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Foi lançado, em Março deste ano,o nº 1 da Murphy, Revista de História eTeoria da Arquitectura e do Urbanismo,dirigida por Paulo Varela Gomes e edi-tada pela Imprensa da Universidadede Coimbra

Esta ocasião – que coincidiu coma preparação deste nº 2 da Revista deHistória da Arte – é a oportunidadepara recordar a oferta académica nes-te domínio, fundamental para a esti-mular a investigação e disseminar acomunicação.

Ao que sei, está por fazer umlevantamento e estudo conjunto daspublicações portuguesas no âmbitoda História da Arte, de iniciativa aca-démica ou de outra proveniência. Tal

lacuna não pode ser preenchida comesta breve notícia que se cinge apublicações recentes e em curso, eapenas académicas; mesmo assim,admito desde já eventuais falhas que,se existirem, colmatarei no nº 3 danossa Revista. Outra prevenção: aHistória da Arte articula-se perma-nentemente com os vários territóriosda investigação histórica e, por isso, elaestá, felizmente, muitas vezes presenteem revistas que, não sendo da espe-cialidade, procuram e promovem asua indispensável colaboração. Tam-bém não terei em conta esse domíniovastíssimo.

A mais antiga das novas revistasde História da Arte é a Arte e Teoria,oriunda do Mestrado em Teorias daArte da Faculdade de Belas-Artes deLisboa (FBAL), com direcção doProfessor José Fernandes Pereira. Deperiodicidade anual, temos em mãoso seu nº 7, referente a 2005, que trata,com notável amplitude, a Arquitec-tura, sobretudo no domínio da teoriamas também, em algumas situaçõesconcretas. As colaborações são diver-sas, de docentes, mestres e mestran-dos da FBAL, bem como de outrosinvestigadores reconhecidos e docen-tes de diversas escolas. Não sendo omeu objectivo fazer uma recensãocrítica da Revista, destacarei, no en-

A arte em revistas.

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Austeramente ilustrada a preto ebranco, utilizando a imagem sobre-tudo como material documental davasta secção “Estudos”, a Revista com-preende ainda uma secção “Crónica”,com contributos das várias secções ea utilíssima listagem das dissertaçõesde Mestrado e Doutoramento realiz-adas no respectivo ano.

Regressando à Murphy – queesteve na origem desta notícia – eladistingue-se, das congéneres, por duasordens de razões: a primeira, o seuobjecto que é a História da Arquitec-tura e não a História da Arte emgeral. Sendo uma opção assumida elegítima, considerando o seu lugar deorigem (um Departamento de Arqui-tectura), creio que o futuro talvez de-termine algum alargamento do cam-po disciplinar, porque muitas situaçõeshá em que a arquitectura faz corponão só com o território, as engenha-rias e a história do urbanismo e dascidades, mas também com outrasartes que, se não a determinam, ailuminam ou são por ela iluminadas.Quanto às matrizes teóricas, estéticase simbólicas, hoje, como no passado,continua a haver questões cruciais emcomum entre as designadas artesvisuais e a arquitectura.

Mas a grande novidade da Murphyé a opção do bilinguismo (português

e inglês), com o objectivo ambiciosode fazer circular e reconhecer interna-cionalmente a produção portuguesaneste âmbito. Trata-se de um desafioeditorial corajoso e, se for bem suced-ido, absolutamente fundador. Por isso,merece destaque, elogio e votos desucesso.

Registo finalmente, também emconsequência da complexidade criadapela versão inglesa de todos os arti-gos, a qualidade editorial e gráfica darevista que, deve dizer-se, é superior atodas as que antes referi (e também àda Revista de História da Arte…), em-bora não isenta de algumas dificul-dades de leitura que, certamente,serão corrigidas.

Balanço geral: num país em que oensino universitário da História daArte só se especializou na década de1980 (há pouco mais de 20 anos), aexistência das revistas citadas revela arobustez deste domínio do saber,tanto em termos da quantidade equalidade das investigações, como dodesejo e capacidade de as divulgar,não só inter pares, mas para públicosmais amplos, embora predominante-mente universitários.

Raquel Henriques da Silva

222 Revista de História da Arte

tanto, a densidade da informação, comcontributos originais, e a qualidade gráfica com uso abundante de imagens,nomeadamente de fotografias a cor.Pessoalmente, sinto falta de um edito-rial que apresentasse o tema ou ostemas, tratados em cada número, bemcomo as opções editoriais com elesrelacionados. Haveria menos impesso-alidade, em relação à comunidade dosleitores, e a introdução de uma marcado tempo de origem que, como sesabe, é sempre condição da História.

Artis, Revista do Instituto de His-tória da Arte da Faculdade de Letrasde Lisboa, dirigida pelo Prof. VítorSerrão, publicou, em 2005, o seu nº 4,como todos, densíssimo de infor-mação de largo espectro, em grandeparte (mas não na totalidade) oriundadas investigações que decorreram oudecorrem no âmbito das actividadesdo Instituto. Precisamente, o Editorialdo nº 4 afirma que ele “encerra umciclo de publicação” que, de futuro, seabrirá a colaborações livres, bemcomo alargará o número e amplitudede notícias relacionadas com aspráticas da História da Arte, nacionaise internacionais. Na minha opinião,anuncia-se assim um enriquecimentoda revista que, na verdade, sempre otem prosseguido, nomeadamente emtermos da presença crescente deimagens que eram escassas nos pri-meiros números.

Promontório, Revista do Departa-mento de História, Arqueologia ePatrimónio da Universidade do Algar-ve publicou também o seu nº 4 em2005, não é, como o seu nome indica,especificamente uma Revista de História da Arte, cruzando uma plurali-dade de saberes que confluem noestudo histórico, arqueológico eartístico da região algarvia. Consi-derei-a nesta breve notícia porquenela têm participado, com artigosrelevantes (em termos de investiga-ção e alta divulgação) alguns historia-dores da arte, manifestando quanto opólo algarvio, jovem na ordenaçãouniversitária portuguesa do ensino daHistória da Arte, é um dos seus elosde referência. Mas, para que a dis-ciplina aprofunde a sua presença noconjunto de áreas científicas da Revista,será necessário apostar mais na docu-mentação fotográfica.

Na Universidade do Porto, a Re-vista da Faculdade de Letras – Ciênciase Técnicas do Património publicou, em2005, o seu volume IV, sob direcçãodo Prof. Agostinho Araújo, presidentedo departamento com a mesma desi-gnação, e coordenada pelo Prof. FaustoSanches Martins. Envolvendo váriassecções (Arqueologia, Ciências daInformação, História da Arte e Museo-logia), os artigos são assinados por do-centes do departamento, mas tambémmestres e doutorados ali formados.

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Historica e cronologicamentepassou-se o seguinte:

1º ponto. O Presidente da CMLdecidiu a demolição por um(a) enge-nheiro(a), sem qualidade cultural parao efeito, embora a tivesse burocrati-camente, repetindo a decisão dopresidente anterior. Este, porém, em28 de Junho de 2005, atendendo aoparecer subsequente da DirecçãoMunicipal de Conservação e Reabilita-ção Urbana, assinado por uma direc-tora de maior habilitação cultural dehistoriadora, às considerações depareceres contraditórios do IPPAR, aprotesto da Assembleia Municipalcom moções de três partidos lárepresentados, de duas interpelaçõesao Governo na Assembleia da Repú-blica, de reclamações públicas expres-sas na imprensa e por instituiçõesculturais e individualidades responsá-veis, por um movimento de cidadaniaque reuniu 2300 assinaturas, e ainda àoposição da Junta de Freguesia deSanta Isabel – resolveu suspender aautorização de demolição

2º ponto. A intervenção no casodo arq. Manuel Tainha, autor do pro-jecto do imóvel de substituição (cujaqualidade artística não está obvia-mente em causa), partindo da demoli-ção da casa de Garrett que assimassumia. É este arquitecto credor deuma obra anterior considerável; dadaa sua idade, ele arrisca-se a terminar a

carreira de uma maneira que a Histó-ria da Arquitectura portuguesa julgará,nas suas vertentes culturais e morais.

3º ponto. Diz respeito ao pro-motor da obra que, em termos deHistória da Arte, é dado da maiorimportância social, de conhecimentoindispensável. Trata-se do dr. ManuelPinho, Ministro da Economia emexercício – o que deve ser considera-do circunstância agravante em termosde ética política, a que a história daArte de qualquer época deve atender,e pela qual todos os cidadãos sãoresponsáveis. A menos que seja cir-cunstância facilitante, como podepensar-se, na análise do processo. Nãofoi ainda pedido inquérito parla-mentar ao dito governante, ou aoSenhor Primeiro Ministro do governoque ele integra, pela responsabilidadepolítica que lhe cabe no compor-tamento dos seus colaboradores; ou àSenhora Ministra da Cultura a quemdeve ser exigida acção crítica na suaárea de influência.

Não são, bem entendido, os es-crúpulos culturais coisa corrente naactividade de promotor ou especu-lador imobiliário, cujo objectivo éobter lucros dentro da economia demercado, aceite ou tolerada desdeque legalizada pelos responsáveisoficiais. O próprio Garrett (paralembrar a vítima póstuma do caso)teve, na sua época, palavras de crítica

O Caso da Demolição da Casa de Garrett em Lisboa

Em Dezembro de 2005 o patri-mónio cultural e arquitectónico da ci-dade de Lisboa sofreu grande perdapor decisão última do Presidente daCâmara Municipal, engº Carmona Ro-drigues – e foi esse, provavelmente, ofacto cultural mais importante emPortugal, no ano transacto, com o si-nal negativo que infelizmente lhe cabe.

Trata-se do palacete datado de1853 em que Almeida Garrett seinstalou e faleceu, pouco depois, emDezembro de 1854, no bairro deSanta Isabel, defronte do muro docemitério inglês, à Estrela. A qualidadedo edifício, espécime naturalmente

modesto mas raríssimo da arqui-tectura urbana do Romantismo emLisboa, com o seu rés-do-chão deduas portas de cocheira e primeiroandar de cinco vãos, balaustrada nacornija, forro de azulejos de assentoraro, é geralmente reconhecida peloshistoriadores habilitados da arquitec-tura nacional. Está ele situado numazona de protecção definida por dis-posição camarária de 1970, determi-nada pelo então presidente GeneralFrança Borges. À qualidade artísticado edifício, que não teve, infelizmente,em devido tempo, classificaçãoindividualizada do IPPAR ou da pró-pria CML, e foi padecendo degrada-ção nos interiores mal tratados, outrase adiciona, de ordem comemorativa,com o testemunho de ser a casasimbólica de Garrett na cidade ondetrabalhou e viveu. Tal foi reconhecidopela Câmara Municipal pela aposiçãode uma lápide, agora apeada, em 25de Junho de 1865.

O prejuízo da primeira razãomultiplica-se pela segunda e a umnível tal que não terá situação actualmais grave na cidade, porque, deordem cultural, pelo edifício em si epela sua significação, e ela é tambémde ordem ética – e isso diz respeito atodos os cidadãos a quem se diminuio património a que tem direito.

Fotografia de Pedro Soares

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severa e despreziva para tais compor-tamentos sociais, em palavras bemconhecidas.

De qualquer modo, os nomesdos referidos intervenientes, todoseles, devem figurar na placa comemo-rativa que a CML prometeu pôr nonovo imóvel, para conveniente registohistórico.

Deste caso há que tirar reflexõesnuma revista universitária de Históriada Arte destinada a estudiosos e aestudantes dessa disciplina – na defesado património nacional que, acima detudo, lhes incumbe. Porque inútil seria,ao fim e ao cabo, estudar esse patri-mónio se ele é impunemente des-truído, não beneficiando de acautela-mento cívico da parte dos detentoresdo poder – que dele podem sempreabusar.

Conta o signatário quarenta anosde defesa, escrita ou por acções ou-tras, do património lisbonense, nacio-nal e não só; por isso aceitou escreveresta nota em termos pedagógicosconvenientes e para que fique como

peça do processo. Por isso também,em protesto pessoal, se demitiu elede representante de Portugal nocomité do Património Mundial daUNESCO, considerando não ter oseu Pais direito a julgar os outros,fazendo coisas destas em sua própriacasa; e devolveu a Medalha de Honrada cidade que lhe foi atribuída em1992, ao Senhor actual Presidente daCML. Mas deve ainda acrescentar que,narrando este caso em França, a cole-gas de Universidade e do Património,recolheu uma impressão, primeiro, deincredibilidade e, depois, de pasmo; eviu-se como se estivesse a falar dacapital de uma república bananeirados trópicos!

A credibilidade da nossa pro-fissão de historiadores portuguesesda arte não pode deixar de sofrercom casos destes, no âmbito inter-nacional em que necessariamente sedefine. Lição afinal a entender.

José-Augusto França

Notícia do “castelo” português de Ben Mirao

O que a história não tinha aindaapagado sobre a presença física por-tuguesa no cabo de Guer, encarregou--se um violento sismo de destruir em1960. Com ele ceifaram-se quinze milvidas, habitantes da Kasbah e de Funti,respectivamente os bairros alto ebaixo da então modesta cidade deAgadir. Não pretendemos aqui rees-crever a história de Santa Cruz cujocorpo principal de conhecimento foireunido por Joaquim Figanier (1945)com base na correspondência coeva,nas crónicas portuguesas e árabes daépoca e, sobretudo, na narrativa anó-nima publicada por Pierre de Cénival(1934) nas primeiras linhas da qual sepode ler “Este he o origem e começoe cabo da villa de Sta Cruz do Cabode Gué dagoa de Narba (…)”.

Não havendo grande notícia dosítio do cabo de Guer até aos alvoresdo século XVI, foi a construção de umcastelo por João Lopes de Sequeiranesse local, em 1505, que o colocouirreversivelmente na rota histórica dasfundações portuguesas na costa atlân-tica do Norte de África. Localizadaentre os reinos de Sus e de Marrocos,Santa Cruz do Cabo de Guer assu-mia-se como peça importante nojogo de influências que se travava comCastela, daí a iniciativa privada de Se-

queira contar com a autorizaçãosecreta de D. Manuel I. O mesmo mo-narca compraria o castelo oito anosmais tarde (Sources, 1934: 374-377),nomeando D. Francisco de Castro seucapitão. Das várias capitanias que sesucederam em Santa Cruz, esta foidefinitivamente a mais feliz, benefi-ciando do efeito surpresa causadopelo impacto da rápida capacidade deimplantação portuguesa. Após ocerco de 1533, para o qual concor-rera a posição privilegiada que a partirdo monte sobranceiro o inimigo tinhasobre a vila, não restaram muitas dú-vidas a alguns conselheiros de D. JoãoIII quanto à sua evacuação. Adiada adecisão, nem o envio de Luís deLoureiro pôde impedir um movi-mento crescente do Xerife do Suspara a expulsão dos portugueses docabo de Guer. Depois da ocupaçãofísica do pico, foram em vão os esfor-ços lusitanos de manutenção da pra-ça, traduzidos numa humilhante perdapara a coroa portuguesa em 1541.Desta que foi a mais meridional pos-sessão emanaram consequências quemudariam por completo o posicio-namento geo-estratégico de Portugalnum território que, gradualmente, su-cumbia às mãos dos sádidas, levandoao abandono de quatro possessões

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fera magrebina e que se caracterizavapela construção de castelos satélitesde apoio às ocupações urbanas reali-zadas por conquista. Foi assim com osfortins de Mazagão (1514), e Aguz(1519) localizados nas proximidadesde Azamor e Safim, respectivamente.As semelhanças encontram-se na es-colha de locais geograficamente rele-vantes e/ou vantajosos para a cons-trução destes castelejos. Mazagãoergueu-se a três léguas de Azamor, naabrigada baía que descia desde aquelavila, enquanto na foz do rio Tensift, aquatro léguas da cidade de Safim, osportugueses levantaram Aguz. Antesdestas, João Lopes Sequeira escolherauma saliência da costa, em Immou-rane, para a fortificar como um postode vigia da dobragem do cabo deGuer. Formalmente, a analogia émenos marcada. Comparativamenteàs estruturas quadradas e torreadasnos ângulos construídas sob influênciapolítica de Azamor e Safim, Ben Miraonão proporcionava mais que ummodesto, avançado e, aparentemente,efémero castelo/atalaia para SantaCruz do Cabo de Guer.

Denise Valero, na sua Petite his-toire des ruines portugaises au Maroc,afirma a existência do dito castelo emmeados do século XX, sem adiantarreferências mais pragmáticas (Valero,1952). Foi com surpresa e agrado quedescobrimos os seus escassos vestí-

gios, sobre um promontório rochosoque corta a praia de Immourane, emMarrocos, próximo da cidade deAgadir e da localidade de Tamrhakht.Se este topónimo pode ser facilmenteidentificado com a povoação actual deTamaraque, já Immourane surgecomo a evolução fonética natural deBen Mirao, depois da transformaçãodo prefixo da sua forma portuguesaBen na árabe Ibn. Actualmente, daestrutura portuguesa só restam asfundações, as fiadas inferiores e aporta da frente de terra. O castelotirava vantagem do desenho dopequeno cabo para fechar a sua liga-ção à costa com uma barreira amu-ralhada. Uma cava, inundável na preia-mar, acompanharia o muro na defesada pequena fortaleza portuguesa eseria, provavelmente, vencida porponte/porta levadiça colocada emfrente da única acessibilidade porterra. Não sabemos se o muro con-tornaria o perímetro escarpado dorecinto acastelado ou se este se de-fenderia naturalmente através dasaguçadas falésias. O desembarque eabastecimento do fortim poderiamser realizados nas enseadas adjacen-tes, desenhadas pelas praias que deambos os lados do istmo se esten-dem, durante os momentos de baixa-mar e de ausência de assédio inimigo.

De facto, a orla irregular do pro-montório rochoso de Immourane

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portuguesas entre 1542 e 1550 – pri-meiro, Azamor e Safim, e, depois,Arzila e Alcácer Ceguer.

Durante mais de três décadas emeia, primeiro sob João Lopes deSequeira e depois sob a coroa portu-guesa, Santa Cruz do Cabo de Guerevoluiu de um castelo de madeirapara uma vila acastelada. Contudo,não parece ter permanecido isoladana meridional região do Sus do oci-dente magrebino. No seguimento doscontratos de “protecção” de morado-res, assinados com Azamor e Safimpelo seu antecessor, D. Manuel I esta-belece um tratado de suserania comos habitantes de Meça, povoaçãocosteira para sul de Santa Cruz, em1497 (Sources, 1934: 31-35). Comomoeda de troca pela protecção, impu-nha-se, para além das óbvias facilida-des comerciais, a construção de umafortaleza no local e da forma que acoroa portuguesa entendesse, paracujo estaleiro acorreriam pedreiros ecal de Portugal e mão-de-obra indíge-na. Aparentemente, a fortaleza portu-guesa de Meça nunca se terá erguido,quedando-se apenas uma feitoria daqual o feitor João Lopes de Sequeiradesviaria a atenção para a construçãodo seu castelo de Santa Cruz. Entre-tanto, a partir de 1505, o empreen-dedor feitor parece mais empenhadonuma outra iniciativa, também decarácter particular e igualmente locali-

zada próxima do cabo de Guer.São escassas as referências a Ben

Mirao e à presença portuguesa nesteponto da costa do Sus, situado entreo castelo português de Santa Cruz doCabo de Guer e o próprio cabo, nãose podendo divorciar da históriaportuguesa de Santa Cruz. Na crónicaanónima, traduzida e anotada porPierre de Cénival, lê-se que João Lo-pes de Sequeira, depois de concluir aconstrução do castelo de Santa Cruz,“(…) E tanto que o acabou, foi-sefazer outro castelo (…)” (Cénival,1934: 22). O mesmo João Lopesescrevia ao rei D. Manuel I, entre 1507e 1512, sobre “as mynhas fortalezas”(Sources, 1934: 133-135). O novo cas-telo vizinho de Bem Mirão ou BenMirao ter-se-á erguido em frente àpovoação indígena de Tamaraque, nosanos imediatos ao estaleiro de SantaCruz de 1505. O intervalo de dataçãoda missiva de Sequeira ao rei não sóimpede a determinação do arranqueda obra, como não contribui para oesclarecimento do término da posses-são portuguesa do castelo. De facto,foi curto o domínio português sobreesta “extensão” de Santa cruz, tomadapelos mouros à traição (Figanier ;1945: 32).

A pequena fortaleza inauguravauma estratégia de implantação queviria a ser adoptada pela coroa portu-guesa em latitudes meridionais da es-

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serem precisas andas para a conduçãodos Cadaveres, que huns annos poroutros farão o número de dezoito atévinte mil pouco mais, ou menos...

Do Intendente Geral da PolíciaDiogo de Pina Manique, ao MarquêsMordomo-Mor; Lisboa, 27 de Abril de1791” (IAN/TT, Ministério do Reino,mç.454, cx.569).

Cemitério público, mas aindadentro da cidade: situação já reconhe-cida como não desejável, mas condici-onada por imperativos de ordemeconómica.

Associada ao documento acimaparcialmente transcrito, existe naTorre do Tombo uma pasta de dese-nhos (Ministério do Reino, Colecçãode plantas e outros documentos icono-gráficos, mç.454, cx.569) que contémdois projectos, supostamente as duasplantas que Pina Manique coloca àconsideração do Mordomo-Mor.Apa-rentemente, dessa decisão sairia oprojecto-tipo para ser utilizado nosvários terrenos escolhidos.

Um dos projectos, assinado edatado de 1791, é da autoria de An-tónio Fernandes Rodrigues, arquitectoque fez formação em Roma e Flo-rença entre 1759 e 1762 (André,1999:60). O seu desenho é de influ-ência marcadamente italiana (nãoapresentando qualquer semelhançacom o que à época se projecta emFrança) e organiza-se num pequeno

claustro que integra um templo comoelemento fulcral do conjunto.

Mas se o projecto constitui umasolução assumidamente arquitectó-nica, à dissemelhança da necrópolerealizada quinze anos antes em VilaReal de Santo António – o primeirocemitério moderno português (HortaCorreia, 1997:107) – em termosconceptuais representa uma visãomais conservadora do que a algarvia.Conservadora, no sentido em que odesenho resolve as questões fun-cionais e formais sem aparentementequestionar os fundamentos ideoló-gicos que o regem e que derivamainda do enterramento ad sanctosapud ecclesiam: a zona de enterra-mento continua a envolver o edifícioda igreja e o seu acesso não é autó-nomo, realizando-se unicamente atra-vés dela; a rectícula do pavimento é

Ao assumir, entre outros, o cargode Intendente Geral da Polícia, DiogoInácio de Pina Manique tomou entremãos a vigilância da política sanitáriado governo de D. Maria I. Preocupadosobretudo com a situação de Lisboa,e no seguimento de queixas relativasao mau estado de alguns cemitériosordenou, em 1791, um vasto inqué-rito às necrópoles da capital; osrelatórios decorrentes do levanta-mento expuseram uma situaçãodesastrosa na totalidade das igrejas eadros avaliados (André, 1999:57-59).

Na sequência desta inspecção,Pina Manique elaborou um Mapparelativo à localização dos sítios onde

deveriam ser implantados Semiterios,fundamento para a proposta de cons-trução de oito recintos distribuídospela cidade. Ao Marquês Mordomo-Mor foi enviado esse documento,acompanhado por dois projectos decemitério:

“... no Mappa, que acompanhaesta [carta] com as duas plantas paraV. Ex.cia ver qual dellas será maispropria para a sua edifficação; e aindaque algumas pessoas queirão dizer,que era mais útil à saude publica,edifficar-se o Semiterio meia legoafora da Cidade, parecer que eutambem siguiria, se me não lembrasseser necessario maior despesa, por

O Cimitero di Tredici, entre Lisboa e o Reino de Nápoles

nunca favoreceu aproximações pormar, excepto por pequenas barcaçasque, vindas de Santa Cruz nos prin-cípios do século XVI, poderiam acos-tar socorrendo-se de dispositivos demadeira para alcançar o interior docastelo português. Ainda hoje, a forterebentação nestes penhascos é apro-veitada para um moussem anual. Numdos orifícios da extremidade do cabo,jovens mulheres são descidas embraços por homens das aldeias vizi-nhas e expostas à rebentação fortedas ondas, num perigoso ritual deindução de fertilidade.

Referências bibliográficas:

Chronique de Santa Cruz du Cap de Gué.Traductionpar Pierre de Cénival. Paris: Paul Geuthner,1934.

Encyclopédie de l’Islam. Vol. I. Leiden : E. J. Brill /Paris: Éditions G-P. Maisonneuve & Larose S.A.,1975.

FIGANIER, Joaquim – História de Santa Cruz doCabo de Gué (Agadir) 1501-1545. Lisboa:Agência Geral de Colónias, 1945.

(Les) Sources Inédites de l’Histoire du Maroc. ParPierre de Cénival. Première Série – DynastieSa’dienne, Archives et Bibliothèques de Portu-gal. Tome I. (Julliet 1486 – Avril 1516). Paris:Paul Geuthner, 1934.

VALERO, Denise – Petite histoire des ruines portu-gaises au Maroc, Casablanca: [s.n.], 1952.

Jorge Correia

Cemitério de Tredici, 1762 in Fábio Mangone, 2004

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cisco Queiroz (2002), que contêmimagens das peças desenhadas atrásreferidas) permitiu associar o projectoexistente na Torre do Tombo a umcemitério napolitano edificado nadécada de sessenta do século XVIII,destinado a complemento do Albergodei Poveri, então já em construção -ambos os edifícios da autoria deFerdinando Fuga (1699-1782), arqui-tecto cujo trabalho reflecte a ambiva-lência cultural do seu tempo, sendono entanto mais conhecido pela pro-dução tardobarroca do que pela obraprecursora do neoclassicismo.

A observação do projecto exis-tente em Portugal e o seu coteja-mento com uma planta topográfica deNápoles do século XIX e comfotografias actuais, comprovou o factode esses desenhos constituírem umarepresentação do cemitério de Trediciem Poggioreale, nos arredores deNápoles – único e extraordinárioexemplar da visão iluminista docamposanto, tão radical que não tevecontinuidade posterior.

Uma breve análise aos referidosdocumentos revela que a cópia é algorude: para além da (inferior) qualidadedo próprio desenho, é perceptívelque o copista não estaria por dentrodo conceito do projecto original: aplanta “portuguesa”, em vez dos 366receptáculos para inumação (quecorrespondiam à sua utilização rota-

tiva ao longo de um ano, incluindo osbissextos) apresenta mais um, para oqual não se encontra justificação (essereceptáculo em excesso surge porqueocupa o centro geométrico do pátiodo cemitério, local destinado peloprojecto original à localização de umaluminária). Este “pequeno acidente” nacópia basta para destruir a lógica –simbólica e geométrica – absoluta-mente impecável que rege o Trecen-tosessantasei Fosse.

O texto que aparentementeacompanha os três desenhos tambémnão faz qualquer referência à origemdo projecto. Apenas quando indica asdimensões das suas várias partes re-fere a conversão de palmos Napolita-nos em palmos Portugueses, o que pare-ce corroborar a hipótese que aqui secoloca. Mas é provável que estaMemória faça parte de um documentomais extenso, desconhecido, que even-tualmente explique a sua circunstância.

A forma como o projecto che-gou a Portugal – quem o terá trazidoou enviado, e a solicitação de quem -constitui uma incógnita que, a serresolvida, poderá contribuir paraesclarecer a lacuna que existe sobre aforma como a administração de finaisdo Antigo Regime encarava o pro-blema da inumação urbana.

Consultada – embora de umaforma não totalmente sistemática - acorrespondência da Legação de Por-

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uma versão elaborada daquela quecomummente se utilizava no interiordas igrejas e na área coberta dosclaustros; os pilares do claustro con-têm reentrâncias/repositório de ca-veiras, remetendo directamente paraos arranjos típicos dos charniers epara as vanitas, um programa icono-gráfico que já se encontrava em desu-so; e o espaço descoberto é tão dimi-nuto, que se torna difícil interpretar oedifício como um recinto ao ar livre.Não obstante estas características, oprojecto é absolutamente inovadorem Portugal, porque materializa umatipologia inexistente no país e porqueconsagra, de forma intencionalizada eexplícita, a possibilidade de distinçãoindividual ao estabelecer “lugar parase colocarem mausoléus para quemos quiser mandar fazer”(in André,1999:60).

O desenho de António Fernan-des Rodrigues, o primeiro projecto“arquitectónico” português para umcemitério, cumpre os desígnios higie-nistas e assegura o sentido da indivi-dualidade emergente, não deixandono entanto de sublinhar a autoridadeda Igreja nos destinos além-vida;respeitando, assim, a idiossincrasia doIluminismo Católico.

O segundo projecto que constada mesma pasta invoca a interpre-tação oposta do recinto cemiterialfechado: sem marcação específica da

capela – compartimento integrado novolume coberto que constrói a frentedo recinto e inclui os outros serviçosde apoio - estabelece sobretudo umaárea a céu aberto, cujo limite externose reduz a um pseudo-pórtico; plata-forma isomórfica de austera geome-tria, representa uma máquina funeráriaque exprime laicização e anonimato.

Este projecto não se encontraassinado nem datado e é constituídopor três desenhos: I - planta, II – alçadoexterior e corte, III – “parte da plantaelevada” e pormenores (IAN/TT, Minis-tério do Reino, mç.454, cx.596, doc.s24, 25, 26). Embora dos desenhosconstem várias letras que indicam aexistência de uma legenda, esta não seencontra anexada a estas peças. Existesim, nos documentos da IntendênciaGeral da Polícia, uma memóriadescritiva – não assinada, não datada esem indicação de destinatário – quecontém uma legenda que lhes corres-ponde seguramente (IAN/TT, Minis-tério do Reino, Intendência Geral daPolícia, mç.454, cx.596).

O cruzamento de informaçãocom origem diversa (decorrente daleitura de um artigo de Laura Berto-laccini, publicado pela revista áreanum número dedicado a arquitecturacemiterial, do trabalho de camporealizado em Nápoles sobre o mes-mo tema e da consulta das teses dePaula André (1999) e de José Fran-

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oficiais, que em 1770 o irmão deRibeiro Sanches, Manuel MarceloSanches se encontrava estabelecidoem Nápoles (Mendes, 1998:87).Conhecendo a posição de RibeiroSanches sobre a inumação ad sanctos,poderá o seu irmão - também médicoe portanto naturalmente defensor deum ponto de vista idêntico – ter algu-ma relação com a vinda do projectodo cemitério de Tredici? Na corres-pondência da Legação não se lheencontrou qualquer menção, o queparece indiciar a insuficiência da buscaatravés dessas missivas, que tratamsobretudo de assuntos relacionadoscom o circuito político palaciano.

Na resposta à solicitação de PinaManique sobre a escolha de umprojecto para edificar os novos cemi-térios, verifica-se que o poder por-tuguês continuava, nesta matéria, malpreparado e inculto: o marquês Mor-domo-Mor encarregue de resolver aquestão em Lisboa considerou teremos projectos demasiados ornatos paracemitérios (in André, 1999:62). E, destaforma, ambos passaram ao esqueci-mento.

Num processo instável e descon-tínuo, apenas com a instauraçãodefinitiva do Liberalismo o tema daedificação de cemitérios públicosextramuros veio a ser doutrinária eadministrativamente retomado; quaseum século após António Ribeiro San-

ches (que em 1756 se encontrava nagénese do discurso higienista sobre ainumação urbana) e cerca de seisdécadas depois do extraordináriocemitério de Vila Real de SantoAntónio (talvez não só o primeirocemitério moderno português mas,muito presumivelmente, o primeirocemitério moderno europeu), doisacontecimentos que tinham à épocacolocado Portugal, embora de umaforma absolutamente fugaz, discreta einconsequente, na vanguarda euro-peia da idealização da necrópolecontemporânea.

Referências bibliográficas:

ANDRÉ, Paula – Os cemitérios de Lisboa no séculoXIX: Pensar e construir o novo palco damemória. Lisboa: Universidade Nova deLisboa; 1999.

BERTOLACCINI, Laura – Trecentosessantasei fosse;Napoli; Ferdinando Fuga. area: architettura delsilenzio. 2001; (56):88-95.

CORREIA, José Eduardo Capa Horta – Vila Realde Santo António; urbanismo e poder na polí-tica pombalina. Porto: Faculdade de Arqui-tectura da Universidade do Porto; 1997.

MANGONE, Fábio – Cimiteri napoletani: storia,arte e cultura. Nápoles: Massa Editore; 2004

MENDES, António Rosa – Ribeiro Sanches e oMarquês de Pombal: Intelectuais e Poder noAbsolutismo Esclarecido. Cascais: Patrimonia;1998.

QUEIROZ, José Francisco Ferreira – Os cemitériosdo Porto e a arte funerária oitocentista emPortugal: consolidação da vivência românticana perpetuação da memória. Porto: Uni-versidade do Porto, Faculdade de Letras;2002.

Maria Manuel Oliveira

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tugal em Nápoles (1763-1791, à razãode um Ofício semanal), não se encon-trou referência a esta matéria, factoque seria de esperar caso os governosde Pombal e Pina Manique tivessemsolicitado alguma informação ou es-clarecimento aos seus diplomatas; estaconjectura é reforçada pelo facto dese encontrar nessa correspondênciaoutro tipo de pedidos em relação,nomeadamente, ao envio de livros edocumentação sobre ciência e ensinocontemporâneos.

Os desenhos poderão ter, noentanto, chegado ao país por viasinsuspeitas, nomeadamente através deportugueses que, no último quarteldo século XVIII, tinham ligações aNápoles, ou que por lá passaram noseu Grand Tour.

Nos Ofícios nº 29 e 30 de 1769,dirigidos a D. Luiz da Cunha, José deSá Pereira assinala a chegada aNápoles de D. João de Bragança e dizque “O Duque D. João de Bragançanão perde aqui o seu tempo... o em-prega em examinar tudo o que estePais lhe oferece, digno da sua applica-ção.” Não se sabe no entanto se aedificação do Albergo e do Cimitero,ambas destinadas a pobres e indi-gentes, constituiria um assunto mere-cedor da applicação de D. João.

Mas merecê-la-ia, com certeza,em gente ligada à produção arqui-tectónica: em 7 de Maio de 1776, José

de Sá Pereira escreve que “Chegouaqui na semana precedente o Archi-tecto Portuguez José da Costa e Silva,em companhia de seu Companheiroe Mestre o Doutor Brunelli. Semperda de tempo vão Elles exami-nando tudo o que nesta Cidade hamais digno das suas uteis observa-ções;” (IAN/TT, Ministério dos Negó-cios Estrangeiros, correspondênciacom Nápoles, ofício nº18, cx.780).Desconhece-se o tipo de atenção quea obra de Fuga terá despertado emCosta e Silva; no entanto, dada aimportância do arquitecto e dosestaleiros que então ocorriam, nãoparece possível que lhe tenha passadodespercebida.

Também se sabe que o arqui-tecto Ferdinando Fuga (Primo Archi-tteto e Ingegnero di S. M.) não é umdesconhecido a José de Sá Pereira,que lhe faz referência – embora apropósito de uma obra menor – emcarta de 1767 (IAN/TT., Ministériodos Negócios Estrangeiros, corres-pondência com Nápoles, ofício nº31,cx.779); mas às edificações realmenteimportantes do ponto de vistaurbano e social de que Fuga é autor –Albergo dei Poveri, Cimitero di Tredici,Granili – não se encontrou qualqueralusão nos seus Ofícios.

De mencionar ainda, comoexemplo de outras possibilidades paraa circulação de informação que não as

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(1759-1796)5. Foi com surpresa, e atémaravilha, que nos apercebemos que,para além da reprodução assaz fiel daimagem que supostamente ocupava oaltar-mor daquele mosteiro, esta os-tentava no seu corpete, de uma formaalgo orgulhosa, a dita jóia represen-tada com surpreendente detalhe6. Aimportância do achado levou-nos aprocurar, de forma incessante- qual-quer documento, referência, enfim,uma pista que indicasse o percurso deuma tão significativa peça.

O levantamento da correspon-dência trocada entre duas impor-tantes instituições museológicas, oMNSR e o Museu Nacional de ArteAntiga (MNAA), deu-nos a conhecer

um recibo datado de 18 de Julho de1945, assinado pelo Conservador-Auxiliar José Rosas Júnior, no qual sereferem três jóias que foram deposi-tadas no museu portuense, para um“estudo de restauro”7. Informa-nos odocumento que teriam vindo da casa-forte do Palácio das Necessidades,para além de um “peitoral, incompleto,com pedras falsas”, um outro comidêntica descrição e ainda uma ter-ceira peça identificada como um“Centro e colar incompletos, com minasnovas e outras pedras de imitação”.

Se a primeira referência descrevede uma forma sumária e muito in-completa a peça que nos ocupa, con-firma-nos, contudo, a suspeita que aleve grinalda ornamentada por pe-quenas flores e toda cravejada decristais de rocha que seria original-mente destacada do corpo principalda peça, provavelmente cosida a umpeitilho, já se encontrava, na altura dodepósito no MNSR, unida ao corpocentral da jóia8. O segundo item dorecibo em questão corresponde a umadorno de peito que se encontratambém na colecção de ourivesariado mesmo museu (Inv. 225 MNSR). Olaço não deixa qualquer dúvidaquanto à sua origem pois, por entreelementos vegetalistas e fitas, surgem,sob uma grande ametista, as armasdos Carmelitas encimados por umacoroa real fechada. Um singular jogo

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O estudo que nos propomosfazer, respeitante a duas jóias, prove-nientes da casa-forte do Palácio dasNecessidades e actualmente deposi-tadas no Museu Nacional Soares dosReis (MNSR), levanta uma série dequestões, que se prendem directa-mente com a aplicação da Lei daExtinção das Ordens Religiosas de1834. De facto, esta conduziu a umadispersão de “tesouros” acumuladosdurante séculos em igrejas e casasmonásticas. A alienação de um patri-mónio, que se constituía tanto comoum testemunho de percursos colecti-vos como de memórias individuais,levou à inevitável perda de informa-ção e de dados que tão importantesseriam para um conhecimento maisprofundo da história das artes plás-ticas e decorativas em Portugal. Estadispersão comprometeu de umaforma irremediável o estudo sistemá-tico e coerente de uma importanteparcela desse acervo, já que diversaspeças provenientes dos chamados“conventos extintos”, que hoje inte-gram as colecções do Estado, perde-ram a memória da sua proveniência ede todo o historial constituído ao lon-go dos séculos1.

De uma forma geral, os inven-tários realizados aquando da extinçãosão pouco esclarecedores. No que diz

respeito à ourivesaria e à joalharia,apesar de publicados os tombos daspeças recolhidas em cada igreja e con-vento2, a forma como essas relaçõesforam elaboradas não nos permiteidentificar peças, dado serem mencio-nadas apenas por quantidades em ca-da tipologia. São raras as excepções nasquais se refere, destacando à laia de no-ta, o destino de determinado exemplar.

De toda a joalharia que integra osacervos dos museus públicos por-tugueses, na sua grande maioria pro-eniente dos extintos conventos, é bemconhecido o ornamento de peito degrandes dimensões que se encontra,tal como anteriormente referido, emdepósito no MNSR (Inv. 211 MNSR).Quando comparada com espécimescoevos, as dimensões da jóia, aliadas àsua opulência, despertavam espanto ecuriosidade. Para adensar esta auraespecial, o total desconhecimento dequalquer dado relacionado com estapeça, aumentava a nossa vontade deesclarecer este mistério.

Quis o destino que, ao folhearuma publicação recente da Torre doTombo (IAN/TT)3, deparássemoscom a reprodução de uma gravura(pagela ou registo de santo) na qualse representava uma imagem deNossa Senhora do Monte do Carmode Lisboa4, aberta por Froes Machado

As jóias da Virgem do Carmo

N. Sra. do Carmo de Lisboa. Froes Machado (1759-1796).Portugal, século XVIII. MNAA. © IPM. Foto de Luisa Oliveira.

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última capela que vamos encontrar oprimeiro e único vestígio documentalrelativo à jóia que nos ocupa. Com aextinção do convento carmelita deLisboa, perde-se o rasto da imagemda Virgem que ocupava o altar-mordo Carmo, e é apenas num inventáriodas várias capelas reais17, datado de1911, no capítulo referente às Neces-sidades, que voltamos a encontrá-la.No item # 768 descreve-se uma“Senhora do Monte do Carmo com oseu respectivo menino” e mais à frente,com o item # 782, acrescenta-se “umpeitilho com pedras, da Senhora doMonte do Carmo”. Esta peça é, segura-mente, a que José Rosas Júnior reco-lheu posteriormente na casa-forte doPalácio das Necessidades, local paraonde a peça terá sido levada, porocasião do encerramento da capelaapós a instauração da República.

Não podemos deixar de referirque, no inventário geral da Ordemcarmelita, datado de 22 de Novem-bro de 186218, encontramos umaalusão à imagem da Virgem do Car-mo, então no altar-mor, não havendoqualquer referência às suas jóias, paraalém das coroas de prata. O factocausa alguma perplexidade, sobretudoporque esta omissão é recorrentenos diversos inventários do conventopor nós consultados, datados entre1756 e 188819. Efectivamente, a gra-vura que nos ocupa permite mais

uma vez uma identificação segura dasjóias em análise, tornando-se definitivaa sua associação à Virgem do Carmode Lisboa, apesar de não ser possíveluma confirmação peremptória daidentificação e localização da imagemescultórica nela representada.

A atribuição definitiva da enco-menda destas peças de joalharia e asua autoria não fica ainda estabele-cida. Contudo, é claro que a riquezado conjunto aponta para uma enco-menda régia, ou de uma figurapróxima da Casa Real. Encaramos,como forte a hipótese da sua doa-dora poder ter sido D. Mariana Vitória(1718-1781), mulher do rei D. José I.Certamente não a trouxe consigo porseu casamento em 1729, pois oinventário das jóias do seu dote não arefere20, mas era sem dúvida umapeça associável ao gosto desta rainhade origem espanhola21. Não podemosdeixar de fazer uma aproximaçãoformal e estilística da jóia do Carmocom aquela que esta soberana exibena Alegoria à aclamação do rei D. José Ida autoria de Francisco Vieira Lusitano(1699-1783), datada de c.1750. Napintura podemos observar umagrande laçada listada que sustenta umramo de flores de um gosto muitonaturalista que esteve em moda du-rante a segunda metade da centúriade Setecentos. Pode ainda referir-se agrande laça em diamantes e esme-

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de cores oferecido pelos topáziosforrados, pelas ametistas e algunscristais de rocha, compõe esta peça,assim muito equilibrada não só pelapaleta de cores suaves mas, e sobre-tudo, pelas suas proporções. Umaatenta observação da mencionadagravura revela-nos que esta jóia, salvoquatro girândolas que se perderam, éprecisamente a que se encontrarepresentada no pendão que a Vir-gem segura na sua mão direita.

Num inventário dos bens doConvento do Carmo, realizado porFrei Pedro Nolasco9 em 1756, logoapós o Terramoto, são referidas váriasjóias, anéis, trémulos, meadas dealjôfares e um pendente em forma debarquinho de cristal. Frei Nolascorefere também a existência de “HumLaço do peyto, feyto em seda, que temtrez Rosiclerz de diamantes cravado emouro = tem mais sete rosiclerz dediam[an]tes topázios e mais váriospedraz cravados em prata”. Este laçoserá provavelmente o que é possívelobservar nos outros registos desantos, da secção de iconografia daBiblioteca Nacional10, que tambémrepresentam imagem da Senhora doCarmelo de Lisboa, mas todos eles deuma data anterior à jóia que nosocupa. De facto, a fechar o manto daVirgem, na gravura de Froes Machadoobserva-se uma dupla laçada têxtiltendo ao centro uma jóia em forma

de roseta. Graças ao inventário de1756, podemos supor que a jóia fosseusada e retirada consoante as ocasi-ões, pois o documento refere a exis-tência de 10 destas peças11. Já uminventário de todos os bens daOrdem elaborado em 175712, refereas jóias que existiam neste tesouro eque foram vendidas para pagar umalâmpada encomendada para o altar-mor; estas jóias integravam o vasto“enxoval” pertencente à imagem doorago carmelita, vestida consoante asocasiões13. O rol datado de 1757refere ainda as duas coroas de ouroque serviriam à Virgem e ao Menino,oferta piedosa de D. João V. Essesexemplares surgem novamente numinventário das “…pessas preciozas deouro e diamantes de Nossa May Sam.ado Carmo da Capella mor desteconvento”, efectuado um ano após umroubo ocorrido a 18 de Julho de 1771,que enumera as peças que tinhamrestado14, aí surgem, logo à cabeça, asduas coroas com a indicação dagenerosa oferta real, e a sua avaliaçãoem 1.107 reis15. No acervo do PalácioNacional da Ajuda, guardam-se hojeduas coroas (Inv. 52773 e 52774) emprata que, segundo o Arrolamentodos Paços datado de 1911, perten-ceram às imagens da Senhora doCarmo e do Menino provenientes daCapela das Necessidades16. Ora, éprecisamente nos inventários desta

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raldas ostentada num retrato daInfanta D. Mariana Francisca Josefa(1736-1813), da autoria de AntónioCosta, mais uma vez associável aogosto pelas grandes laços de aspectotêxtil convertidos em preciosidades.

A importância do culto da Se-nhora do Carmo, a que se encontravaligado um importante e significativotesouro, parte do qual resultaria certa-mente de uma ou várias ofertas daCasa Real, terá certamente ocasio-nado a abertura de diversas gravuras ede outras representações pictóricas. Éo caso de uma pintura em tela degrandes proporções que se guarda noMuseu de Arte Sacra e Etnologia deFátima (Inv. 493)22, que reproduzfielmente a imagem desta Virgem como Menino nos braços. Apesar da aten-ção dada aos pormenores e, sobre-tudo, a correcção das cores, patentestanto no vestido como na própria jóia,não é possível concluir se a tela foipintada a partir do modelo original.De facto, enquanto que na gravura deFroes Machado é possível observaruma tridimensionalidade intencional

na representação das duas jóias, talvezexplicada pela qualidade técnica, napintura encontramos uma interpreta-ção menos virtuosa com alguns deta-lhes menos fiéis. Contudo, com maiorou menor fidelidade, a importância domomento justificou a sua perpetuaçãono tempo e na memória.

São muitas as questões que ficampor responder, restando ainda umlongo caminho em aberto, mas recu-perou-se finalmente a origem primei-ra, assim como parte do percursopercorrido pelas jóias do Carmo, atéà sua definitiva incorporação nascolecções públicas. Já a sua enco-menda permanece um mistério quealimentará, por mais algum tempo, anossa curiosidade. Resta-nos dirigirum novo olhar para esta imagem daVirgem do Carmo que, complacente-mente, nos coloca perante umamulher trajada e adornada como umarequintada figura da corte portuguesados finais de Setecentos, na qual sefundem dois universos: o da devoçãoao sagrado e o universo feminino.

Luísa Penalva

1 Veja-se José Alberto Seabra, “Dos Conventosao Museu: histórias que o fogo apagou” inInventário do Museu Nacional de Arte Antiga, AColecção de Ourivesaria, 1º volume: do românicoao manuelino, SEC, IPM, Lisboa, 1995, pp. 19 e20.

2 Contas Correntes dos Objectos Preciosos deOuro, Prata, e Joias que pertenceram aos Con-

ventos Supprimidos do Continente do Reino.Lisboa, Na Imprensa Nacional, 1842.

3 Ordens Monástico/Conventuais: Ordem de S.Bento, Ordem do Carmo, Ordem das Carmelitasdescalças, Ordem dos Frades Menores e Ordemda Conceição de Maria, IAN/TT, Lisboa, 2002,p.105.

4 O. Carmo, Nossa Senhora da Esperança deBeja, Livro 45.

5 Esta gravura faz parte, segundo Ernesto Soa-res, de uma série de “retratinhos” que FroesMachado terá aberto entre 1780 e 1796.Soares, Ernesto in História da Gravura artísticaem Portugal, 2 vols., Lisboa, 1941.

6 Esta gravura também surge nas colecções doMNAA, com os nºs de inventário 5636 Grave 5637 Grav e no fundo iconográfico da Bibli-oteca Nacional, com os nºs de inventário2181 a 2183 e 2185 e 2186.

7 Depósito esse confirmado pela então Direc-tora daquela instituição, Dr.ª Mónica Baldaqueem ofício enviado à Dr.ª Leonor d’Orey,datado de 31 de Maio de 1991, aquando dorestauro da referida laça pelo joalheiro Amé-rico Barreto, quando foi exposta e publicadapela primeira vez na exposição La Magie descouleurs et des pierres. Bijoux du XVIe au XIXesiécle (cat.), Europália 91, Bruxelas, Galerie KB,1991, cat. N.º 236.

8 Uma observação do reverso da peça permiteverificar a existência desta junção posteriorbem como de duas pequenas aletas de ondependeriam originalmente duas girândolas,actualmente desaparecidas.

9 IAN/TT, Ordem do Carmo, Carmo de Lisboa,livro 63, Prior o P.e M.I Fr. Pedro Nolasco, Livrodas Memórias do Carmo de Lisboa feito noanno de 1756 pr.º depois do terremotto, 1756.

10 Para tal ver os registos de santos da secção deIconografia da Biblioteca Nacional com os nºsde inventário 2176, 2187, 2198, 2205.

11 Também é o caso dos colares ditos afogado-res que surgem nos inventários datados de1888, cuja inventariação dentro do enxoval daimagem é extenso, estando organizado por or-dens ou conjuntos consoante as festividades.

12 Inventário dos bens da Ordem 3ª de Nossa Sra.do Monte do Carmo, 1757, Livro 319.

13 Curiosamente, Frei Nolasco, distingue no seuinventário as jóias de usos quotidiano dasusadas nas festividades, quando enumera“Mais quatro anéis que a Sr.ª tem nos dedozquotidianam.te três de diamantez e hum detopázio amarelo”

14 IAN/TT, Ordem do Carmo, Carmo de Lisboa,Livro 22, Inventário das pessas preciozas deouro e diamantes de Nossa May Sam.a doCarmo da Capella mor deste convento (…),com este rol é possível obter um vislumbre da

riqueza do tesouro desta Virgem, pois este ésomente realizado após o furto de 1771.

15 Estas coroas seriam certamente muito seme-lhantes às que se guardam no Palácio Nacio-nal da Ajuda (Inv. 4796 e 4797), as quais,segundo o Arrolamento dos Paços datado de1911, teriam pertencido à Virgem do Cabo daRoca, proveniente da Capela Real do Paláciodas Necessidades. Também a Virgem dasNecessidades foi agraciada com coroas emouro e diamantes que segundo a Gazeta deLisboa, de 20 de Maio de 1751 refere queforam encomendadas em Paris.

16 Tesouros Reais (cat.), nº 547, Palácio Nacionalda Ajuda, Lisboa, 1991.

17 IAN/TT,AHMF, cx 7401, capilha 767, InventárioJudicial determinado pela carta de lei de 16 deJulho de 1855. Relação das Alfaias, paramentose mais objectos existente nas Reais Capellasdas Necessidades, Ajuda, Memoria, na Casa daFazenda ao Real Palácio de Mafra. Inventáriodas Joyas de Nossa Sr.ª.

18 Arquivo da Ordem Terceira do Carmo,Lisboa, Inventário Geral da Venerável OrdemTerceira da Nossa Senhora do Monte do Carmode Lisboa, 22 de Novembro de 1862.

19 IAN/TT, Ordem do Carmo: livro 63 [1756];livro 22 [1772]; A.O.T.C. de Lisboa: livro 319[1757]; livro s/nº [1799]; livros 322-327[século XIX]; livro 321 [1807]; livro s/nº [1862];livro 324 [1888]; livro s/nº [1918].

20 Fr. Joseph da Natividade, Fastos do Hymeneoou Historia Panegyrica dos Desposórios dosFidelíssimos Reys de Portugal, nossos Senhores,D.Joseph I. e D. Maria Anna Vitoria de Borbon,Lisboa, Na Officina de Manoel Soares, 1752.

21 Não foi possível encontrar outro adorno depeito semelhante, nem pelas suas dimensõesnem pela sua simetria – que assenta numa florde grandes dimensões ao centro, dispondo-seo resto da peça numa armação triangular.Apenas no famoso Inventário da Virgem deGuadalupe, no seu fólio 41, se observa dese-nho de uma jóia oferecida à Virgem – quemuito recorda o ornamento de peito da Se-nhora do Carmo.

22 Esta pintura foi adquirida em 1977 pelo PadreBelo, num antiquário em Elvas, sendo possivel-mente proveniente do convento carmelita deBeja.

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No passado dia7 de Junho, o Insti-tuto Português deMuseus, com baseno parecer da Dr.ªMaria João Vilhenade Carvalho, usou odireito de opção so-bre um lote levadoà praça pelo Paláciodo Correio Velho

com a intenção de fazer engrossar ascolecções do Museu Nacional deArte Antiga.

A peça, que tinha neste leilãonúmero 255, mede aproximadamente260 cm a que, somando a coroa demetal prateado, atinge os três metrosde altura. Para além deste adjectivo,traz ainda de origem um par debrincos, do início do século XIX, emprata com minas novas.

Em madeira encarnada, dourada,estofada e policromada, a imagemapresenta um óptimo estado deconservação, embora tenha recebido,para a sua apresentação pública, umtratamento de restauro que removeuparte daquilo que se julga ser umaterceira camada de revestimento polí-cromo. Segundo as informações dostécnicos do restauro, fornecidas oral-mente, a policromia que a imagemapresenta actualmente parece ser umsegunda aplicação, pelo menos ao

nível das carnações das faces dosanjos.

Proveniente da colecção do ar-quitecto Tertuliano de Lacerda Mar-ques, a Virgem da Conceição constituiuma oferta feita ao arquitecto – emforma de pagamento pelos serviçosprestados numa intervenção de con-servação e consolidação do edifício –pelo pároco de uma igreja da fre-guesia da Graça em Lisboa (colo-camos a hipótese de se tratar daIgreja da Glória).

Depois de um episódio pitores-co que envolveu o transporte da pe-ça, desde a igreja até à casa do arqui-tecto na Lapa, em carro de burros, aimagem manteve-se sempre na posseda família Lacerda Marques, até à suapublicação no catálogo do leilão 150do Correio Velho, a páginas 356 a 359.

Embora o pregoeiro que a colo-cou em venda na praça a tenhaanunciado como sendo uma peça domestre Joaquim Machado de Castro,com consequente empolamento naimprensa, os valores formais e estilís-ticos da Nossa Senhora da Conceiçãonão confirmam esta atribuição. Nãoobstante, a escultura deve ser incluídano círculo do mestre.

Analisemos em detalhe as carac-terísticas morfológicas da escultura,aproximando-a da restante produçãode Machado de Castro.

Nova aquisição para o Museu Nacional de Arte Antiga: Nossa Senhora da Conceição do Laboratorio de Machado de Castro

As caras modeladas por JoaquimMachado de Castro são de “tipomédio”, ou seja, o nariz, boca e queixoe altura da testa utilizam o mesmomódulo – a altura do nariz – e a lar-gura da face corresponde a trêsmódulos do nariz. Ora, a cara da Vir-gem da Conceição não corresponde aeste cânone, sendo ligeiramente maisalongada.

As mãos da imagem tambémnão corroboram esta autoria, emboraa posição da mão esquerda sejanitidamente inspirada em modelocastriano, nomeadamente na imagemda Nossa Senhora da Encarnação naigreja do mesmo orago em Lisboa,mas a resolução não revela o mesmoconhecimento anatómico, nem o mes-mo cânone.

O aspecto mais flagrante, que adistancia da restante produção daescultura de vulto figurativa do escul-tor da Casa Real, é o panejamento.Este é um dos meios por excelênciautilizados por Joaquim Machado deCastro para “assinar” as obras com oseu cunho clássico de estatuário. Opanejamento das suas obras apre-senta um aspecto natural, que obe-dece aos movimentos de um corpodo qual se sente a existência, onde odesenho manifesta os valores plás-ticos do talhe da pedra. Pregas duras,espaçadas de facetas angulosas quecaiem verticalmente não se verificamnesta imagem. Aqui, os panejamentossão moles e boliados, as pregas caemem SS desafiando as leis da gravidade.

Veja-se a este propósito o lanço domanto que atravessa a figura transver-salmente, numa diagonal serpentinadaterminando em ponta revirada.

Acrescente-se ainda outro dospequenos detalhes que afastam ahipótese da autoria do Professor daAula Régia de Escultura. O términodo panejamento, com quebra aos pésdas esculturas de vulto figurativa deMachado de Castro, apresenta cons-tantemente os dois pés levementeafastados, pela posição em contra-posto formando-se duas pregas emcanudo ao centro. O tecido cola-se aopé avançado, formando sobre esteuma prega oblíqua da largura do pé e,os pés, conforme propõem os “pre-ceitos de arte”, aparecem sempre.Machado de Castro nunca esconderiaos pés, nem as pregas cairiam em sinosobre a base da escultura porque issosignificaria adulterar tudo o que tinhaaprendido com os grandes mestresdo sistema clássico.

A imagem da Nossa Senhora daConceição, que agora pertence aoacervo do MNAA deve ser enqua-drada no seio da produção escultó-rica saída da segunda geração deAjudantes da Casa da Escultura.Embora a imagem seja datável datransição setecentista para o séculoXIX, ela mantém uma “aura” barro-quizante devedora da tradição escul-tórica nacional.

Ana Duarte RodriguesAnísio Franco