harmonia tradicional, popular e funcional

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  • 7/29/2019 Harmonia Tradicional, Popular e Funcional

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    XVI Congresso da Associao Nacional de Pesquisa e Ps-graduao em Msica (ANPPOM)Braslia 2006

    Trabalho aceito pela Comisso Cientfica do XVI Congresso da ANPPOM- 396 -

    Harmonia Tradicional, Harmonia Funcional e Msica Popular:

    uma reflexo motivadora

    Antonio Guerreiro de Faria

    UNI-RIOe-mail: [email protected]

    Sumrio:

    Uma vez que a msica popular, com seus enfoques particulares, vem tomando lugar nos currculos dasUniversidades e exigindo uma mudana dos enfoques tradicionais da disciplina, o autor diagnosticaalguns problemas examinando fundamentos de arranjo na msica popular, procurando sinalizar parauma possvel resoluo dos problemas atravs de uma reflexo motivadora.

    Palavras-Chave:Harmonia, Msica popular, Arranjo.

    Mais recentemente, com a entrada dos cursos de Msica Popular na Universidade e comsua conseqente absoro nos currculos de Bacharelado, torna-se pertinente uma reflexo por partedos professores que lecionam a disciplina Harmonia e de uma conseqente avaliao dosparmetros que a tem regulado. Aqui no se trata de traar uma breve histria da disciplina desde osharmonistas do Conservatrio de Paris at os dias de hoje, para que desta forma se possacontextualizar seu assento nas Universidades e cursos regulares de msica. Trata-se antes de maisnada de refletir sobre as realidades que cercam a prtica, neste pas, da disciplina nos dias quecorrem. Estes ltimos, so dias de contnua movimentao transformadora das realidades musicais:

    queda do pblico de msica de concerto, queda acentuada dos valores advindos da cultura europia,ascenso e valorizao da cultura de mdia, depreciao da cultura de elite em detrimento de umavalorao da cultura popular nacional ainda em plena efervescncia transformadora, uma ondageneralizada de processos de fuso entre msica de concerto1 e msica popular e mais outras tantasmanifestaes herdadas da cultura e da contracultura americana que j vo sendo estudadas,monitoradas e analisadas pelas etnomusicologias e musicologias dos dias atuais

    O que aqui se pretende uma srie de reflexes sobre a realidade da disciplina, que secontinuar nos moldes prescritos por regras draconianas de conduo de vozes e escolha de funo,representar brevemente, uma pea de museu, em vez de um treinamento slido para a prtica dacomposio e do arranjo.

    A realidade com a qual um professor de harmonia se defronta nos dias que correm, passa,

    antes de mais nada, por uma tendncia arraigada para a verticalizao excessiva do tecido musical,produto acabado das possibilidades do violo, que o instrumento preferido pela grande maioriados que se destinam prtica do arranjo popular. Este ltimo, se condiciona quanto a conduo devozes, s tcnicas seccionais j prescritas por Arthur Lange (1927), Gordon Delamont (1967), ouNelson Riddle (1985), manuais que so conhecidos por estas plagas. Parecem de nada adiantar asponderaes de Nelson Riddle no captulo Music for films de seu livro de arranjo denominadoArranged by Nelson Riddle quando diz que:

    Os grandes mestres da msica de filmes tais como Franz Waxman, Victor Young, BernardHermann e Miklos Rosza, no obtiveram seus mritos apenas porque possuam laosculturais com a Europa. Estas razes europias implicaram em um profundo embasamentoem harmonia, teoria, e contraponto iniciados ainda na infncia, o que denota uma preparao

    1 Por msica de concerto, entenda-se a msica erudita de tradio europia, presente nas salas de concerto.

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    Trabalho aceito pela Comisso Cientfica do XVI Congresso da ANPPOM- 397 -

    total para a composio de msica de concerto (Riddle, 1985, p.163, em traduo do autordeste estudo).

    Na verdade, os processos de conduo de vozes usados nas big bands americanas passampela seccional harmony prescrita nos livros de arranjo americanos, desde o livro de Arthur

    Lange2(1927), at os mais recentes. A polifonia que se desenrola nos Corais de Bach, base do estilocontrapontado dos Baixos e Cantos dados nos cursos de Harmonia, praticamente ignorada nosmanuais norte-americanos de msica popular, pois os americanos forjaram uma linguagem prpria,um padro cultural na msica que foi absorvido em pouco tempo por quase todos as culturas graas sua difuso pelos meios de comunicao. O mesmo acontece com os manuais de arranjobrasileiros, formatados nos padres americanos. Estes padres podem ser descritos como umatextura harmnica sem nenhuma independncia entre as vozes.

    O manual de Arthur Lange, bastante minucioso, enfoca as sees da orquestra de danaamericana dividido-as emRythmic Unit, Saxophone UniteBrass Unit. Por essa poca, nos anos 20orquestrava-se para uma banda padro de um violino, trs saxofones, dois trompetes, um trombone,com a seo rtmica constituda por um piano, um banjo-tenor, contrabaixo ou tuba e bateria dapoca (bumbo com pedal, um tom-tom, uma caixa, um prato, um contratempo e um gongo...). Distose depreende que uma seo bsica de trs saxofones era a espinha dorsal da orquestra de dana;por isso talvez, o livro de Lange aborde o Dueto de metais e o Trio de saxofones como elementosbsicos e formatadores das disposies orquestrais para a msica popular americana da poca.

    No livro de Lange, cuja 1a edio data de 1926 tendo sido feitas pelo menos dez edies nototal, so relacionadas quatro disposies harmnicas para o Trio de saxofones3: Concert Trio naqual as trs partes possuem o mesmo ritmo, Semi concerted, na qual uma ou duas partes so escritasem ritmo diferente, Counter Trio na qual uma ou duas partes possuem ritmos completamentediferentes, e Inverted Trio na qual a melodia conduzida pela voz intermediria ou na 3a vozabaixo.

    Estas possibilidades se ampliaram com o aumento progressivo do nmero de instrumentosnas diferentes Unidades porm mantendo as mesmas disposies. Nos tempos de Glenn Miller, jna dcada de 40, cinco saxofones (dois altos, dois tenores e um bartono) e mais um clarineteformavam a seo de madeiras, e mais dois trompetes e trs trombones se incorporaram massaorquestral somando-se quatro trompetes e quatro trombones ao grupo original de trs metaisdenominado por Lange the Brass Unit. A orquestra de Glenn Miller possua ainda o recurso dedobrar com um clarinete as melodias do 1 alto oitava, fabricando assim o Glenn Miller soundquese tornou marca registrada por todas as dcadas subseqentes. preciso que se diga que o mesmoprocedimento era recomendado por Arthur Lange, ao dobrar oitava acima com o violino a melodiado lead; Glenn Miller adaptou, substituindo o clarinete pelo violino.

    Glenn Miller tambm escreveu seu livro de orquestrao4 (Miller, 1947), mais sucinto que

    o de Lange, mas com as mesmas possibilidades e procedimentos de movimento direto, porm sointroduzidos acordes de stima e nona no quarteto, o que enriquece sobremaneira as possibilidadesde tenso harmnica produzidas pela orquestra. Desta forma, quatro e, s vezes, cinco vozes passama se movimentar paralelamente criando uma massa orquestral poderosa, que impulsiona a dana aovivo e que foi assimilada pelas orquestras de Jazz quanto formao dos naipes e quanto conduo paralela das vozes.

    Os processos de conduo paralela advindos da msica de concerto, encontraram nasformas de msica de dana americana, uma seara farta para sua difuso atravs das Dance

    2 Lange, ArthurArranging for the modern dance orchestra, Robbins Music Corp, 1927, N.Y .3 Lange (1927), p.80

    4 Miller, Glenn Glenn Millers Method for Orchestral Arranging, Mutual Music Society Inc, 1947, N.Y.[Compositor, arranjador eband leader ( 1901-1945)]

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    Trabalho aceito pela Comisso Cientfica do XVI Congresso da ANPPOM- 398 -

    Orchestra americanas. Com a ausncia de um tecido polifnico, o tecido harmnico sustenta edestaca a melodia principal. Como no h linhas polifnicas a competir com a melodia conduzidapelo primeiro solista de cada naipe, a melodia torna-se rapidamente fixada nos ouvidos do ouvinte.Ao ser conduzida pelos lderes de naipe diz-se ento que a melodia est no lead. As disposiesorquestrais tradicionais de imbricao, encaixe, superposio e eliso foram assimiladas pelas

    orquestras que produziram arranjos complexos, com dinmica e articulao delineando o fraseado.Quando h contraponto, este se faz contrapondo blocos em Trio, Dueto ou Quarteto que formamcomentrios ao bloco meldico principal. Na verdade, trata-se de contraponto resultante duasvozes com dois blocos de trs ou quatro sons que se contrapem. Desta forma o conceito deharmonizao se transforma produzindo acordes inteiros que atuam como passagem, apojatura,bordadura, antecipao e escapada contra uma base harmnica constituda por acordes com umritmo harmnico mais lento que o de um Coral de Bach feito em semnimas, por exemplo. O efeitoobtido por esse complexo bastante funcional pois permite uma difuso clara da linha meldica,sem as ramificaes apresentadas pela polifonia (seja ela contrastante ou imitativa) da msica deconcerto.

    seo rtmica (chamada nos meios profissionais de cozinha) relatada por Arthur Lange

    originalmente constituda por piano, baixo, banjo-tenor, bateria, ou tuba no lugar do contrabaixoacstico sucederam-se o violo acstico, amplificado nos anos 30 e nos anos 40 transformado emguitarra eltrica5 em lugar do banjo. O contrabaixo eltrico desenvolvido no fim dos anos 40porLeo Fender6 tomou o lugar do contrabaixo acstico; e mais recentemente foram adicionados osteclados eletrnicos que podem substituir o piano ou os samplers que substituem orquestrasinteiras. Este conceito de seo rtmica ou cozinha na verdade uma herana da kchen barrocaconstituda pelo cravo, contrabaixo, e o que mais fosse instrumento de harmonia realizando as cifrascolocadas abaixo da linha do contnuo. O curioso nos anos 20 que as partes de piano eram escritasno pentagrama e as partes do banjo-tenor, alm de utilizar o pentagrama, valiam-se da cifraalfabtica americana. Pode-se suspeitar de que estas cifras se constitussem na forma de escrita parabanjo, que no era instrumento da elite americana, sendo plausvel que a maioria de seusexecutantes no soubessem ler msica.

    Porm as cifras numricas colocadas abaixo da linha do contnuo, e ainda hoje utilizadaspara indicar inverses e alteraes dos graus da escala nos exerccios de harmonia com o baixodado, vo sendo substitudas na prtica musical do presente pelas cifras de origem americana. Estascifras, introduzidas no Brasil por Radams Gnattali nos anos 30 da era do rdio7, substituem opentagrama na primeira tomada de contato dos executantes com a harmonia de um arranjo. Sotambm usadas para que msicos que no sabem ler msica possam tocar um acompanhamentosimples ao violo ou a qualquer instrumento harmnico com relativa facilidade. Em ingls sodenominadas chord symbol e descrevem estruturas tridicas servindo os nmeros para acrescentarstimas nonas, dcimas primeiras ou alteraes cromticas. Mas em todos os manuais de arranjo

    foram usados com propsitos ilustrativos que absolutamente no satisfazem, tanto assim que acifragem numrica em romanos rapidamente utilizada para descrever os graus que osencadeamentos exemplificados ocupam na tonalidade, sendo denominada como cifragemanaltica8. Quanto funcionalidade comum que alguns manuais ao falarem de HarmoniaFuncional cometam ainda o erro, j generalizado, de colocar como substituto da subdominante

    5 Marshall 2002, pp. 152-1536 Ibidem, p.1787Segundo o falecido compositor Guerra-Peixe, foi Radams Gnattali quem introduziu a cifra por ser a cpia

    das partes de piano feita mais rapidamente uma vez que os trabalhos entregues pelos arranjadores tinham suas partes deorquestra copiadas e tocados no mesmo dia sem ensaio pela orquestra da Rdio Nacional. Era a indstria da mdia

    nascendo no Brasil.8Chediak, p.127.

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    apenas o acorde do II grau, e como substituto da dominante apenas o acorde do VII grau9esquecendose que Hugo Riemann designou o VI grau como Sa, Subdominante anti-relativa, epossuindo tambm dupla funo como Tr ou Tnica relativa o mesmo acontecendo com Dr e Tapara o III grau.

    Ora, os alunos atuais de harmonia que vem dos cursos livres de msica, j possuem em sua

    maioria conhecimentos de cifragem alfabtica, oriundos da Harmonia Funcional por elesensinada. O choque com a realidade universitria, que se escora na msica de concerto, total. Istopode gerar, desde o mais absoluto desprezo pela matria, at a mais absoluta estranheza, aoconstatar que os conceitos de harmonia quatro partes com conduo das vozes e escolha de funopossam tambm ser chamados de Harmonia Funcional. Ouve-se de tudo, at mesmo a justificativa,repassada em aulas de cursos livres que a Harmonia por cifra alfabtica Funcional porquefunciona; some-se isto, o fato de que geral o desconhecimento sobre os fundamentos daHarmonia Funcional terem sido expostos por Hugo Riemann.

    Se muitos dos alunos j entram nos cursos com a viso formatada por um uso sistemticode uma cifra que apenas simboliza os sons, a conseqncia imediata que isto acarreta uma visounicamente vertical da harmonia e da msica. O conceito de discurso fica logo extinto pela nsia de

    procurar apenas se tal acorde possui funo de Subdominante, Tnica ou Dominante, como se issotornasse o discurso musical mais claro. Isto, quando no se considera que o que importa, tal comona cifragem americana, de quantas teras superpostas possui o acorde tal, sempre examinadoisolado de seu contexto musical.

    Assim, foram colocados nesta pequena srie de reflexes dois problemas que parecemafetar o processo de conduo de vozes e o da escolha de funo, problemas estes advindos dasprticas da harmonia seccional10 e da chamada Harmonia Funcional tal como praticada em algunscursos livres de msica. O primeiro problema o da conduo paralela, presente nos Duetos, Triose Quartetos de sopros, tal como usados nas orquestras de dana americanas. O segundo o daconceituao estrutural que acarreta uma viso extremamente vertical da harmonia, originria doprprio uso dos chord symbol. Estes dois fatores aparentemente desconectados, terminam por sefundir num s problema ao se conceituarem, como exemplo j assduo na sala de aula, as apojaturascomo notas que pertencem ao processo meldico do discurso musical. Estas apojaturas socompreendidas quase sempre pelos alunos como notas pertencentes ao acorde e no comoresultantes de um processo horizontal. Os retardos, de farto uso na msica de concerto e nas trilhasde filme (a maior parte compostas por compositores com formao acadmica), se tornamelementos de difcil apreenso por se originarem de um processo horizontal, meldico, sempreanalisado em conjunto com o acorde (preparao, ataque e resoluo). Isto, e mais a dificuldade dese assimilar a harmonia como um processo tambm horizontal, vem conduzindo a prtica do arranjoem msica popular pelo caminho da mais absoluta padronizao vertical, reclamando desde jpropostas claras para a soluo do problema. Esta comunicao no pretende resolver o problema,

    que j vem se delineando com freqncia, mas refletir sobre ele para que se pense nas solues.

    9 Py, p.33.

    10 Expresso usada por Gordon Delamont, jazzista e pedagogo canadense, no livro Modern ArrangingTechnique, Kendor Music 1967, N.Y.

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    Referncias Bibliogrficas

    Chediak, Almir. (1984). Dicionrio de Acordes Cifrados. Rio de Janeiro: Vitale.

    Delamont, Gordon. (1967). Modern Arranging Technique. New York: Kendor Music.

    Guest, Ian. (2006). Harmonia Mtodo Prtico (acompanha um CD.), 2 vols, Rio de Janeiro: Lumiar

    Editora Chediak arte & comunicao.Lange, Arthur. (1927). Arranging for the modern dance orchestra. New York: Robbins Music Corp.

    Miller, Glenn. (1947). Glenn Millers Method for Orchestral Arranging, New York: Mutual Music SocietyInc.

    Marshall, Tony. (2002). In: Fazendo msica, o guia para compor, tocar, e gravar, organizado por GeorgeMartin. Braslia: Editora Universidade de Braslia; So Paulo: Imprensa Oficial do Estado de SoPaulo.

    Py, Bruno. (2002). O ensino da Harmonia em cursos livres de msica: Harmonia Funcional? Monografia deconcluso de curso. CLA/UNI-RIO.

    Riddle, Nelson. (1985). Arranged by Nelson Riddle: The definitive study of arranging by Americas #1composer, arranger and conductor. Secaucus (NJ): Warner Bros. Publications.