamos de entrevistá-lo para nossa revista. Eu teria marcado um horário com

sua secretária, mas tivemos um espaço inesperado hoje e adoraríamos preenchê-lo com uma

entrevista sua. — Olhei para meu caderno como se tivesse consultando algumas anotações. —

Minha equipe me informou que nunca fizemos uma entrevista formal com o senhor, e

queremos retificar essa situação.

A expressão do rosto do professor se suavizou. Poderia dizer que ele não queria dar a

entrevista, mas se sentiu obrigado a isso. Ele falou:

— Minhas desculpas, senhorita Faneuil.

— Sou eu quem deve pedir desculpas, professor McMaster. Como eu disse, devia ter

marcado um horário com sua secretária. Principalmente porque o senhor parece estar bem

ocupado agora.

— Estou mesmo. Estou totalmente à disposição dos estudantes a tarde. Entretanto, posso

lhe conceder quinze minutos agora, até o primeiro estudante começar a reclamar para entrar.

— Agradeço muito, professor. — Olhei para minhas anotações com as perguntas da

‚entrevista‛ e disse: — Não vamos desperdiçar em um minuto.

Rapidamente, fiz a ele uma série de perguntas básicas sobre seu currículo e áreas de

conhecimento. Ele dava respostas concisas, embora estivesse visivelmente incomodado. Seu

incômodo aumentou quando comecei a perguntar aquilo que realmente me interessava — as

características dos vampiros. E o que — se é que havia algo ele sabia sobre outras criaturas

sobrenaturais.

Ele me interrompeu:

— Senhorita Faneuil, eu lhe disse que lhe daria quinze minutos. Acredito que mantive

minha promessa. Não posso lhe dar mais nenhum minuto.

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O professor levantou abruptamente e passou para meu lado da mesa, provavelmente com

a intenção de me escoltar até a porta.

Quando me pegou pela mão para me levar para fora de seu escritório, tive uma visão. Era

uma visão suave, mas com uma amplitude e potência impressionantes, pois fornecia muita

informação sobre ele. E não me surpreendeu que seu conteúdo se referisse ao que tínhamos

acabado de conversar: sua formação. Eu não queria usar o que eu vira para chamar sua atenção

isso me pareceu muito baixo para meus objetivos. Mas não tive outra escolha.

— Acho que vou ter de insistir por mais uns minutos... Professor Laszlof.

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Trinta e Seis

O professor se afastou de mim, como se eu o tivesse queimado.

— Do que você me chamou?

— Istvan Laszlof. Esse é seu nome verdadeiro, não é?

Ele não disse nada. Talvez não conseguisse. Devia fazer uns cinquenta anos que ninguém

o chamava por seu nome de batismo.

Quando encostei nele, vi que tinha nascido na Europa Oriental, na década de 1930, como

Istvan Laszlof. Ele viera para os Estados Unidos trazendo excelentes credenciais como

historiador e falando um inglês quase perfeito mas ninguém o aceitara no programa de

doutorado naquela época. Os acadêmicos preferiam ver um antigo simpatizante do comunismo

limpando o chão sagrado de seus corredores. Ele, porém, não se deixara intimidar e tinha tanta

sede de conhecimento que nada podia impedi-lo, então, criou para si uma nova identidade, a de

Raymond McMaster, e se candidatou novamente aos melhores programas de doutorado. Se a

verdade sobre sua falsa identidade viesse à tona, a carreira do professor McMaster poderia ser

destruída.

— Quem lhe contou isso?

— Não importa.

— É claro que importa. — Seu tom naturalmente desagradável estava se tornando

agressivo.

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— Professor, eu não tenho nenhuma intenção de contar seu segredo para ninguém. Só

quero mais alguns minutos do seu tempo.

— Senhorita Faneuil, se você não me disser onde ouviu essa informação, não vou lhe dar

o tempo que quer.

Agora eu estava ficando brava. Eu só queria falar com ele — por que eu precisava, para

isso, contar todos os meus segredos? Mas quais eram minhas alternativas?

— O senhor mesmo me contou sobre Istvan Laszlof.

— Não entendi.

Falei devagar, tentando amenizar ao máximo minha próxima frase. — Descobri suas

origens como Istvan Laszlof ao tocá-lo agora mesmo. Professor McMaster, eu não sou como os

outros. Posso ver e fazer coisas que provavelmente o deixariam chocado. Eu não falei sobre

Istvan Laszlof para assustá-lo — e não tenho intenção de contar a ninguém sobre isso —, mas

porque me pareceu a única maneira de conseguir um pouco mais do seu tempo.

Tremendo, ele voltou para detrás de sua mesa e se sentou.

— É isso mesmo que você quer? Apenas conversar? — Ele parecia muito cético.

— Sim, é isso que quero. Não estou aqui para assustá-lo; estou aqui para que o senhor me

ajude.

Em um esforço para juntar as peças quebradas do professor McMaster e esconder Istvan

Laszlof, ele passou as mãos sobre o cabelo bagunçado e puxou a camisa antes de falar. Depois

de respirar profunda e continuamente, fez um gesto indicando que eu deveria me sentar e

falou:

— Ficarei feliz em ajudá-la, então, senhorita Faneuil. Embora, preciso confessar, eu não

saiba muito sobre telepatia. Sou especialista em vampiros.

— Ah, professor McMaster, não sou telepata.

— O que você é, senhorita Faneuil?

— Eu espero que o senhor possa me dizer isso.

Ele pareceu aliviado com minha resposta.

— Estou pouco acostumado a classificar as pessoas. — Eu não queria abandonar minha

esperança tão depressa.

— Sim, mas o senhor tem certa familiaridade com criaturas não humanas?

— Sim, tenho.

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—E o senhor acredita na existência desses seres? Incluindo vampiros?

— Sim, tive conhecimento de certos seres que poderia considerar verdadeiros vampiros.

Por isso a necessidade das trancas na porta do meu escritório; só é possível entrar e sair do meu

escritório com minha permissão. O mal deve permanecer à distância o máximo possível.

— Entendo — disse, embora eu soubesse que nenhuma tranca poderia manter alguém

como Ezekiel ‚| dist}ncia‛.

Ele logo acrescentou:

— Mas, na maioria dos casos, os indivíduos que se aclamaram assim são apenas seres

humanos cujas diferenças observáveis podem ser explicadas por meio de traços históricos e

culturais. — Ele iniciara um discurso acadêmico.

— Não acho que minhas ‚diferenças‛ possam ser explicadas assim tão facilmente.

O professor McMaster se apoiou na cadeira e colocou as mãos posição triangular. Embora

ele parecesse um professor, não tinha certeza se ele havia encarnado o papel ou o usava para se

proteger. Afinal, eu entrara ali e falara sobre seu segredo guardado a sete chaves.

— Fale-me sobre suas... — ele hesitara antes de escolher a palavra — ‚diferenças‛.

— O senhor testemunhou uma das minhas ‚diferenças‛ agora mesmo. Ao tocar as

pessoas, posso ler certos pensamentos, aqueles que estejam passando por sua mente naquele

momento.

— Sim, isso foi... impressionante. Você consegue ver o pensamento das pessoas por outros

meios? — perguntou.

Hesitei. Seria muito arriscado contar a ele? Eu não tinha escolha a não ser contar meu

segredo mais terrível a um estranho.

— Sim, por meio do sangue.

Ele não pareceu perturbado. Será que tinha conhecido pessoas como eu? Ou apenas

alguns malucos que fingiam ser vampiros? Continuou com suas perguntas.

— Tocando ou experimentando o sangue?

Eu já tinha ido longe demais; pensei que deveria contar tudo.

— Experimentando o sangue.

O professor McMaster concordou com a cabeça e continuou com suas perguntas, como se

estivesse processando minhas credenciais. Ele estava notavelmente tranquilo.

— Você tem outras habilidades especiais?

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— Sei voar.

Isso pareceu surpreendê-lo.

— Você quer dizer que consegue levantar voo?

— Sim.

— Isso é pouco comum. — Ele se levantou e começou a andar pelo pequeno escritório.

Embora minha estranheza não parecesse assustá-lo ou rechaçá-lo, ele parecia confuso. Como se

eu tivesse embaralhando os critérios que ele usava para categorizar as criaturas de outro

mundo.

Alguém bateu na porta. Ele murmurou algo sobre seus alunos do seminário e pediu

licença. Destrancou a porta, saiu e a fechou atrás de si. Ouvi uma conversa abafada. Parecia que

o professor McMaster estava tentando convencer seu aluno a esperar pacientemente mais

alguns minutos.

Ele voltou e fechou bem a porta.

— Além de conhecer suas habilidades, você sabe alguma coisa sobre sua natureza ou sua

origem? Mesmo uma intuição sobre sua identidade pode vir a ser útil.

— Só o que meus pais me contaram. — Eu tinha relutado em falar sobre meu pai e minha

mãe. Graças ao que Ezekiel havia me dito, eu queria mantê-los o mais longe possível daquilo

tudo. Mas eu precisava falar sobre o assunto; não podia arriscar dando informações falsas.

— Seus pais sabem de suas habilidades? — Ele pareceu chocado, e com razão. Que

adolescente contaria aos pais sobre isso?

— Sim.

—O que eles lhe contaram? — Sua impaciência natural transpareceu.

— Meu pai me contou uma história bíblica e disse que ela era relevante. Era do ‚Gênesis‛,

sobre anjos, a criação dos Nephilins e o dilúvio de Noé.

O professor foi até suas prateleiras e pegou um exemplar velho da Bíblia. Ele leu em voz

alta os versos do ‚Gênesis‛ de que meu pai falara. Então me encarou:

— Senhorita Faneuil, seus pais não lhe explicaram a importância dessa passagem bíblica?

— Não. — Na verdade, eu havia deduzido da história que meus pais contaram que eu era

um tipo de anjo. Especialmente porque Deus havia ordenado a aniquilação de todos os

Nephilins.

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— Eles só lhe contaram a história e a deixaram tirar suas próprias conclusões sobre seus

poderes diferentes? — Ele parecia, justificavelmente, não acreditar.

Isso parecia absurdo, principalmente sem o contexto todo da história que meus pais me

contaram e considerando a sua própria identidade de anjos. Mas eu não pretendia contar isso

ao professor. Obviamente, precisava contar mais coisas ou correria o risco de parecer ridícula.

Então lhe ofereci um petisco irrelevante, pelo menos aos meus propósitos.

— Bem, eles me disseram que a lenda dos vampiros surgiu da presença desses anjos

caídos em nosso mundo, já que eles foram banidos do céu por terem criado os Nephilins.

Ele pareceu confuso mas animado.

— O que eles lhe contaram?

Tentei esclarecer.

— Deus insistiu que esses anjos — aqueles que se casaram com os seres humanos

permanecessem na Terra como punição, certo? Meus pais me explicaram que, de tempos em

tempos, esses anjos caídos apareciam ao lado de homens e mulheres moribundos. Com boas e

más intenções. De vez em quando, os seres humanos viam esses anjos, e o homem criou o mito

dos vampiros por causa deles.

O professor McMaster praticamente pulou da cadeira.

— Você pode repetir isso?

Fiz o melhor que pude. Enquanto eu falava, seus olhos brilhavam, e ele bateu palmas.

— Isso é terrivelmente emocionante. É uma explicação muito interessante — embora

singular — para a criação do mito dos vampiros. Mesmo para a existência dos próprios

vampiros.

Era estranho que ele parecesse mais entusiasmado por descobrir as origens da lenda do

que pela possibilidade de ter encontrado uma criatura sobrenatural viva em seu escritório. Mas

achei que não havia como explicar as excentricidades dos acadêmicos.

Ele pareceu perceber a idiossincrasia de seu comportamento e retrocedeu, ao dizer:

— Mas, é claro, temos de nos concentrar no seu caso, senhorita Faneuil. Confesso não ter

muita familiaridade com os Nephilins ou outras criaturas bíblicas, mas podemos conversar mais

e pesquisar o assunto. E conheço um grande especialista na área com quem podemos entrar em

contato.

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— Eu gostaria muito, professor. — Pensei se ele estava sendo tão prestativo porque temia

que eu contasse as informações que tinha de Istvan Laszlof ou porque queria ouvir mais sobre

as origens da fábula dos vampiros. Certamente não era por causa da minha bondade nata.

Ouvimos outra batida em sua porta. Ele se levantou e falou:

— Nós vamos precisar interromper nossa conversa. Deixe-me atender esses alunos

ansiosos e vamos nos encontrar aqui de novo às cinco da tarde de hoje. Vou ver o que descubro

enquanto isso.

Cinco da tarde parecia muito longe.

— Não tem como nos encontrarmos antes? Acho que preciso responder minha dúvida

com certa urgência.

— Não, senhorita Faneuil. É impossível. — Sua porta vibrou com outra batida. — Não

sem sermos interrompidos constantemente.

Meu coração ficou triste por ter de esperar até as cinco.

O professor McMaster não se sentiu assim. Seus olhos brilhavam quando ele falou:

— Mais tarde você poderá me contar sobre o começo do mito dos vampiros.

Não era bem isso que me interessava.

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Trinta e Sete

Saí do prédio do professor McMaster e fui em direção à horda de estudantes que lotavam

a Harvard Square. Por um segundo, me senti como um deles, excitada com as novas

descobertas e preocupada por conta dos prazos. Cruzei a bolsa no peito, imaginando que ela

estava repleta de trabalhos do trimestre em vez de conter anotações sobre os mistérios que

acometiam minha existência e fingi ser uma aluna da universidade dos meus sonhos.

Mas, então, vislumbrei um cabelo curto e loiro na praça. Meu coração se acelerou e,

mesmo que meu instinto visceral me mandasse correr em direção oposta, segui-o enquanto a

pessoa andava pela praça. Eu precisava saber se aquele cabelo era de Ezekiel ou de Michael e se

eles já tinham me localizado. Além disso, achava que ia ser melhor descobrir a verdade cercada

de gente. Em grupo era mais seguro.

A pessoa andou rapidamente de um lado da rua para outro, como se precisasse correr

como um louco para chegar a algum lugar. Tentei seguir seu passo de longe, mas não era fácil;

eu não era uma detetive treinada. Bem quando me senti mais confiante, ele fez uma curva

fechada e inesperada à direita, em direção a uma rua mais comercial, e sumiu de vista. Vários

alunos loiros andavam pela rua, mas nenhum tinha aquele brilho platinado do cabelo de

Ezekiel ou de Michael.

Diminui o passo, com raiva de mim por ter perdido qualquer um dos dois. Se é que se

tratava mesmo de Ezekiel ou de Michael.

Um resto de adrenalina corria em meu corpo. Deixei aquele impulso me levar para longe

da rua comercial em direção às lonjuras do campus. A multidão diminuía; os estudantes iam

para as salas de aula e, de repente, me vi em um pequeno pátio de tijolos delimitado por

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paredes cobertas de heras. Parecia um cenário de um filme sobre o campus, a imagem perfeita

— quase perfeita demais.

O lugar era muito convidativo. Havia um banco de ferro forjado em um canto do pátio,

debaixo de um salgueiro-chorão. Eu não tinha dormido na noite anterior, e nada no mundo

parecia mais tentador que aquele pátio e aquele banco. Diminuí ainda mais o passo, dei a volta

no banco e me sentei.

Nos minutos seguintes, apenas respirei a calma do lugar e vi os estudantes irem para as

salas de aula. Eles me lembraram da sensação de pertencer que havia sentido antes de ver o

possível Ezekiel ou Michael, a fantasia breve que tivera sobre ser uma verdadeira aluna de

Harvard. Percebi que aquela fantasia efêmera talvez fosse a coisa mais próxima de ser uma

universitária que eu viveria. Como alguém como eu — o que quer que eu fosse — poderia

esperar superar todo seu drama e estranheza e ir para a faculdade?

Comecei a chorar. Rapidamente, as poucas lágrimas se transformaram em um choro

convulsivo, e comecei a soluçar. Tudo que eu queria era ter uma vida normal um namorado no

colégio, ir a uma boa faculdade, ter pais que me apoiassem e bons amigos. Em vez disso, lá

estava eu, uma garota de dezesseis anos, totalmente sozinha sem pais nem amigos que eu

pudesse contatar e, certamente, sem um namorado para conversar — tentando descobrir quem

eu era.

De repente, surgiu uma garota loira e simpática usando um moletom da Harvard; parou

diante de mim e perguntou:

— Você está bem? Precisa de alguma coisa?

Com lágrimas nos olhos, respondi:

— Não, estou bem. Obrigada por perguntar.

Antes que eu pudesse lhe dar lugar para se sentar, ela se sentou ao meu lado. Não chegou

a encostar em mim, mas sua presença me trouxe conforto. Quase como se ela tivesse me

abraçado.

— Sabe, quando você procura respostas, é sempre melhor começar com as perguntas.

— Oi? — Seu conselho me pareceu algo esquisito a se oferecer a uma estranha que

estivesse chorando em um campus de uma universidade, mesmo que seu comportamento fosse,

de alguma forma, tranquilizador.

Ela deu uma risada deliciosa, tilintante.

— Desculpe. Meus amigos sempre me acusam de enigmática. O que quis dizer é que você

parece enfrentar algum problema sério. Sempre volto às perguntas quando procuro as respostas

para um problema difícil. E, então, começo a pesquisar.

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— Sei que você está certa.

A menina sorriu com serenidade e me estendeu um lenço. Abruptamente, levantou-se e

falou:

— Bem, é melhor eu ir. Estou superatrasada para a aula.

Depois de limpar minhas lágrimas para parecer um pouco apresentável, olhei para cima

para lhe agradecer. Mas a garota havia desaparecido entre os arbustos das calçadas e prédios

que ladeavam o pátio.

Suas palavras ficaram na minha cabeça, assim como a calma que ela trouxera. Talvez ela

estivesse certa. Talvez as respostas estivessem nas perguntas — pelo menos em parte. E talvez

eu devesse começar a pesquisar as respostas a essas perguntas. Afinal, eu estava na Harvard,

um dos maiores centros de pesquisa do mundo.

Parei de sentir pena de mim e fui direto às perguntas, as que eu tinha escrito durante a

viagem de trem. Mais do que tudo, queria saber quem eu era. Eu não sabia se era um anjo caído,

um daqueles Nephilins ou alguma criatura relacionada às histórias bíblicas. Mas eu sabia que

era importante o bastante para que dois anjos ‚bons‛ tivessem sacrificado a própria

imortalidade para me criar como filha. Também sabia que um dos anjos caídos ‚maus‛ —

Ezekiel dissera que eu estava destinada a comandar ao seu lado. Não tomei aquelas palavras

como um elogio; graças aos seus dons apurados, Ezekiel podia atrair, sem exagero, quantas

pessoas quisesse para se juntar à sua tropa. Seja lá o que eu fosse, havia muito em jogo. E eu

precisava descobrir tudo para poder enfrentar Ezekiel.

Havia apenas seis horas pela frente até que eu fosse encontrar o professor McMaster de

novo. Eu ia aproveitar aquele tempo para me preparar — até mesmo me armar — para os dias

que viriam.

Saí do meu pequeno pátio tranquilo com relutância, embora a segurança de estar entre

vários alunos fosse bem-vinda. Quando, por fim, cheguei em meio à multidão da Harvard

Square, senti como se tivessem me jogado um salva-vidas.

Então eu vi o vulto platinado e estranho novamente. E soube que o mal estava escondido

na multidão, assim como nas ruas desertas. Ezekiel estava lá — e estava me provocando.

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Trinta e Oito

Depois de consultar um guia, decidi visitar a biblioteca Andover-Harvard Theological

Library, do lado nordeste do campus. O guia dizia que a biblioteca possuía um acervo

considerável de material com conteúdo bíblico, um dos maiores dos Estados Unidos. Se eu

queria encontrar informações úteis sobre anjos e outras criaturas bíblicas, a Andover-Harvard

Library parecia ser o lugar ideal.

O caminho que ia da Harvard Square à biblioteca era um tanto complicado, e eu estava

bem distraída olhando para cada pessoa loira que passava. Por isso precisei de meia hora para

chegar lá, em vez dos estimados quinze minutos. Ficava cada vez mais ansiosa a cada passo; os

ponteiros do relógio não paravam.

Por fim, localizei o prédio de pedra gótico descrito no guia: o Andover Hali. Seu corredor

dava em um prédio de design mais moderno, e a biblioteca ficava entre os dois prédios.

Seguindo o mapa, entrei no corredor pela entrada principal, debaixo da torre gótica. Depois,

comecei a andar por um longo corredor chamado ‚caminho do claustro‛, revestido de pedras

antigas e algo parecido com bancos de igreja jogados fora.

No final do caminho do claustro, havia uma porta fechada — a entrada da biblioteca. A

porta se abriu rangendo alto e, então, me ocupei dos livros expostos na entrada enquanto

esperava que o balcão de circulação ficasse cheio para eu poder entrar sem ser notada. Eu tinha

lido que a biblioteca era usada principalmente por alunos de mestrado e doutorado e, embora

eu passasse por uma caloura da faculdade, fingir que já era formada seria forçar muito a barra.

Depois de dar a volta no balcão de circulação e subir um lance de escada, entrei no

Houghton Reference Room. Sentei-me diante de um computador que era utilizado

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exclusivamente para pesquisar o acervo da biblioteca e coloquei os dedos sobre o teclado. Por

onde eu devia começar? Digitei ‚anjos caídos‛, mas apareceram milhares de itens. Então, refinei

a pesquisa usando a palavra mencionada por meu pai: Nephilim.

Poucos resultados apareceram na tela. Além do ‚Livro de Genêsis‛ da Bíblia que eu j{

esperava encontrar —, vi citações do Livro de Enoch. O que era aquilo?

Anotei rapidamente o número de referência do Livro de Enoch e me dirigi às pilhas de

livros. No caminho, peguei um exemplar da Bíblia — o que era fácil, considerando que eu

estava em uma biblioteca de teologia — para dar uma olhada na citação do ‚Gênesis‛ de novo.

Mas encontrar o Livro de Enoch era mais difícil.

As pilhas de livros eram infindáveis. E imensas. Como eu iria encontrar aquele livro

maluco e lê-lo no pouco tempo de que dispunha?

Eu devo ter parecido perdida, pois um aluno bonito, mas com cara de nerd, se aproximou

de mim:

— Precisa de ajuda?

Quase disse não, mas o tempo cada vez mais curto me deixava ansiosa. Sorri para o aluno

de óculos e disse:

— Muito obrigada. Estou procurando um exemplar do Livro de Enoch. Você sabe onde

posso achar um?

— Sei bem. Siga-me.

Em silêncio, ele me fez descer dois lances de escadas. Entramos em um labirinto de pilhas

de livros diferentes e maiores. Seguindo-o, virei à direita, à esquerda e à direita de novo. Até ele

parar de repente.

Pegou um livro na prateleira alta e o entregou a mim.

O rapaz conhecia a localização do livro tão bem que imaginei que ele soubesse algo sobre

seu conteúdo, então agradeci e sussurrei:

— Você parece familiarizado com o Livro de Enoch.

— É melhor que eu esteja. Minha área de interesse são os evangelhos apócrifos.

— Evangelhos apócrifos?

Ele me olhou com certa desconfiança, mas respondeu cordialmente:

— São livros bíblicos que quase foram incluídos no Novo ou no Velho Testamento, mas

que nunca chegaram a ser, nunca fizeram parte do cânone aceito. Você não estuda teologia, né?

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— Não. É assim tão óbvio?

— Só um pouco — afirmou ele, sorrindo.

Sorri de volta.

— Você pode me dizer algo sobre o Livro de Enoch?

— Bem, é um evangelho apócrifo escrito entre 300 a.C. e o século 1 d.C. Não faz parte do

cânone para a maioria das igrejas católicas, com exceção da Igreja Cristã Etíope. Mas muitos dos

escritores do Novo Testamento o conheciam bem, e ele foi citado nas ‚Cartas de Judas‛ do

Velho Testamento. Esses fatos serviram de credenciais para o livro, segundo alguns

especialistas.

— Sobre o que ele é?

— É sobre muitas coisas.

— Algo em particular?

— O livro aborda a passagem do ‚Gênesis‛ que trata de anjos e do dilúvio de Noé. Ele

discute a criação dos Nephilins, como eles às vezes são chamados — metade anjos, metade

humanos — e sua destruição pelas mãos de um Deus muito bravo. Alguns dizem que sua

destruição serviu de pretexto para o dilúvio de Noé. — Ele apontou para uma mesa cheia de

livros ali perto. — Estou sentado bem ali. Quando você tiver acabado de lê-lo, ficaria feliz em

responder qualquer pergunta sua.

Depois de agradecê-lo imensamente, sentei em uma mesa não muito longe da dele. Abri a

Bíblia e li a parte do ‚Gênesis‛ que meu pai havia resumido para mim. Apesar de linguagem

complicada, a história era praticamente a mesma que meu pai contara. Eu estava prestes a

fechar a Bíblia e a abrir o Livro de Enoch quando notei uma nota de rodapé no fim daquela

parte importante do ‚Gênesis‛. Estava escrito: ‚Achava-se que os Nephilins eram uma raça de

gigantes cuja força sobrenatural era atribuída a uma origem semidivina. Eles foram os ilustres

legend{rios da mitologia antiga‛. Aquilo soava surpreendentemente familiar.

Então comecei a ler o Livro de Enoch. Embora estivesse quase todo escrito em uma

linguagem antiga, difícil de acompanhar, um trecho no início era bastante claro:

‚Os anjos caídos eram, ao todo, duzentos e descenderam (...) e estes são os nomes de seus

líderes: Samyaza, Arakiba, Sariel, Rameel, Armaros, Kokabiel, Tamiel, Ramiel, Baraqijal, Azael,

Daniel, Hananel e Ezekiel.

Gelei ao ver o nome dos meus pais e o de Ezekiel. Essa história bíblica antiga estava se

tornando cada vez mais real.

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Tirei os olhos da lista de anjos caídos e voltei à história. Com o tempo, entendi o ritmo

arcaico do texto e consegui analisá-lo. O livro falava de todas as coisas erradas que os anjos

caídos tinham feito, da fúria de Deus diante da criação dos anjos, os Nephilins, e da decisão de

Deus de obrigar os anjos caídos a ficar na Terra até o dia do julgamento. Parecia a história que

meu pai me contara, apenas mais longa e mais difícil de compreender.

Algumas passagens me saltaram aos olhos. Por exemplo, continuei reparando que o Livro

de Enoch |s vezes chamava os anjos caídos de ‚guardiões‛. Lembrava que minha mãe havia

chamado a mãe de Michael de ‚antiga guardiã‛. Ser{ que os pais de Michael eram anjos caídos

também?

Mas ainda não estava certa do que eu era. O Livro de Enoch reforçava as afirmações de

meus pais de que eu não era um anjo caído, afinal, havia um número determinado desses anjos,

e eles estavam listados bem naquele texto. O livro também rejeitava a ideia de que eu era um

Nephilim; eles foram todos mortos no dilúvio de Noé, até onde eu sabia. Portanto, o livro não

respondera minha pergunta mais importante. Talvez houvesse outra categoria de criaturas

bíblicas à qual eu não prestara atenção.

Parei diante da mesa do aluno bonito que havia me ajudado. Conversamos durante

alguns minutos sobre a densidade dos textos antigos e o agradeci de novo. Eu quase havia

chegado à escada quando pensei em uma última pergunta e voltei.

— Presumindo que as criaturas descritas na Bíblia realmente existam, os Nephilins

estariam por aqui hoje em dia? Ou todos foram mortos no dilúvio?

Ele parou por um momento e, então, falou:

— Na verdade, pelo menos um especialista em temas bíblicos sustenta que um Nephilim

vai voltar em um momento crucial aos seres humanos nos dias finais.

— Dias finais?

— Sim, os dias finais ou dia do julgamento, como às vezes são chamados. É um tempo

turbulento que antecede o retorno da figura messiânica que irá julgar todas as criaturas

terrestres e guiá-las ao reino celestial. As três religiões abraâmicas o Cristianismo, o Judaísmo e

o Islamismo — contêm essa noção de alguma forma. — Ele falava como se estivesse lendo um

livro. — E esses especialistas acreditam que pelo menos um Nephilim é a criatura mencionada

no Livro de Enocli como ‚O Eleito‛.

De repente me lembrei do predomínio desse título no livro. E também me lembrei de uma

de suas últimas linhas. Ela afirmava que ‚O Eleito‛ iria liderar o final dos tempos.

Fiquei com os braços arrepiados.

— Você pode me contar o nome do especialista que acredita que o Nephilim vai voltar?

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— Claro. Seu nome é professor Barr e ele é professor de estudos bíblicos na Universidade

de Oxford, na Inglaterra.

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Trinta e Nove

O campus estava ficando escuro, surpreendentemente escuro para aquela hora do dia e

aquela época do ano. Era quase como se o simples espectro de Ezekiel tivesse lançado sombra

sobre toda a universidade, destruindo qualquer resto de luz do dia ou o brilho do pôr do sol

que teimava em aparecer. Ou talvez fosse só uma ilusão criada por Ezekiel para me atingir,

como uma nuvem de chuva que me seguisse aonde eu fosse.

Quando me aproximei do prédio do professor McMaster, examinei-o e percebi que ele

estava quase completamente vazio, a não ser pelos alunos perdidos e professores obsessivos

que ainda ocupavam o lugar, pois as aulas do dia já haviam acabado. Encontrei a mesma escada

que havia subido de manhã e subi dois lances até o andar do professor.

Empurrei a porta pesada da escada para abri-la e entrei no corredor escuro. As luzes das

mesas das secretárias estavam apagadas e os escritórios da maioria dos professores já estavam

fechados. Andei pelo corredor, que me pareceu longo, até o escritório do professor McMaster, e

fiquei aliviada ao ver luz por baixo de sua porta fechada.

Bati na porta, ciente da enorme quantidade de trancas que me aguardavam do outro lado

e esperando ser recebida da mesma maneira antipática de antes. Ninguém respondeu.

As luzes estavam acessas, mas a sala estava silenciosa. Esperei o que me pareceu uma

eternidade. Será que o professor havia mudado de ideia?

Quando ia bater na porta novamente, ouvi, por fim, um barulho de trancas sendo abertas

e fui recebida com uma acolhida inesperadamente animada:

— Por favor, entre, senhorita Faneuil.

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A porta rangeu ao se abrir, e vi o rosto sorridente do professor McMaster. Sua expressão

me deixou esperançosa novamente e fortalecida. Sorri de volta e o segui para dentro da sala.

Mas o que vi quando entrei destruiu meu sorriso. Na cadeira de madeira estropiada

destinada à visita, estava sentado um homem com o cabelo loiro claro e olhos azuis penetrantes:

Ezekiel.

Ignorando minha expressão horrorizada, o professor McMaster sorria sem parar.

— Senhorita Faneuil, acabei de ter uma conversa muito intrigante com seu amigo, o

senhor Ezekiel.

Então agora ele era meu amigo ‚senhor Ezekiel‛? Eu tinha sentido a presença dele e de

Michael na Harvard Square, mas não esperava vê-lo lá. Afinal, Ezekiel havia mandado Michael

esperar até que eu os procurasse. Eu não sabia explicar por que acreditava no que a própria

encarnação do mal prometia.

Ezekiel me deu seu sorriso doentio. Com o tom de voz mais educado possível, disse:

— Oi, Ellspeth, esperávamos ansiosamente sua chegada.

— Queria poder dizer o mesmo.

Ezekiel ignorou minha observação sarcástica, e o professor pareceu não tê-la escutado. Ele

estava muito concentrado em Ezekiel, que falou:

— Eu estava contando ao professor McMaster tudo sobre a ligação interessante que há

entre os anjos caídos mencionados no ‚Gênesis‛ e o surgimento da mitologia dos vampiros.

Com nojo e medo, virei o rosto para evitar o olhar de Ezekiel e vi o rosto do professor de

relance. Seus olhos realmente brilhavam de animação diante da perspectiva de estudar as

verdadeiras origens da lenda dos vampiros e dividir sua descoberta com o mundo; seria o auge

de um trabalho de uma vida inteira. Naquele momento, vi no professor a mesma sede

insaciável de conhecimento que tinha visto no rosto do jovem Istvan Laszlof, uma sede que o

tinha feito assumir muitos riscos. E, agora, ele arriscava a própria alma sem saber, já que Ezekiel

estava determinado a levá-lo para as trevas.

Encarei Ezekiel, que sorriu de satisfação diante da cumplicidade do professor McMaster.

Ele não tinha nenhuma intenção de deixar o professor divulgar a verdade por trás da lenda dos

vampiros; manter o mito vivo era uma de suas armas mais úteis. Mas Ezekiel precisava do

professor e sabia que a ligação entre anjos e vampiros combinada ao seu formidável poder de

persuasão — iria influenciar o professor em direção às trevas. E levá-lo para longe da luz que

podia me ajudar.

Enquanto perdia a esperança, Ezekiel continuava sua campanha para conquistar o

professor.

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— Como eu dizia, o caso mais fascinante surgiu em Tillinghast, no Maine. Em um inverno

no final dos anos 1800; cinco dos catorze filhos de uma importante família de agricultores, os

Stuckley, sofriam de tuberculose. O patriarca da família, Ezra, testemunhou a presença de

criaturas estranhas ao lado de quatro dos cinco filhos que estavam às vésperas da morte. Então,

ele vigiou sua pobre filha, a quinta criança, determinado a não permitir que esses seres

atormentassem sua doce Honour. Infelizmente, em uma noite, ele pegou no sono durante a

vigília e acordou diante da terrível visão de um ser alado bebendo do pescoço de sua pobre e

moribunda Honour, isto é, bebendo seu sangue. A criatura voou quando Ezra a descobriu, mas

era tarde demais para Honour. Veja bem, professor, a criatura não era um vampiro. Era um dos

anjos caídos que mencionei, chamado Daniel. Mas mesmo os anjos têm uma sede insaciável por

sangue. Daí surgiu a lenda.

Fiquei enjoada. Meus pais haviam mencionado uma visita anterior a Tillinghast. Eles

estariam envolvidos no incidente com os Stuckley? Eu conhecia bem a atração e o poder do

sangue. Ou Ezekiel estava apenas querendo me atormentar? Era mais provável que meus pais

estivessem lá para tentar ajudar a levar a menina que estava morrendo até Deus.

Quando o professor McMaster ouviu a pequena história, sua expressão mudou de simples

animação para absoluta devoção, e eu soube que Ezekiel o tinha conquistado. Assistir Ezekiel

utilizando suas habilidades com o professor me fez inesperadamente ter empatia por Michael.

Os talentos de Ezekiel eram quase irresistíveis para todo mundo com exceção de mim, ao que

parecia. Talvez Michael fosse mais suscetível que eu. Talvez sua traição não fosse uma livre

escolha.

Ao assistir a esse processo doentio que visava tragar a alma do professor, uma pergunta

importante veio à minha cabeça. Por que Ezekiel estava tendo todo esse trabalho para

conquistar o professor? Por que ele apenas não me convencia ou, melhor ainda, me forçava — a

me juntar ao seu exército? De repente, as palavras da garota do pátio vieram a mim, e percebi

que a resposta estava embutida na pergunta. Ezekiel tinha todo esse trabalho porque não

conseguia me forçar a me aliar a ele. Diferentemente de Michael, eu precisava escolher seguir

Ezekiel.

Isso fez com que Ezekiel precisasse tomar medidas desesperadas. Ele tinha de fechar

todos os caminhos por onde eu pudesse escapar — meus pais e Ruth — e todos os atalhos que

me levassem a informações sobre minha identidade. Ele precisava me lembrar constantemente

da presença e do poder dele usando os mesmos truques que eu testemunhara no último dia. Ele

precisava me deixar com apenas uma escolha: ele mesmo.

Embora Ezekiel tivesse, sem querer, revelado um segredo por meio de suas ações, ao

tentar impedir meu acesso à informação sobre minha natureza, ele me mostrara como essa

informação podia ser minha salvação. Por que mais ele teria se esforçado tanto para mantê-la

longe de mim? Pela milionésima vez, desejei que meus pais tivessem me contado tudo.

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Mas eles não contaram. Eu teria de continuar procurando as respostas sobre minha

identidade e sobre meus objetivos por conta própria embora eu soubesse que Ezekiel fosse me

seguir aonde quer que eu fosse. Porém, de alguma maneira, suas ações não me assustavam a

ponto de impedir minha busca como, sem dúvida, ele desejava —, e sim me deixavam mais

determinada do que nunca a embarcar nessa busca. Mesmo que isso significasse usar o próprio

jogo de Ezekiel contra ele mesmo para ganhar tempo e conhecimento.

Então, reuni toda a coragem e falei:

— Professor McMaster, senhor Ezekiel, sinto interromper essa conversa cativante, mas

preciso ir embora.

— Tão rápido? — perguntou Ezekiel com sua expressão de desdém sempre presente.

Como se ele soubesse o que eu estava planejando.

— Infelizmente, sim. — Virei-me para o professor. — O senhor se importa de me

acompanhar até a porta? Ela parece um pouco com Fort Knox2.

O professor McMaster tirou os olhos de Ezekiel com relutância e falou:

— Sim, sim, senhorita Faneuil.

Segui o professor, agora enfeitiçado, até a porta. Embora eu pudesse sentir o olhar de

Ezekiel perfurando minhas costas, não ousei olhá-lo uma última vez.

Mas Ezekiel não me deixaria sair sem me despedir dele. E lançou:

— Até logo, Ellspeth. Lembranças a Hananel e Daniel. Isso se você arriscar ir para casa.

Eu precisava sair daquela sala. Sentia os terríveis tentáculos de Ezekiel me envolvendo.

Devagar, tão devagar que pensei que ia gritar, o professor abriu cada tranca

meticulosamente. Quando ele terminou, toquei sua mão, aparentemente como sinal de gratidão.

Quando fiz isso, olhei-o diretamente nos olhos e desejei que ele esquecesse qualquer informação

que tivesse descoberto para me ajudar. Principalmente qualquer coisa que ele soubesse sobre o

professor Barr, de Oxford, citado pelo aluno de Harvard. Rezei para que o professor McMaster

não tivesse dito nada para Ezekiel ainda.

Falei:

— Muito obrigada por sua ajuda, professor McMaster. É uma pena que o senhor não saiba

mais nada sobre minha situação. Nem conheça ninguém que possa me ajudar.

2 Fort Knox é uma pequena cidade do Estado norte-americano de Kentucky que serve de base para

o exército dos Estados Unidos.

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Quando o professor McMaster respondeu, sua voz soou aturdida pelos esforços de

Ezekiel.

— Sim, é uma pena, senhorita Faneuil. Mas a senhorita é uma jovem inteligente, e tenho

certeza de que vai encontrar seu caminho.

Toquei sua mão uma última vez e vi que seus pensamentos e sua mente estavam

curiosamente vazios. Será que Ezekiel tinha apagado sua mente? Será que eu tinha feito isso?

Corri pelo corredor para fugir do terrível Ezekiel, enquanto ouvia o professor McMaster

fechar seu escritório e as trancas. Pensei em por que ele se incomodava em fazer isso. O

professor tinha instalado todas aquelas trancas para manter as criaturas do mal que ele

estudava do lado de fora, mas agora acabara de trancar a si próprio com o mal em pessoa.

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Quarenta

Desci os dois lances de escadas correndo o máximo que podia até a saída do prédio. O

medo de ser vista pelos alunos ou professores que ainda estavam no prédio evitou que eu

descesse voando. Quando cheguei ao térreo, empurrei com força a porta de madeira pesada e

respirei o ar frio da noite, como se ele impedisse que eu me afogasse.

O céu tinha deixado de ser escuro e se tornara completamente negro. Os prédios e os

comércios do bairro já tinham fechado, eliminando qualquer vestígio de luz. Não havia nenhum

poste por perto. Mesmo com minha visão apurada de sempre, era dificil enxergar naquele

ambiente estranho e sombrio.

Mesmo assim, tinha certeza do caminho a seguir para a Harvard Square, onde eu poderia

pegar o T até o Logan Airport. Tudo indicava que meu próximo passo deveria ser encontrar o

professor Barr em Londres. Eu não achava que podia telefonar para o especialista e enchê-lo de

perguntas; no mínimo, seria considerada maluca ou excêntrica.

Se meu pequeno experimento tinha funcionado com o professor McMaster, eu precisava

aproveitar minha vantagem sobre Ezekiel e pegar o próximo voo para Londres. Já havia

verificado os horários dos voos e sabia que havia um da British Airways que decolaria às oito

da noite. Se eu corresse bastante, talvez conseguisse pegá-lo.

Saindo do prédio do professor, havia um caminho que serpenteava em direção à praça;

peguei-o e fiz uma curva fechada à direita e depois à esquerda. Pelos meus cálculos, eu já devia

ter avistado a Harvard Square ao longe, mas ainda não vira nada. Em vez disso, vi-me em um

quadrilátero de prédios de ciências quase desertos. Recuei um pouco e tentei virar em outra rua

à direita. Voltei ao mesmo quadrilátero. Como eu podia ter me perdido? Desesperada,

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perguntei a uma das poucas alunas que passavam por ali e então segui firmemente suas

indicações. Mas caí no mesmo quadrilátero de novo. Aquilo era outro jogo de Ezekiel? Ou

apenas mais uma infeliz reviravolta nos acontecimentos da minha vida sombria?

Ouvi passos atrás de mim, mas não dei muita atenção no início. Então comecei a notar que

os passos estavam em sincronia com os meus. Então virei inesperadamente à esquerda para ter

certeza. A pessoa me seguiu.

Estava apavorada. E se fosse Ezekiel ou Michael? Eu podia enfrentar qualquer outra

pessoa. Girei sobre meu eixo e corri na direção oposta. Ouvi a pessoa se aproximando de mim.

Quase instantaneamente, minhas costas se aprumaram e meu corpo se preparou para

levantar voo. Meus pés começavam a levitar quando senti uma mão segurando meu pé. Lutei

para me livrar dela, mas a pessoa era forte. Caí no chão, em cima do meu perseguidor.

— Ellie, sou eu, Michael — ele falou, como se isso fosse me acalmar. Tirei sua mão

estendida e o empurrei para longe de mim, em direção ao concreto duro da rua.

— Estou vendo. Por que eu ia querer te ver?

— Você tem todo o direito de estar brava comigo, Ellie. Mas sou eu — o verdadeiro

Michael. — Ele me olhou com aqueles olhos verdes que eu tanto conhecia e parecia que o meu

Michael olhava através deles. Mas como eu podia ter certeza?

— Eu pensei que tinha ido à Ransom Beach com o verdadeiro Michael, mas, infelizmente,

era um subordinado de Ezekiel.

Com muita delicadeza, ele tentou me tocar. Mesmo que parecesse um gesto

tranquilizador, eu me afastei. Seria preciso bem mais para me convencer antes que eu o deixasse

me tocar.

— Eu entendo, Ellie. Eu também não gostei do que me transformei. Você sabe o quão

assustador é assistir a si mesmo dizer e fazer coisas que você nunca imaginou e não conseguir

parar?

Como eu tinha visto a transformação do professor McMaster, sabia que aquelas palavras

de Michael eram totalmente possíveis. Eu queria que fosse verdade. Mas não confiava nele

ainda. Afinal, ele parecia o meu Michael quando voamos do penhasco para a praia — direto

para os braços de Ezekiel, que esperava por nós. Ezekiel certamente o transformara na noite

anterior.

Cruzei os braços e dei uma boa olhada nele. Seus olhos não estavam mais vidrados, nem

sua fala era amortecida, mas, ainda assim, eu não tinha certeza.

— Como voltou a ser você mesmo?

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— Ontem à noite, seus pais foram à minha casa — conversar com meus pais. Era muito

tarde, e eles nãos sabiam que eu estava acordado, então os escutei às escondidas. Por alguma

razão, ouvi-los falando de você rompeu a ligação entre mim e Ezekiel.

Eu queria saber o que meus pais tinham dito, mas, naquele momento, era mais importante

avaliar se Michael era mesmo confiável.

— Se você não está mais aliado ao Ezekiel, por que você está em Boston com ele? — Fiz a

pergunta mais óbvia.

— Eu sabia que Ezekiel ia te encontrar. Então, saí escondido de casa e liguei para ele —

fingindo que ainda estava do seu lado. Como era um truque, me certifiquei de que não teria

nenhum tipo de contato fisico com ele, assim ele não descobriria a verdade. Ezekiel continuou

dizendo que nós tínhamos de deixá-la até que você viesse nos procurar, mas eu sabia que ele ia

tentar encontrá-la. Ele não pode ficar longe de você.

— Por que você não está com ele agora?

— Eu sabia que Ezekiel queria se encontrar com o professor que você achou — para

descobrir o que ele sabia e o que tinha lhe dito. Quando entramos no escritório do professor, eu

disse a ele que o encontraria aqui fora depois; de todo jeito, Ezekiel não me queria lá mesmo.

Era minha chance de me livrar dele e ir atrás de você.

— Por que ele me deixou sair do escritório do professor?

— Ezekiel provavelmente queria terminar o que começou — conseguir informação do

professor e torná-lo um dos seus seguidores. Acho que ele gostaria da ironia de ter um

especialista em vampiros em seu exército. De todo modo, ele pode nos encontrar de novo a hora

que quiser.

— Como ele consegue nos rastrear? — Essa era uma das principais perguntas da minha

lista. Eu precisava saber como Ezekiel podia me encontrar, assim saberia como me esconder

dele.

— Uma vez que comecei a usar meus poderes, me tornei um pontinho na tela do radar

dele, como ele mesmo descreveu. Nós estamos, de algum modo, ligados pelo nosso sangue. Foi

isso que ele me contou, afinal.

Michael havia respondido apenas metade da minha pergunta — a parte sobre ele.

— Mas isso não explica como ele me rastreia.

Ele desviou os olhos antes de responder.

— Você tem meu sangue nas suas veias. Então ele também pode rastreá-la.

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Senti um enjoo. Não havia onde me esconder de Ezekiel porque eu tinha experimentado o

sangue de Michael e agora ele corria em minhas veias? Não era de estranhar porque Michael

não quis me olhar nos olhos quando contou isso.

— Legal.

Michael fez uma pausa e, então, me implorou:

— Por favor, Ellie, me dê outra chance.

Hesitei. Eu queria acreditar em Michael e me enlouquecia pensar que Ezekiel o havia feito

me reencontrar. Eu não queria ter de encarar aquela jornada louca e assustadora sozinha. Mas,

depois de tudo pelo que havia passado, não podia acreditar nele. Não sem uma prova.

Cruzei os braços com mais força.

— Como posso ter certeza de que você está me falando a verdade, Michael?

— Só há uma maneira de ter certeza — afirmou.

Michael tinha razão. Só havia um jeito.

Não foi um beijo suave. Não houve um intercâmbio delicado de línguas e dentes. Michael

não merecia minha ternura nem meu carinho. Eu estava com raiva dele por causa de sua

traição, mesmo que ele não tivesse consciência dela. Inclinei-me e o mordi. Forte. Como um

vampiro.

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Quarenta e Um

O sangue de Michael correu em minha boca. Fiquei pasma com a força de seu fluxo e com

o poder das imagens. Eu não sabia que seu sangue tinha tanta força, mas eu também nunca o

tinha obtido por meios violentos.

Olhando através dos olhos de Michael, vi-me no segundo andar de sua casa. Um relógio

antigo, alto e elegantemente curvado, estava perto de mim e seu ponteiro marcava meia-noite.

Olhei para baixo da escada sinuosa e vislumbrei meus pais e os pais dele na entrada da casa.

Eles conversavam em um tom abafado provavelmente para não acordar Michael —, mas eu

conseguia ouvi-los se me esforçasse e ignorasse o tique-taque do relógio. Era interessante,

entretanto, que a cena parecesse vaga, como se a visão de Michael estivesse tomada por uma

neblina.

— O que foi, Hananel? — Você parece perturbada perguntou a mãe de Michael.

— Ellspeth foi embora. — Meus próprios olhos se encheram de lágrimas diante do

desespero da voz geralmente imperturbável da minha mãe.

— Como assim, ‚embora‛? — Ela parecia alarmada.

— Quero dizer que ela deveria estar em casa às cinco, depois de tomar um café com sua

amiga Ruth. Abri uma exceção em seu castigo para ela encontrar Ruth, já que a relação das duas

parecia tensa ultimamente... — A voz da minha mãe falhou, e vi meu pai colocando o braço ao

redor do seu ombro enquanto ela chorava.

— Está tudo bem, Hananel. O que aconteceu? — A mãe de Michael encorajou-a.

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— Ellspeth não voltou. Esperei até as seis para ligar para Ruth, que disse estar confusa,

porque tinha deixado Ellspeth em casa. Mas eu e Daniel não acreditamos nela, então pedimos a

Ruth que viesse em casa. Ela estava visivelmente nervosa quando chegou; estava claro que ela

sabia de alguma coisa. No começo, manteve a mesma história, disse que tinha trazido Ellspeth

para casa. Usamos o resto de nossas habilidades para descobrir mais alguma coisa, mas tudo

que Ruth sabia era que Ellspeth tinha brigado com Michael. Então, diante da insistência de

Ellspeth, Ruth a levou à estação de trem. Ela não sabia para onde a amiga planejava ir. — Em

silêncio, fiquei feliz por Ruth não ter dito nada sobre o voo. Mesmo que meus pais já soubessem

disso, é claro.

— Mas você está com medo de que seja mais do que uma briga de adolescente? Você acha

que ela foi embora por outros motivos? — perguntou a mãe de Michael.

— Sim, Sariel — respondeu meu pai. — Nós conversamos com Ellspeth ontem à noite.

Lemos para ela a passagem sobre os Nephilins e...

—O quê? — praticamente gritou o pai de Michael.

— Fale baixo, Armaros — avisou a mãe de Michael. Sariel? Armaros? Eu não tinha visto

esses nomes no Livro de Enoch? Os pais de Michael tinham de ser os anjos caídos ‚bons‛, como

eu suspeitara.

— Vocês não lhe contaram quem ela é, né? — quis saber Armaros, com a voz incrédula.

— Não seja ridículo. Sua ignorância é a única coisa que a protegeu até agora. A mesma

coisa vale para Michael. Vocês sabem disso — explicou meu pai. Ele estava bravo como eu

nunca tinha visto.

— Então por que vocês estiveram tão perigosamente perto de lhe revelar a verdade?

— Seus poderes começaram a aparecer. A coitadinha achava que era uma vampira. Nós

precisávamos lhe contar o suficiente para dissuadi-la desse erro — e o único jeito era explicar a

ligação entre os anjos caídos e os vampiros. Nós não lhe dissemos mais nada. — Eu sabia que

essa última parte não era totalmente verdadeira, mas fiquei feliz por Armaros não saber disso.

Ele era bravo.

— Daniel, como vocês puderam ser tão bobos? Nós tínhamos de protegê-los por mais

tempo, mantê-los sem saberem de nada até eles estarem prontos. Até a hora certa — continuou

Armaros, discutindo com meu pai.

— Quais eram nossas escolhas, Armaros? Deixá-la acreditar que era uma vampira? E

deixar Michael acreditar na mesma coisa? Esse pensamento os deixaria perigosamente perto das

trevas. Quando Ezekiel ou os outros voltassem, e eles sem dúvida voltarão, Michael e Ellspeth

seriam presas fáceis para suas intenções obscuras.

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Senti algo se romper em Michael, quase como se ele tivesse acordado. E, de repente, vi a

imagem com mais clareza, não mais por detrás de uma neblina bizarra. Achei que a neblina era

algum resíduo da influência de Ezekiel.

— Você tem razão, Daniel. Mas uma coisa é Ellspeth estar ciente de suas diferenças, outra

bem diferente é ela suspeitar sobre quem ela é. Você deve ter aberto a porta apenas o suficiente

para colocá-los no jogo, pressupondo que Ellspeth tenha contado a ele o que sabe.

— Você acha que eu não sei disso, Armaros? Hananel e eu tentamos com toda nossa força

fazer com que Ellspeth se sentisse um ser humano comum — ajustá-la à humanidade quando

fosse a hora e tentar segurar seus poderes e o relógio. Você não acha que eu me preocupei com

o melhor momento de contar quem ela é? Quando começar a prepará-la para a batalha que

fervilha sob a superficie desse mundo ingênuo? Temos andado sobre uma linha muito tênue

entre mantê-la segura e inocente e prepará-la para a guerra. Como podemos saber o melhor

caminho para Ellspeth e Michael quando não vemos sua espécie desde...

Armaros interrompeu-o, com malícia.

— Desde o início.

— Chega de briga — interceptou minha mãe. — Não sabemos se Ellspeth e Michael

sabem alguma coisa de importante. Só sabemos que Ellspeth foi embora e precisamos encontrá-

la. Mandamos uma amiga especial rastreá-la e trazê-la para casa, já que obviamente não

podemos fazer isso...

— Obviamente — interrompeu a mãe de Michael.

—E esperamos que vocês mandem um de seus amigos para fazer a mesma coisa —

concluiu minha mãe.

— Ficaremos felizes em fazer isso, Hananel. — A mãe de Michael parou um instante e,

então, falou: — Graças a Deus Michael não sabe de nada. Ele sente seus poderes, é claro. Mas,

fora isso, pareceu perfeitamente normal no jantar hoje à noite. Talvez um pouco apagado.

— Ele não falou nada sobre a briga com Ellspeth?

— Não. Mas vocês sabem como são os adolescentes.

— Tem certeza de que ele não sabe de nada?

— Até onde eu posso ter certeza de alguma coisa com as limitações desse corpo mortal.

— Talvez você devesse verificar com ele.

— Talvez.

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A escada começou a ranger quando Sariel subiu até o quarto de Michael. Vi através de

seus olhos quando ele correu de volta para o quarto e se enfiou embaixo das cobertas. O piso de

madeira rangeu quando ela se aproximou de sua cama e a rondou por alguns minutos. Então

saiu do quarto na ponta dos pés, fechando a porta atrás de si.

A imagem desapareceu. Eu estava diante de Michael, olhando em seus olhos, que

aguardavam ansiosamente. Michael parecia quase doente enquanto antecipava o julgamento

que eu faria da imagem que ele evocou para mim.

— Você acredita em mim? Você acredita que Ezekiel não me comanda mais?

Eu acreditava. Sabia que ele estava sendo sincero. Na verdade, senti isso no momento em

que o elo entre Michael e Ezekiel se rompera — quando meu pai mencionara o nome de Ezekiel

— e soube que Michael iria para Boston por vontade própria. Não por influência de Ezekiel

nem para servir a seus objetivos.

— Acredito, Michael.

— Graças a Deus.

Michael me abraçou e eu deixei. Não o abracei de volta, ainda não estava pronta para isso.

Mas também não podia ficar brava com ele. Através dos olhos de Ezekiel, eu o tinha visto

transformar adultos, homens e mulheres, poderosos em seus seguidores. E em monstros. Como

eu podia esperar que Michael resistisse?

— Ellie, prometo que nunca mais vou traí-la de novo. Estamos nessa juntos, contra

Ezekiel.

— Eu espero, Michael.

Eu realmente esperava. Mas como podia ter certeza de que Michael não iria se deixar

influenciar por Ezekiel de novo? Sabia que a presença de Ezekiel seria constante, de um jeito ou

de outro, e Michael parecia suscetível a Ezekiel de uma maneira que eu não era. Precisava estar

atenta, avaliar constantemente Michael para ver se havia alguma mudança nele, através do

toque ou do sangue, se fosse necessário.

Mas, naquele momento, o fato de Michael estar de volta era suficiente. E de eu não estar

mais totalmente sozinha também.

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Quarenta e Dois

De mãos dadas, atravessamos correndo o campus da Harvard em direção à praça. As

luzes das lojas, dos restaurantes e do cinema cegavam meus olhos sensíveis, acostumados à

escuridão do campus. Nos poucos segundos necessários para eles se adaptarem, Michael me

guiou pelos túneis tenebrosos do T; aquela desorientação estranha que eu experimentara no

campus da Harvard só podia ser um truque de Ezekiel. Fiquei arrepiada diante da ideia de estar

no subsolo — presa em uma armadilha — com Ezekiel por perto, mas não tínhamos escolha.

Eu havia contado a Michael aonde tínhamos de ir e dito que precisávamos ser rápidos. Ele

teve a decência de não perguntar por quê; apenas perguntou o que podia fazer para nos ajudar

a chegar ao professor Barr.

Michael sugeriu que tentássemos telefonar para o professor primeiro, mas não deu certo.

A diferença de fuso horário estava contra nós, então decidimos que a maneira mais rápida — e

talvez a única possível — de chegar a ele naquelas circunstâncias era pegar um avião até

Londres.

Depois de resolvermos rapidamente o que tínhamos de fazer para irmos da estação da

Harvard Square até o Logar Airport, ficamos parados na plataforma do metrô. Pelo celular de

Michael, reservamos lugar no voo da British Airways que ia para Londres. E esperamos. Um

relógio antigo sobre nossa cabeça marcava os minutos, como se nos lembrasse de que tínhamos

pouco tempo até o portão de embarque fechar. Eu queria que pudéssemos voar até Londres,

mas não sabia se conseguiríamos atravessar uma distância tão longa.

Por fim, ouvi o trem chegando ao longe e agradeci a Deus. Eu achava que não ia aguentar

mais um segundo de atraso. Cada segundo estava a favor de Ezekiel.

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A multidão começou a se amontoar na plataforma conforme o trem diminuía de

velocidade. Quando as portas se abriram, as pessoas se empurraram para conseguir lugar no

vagão já lotado. Procurei a mão de Michael para não nos perdermos. Antes de ele agarrar minha

mão, vi uma pessoa cujo cabelo loiro eu conhecia tão bem misturada à multidão que entrava no

vagão.

Parei. Seria Ezekiel?

Senti o calor da mão de Michael e não consegui me mexer. Parecia que o homem ia subir

no vagão, mas hesitava. Devíamos ficar lá — e correr o risco de perder o voo — ou embarcar

naquele vagão fechado companhia de Ezekiel?

Michael me puxou em direção às portas abertas do metrô e me chamou, com medo de que

as portas se fechassem.

— Vamos, Ellie, as portas vão fechar.

Meu corpo estava rígido. Michael se virou e viu minha expressão. Ele seguiu meu olhar e

entendeu imediatamente o porquê do meu medo.

— Ellie, não é o Ezekiel.

O homem olhava para o outro lado, por isso eu não conseguia ver seu rosto. Mas seu

cabelo parecia tanto com o de Ezekiel, com o mesmo penteado e cor exóticos, que não acreditei

em Michael.

— Como você sabe?

Em vez de perder um tempo precioso se explicando, Michael soltou minha mão, dirigiu-

se até o homem e bateu de leve em seu ombro. Quando o homem se virou, vi o rosto corado de

um jovem universitário. Não era Ezekiel.

Pouco antes de as portas se fecharem, Michael me arrastou para dentro do metrô.

Estudantes lotavam o vagão, então nos seguramos nas argolas de metal enquanto o metrô

partia. Suspirei aliviada e desejei que meu coração se acalmasse.

Na próxima parada, a Central Square Station, a maioria dos estudantes desceu. Sentamo-

nos em um banco que ficara vago durante os quinze minutos que restavam até a South Station,

onde deveríamos pegar um ônibus para o aeroporto.

Percorremos o caminho em silêncio. Eu estava ciente de tudo sobre o que não havíamos

conversado: a conversa de meus pais que Michael escutara, a conversa que eu tivera com o

professor McMaster, o tempo que Michael passara sozinho com Ezekiel. As palavras não ditas

pairavam entre nós, como uma tela imaginária nos separando. Eu não queria me sentir tão

distante de Michael, mas não sabia por onde começar. Ou como romper o muro entre nós.

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Por fim, Michael tentou. Ele me olhou com uma expressão séria e triste e perguntou:

— Ellie, o que a gente é?

Hesitei. Não tinha certeza ainda, mas ele merecia saber a suposição mais lógica.

— Acho que somos algo chamado Nephilins, mas não sei bem o que isso significa.

Os lábios de Michael faziam as primeiras de muitas perguntas, mas meus olhos de

repente ficaram pesados. Eu não dormia havia quase dois dias.

— Tudo bem, Ellie. Durma um pouco. Nós temos bastante tempo para descobrir tudo

isso. Vou ficar acordado, assim a gente não perde a parada.

Os braços dele me envolveram, e correspondi ao abraço. Eu ainda não o tinha abraçado

desde que ele voltara a ser ele mesmo. E foi gostoso.

Pela primeira vez desde que encontrara Michael na Ransom Beach, relaxei e fechei os

olhos. Seus braços e suas afirmações de que iríamos descobrir juntos os mistérios que nos

envolviam me tranquilizaram. Eu queria agradecê-lo, então forcei meus olhos para abri-los um

pouco.

Minha visão sonolenta deparou-se com uma moça loira e simpática que vestia um

moletom de Harvard e andava pelo corredor do vagão. Ela parecia a garota que me ajudara no

pátio de tijolos, a que me aconselhara a pensar sobre minhas perguntas. Achei que ela sorrira

para mim. Comecei a sorrir de volta, mas então uma pergunta perturbadora atravessou minha

mente, afastando qualquer chance de dormir. Com todos os milhares de alunos que havia em

Cambrídge, quais eram as chances de encontrar a mesma pessoa duas vezes em poucas horas?

Poucas, muito poucas.

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Quarenta e Três

Meus olhos se abriram, e olhei mais de perto para a garota. Era mesmo a moça do pátio de

Harvard. Não podia ser coincidência.

Puxei Michael para que ele visse a garota enquanto ela andava pelo corredor em nossa

direção. O trem, chacoalhando sobre os trilhos, entrava cada vez mais profundamente no

labirinto de túneis do subsolo do T, tornando uma fuga imediata impossível. Mas a jovem

parecia imune ao balanço do trem; ela caminhava serenamente em nossa direção.

Quando ela se aproximou de nosso banco, o senhor idoso do banco da nossa frente se

levantou, embora o trem não tivesse reduzido a velocidade nem estivéssemos perto de

nenhuma estação. Ela se sentou no assento vago e me deu um sorriso doce.

— Oi, Ellspeth.

Eu achava que não tinha dito meu nome durante nossa breve conversa no pátio. Pelo

menos não o nome Ellspeth.

— Como você sabe meu nome?

— Seus pais me enviaram. — Eu sabia, por causa da conversa que Michael escutara, que

meus pais tinham mencionado ter mandado uma ‘amiga‛ para tomar conta de mim. Mas como

eu saberia se ela, na verdade, não era ‚amiga‛ de Ezekiel?

Como se soubesse que eu precisava me certificar, ela falou:

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— Sua mãe me pediu que eu lhe entregasse isto, como sinal da minha lealdade a você. E a

Michael também, é claro. — Apesar de ela também ter se referido a Michael, parecia que tinha

pensado nele depois.

Ela colocou um objeto em minha mão e então fechou meu punho para eu segurá-lo. Abri

meus dedos um por um e vi, na palma da minha mão, o relicário da minha mãe. Nunca havia

visto minha mãe sem ele. Como aquela moça tinha conseguido tirá-lo dela? Achei que ela o

tinha arrancado à força, mesmo que minha intuição dissesse o contrário.

Para responder a pergunta que eu ainda não tinha feito, a garota colocou a mão sobre a

minha. Recebi uma visão vivida e exata, como se ela tivesse me enviado a imagem

intencionalmente. Era uma sensação diferente da de recuperar a informação da mente das

pessoas.

Na imagem, minha mãe e a garota estavam na entrada da nossa casa. Minha mãe tirara o

relicário e o colocara delicadamente na mão da jovem.

— Tome conta de Ellspeth por mim e a traga de volta para casa. Dê a ela isto se ela resistir

às suas boas intenções. — Minha mãe sorriu e continuou: — E, conhecendo o gênio forte da

minha filha, sei que ela vai resistir bastante.

— Eu tomarei, Hananel.

A garota ia embora, mas minha mãe agarrou-a pelo braço antes que ela saísse pela porta.

Ela olhou a moça nos olhos como se falasse através deles.

— Por favor, faça Ellspeht entender, sem sair do lado dela, que eu não a estou

abandonando. Estou tentando ajudá-la. E, por favor, diga a ela que não contamos quem ela é

nem a preparamos para o que está por vir porque há motivos — motivos vitais — para isso.

— Prometo, Hananel.

A imagem desapareceu. Vi-me de novo no metrô, agarrada ao braço de Michael e olhando

para o rosto de um anjo. Era óbvio que ela era um anjo. Seu rosto tinha a mesma perfeição e

jovialidade do rosto dos meus pais. Ou que meus pais costumavam ter.

Coloquei o relicário no pescoço. Sentindo que eu tinha recebido sua mensagem, a garota

tirou a mão de mim.

— Por favor, venha comigo. Vamos descer na próxima parada e voar para um lugar

seguro.

Olhei para Michael para ver se ele concordava. Ele balançou a cabeça de leve, então

peguei a mão da garota e me levantei. Michael fez a mesma coisa.

— Quem é você? — perguntei.

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— Meu nome é Tamiel — respondeu ela enquanto andávamos pelo vagão. — Também

sou um anjo caído, tentando alcançar a graça. Como os pais de vocês dois.

Seguimos Tamiel em direção às portas fechadas do vagão. Enquanto ouvíamos o trem

andar pelos trilhos, sussurrei:

— Tenho tantas perguntas.

Ela deu aquele sorriso doce e calmo que eu vira no pátio de Harvard.

— Eu sei, Ellspeth. Senti isso quando nos encontramos mais cedo. Então a guiei a um

lugar onde você poderia conseguir algumas respostas sem se machucar. Mas me mandaram

levá-la para um lugar seguro. Não posso contar tudo. Ainda não é a hora.

— Por favor, Tamiel. O que somos nós?

Ouvimos um barulho no vagão de trás e pulamos. Tamiel agarrou nossas mãos e

ordenou:

— Precisamos sair daqui.

— Por quê?

— Alguém está vindo atrás de você.

— Ezekiel? — quis saber.

Tamiel parou e se virou.

— Como você sabe disso? Eu só descobri hoje que ele voltou.

Então nossos pais não sabiam sobre Ezekiel ainda. Fiquei contente por eles não terem

mais essa preocupação. Até porque eles não tinham mais armas internas com que enfrentá-lo.

— Ele entrou em contato conosco.

— Sim, é Ezekiel. E não acho que ele terá piedade.

— Não acho que ele vá me machucar, Tamiel.

Ela abriu os olhos azuis brilhantes, espantada.

— Por que você diz isso?

— Eu apenas sinto isso. Por algum motivo, acho que Ezekiel precisa de mim. Acho que ele

precisa que eu o escolha.

— Bem, você tem razão. Mas há muitas maneiras de fazer com que você o escolha.

Especialmente porque você se preocupa com a humanidade.

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— Como qual?

— Como ameaçar Michael, que é suscetível a ele. Como sequestrar este trem lotado de

inocentes até você passar para o lado dele. — Sua expressão não demonstrava mais surpresa,

mas nervosismo diante da minha demora.

— Devo continuar?

— Não. — Eu lembrava bem os horrores que havia visto através dos olhos de Ezekiel e

tremi diante da ideia de ser o motivo de ele infligir mais sofrimento aos outros.

— Então vamos embora. — Demos as mãos e saímos do vagão. Senti o calor do ar do

subterrâneo quando as portas se fecharam atrás de nós e saímos rumo à porta oscilante que

ligava os dois vagões.

Tamiel atravessou primeiro, segurando minha mão o tempo todo. Hesitei em pisar na

divisória quando ouvi um barulho terrível vindo do vagão que havíamos acabado de deixar.

— Espero que não seja tarde demais — disse Tamiel enquanto empurrava Michael e a

mim para o outro lado. Corremos em direção ao vagão seguinte.

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Quarenta e Quatro

O vagão do trem do metrô estava lotado. Com Tamiel à frente, abrimos caminho com o

cotovelo para passar entre a multidão e alcançar as portas seguintes. Mas não sem antes

ouvirmos um estrondo no lado oposto do vagão.

— Não olhem para trás — gritou Tamiel, guiando-nos até a plataforma que dava no

próximo vagão.

Ela nos empurrou para o próximo vagão e, então, para o seguinte, ficando atrás de nós

como um escudo contra a raiva evidente de Ezekiel. Enquanto corríamos dentro do trem em

alta velocidade, ouvíamos ruídos surdos e estrondos pelo caminho. Mas não podíamos parar

para olhar ou tentar entender o que era; precisávamos continuar andando, mesmo diante dos

gritos de outros passageiros.

Alcançamos as portas do último vagão. Tentei descobrir o que Tamiel havia planejado,

enquanto os barulhos causados pela ira de Ezekiel não paravam. Na verdade, só aumentavam.

E eu tinha motivos de sobra para ficar aterrorizada.

Tamiel abriu as últimas portas e nos empurrou para a plataforma. Ela cambaleava para

trás e para frente conforme o trem corria sobre os trilhos, e achei que não íamos conseguir

manter o passo. Mas, então, percebi que Tamiel não queria que usássemos os pés.

Demos as mãos e nossos corpos se prepararam para voar. Senti meus ombros se

aprumarem e a onda de calor tão conhecida percorrendo meus membros. Olhei para Michael

para ver se ele estava pronto. Ele balançou a cabeça para mim e apertei sua mão em resposta. Eu

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estava pronta — pronta como nunca antes para voar pelos túneis subterrâneos e traiçoeiros do

T.

Quando nossos pés começaram a deixar o chão, a plataforma chacoalhou violentamente.

Quase caí, mas Tamiel me puxou de volta antes que eu tombasse nos trilhos eletrificados.

Enquanto me equilibrava para poder decolar, agradeci em silêncio à minha mãe por ter me

enviado Tamiel e olhei para ela em sinal de gratidão por ter me salvado.

Mas então senti a terra tremer embaixo dos trilhos e gritei. Ezekiel estava parado bem ao

lado de Tamiel.

No segundo em que Tamiel se virou para olhar para ele, desconfiei dela. Talvez o

relicário, a imagem da minha mãe e a perseguição no metrô fossem apenas uma armadilha para

nos levar a Ezekiel. Mas então vi a expressão em seu rosto — uma mistura de espanto e medo e

percebi que eu estava errada. Ela estava do nosso lado.

O único que ria era Ezekiel.

— Esse grito não foi uma maneira muito bacana de me receber, Ellspeth. E eu procurei

você e Michael em todo lugar.

Ezekiel tentou me alcançar, e me afastei. Comecei a ir para trás. Voar era a única maneira

de escapar dele, mas meu corpo ainda não estava preparado para isso. Quando seus dedos

roçaram meu braço, senti Tamiel me agarrar no ar.

Em um minuto, eu podia voar sozinha, então segui Tamiel para dentro dos túneis úmidos

e quentes. O lugar me deixava desorientada; era tão estreito que meu braço roçava a parede de

azulejo viscoso. Lembrei as visões torturantes que tive de Ezekiel — o martírio que ele

despejaria sobre mim, e Deus sabe sobre quem mais, se fôssemos pegos. Permaneci quieta e

voei.

Tamiel corria pelas passagens e Michael e eu tentávamos ao máximo acompanhá-la. Ela

era incrivelmente rápida e fazia curvas fechadas pelas passagens labirínticas do T como se

conhecesse a linha toda de cor. Talvez ela conhecesse; talvez ela soubesse que iríamos parar lá.

A parede de azulejos, antes vermelha, ficou verde, sinalizando a mudança de linha, e

viramos à esquerda rumo a um túnel estreito. Ouvi um ruído forte atrás de mim e virei em

pleno ar para ver o que era. O cabelo brilhante e o rosto claro de Ezekiel surgiram ao longe.

— Ele está ganhando de nós — falei para Tamiel.

Ela não respondeu. Em vez disso, aumentou a velocidade e virou à direita rapidamente.

Michael e eu corremos para alcançá-la. Um estrondo e uma luz forte demais nos receberam na

boca do túnel em que acabávamos de entrar. Vimos que, na direção oposta à nossa, vinha um

trem em alta velocidade.

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Michael e eu quase nos viramos para o sentido oposto para os braços de Ezekiel —, mas

vimos Tamiel indo para o alto, em direção ao trem que vinha de encontro a nós. Imitando seus

movimentos, seguimos Tamiel enquanto ela entrava em um pequeno buraco no alto do túnel.

O buraco era tão apertado que Michael e eu mal conseguimos passar pela abertura. Mas,

uma vez dentro, ele se tornou mais amplo, permitindo que ganhássemos velocidade. Seguimos

Tamiel pela escuridão intensa enquanto ela subia para a superficie.

O ar ficou mais frio e, então, vimos uma luz brilhando acima de nós. Em uma fração de

segundo, Tamiel empurrou uma tampa de metal que cobria o buraco e olhou para cima. Ela fez

um sinal para que a seguíssemos e voou para o alto, para fora do buraco.

Estávamos em uma parada longínqua e escura do T a Government Center. Um trem devia

ter acabado de deixar a estação, pois ela estava afortunadamente vazia. Sem nos explicar nada,

Tamiel correu pela plataforma comprida em direção à saída, e nós a seguimos. Após subirmos

dois lances de escadas, saímos na noite gelada do centro de Boston. O ar fresco era um alívio

depois de enfrentarmos o subterrâneo fétido, mas eu relutava em deixar de voar e correr. Sentia

que teria mais vantagens sobre Ezekiel se voasse.

Era possível ver e ouvir a luz e o barulho do Faneuil Hali, uma atração turística que havia

ali ao lado. Presumi que deveríamos tomar a direção contrária, e comecei a virar para o caminho

oposto. Mas Tamiel me puxou em direção ao Fancuil Hail.

— Achei que você queria que ficássemos longe de aglomerações. Você disse que o Ezekiel

poderia usar as pessoas como armas contra nós — falei enquanto andávamos em direção ao

mercado construído no século XVIII em volta de um passeio público feito de paralelepípedos,

onde artistas de rua entretinham turistas enquanto eles faziam compras e jantavam.

— Ele pode. Mas as aglomerações também limitam seus poderes, o que nos facilita a fuga.

— Por que ele está fazendo isso, Tamiel? Ele teve oportunidade de nos dominar à força

antes, mas nunca tentou.

— Ele está bravo com Michael por tê-lo enganado do lado de fora da sala do professor

McMaster, para começar. E... — Tamiel parou, como se já tivesse falado muita coisa.

— Conte, Tamiel.

— Ele acredita que você está perigosamente perto de entender quem você é. Quando você

compreender totalmente sua natureza e seus objetivos, o final dos dias vai começar. E Ezekiel

não pode mais esperar. Ele quer você do lado dele.

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Quarenta e Cinco

Senti em vez de ver ou ouvir Ezekiel nos seguindo pelo Faneuil Hali. Sabia que Michael e

Tamiel também haviam sentido, pois todas as vezes em que meu instinto me mandara virar à

esquerda ou à direita para fugir dele, eles tiveram a mesma sensação — sem precisarmos dizer

nada um ao outro.

Movemo-nos juntos e entramos no Faneuil Hall. Apesar do frio, o local estava lotado.

Zigue-zagueamos entre vendedores ambulantes que ofereciam mercadorias, turistas tomando

bebidas quentes e malabaristas que os entretinham. Tamiel estava certa; a multidão nos protegia

e atrapalhava a habilidade de Ezekiel de nos atacar. Por enquanto.

Após alguns minutos correndo juntos entre a multidão, Tamiel, de repente, assumiu a

liderança. Ela nos guiou até um prédio impressionante, com colunatas enormes e uma placa de

latão que dizia ‚Quincy Market‛. Dentro do prédio havia uma enorme praça de alimentação

coberta, cheia de mesas, barracas e mais gente.

Cortando a multidão como uma faca, Tamiel nos levou direto às portas dos fundos. Ela

havia nos levado ao Quincy Market apenas por diversão e para atingir Ezekiel. Michael e eu

mantivemos o passo e a seguimos até o final longínquo do mercado. Fiquei muito feliz em, por

fim, avistar a porta de saída, próxima a um pequeno palco.

Quando Tamiel alcançou a maçaneta da porta, ouvi uma batida alta reverberando em

todo o saguão, que estava lotado. Viramo-nos. Todas as portas do Quincy Market tinham sido

fechadas e trancadas, mas as pessoas continuavam a comer e a beber, conversando como se

nada tivesse acontecido.

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Viramos em direção às portas de saída. Ali, no palco, estava Ezekiel. Era o cenário que eu

mais temia.

Ezekiel deu aquele seu sorriso doentio e começou a andar pelo palco. Ele nos encarou,

mas falou apenas com Tamiel, com uma voz triunfante:

— Vou contar a eles quem eles são.

— Por favor, não, Ezekiel. — Fiquei assustada ao ver a aparentemente invencível Tamiel

implorando. Olhei para Michael, mas ele não retribuiu meu olhar. Ele estava imóvel, assistindo

ao confronto entre os dois anjos.

— Você tem medo de que eles conheçam toda a história, Tamiel? Ah, esqueci. Você

preferia que eles tivessem acesso às pequenas partes da história que você e os outros usam para

saciá-los em lugares assépticos como as bibliotecas de Harvard.

— Você não se importa com o que vai acontecer se você contar tudo a eles?

— Você quer dizer o que pode acontecer a você, Tamiel? E aos outros caídos? — Ele fez

um gesto largo apontando as pessoas. Elas não notavam nossa presença; Ezekiel certamente

fizera algum truque para impedir que nos vissem. — Ou você quer dizer o que pode acontecer a

todos eles? Ah, eu queria que Michael e Ellspeth não soubessem de tudo no início, mas agora

eles talvez já saibam o suficiente para começar. Então quero ser o primeiro a dividir com eles a

história toda — em vez das versões amainadas que esses idiotas sorridentes que se julgam pais

deles irão lhes contar. Michael e Ellspeth devem saber a verdade e o papel destinados a eles no

final.

A voz de Tamiel parecia um trovão.

— Pare, Ezekiel!

Mas sua voz não tinha comparação com o rugido de Ezekiel, que urrou de volta:

— Você vai deixá-los me ouvir! Ou vou colocar fogo neste lugar, que vai ficar parecido

com o próprio inferno. E esse vai ser só o começo.

Tamiel ficou imóvel, abandonando a briga. A voz de Ezekiel ficou mais calma e adquiriu

aquele tom calmo de quando ele julgava ter atingido seus objetivos. Então, olhou em nossos

olhos pela primeira vez desde que o vimos no Quincy Market.

— Michael e Ellspeth, eu esperei por muito, muito tempo até encontrá-los. Desde aquele

dia em que Ele... — Ezekiel falou logo a palavra como se fosse uma maldição — ... destruiu

nossos companheiros Nephilins, seus irmãos e irmãs, no dilúvio de Noé. Desde que soube que

vocês foram concebidos, procuro por vocês. As pessoas que alegam ser seus pais tornaram

minha pesquisa dificil, abrindo mão de sua imortalidade para que eu não conseguisse notar a

presença deles. Eles os misturaram em meio à humanidade e, por isso, foi difícil encontrá-los.

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Mas eu, por fim, os encontrei, quando os poderes de vocês começaram a aparecer. Vocês se

tornaram algo parecido com um farol para mim. Ou pelo menos Michael se tornou. E por meio

dele, você, Ellspeth.

Ezekiel, então, perguntou:

— Devo lhes contar por que eu ansiava por vocês?

Michael e eu não respondemos. Como poderíamos reagir quando o mal em pessoa nos

contava que éramos a resposta às suas preces?

— Eles mentiram em parte no Livro de Enoch. — Ele sorriu e continuou: — Ellspeth, creio

que você descobriu isso durante sua pesquisa de hoje:

‚Quando a congregação dos justos aparecer ,

E os pecadores forem julgados por seus pecados,

E forem levados da superfície da Terra;

E quando O Eleito aparecer diante dos olhos dos justos,

Cujas obras eleitas estiverem sujeitas ao Senhor dos Espíritos,

E surgir a luz para os justos e eleitos que ainda habitarem a Terra...

A partir desse momento, os possuidores da Terra não serão mais

poderosos e elevados;

E eles não serão capazes de contemplar a face do sagrado, Pois o Senhor dos Espíritos fez

sua luz aparecer Na face do sagrado, do justo e do eleito.

E então os reis e poderosos perecerão

E serão entregues aos justos e sagrados.

E desde então ninguém deverá procurar por conta própria a

misericórdia do Senhor dos Espíritos

Pois sua vida estará próxima do fim.

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— Vocês entenderam o que isso significa?

Michael e eu não tínhamos nem ideia, e Tamiel não articulara uma só palavra desde que

Ezekiel a havia calado com a ameaça de incêndio.

— Não? — indagou Ezekiel, com um sorriso. — Deixe-me explicar. Ellspeth, acredito que

Hananel e Daniel tenham lhe contado que Deus amaldiçoou alguns de nós, anjos, quando

descemos à Terra e criamos uma raça por conta própria, por meio da procrição com os seres

humanos; essa raça foi chamada de Nephilim. Deus — em sua infinita arrogância — ficou tão

furioso com nosso ato de criação que matou todos os seres humanos, com exceção de seu animal

de estimação, Noé, e seus familiares. Deus então proibiu os anjos de procriarem e nos baniu do

céu, deixando-nos aqui na Terra como supostos caídos. Daniel e Hananel lhe contaram isso,

Ellspeth?

Concordei com a cabeça.

O Livro de Enoch descreve como os anjos caídos — como eu e os pais de vocês, e até como

a Tamiel aqui presente — irão governar a humanidade até o final dos tempos. Assim, no fim,

um ser selecionado irá emergir com o objetivo de julgar os anjos caídos e a humanidade. Esse

ser selecionado — que Enoch chama de O Eleito — é um Nephilim, metade humano, metade

anjo. — Ele sorriu. — Então, como podem ver, Enoch nos contou que, apesar da ordem

específica de Deus para os anjos não procriarem, o Nephilim irá realmente voltar. E um desses

Nephilins vai decidir o destino de todos os seres na Terra — anjos e humanos.

Senti-me enjoada. De repente, eu sabia até onde ia a história de Ezekiel. Ele estendeu as

mãos em direção a mim e a Michael.

— Vocês são esses Nephilins. E um de vocês é O Eleito.

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Quarenta e Seis

Ora, essa. Eu já estava acostumada ao fato de que era diferente, algo mais do que um ser

humano, mas isso? Ezekiel esperava que eu e Michael acreditássemos que um de nós tinha sido

escolhido para julgar as criaturas da Terra no final dos tempos.

Olhei para Michael, mas ele parecia hipnotizado mais uma vez.

Então olhei para Tamiel, para ver sua reação. Ela parecia derrotada. Tamiel também olhou

seriamente para Ezekiel.

— Como isso explica por que eu esperei tanto pelo nascimento de vocês? Por séculos, até

por um milênio? — Ezekiel falava enquanto cruzava o palco, como se desse uma palestra à

plateia cativa.

Ele continuou:

— Eu sabia que, quando os encontrasse e ficasse ao lado do Eleito, os caídos seriam

julgados com justiça no final. Quando o Eleito tivesse aprendido o que eu aprendi e visto o que

eu vi, ele iria entender que os caídos não são pecadores, mas, na verdade, ‚justos e eleitos‛,

como Enoch dissera. E os caídos continuariam a possuir a Terra talvez até o céu novamente.

E tudo ficou claro quem controlasse os Nephilins, controlaria o final dos tempos. Mas por

que Ezekiel pensava que eu ou Michael o julgaríamos como ‚justo e eleito‛? Ezekiel estaria no

topo da minha lista de pecadores.

Ezekiel ficou no centro do palco. Com um movimento dramático, estendeu as mãos em

nossa direção e anunciou:

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— A resposta está em seu nome, Ellspeth.

O que diabos ele queria dizer?

Ele deu uma risada sufocada, como se eu tivesse feito a pergunta em voz alta. Meu rosto

devia revelar tudo.

Ellspeth significa ‚A Escolhida‛. Você é a Eleita.

— Eu? Por que não Michael? — As palavras apenas saíram da minha boca.

— Ah, Michael tem um papel importante. Mas mais como protetor, um cavaleiro para sua

dama, se você quiser. Exceto pelo fato de que você é bem mais que uma dama.

Esticando a mão, ele falou:

— Venha comigo.

Então era eu. A Eleita. Isso era loucura. E por que Ezekiel pensava que eu iria a algum

lugar com ele? Mais do que qualquer um, eu conhecia seu lado obscuro; eu tinha visto através

de seus olhos.

Virei-me e olhei para Tamiel e Michael para buscar ajuda. O rosto de Michael ainda tinha

uma expressão vidrada. E Tamiel não tinha ido embora, mas evitava o olhar e se afastara de

mim, de Michael e de Ezekiel. Era quase como se ela estivesse proibida de se juntar a nós

naquela batalha.

Apenas Ezekiel encontrou meu olhar.

— Ellspeth, você tem escolha. Pode vir comigo e salvar Michael ou escolher Tamiel e sua

bondade, e então eu destruirei Michael.

Então era assim que Ezekiel pensava que poderia me fazer ir com ele. Ele acreditava que

eu jamais arriscaria a vida de Michael. Mesmo por uma boa razão.

E Ezekiel devia estar certo. Como eu escolheria destruir Michael?

— Você não pode levá-la! — Michael de repente despertou, com um grito.

Inexplicavelmente, Ezekiel lançou um olhar risonho na direção de Michael.

— Eu já ouvi essas palavras antes. Acho que Hananel e Daniel me disseram isso quando

você nasceu, Ellspeth.

Michael levantou do chão e voou em direção a Ezekiel que, surpreso, ainda estava no

palco. Ele pousou em cima de Ezekiel com tanta força que ele caiu do palco, fazendo um forte

barulho, quase batendo em uma barra de metal que sustentava a plataforma. Mas a barra deve

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ter machucado o rosto de Ezekiel, pois o sangue escorria pela sua face. Era perturbador ver o

imortal Ezekiel sangrando.

Ezekiel se levantou, limpou o sangue com o dedo e o lambeu.

— Você ia me matar, filho?

— Filho? Não sou seu filho — gritou Michael.

— É isso mesmo que você é — respondeu calmamente Ezekiel. Michael então voou do

palco em direção a Ezekiel. Dessa vez, Ezekiel estava pronto. Com um impulso, voou para as

vigas do teto do saguão. Quando Michael o seguiu, comecei a levitar para ir atrás deles. Eu não

podia deixar Michael lutar contra Ezekiel sozinho.

Tamiel me puxou para o chão.

— Michael deve combater Ezekiel sem ajuda.

Tentei me livrar dela, mas Tamiel era incrivelmente forte.

— Michael está tentando me proteger de Ezekiel. Não posso deixar que ele faça isso

sozinho. Ele precisa de mim.

Tamiel me pegou pelos ombros e me encarou.

— Ellspeth, somente o filho pode matar o pai. Deixe Michael cumprir seu destino, se ele

puder.

— Ezekiel é mesmo seu pai? — Eu estava chocada, embora isso explicasse a ligação entre

eles. Achei que Ezekiel tivesse falado que Michael era seu filho metaforicamente.

— Sim, ele é. Só alguém com o sangue de Ezekiel em suas veias pode destruí-lo.

Aquela novidade desviou minha atenção da batalha feroz que acontecia acima da minha

cabeça.

— Mas eu pensei que os anjos não pudessem procriar.

— Em geral, eles não podem. Mas você e Michael são exceções.

— Então somos mesmo Nephilins?

— Sim.

— Onde estão nossas mães? Nossas mães humanas? — De repente, ansiei profundamente

pela minha mãe.

Tamiel olhou para o chão.

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— Suas mães biológicas não estão mais entre nós.

— Elas estão mortas? — Quis chorar, mas sabia que não podia. Eu precisava me manter

concentrada.

— E meu pai? Onde ele está?

Ouvimos um forte estrondo acima de nós. Ezekiel tinha jogado Michael com força no

andaime de metal que sustentava o teto, e gritei, a despeito, de mim mesma. Torci-me e me

virei, tentando me soltar de Tamiel para poder ajudá-lo.

— Espere aqui ou você só vai complicar as coisas para Michael — ordenou ela.

Tamiel me segurava de um jeito impossível de me soltar, deixando-me sem escolha, a não

ser assistir à guerra que ocorria acima de nós. Michael e Ezekiel mergulharam acima, sobre e ao

redor das enormes vigas que davam sustentação ao teto. Senti que Michael podia realmente

ganhar a batalha, mas então Ezekiel o pegou pelo pé e enfiou sua cabeça em uma enorme viga.

Michael ainda voou para longe, mas eu sabia que ele estava terrivelmente machucado. Eu podia

sentir o cheiro do sangue que saía de seus machucados e percebi que ele ficava cada vez mais

fraco.

De repente, descobri como ajudá-lo. De alguma maneira, tirei as mãos de Tamiel dos

meus ombros e corri para o lado do palco. Olhei para cima. Michael e Ezekiel voavam bem

acima de mim. Era a hora certa.

Forcei um soluço e gritei:

— Pare, Ezekiel. Eu não posso mais vê-lo machucar Michael. Pare. Eu vou com você. Mas

só se você entregá-lo para mim ileso e voando por conta própria — bem aqui.

— Não, Ellie — gritou de volta Michael.

— Sim, Michael. — Olhei incisivamente para baixo, para a barra de ferro, esperando

desesperadamente que Ezekiel não entendesse o que eu estava querendo dizer. — É o único

jeito.

— Você fez a escolha certa, Ellspeth — berrou Ezekiel.

Lado a lado, eles começaram a descer. Ezekiel tomava cuidado para não encostar em

Michael, mas sem tirar os olhos dele. Fiquei perto — mas não ao lado da barra de ferro e os vi se

aproximando do chão. Pouco antes de pousarem, estendi os braços para Ezekiel, com a intenção

de distrai-lo.

— Está quase na hora — eu disse. Como se falasse com Ezekiel.

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Ezekiel estendeu os braços para mim. Com uma expressão de triunfo, deixou de olhar

para Michael e sorriu para mim. Michael voou até as costas de Ezekiel e o empurrou na barra de

ferro com toda sua força.

Corremos para o lado de Ezekiel para nos certificarmos de que tínhamos feito um bom

trabalho. Mas não tínhamos. Em segundos, o cheiro do sangue derramado de seu corpo foi

muito poderoso. Ele parecia fraco — quase morto —, mas seus olhos ainda estavam abertos e

piscando.

— Não estou sozinho. Há outros. Outros ainda mais poderosos que eu. Como seu pai —

sussurrou Ezekiel, e deu seu sorriso doentio para a multidão. E então parou de piscar.

Olhei para o Quincy Market, na direção do último olhar de Ezekiel. Lá, no meio da

multidão, vi um homem de cabelos escuros e olhos azuis brilhantes nos encarando. Como se

tivesse nos visto. E então ele desapareceu.

Tamiel correu para perto da gente. Ela concordou com a cabeça diante das palavras finais

de Ezekiel. Havia acabado, mas apenas por um momento.

Eu não me importava. Levantei-me e abracei Michael o mais forte que pude. Mesmo que

só tivéssemos um breve momento de paz juntos, mesmo que eu fosse essa outra estranha

criatura, a Eleita, eu ansiava por esse momento, essa paz.

Olhamo-nos e sorrimos. Fechei os olhos e me rendi aos braços calorosos de Michael.

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Quarenta e Sete

Abri os olhos. Eu estava em minha cama.

Minha cama.

Não me lembrava de ter voltado de Boston para Tillinghast.

Como eu chegara lá? A última lembrança que eu tinha era de abraçar Michael no Quincy

Market, depois de vermos o corpo de Ezekiel caído no chão. Ai, meu Deus, Ezekiel.

Sentei-me na cama. Levantei o edredom, o cobertor e o lençol. Eu estava usando meu

pijama de flanela. Quem havia me trocado? Olhei para o relógio. Eram sete da manhã, mas eu

não tinha ideia de que dia era.

Afastando as cobertas, levantei-me um pouco instável. Cambaleei até a escrivaninha, onde

estava minha bolsa. Peguei-a, procurando qualquer evidência de que eu tinha estado em

Boston. Achei meu caderno de anotações cheio dos rabiscos habituais, minha carteira com

minha identidade e dinheiro e meu nécessaire guardados como sempre. Não havia bilhetes de

trem nem recibos, tampouco nenhuma lista das perguntas que eu fizera no trem para Boston ou

durante a longa noite no café da Harvard Square. Mas meu celular estava lá. O celular que eu

havia jogado fora, no lixo da estação de trem de Tillinghast.

Tudo aquilo teria sido um sonho? O voo e o sangue? Ezekiel e a viagem para Boston? E

toda aquela história de Nephilim e de ser a Eleita?

Michael também era um sonho?

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Desci correndo as escadas, sem certeza do que esperar encontrar. Minha mãe estava no

balcão da cozinha passando manteiga na torrada e colocando suco de laranja no copo, como

fazia todas as manhãs. Ela olhou para mim sem nenhum sinal de surpresa por me encontrar na

cozinha. Mas ela estava surpresa diante do meu estado, dada a hora.

— Querida, por que você ainda está de pijama? Você tem de ir para a escola em quinze

minutos.

Olhei a cozinha, como se não a visse há meses. A chaleira estava no mesmo lugar e os

imãs da geladeira seguravam as fotos e os bilhetes de sempre. Tudo estava do jeito que eu

deixara. Mas eu me sentia totalmente diferente.

Minha mãe veio até mim e colocou a mão na minha testa.

— Você está doente, Ellie? Está um pouco abatida, mas não está quente.

Eu tinha medo de falar. Praticamente qualquer frase que saísse da minha boca poderia ser

inadequada. E até parecer maluquice.

— Querida, está tudo bem?

As palavras finalmente saíram da minha boca como um grunhido.

— Estou bem, mãe. É que acordei de um sonho muito esquisito.

Ela levantou as sobrancelhas preocupada, mas sua voz estava calma. Muito, muito calma.

— O que você sonhou, querida?

— Nada. Foi só um sonho. É melhor eu me arrumar logo.

Subi as escadas e abri meu armário para escolher uma roupa. No cabide, estavam

penduradas as roupas mais ousadas que eu tinha comprado desde que começara a sair com

Michael. E o vestido vermelho que eu usara no Baile de Outono. Pelo menos aquilo não era um

sonho. Talvez Michael também não fosse.

Peguei uma calça jeans e uma blusa e fui até o banheiro. Tranquei a porta e permaneci

encostada nela por um bom tempo, até que, por fim, fui até a pia e liguei a água quente.

Conforme o vapor subia, fiquei me olhando no espelho embaçado. Desfiz todos os nós do meu

cabelo com a escova. Passei um pouco de blush e rimel e me vesti, tentando ignorar o mal-estar

no estômago.

Temendo as incertezas da escola, voltei me arrastando para a escada e desci.

— Estou pronta, mãe.

Ela me olhou com curiosidade.

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— Mas Michael virá buscá-la hoje.

— Não estou mais de castigo? — Meus pais tinham me proibido de ir à escola de carro

com Michael desde o Baile de Outono. Nós só podíamos nos ver em lugares que tivessem gente,

como a escola e do minha casa.

— Não, querida. Seu castigo acabou nesse final de semana.

Ela parou por um instante e perguntou: — Tem certeza de que está tudo bem, Ellie?

— Estou bem, mãe. — Eu esperava que a frase soasse convincente, embora eu não me

sentisse bem. Não queria que ela se preocupasse comigo; eu já tinha problemas demais. — Vou

esperar por Michael em frente à janela.

— Não quer que eu o espere com você?

— Não, obrigada, mãe. Tenho de dar uma revisada na minha lição. — Eu precisava ficar

um pouco sozinha. Ela pareceu contente por eu ter mencionado algo normal como a lição de

casa.

Fiquei olhando para a garagem e tentando entender as coisas. A lista de perguntas que eu

havia feito no trem para Boston não saía da minha cabeça. Se os últimos dois meses tinham sido

reais — em vez de um sonho bizarro —, então eu talvez tivesse algumas respostas para minhas

perguntas.

O que eu era? A pergunta de um milhão de dólares. Pressupondo que o voo, o sangue,

Ezekiel e Boston realmente tinham acontecido, eu tinha bastante certeza de que era uma

Nephilim. Mas a não ser pelos meus poderes, não estava certa do verdadeiro significado de ser

uma Nephilim. Qual era o objetivo de um Nephilim? Se eu acreditasse em Ezekiel, então eu era

a ‚Eleita‛ e tinha algum papel importante no ‚fim dos tempos‛, seja l{ o que isso quisesse dizer.

Até meus pais tinham dito algo sobre eu ser diferente e ter de me preparar para a ‚guerra‛, e

Tamiel tinha mencionado o ‚final dos tempos‛. Que guerra era essa, e contra quem eu lutaria?

Eu ainda tinha mais perguntas que respostas. O que tinha ocorrido com meus pais

biológicos? Eu realmente podia contar com Michael enquanto descobria tudo isso?

Então ouvi um barulho de cascalho triturado. O carro de Michael tinha chegado. Minha

ansiedade, que já era enorme, estava maior ainda. O que eu devia falar para ele? Eu ainda não

tinha certeza do que era real e do que tinha sido um sonho.

— Tchau, mãe — gritei e saí até o carro. O dia estava frio e chuvoso, mas não gelado a

ponto de nevar.

Michael desligou o carro e abriu a porta para mim sem sair do veículo. Entrei e fechei bem

a porta. E, então, me sentei em silêncio, sem saber quais palavras seriam apropriadas.

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Ele se inclinou e me beijou na bochecha.

— Como foi sua noite?

— Tudo bem — respondi com cautela. — E a sua?

— Boa. Terminei a lição de cálculo — falou enquanto virava a chave na ignição.

— Que bom. — Eu não sabia o que dizer a seguir. Nem conseguia lembrar que lição eu

estava fazendo antes de fugir para Boston.

Então fiquei quieta.

Ele ligou o carro e a música inundou o ambiente. Era uma música do Coldplay,

‚Cemeteries of London‛, uma das minhas preferidas, e Michael sabia disso. Fazia-me lembrar

nossos voos noturnos, quando saíamos para explorar o mundo. Se é que isso tinha realmente

acontecido.

— Aqui está parecido com Londres hoje, né? — indagou Michael. Olhei para ele surpresa.

Ele tinha dito aquilo mesmo? Estávamos indo para Londres encontrar o professor Barr no dia

anterior — saindo de Boston. Ou ele apenas se referia à música?

Um sorriso iluminou seu rosto. Um sorriso de cumplicidade.

Então...? Minha mente girou. Não tinha sido um sonho. Como se lesse meus pensamentos,

Michael disse:

— A ignorância foi a única coisa que a protegeu até agora.

Naquele instante, percebi o que tinha acontecido. Na conversa entre nossos pais que

Michael escutara, meu pai tinha dito a mesma coisa. Meus pais desejavam tanto que não

conhecêssemos nossa identidade — para nos proteger e para evitar o avanço do final dos

tempos — que tentaram apagar nossa memória. Sobre os voos, Ezekiel, Boston, Nephilins e o

Eleito. Eles sabiam que não iam conseguir nos afastar um do outro; eles já tinham tentado isso

depois da viagem à Guatemala e não tinha dado totalmente certo.

E não tinha funcionado agora. Nós nos lembrávamos de tudo.

Comecei a falar animadamente. Todas as peças estavam se encaixando. Mas Michael

balançou a cabeça e colocou o dedo sobre meus lábios.

Então apenas sorri de volta para ele. Sabia que ainda não tinha acabado. Aquilo era só o

começo.

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A série Fallen Angel continua em<

Um fim... ou um novo começo? Ellie tem que lidar com a difícil missão de ser a Eleita para

salvar o mundo. Com as responsabilidades aumentando, seu relacionamento com Michael vai

de mal a pior, e a situação chega ao limite quando ela conhece um rapaz muito especial,

chamado Rafe. A hora tão esperada finalmente chegou, e a garota tem que aprender a usar seus

poderes para enfrentar os anjos caídos. Sabendo do importante papel que o destino lhe

reservou, ela tenta deixar as emoções de lado, mas logo descobre que aquele que tem a chave

para o seu coração também é res¬ponsável pela salvação ou destruição da humanidade. Com o

homem certo ao seu lado, nossa heroína encontrará as forças para enfrentar o seu destino e

encarar um difícil dilema: salvar a humanidade à custa de uma grande perda. O leitor vai se

emocionar com esta incrível história de amor, nas suas mais diversas formas, e seu final

surpreendente.

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Heather Terrell

Heather Terrell é uma advogada com experiência de

mais de dez anos. Ela é graduada magna cum laude, do

Boston College, com foco em História e Arte, e uma

graduação cum laude pela Universidade de Boston

Faculdade de Direito. Ela vive em Pittsburgh com sua

família. Heather é autora dos romances históricos The

Chrysalis e The Map Thief, que foram lançados em mais de

dez países, bem como Brigid of Kildare. Ela também é a

autora da série YA, intitulada Fallen Angel.

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