hard-cases e leading-cases no campo do direito à educação o … · 2018-09-27 · 1 hard-cases e...

31
1 Hard-cases e leading-cases no campo do direito à educação: o caso das quotas raciais. Nina Beatriz Stocco Ranieri “A interpretação integra o léxico fundamental do Direito. É no direito em ação – na law in action (...)– que o intérprete se ocupa e se preocupa com a passagem da verba legis para a sententia legis. Esta passagem tem sua complexidadede própria, pois (...) entender a lei (scire legis) não é conhecer-lhe as palavras, mas sim a sua força e poderio (vim ac potestatem).” Celso Lafer, em prefacio à obra “Ativismo Judicial”, de Elival da Silva Ramos, São Paulo, Saraiva, 2010, p. 11. “A jurisprudência (..) deve se por a serviço de dois senhores: a lei e a realidade. Só por meio da tensão entre estas duas vertentes da atividade judicial é que se poderá respeitar a concepção prática do Direito.” Gustavo Zagrebelski, El Derecho Dúcti, Madrid, Editorial Trotta, 2008, p. 132. Introdução Hard-cases, standard-case e leading-case são expressões empregadas no direito comum anglo-americano para designar ações judiciais que, por versarem sobre questões jurídicas complexas e inéditas, não podem ser submetidas a uma regra de direito clara e precisa. Na língua portuguesa, a expressão jurídica hard-case significa, literalmente, “caso difícil” ou “caso problemático”. Já as expressões standard-case e leading-case, utilizadas como sinônimas em língua inglesa, podem ser traduzidas para o português como “caso paradigmático” e “caso líder”, respectivamente. Um caso paradigmático sempre decorrerá de uma causa difícil ou problemático, embora um caso difícil nem sempre se torne um caso paradigmático. O tema da discricionariedade judicial em face de hard-cases suscitou diferentes posições na doutrina americana, sendo conhecida a divergência entre H. L. A. Hart (The Concept of Law, 1961) e Ronald Dworkin (Taking Rights Seriously, 1977) sobre a existência ou não de um dever legal do juiz de decidir de determinada maneira em situações de incompletude da lei.

Upload: others

Post on 11-Mar-2020

18 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Hard-cases e leading-cases no campo do direito à educação o … · 2018-09-27 · 1 Hard-cases e leading-cases no campo do direito à educação: o caso das quotas raciais. Nina

1

Hard-cases e leading-cases no campo do direito à

educação: o caso das quotas raciais.

Nina Beatriz Stocco Ranieri

“A interpretação integra o léxico fundamental do Direito. É no direito em ação – na law in action (...)– que o intérprete se ocupa e se preocupa com a passagem da verba legis para a sententia legis. Esta passagem tem sua complexidadede própria,

pois (...) entender a lei (scire legis) não é conhecer-lhe as palavras, mas sim a sua força e poderio (vim ac potestatem).”

Celso Lafer, em prefacio à obra “Ativismo Judicial”, de Elival da Silva Ramos, São Paulo, Saraiva, 2010, p. 11.

“A jurisprudência (..) deve se por a serviço de dois senhores: a lei e a realidade. Só por meio da tensão entre estas duas vertentes da atividade judicial é que se poderá respeitar a concepção prática do Direito.”

Gustavo Zagrebelski, El Derecho Dúcti, Madrid, Editorial Trotta, 2008, p. 132.

Introdução

Hard-cases, standard-case e leading-case são expressões empregadas no

direito comum anglo-americano para designar ações judiciais que, por versarem sobre

questões jurídicas complexas e inéditas, não podem ser submetidas a uma regra de

direito clara e precisa.

Na língua portuguesa, a expressão jurídica hard-case significa, literalmente,

“caso difícil” ou “caso problemático”. Já as expressões standard-case e leading-case,

utilizadas como sinônimas em língua inglesa, podem ser traduzidas para o português

como “caso paradigmático” e “caso líder”, respectivamente. Um caso paradigmático

sempre decorrerá de uma causa difícil ou problemático, embora um caso difícil nem

sempre se torne um caso paradigmático.

O tema da discricionariedade judicial em face de hard-cases suscitou diferentes

posições na doutrina americana, sendo conhecida a divergência entre H. L. A. Hart

(The Concept of Law, 1961) e Ronald Dworkin (Taking Rights Seriously, 1977) sobre

a existência ou não de um dever legal do juiz de decidir de determinada maneira em

situações de incompletude da lei.

Page 2: Hard-cases e leading-cases no campo do direito à educação o … · 2018-09-27 · 1 Hard-cases e leading-cases no campo do direito à educação: o caso das quotas raciais. Nina

2

Em apertada síntese, podemos dizer que, para Hart, como o Direito positivo

deve responder a todas as situações suscitadas judicialmente, o juiz, nos casos difíceis,

dispõe de maior discricionariedade (ou “discricionariedade forte”, na tipologia de

Dworkin), dada a incompletude ou lacuna da lei. Para Dworkin, diversamente, o juiz

dispõe apenas de “discricionariedade fraca”, dado “o dever de descobrir quais são aos

direitos das partes e não inventar outros direitos retroativamente.”1 Esta problemática,

em Hart, não é uma preocupação, posto que tais direitos, em face da lacuna legal, não

existiriam, razão pela qual não se estaria desconsiderando qualquer direito. Note-se

que Dworkin não diverge de Hart no tocante à discricionariedade fraca, mas, tão

somente, acerca da discricionariedade forte. E isto porque a sua reflexão política,

ainda que de matriz liberal, não reduz o âmbito político à defesa de direitos e à

representação de interesses privados, considerando antes a liberdade de

autodeterminação dos indivíduos e a realização do bem comum.2

Essas posições são ilustrativas da diferença substantiva entre hard-cases e

leading-cases no sistema jurídico americano, no que diz respeito às influências

externas à Constituição, vis à vis o grau da discricionariedade judicial que pode ser

adotado pelo juiz.

De modo geral, no direito norte-americano, o emprego da expressão hard-case

refere-se a uma causa que sofre os impactos de uma razão social avassaladora, que

“apela aos sentimentos do julgador e distorce o julgamento”, para usar as palavras do

controvertido Oliver Wendell Holmes Jr., Associate Justice da Suprema Corte no

início do séc. XX.3 Por esta razão, a discricionariedade do julgador, motivada por

idéias de reparação, pode levar à elaboração de decisões não conformadas aos the true

principles of Law, como nos adverte Henry Campbell Black.4 Hard cases make bad

Law, enfatizam, sem relativizações, Black e Holmes.

Nos leading-cases, o problema da “discricionariedade forte” não se apresenta,

posto que a solução indicada para o caso, ainda que resultante de “discricionariedade

fraca”, encontra amparo nas normas constitucionais. A grande contribuição do leading

1 Cf. Levando os direitos a sério, trad. Nelson Boeira, São Paulo, Martins Fontes, 2002:127. 2 Para maior aprofundamento dessa discussão, ver Daniela R. Ikawa, Hart, Dworkin e Discricionariedade, São Paulo, FAPESP, Revista Lua Nova no. 61, 2004, pp. 97/ 3 Cf. Oliver Wendell Holmes Jr. “in” Richard A. Posner, The Essential Holmes, The University of Chicago Press, 1992, p. 130, citado na petição da ADIn 3.197-RJ. 4 Cf. Black’s Law Dictionary, St. Paul, Minn., 1990, West Publishing Co., 6th Edition, p. 717.

Page 3: Hard-cases e leading-cases no campo do direito à educação o … · 2018-09-27 · 1 Hard-cases e leading-cases no campo do direito à educação: o caso das quotas raciais. Nina

3

case, ao solucionar um caso difícil, consiste em fixar novas linhas interpretativas que

ampliam a garantia e proteção do Direito.

Podemos dizer, portanto, que soluções fundadas em ampla discricionariedade

judicial seriam, a princípio, mais discutíveis do ponto de vista técnico-jurídico, o que

relativizaria a observância, pelo juiz, dos limites de sua função e, por via de

conseqüência, poria em xeque a legitimidade dessas decisões no âmbito do Estado

Democrático de Direito. Trata-se, nesta hipótese, do ativismo judicial entendido como

“desrespeito aos limites normativos substanciais da função jurisdicional”, conforme a

sintética definição de Elival da Silva Ramos em alentada obra sobre o tema.5

Mais especificamente, alerta o constitucionalista: “Se, por meio do exercício

ativista, se distorce, de algum modo, o sentido do dispositivo constitucional aplicado

(por interpretação descolada dos limites textuais, por atribuição de efeitos com ele

incompatíveis ou que devessem ser sopesados por outro poder etc.), está o órgão

judiciário deformando a obra do próprio Poder Constituinte originário e perpetrando

autêntica mutação inconstitucional.” 6

Toda essa problemática assume especial relevância quando se trata de casos

difíceis relativos à matéria constitucional, uma vez que a jurisdição constitucional é o

último nível de controle das normas constitucionais e conseqüência da adoção de

Constituições rígidas, dotadas de superioridade hierárquica.7

Qual a relação entre hard cases e leading cases e as decisões a serem proferidas

pelo Supremo Tribunal Federal na Argüição de Descumprimento de Preceito

Fundamental 186-2, no Recurso Extraordinário 597.285/RS e na Ação Direta de

Inconstitucionalidade 3.197-RJ, relativamente à constitucionalidade, ou não, do

emprego de quotas raciais para seleção de ingressantes no ensino superior?

A resposta é simples: além da inevitável conexão que se costuma estabelecer

entre o tema das cotas raciais americanas e das cotas brasileiras, a inexistência de regra

constitucional clara em relação à matéria - o que necessariamente implicará atividade

hermenêutica em face de questões políticas.

5 Cf. Elival da Silva Ramos, Ativismo Judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo, Saraiva, 2010, p. 109. 6 Op. cit. p. 112/3. 7 Cf., a propósito, Elival da Silva Ramos, op. cit.

Page 4: Hard-cases e leading-cases no campo do direito à educação o … · 2018-09-27 · 1 Hard-cases e leading-cases no campo do direito à educação: o caso das quotas raciais. Nina

4

Questões políticas, ensina Pontes de Miranda, são aquelas nas quais haverá

espaço para o exercício do poder discricionário.8 O que está em jogo, portanto, é a

legitimidade da decisão, tanto em face do grau de discricionariedade a ser empregado

quanto da eventual ampliação do campo de incidência projetado pelas normas

constitucionais incidentes sobre a matéria.

Ora, na atividade hermenêutica, o intérprete parte do caso em busca da regra

adequada e desta retorna em direção àquele, num procedimento circular, de direção

bipolar, que se completa, legitimamente, à medida que se compõem as exigências do

caso e as pretensões da norma e do sistema jurídicos. No presente estágio da ciência

jurídica, ante a impossibilidade de se alcançar tal composição, abre-se um novo

problema, que não afeta a interpretação da norma, mas a sua validade.9

E isto porque, após o positivismo jurídico, os critérios de legitimação do

Direito produzido pelo Estado passaram a voltar-se a valores ético-políticos, e também

ao mundo dos fatos, com fecundos resultados nas Constituições democráticas

elaboradas após a II Guerra Mundial. Este fenômeno é significativo a ponto de não

mais ser possível reduzir o Direito a meras estruturas normativas, dado que, ao lado

das regras, figuram os “princípios”. Na conhecida lição de Ronald Dworkin, “(...)

princípio um padrão que deve ser observado, não porque vá assegurar ou promover

uma situação econômica, política ou social considerada desejada, mas porque é uma

exigência de justiça e eqüidade ou alguma outra dimensão da moralidade.”10

Os princípios nos sistemas jurídicos atuais, por conseguinte, são a expressão do

relacionamento entre Direito e moral; correspondem aos direitos fundamentais, base

moral que torna o direito obrigatório. Além disso, na medida em que consubstanciam

um sistema de valores, os princípios se irradiam por todo o sistema jurídico, com força

conformadora. Promovem, por via de conseqüência, a expansão axiológica do Direito

e propiciam sua interpretação extensiva, criando, por isso mesmo, incertezas

normativas, como ressalta Celso Lafer ao discorrer sobre os princípios no direito

internacional, paradigma do direito em movimento. 11

8 Cf. Pontes de Miranda, Comentários à Constituição de 1946, Rio de Janeiro, Borsoi, 1960, 3ª. Ed. t.3, pp. 205/6. 9 Cf., a propósito, G. Zagrebelsky, El Derecho Dúctil, Madrid, Editorial Trotta, 2008:134. 10 Cf. Levando os direitos a sério. São Paulo, Martins Fontes, 2002, 35/6. 11 Op. cit. p. 14.

Page 5: Hard-cases e leading-cases no campo do direito à educação o … · 2018-09-27 · 1 Hard-cases e leading-cases no campo do direito à educação: o caso das quotas raciais. Nina

5

Uma das conseqüências da expansão dos princípios na estrutura normativa das

constituições, observa Lafer, “é a de a elas conferir a característica de constituições

com uma vis directiva. Esta tem como objetivo buscar responder à função

promocional do Direito contemplada nos princípios. (...) Como a esfera da aplicação

dos princípios da Constituição de 1988 e de outras constituições contemporâneas é

relativamente indeterminada e dúctil e não se cinge à dimensão da validade, a

interpretação dos critérios para a tomada de posição do juiz diante do caso concreto

passa pelo balancing das ponderações.” 12

É por essas razões que as ações relativas às quotas raciais submetidas ao STF

propiciarão um fecundo e instrutivo campo de análise das potencialidades da

Constituição Federal, sendo certo que o enfrentamento de “questões políticas”, nas

adjudicações constitucionais será sempre complexo.

Segundo a metódica desenvolvida por J. J. Gomes Canotilho, na interpretação

de normas constitucionais em casos jurídicos problemáticos faz-se necessário proceder

a uma análise complexa, a envolver a teoria da norma constitucional e a teoria da

Constituição, além da descrição do direito vigente, do exame sistêmico do direito e da

elaboração de propostas de solução do caso.13

É evidente que tal analise enfrentará as dificuldades inerentes à atividade

hermenêutica, quais sejam a textura aberta das normas constitucionais, a dimensão

política desta atividade e os problemas suscitados pelas normas de direitos

fundamentais que prendem o juiz aos postulados positivistas. Em diversas situações,

interpretar a norma constitucional também depende de inúmeras considerações

externas ao texto constitucional: expectativas da sociedade civil, considerações de

ordem práticas, práticas históricas, valores da comunidade etc.

Não se pode deixar de considerar, de outra parte, que a busca da solução para

um caso problemático não depende de um método específico; metódicas interpretativas

existem muitas e são inerentes ao pluralismo jurídico. O importante é que o método

esteja a serviço dessa busca.

12 Op. cit., p. 12. 13 Cf. J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Almedina, Coimbra, 2002, 6ª Ed., pp.1103 e seguintes.

Page 6: Hard-cases e leading-cases no campo do direito à educação o … · 2018-09-27 · 1 Hard-cases e leading-cases no campo do direito à educação: o caso das quotas raciais. Nina

6

O objetivo deste artigo é apontar algumas das razões pelas quais entendo que as

decisões a serem proferidas pelo Supremo Tribunal Federal nas citadas Argüição de

Descumprimento de Preceito Fundamental 186-2, Recurso Extraordinário 597.285/RS

e Ação Direta de Inconstitucionalidade 3.197-RJ, produzirão leading-cases em matéria

de ações afirmativas e quotas raciais.

A ADPF 186-2, o RE 5.97.285/RS e a ADIn 3.197-RJ são casos que marcam

uma determinada geração, tal como ocorreu no “caso Ellwanger”, no qual se discutiu a

liberdade de expressão em relação à dignidade humana (HC 82.424-2-RS)14, ou no

caso da anencefalia, no qual se opuseram o princípio da dignidade humana e o direito à

vida (ADPF 54-2-DF), dentre outros.

Essa relação exemplificativa de decisões paradigmáticas do STF demonstra que

a sociedade tem provocado a Corte a pensar o futuro, a enfrentar questões complexas,

o que também se incorpora ao conteúdo do Estado Democrático de Direito e lhe dá

nova feição, em comparação com os modelos clássicos do Estado de Direito. E isso

porque as solicitações sociais contemporâneas provocam a inversão da tradicional

relação de tempo estabelecida entre as atuações do Legislativo e do Judiciário, na qual

o primeiro pensava o futuro enquanto o segundo garantia a aplicação da norma que o

conformava, além de ampliar a participação da Corte na efetivação de políticas

públicas constitucionalmente definidas.

1- Definições preliminares

Para os fins deste artigo, adoto a definição de “discriminação racial” expressa

no art. 1º da Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as formas de

Discriminação Racial da Organização das Nações Unidas (ONU), de 1965: “qualquer

distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada em raça, cor, descendência ou

origem nacional ou étnica que tenha o propósito de anular ou prejudicar o

reconhecimento, gozo ou exercício, em igualdade, de direitos humanos e liberdades

fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural ou qualquer outro

campo da vida pública.”

14 Cf., a propósito. Celso Lafer, “O caso Ellwanger: anti-semitismo como prática de racismo”, in A internacionalização dos direitos humanos, São Paulo, Manole, 2005, pp. 33/122.

Page 7: Hard-cases e leading-cases no campo do direito à educação o … · 2018-09-27 · 1 Hard-cases e leading-cases no campo do direito à educação: o caso das quotas raciais. Nina

7

Para “discriminação na educação”, adoto a definição do art. 1º da Convenção

contra a Discriminação na Educação da Organização das Nações Unidas para a

Educação, Ciência e Cultura (UNESCO), de 1960: “qualquer distinção, exclusão,

restrição ou preferência baseada em raça, cor, descendência ou origem nacional ou

étnica que tenha o propósito de anular ou prejudicar o reconhecimento, gozo ou

exercício em igualdade na educação e, em particular: (a) de prejudicar o acesso de

qualquer pessoa ou grupo de pessoas do acesso à educação de qualquer tipo ou nível;

(b) de limitar a níveis inferiores a educação de qualquer pessoa ou grupo de pessoas;

(c) estabelecer ou manter diferentes sistemas educacionais para pessoas ou grupo de

pessoas, ressalvadas as exceções previstas no art. 2º; (d) infringir a qualquer pessoa ou

grupo de pessoas condições incompatíveis com a dignidade humana.” 15

Para a expressão “ação afirmativa”, emprego o conceito de Joaquim B. Barbosa

Gomes: “conjunto de políticas públicas e privadas de caráter compulsório, facultativo

ou voluntário, concebidas com vistas ao combate à discriminação racial, de gênero e

de origem nacional, bem como para corrigir os efeitos presentes da discriminação

praticada no passado, tendo por objetivo a concretização do ideal de efetiva igualdade

de acesso a bens fundamentais como a educação e o emprego.” Este é o mesmo

conceito de “discriminação positiva”. “Quotas raciais”, como bem aponta o autor,

constituem um dos modos pelos quais se implementam políticas de ação afirmativa.16

Educação superior, por sua vez, é o nível de ensino que compreende os cursos

seqüenciais por campo do saber, cursos de graduação e extensão, além dos programas

de pós-graduação stricto e lato sensu (art. 44, da Lei 9.394, de 20/12/96). Tem por

finalidade estimular a criação cultural e o desenvolvimento do espírito científico e do

pensamento reflexivo, formar diplomados nas diferentes áreas de conhecimento,

incentivar o trabalho de pesquisa e investigação científica, promover a divulgação de

conhecimentos culturais, científicos e técnicos, que constituem patrimônio da

humanidade, e comunicar o saber através do ensino, de publicações ou de outras

formas de comunicação. Deve, também, suscitar o desejo permanente de

aperfeiçoamento cultural e profissional e possibilitar a correspondente concretização,

integrando os conhecimentos que vão sendo adquiridos numa estrutura intelectual

sistematizadora do conhecimento de cada geração.Tem ainda como meta estimular o 15 O Brasil ratificou o conteúdo da convenção por via do Decreto no. 63.223, de 06/07/68. 16 Cf. Ação afirmativa e princípio constitucional da Igualdade – O direito como instrumento de transformação social. A experiência dos EUA. Rio de Janeiro, Renovar, 2001, pp. 40 e seguintes.

Page 8: Hard-cases e leading-cases no campo do direito à educação o … · 2018-09-27 · 1 Hard-cases e leading-cases no campo do direito à educação: o caso das quotas raciais. Nina

8

conhecimento dos problemas do mundo presente, em particular os nacionais e

regionais, prestar serviços especializados à comunidade e estabelecer com esta uma

relação de reciprocidade, além de promover a extensão, aberta à participação da

população, visando à difusão das conquistas e benefícios resultantes da criação cultural

e da pesquisa científica e tecnológica geradas na instituição (art. 43, da Lei 9.394/96).

Note-se, portanto, que, nos termos da legislação de diretrizes e bases da

educação brasileira (lei 9.394/96), quando se fala genericamente de quotas raciais no

ensino superior, fala-se de reserva de vagas nos diversos cursos e programas que

integram este nível de ensino, e não apenas da graduação. Diversamente, quando se

fala em reserva de vagas em vestibular, mediante quotas raciais, fala-se apenas da

graduação.

2- Leading-cases no direito à educação.

No campo do direito à educação, os leading cases têm resultado de situações

problemáticas nas quais a primazia do direito da criança, do adolescente ou do adulto é

mais difícil de ser aquilatado ou dimensionado e que, por esta razão, uma vez

solucionados, apontam novas linhas protetivas do direito. Foi o que ocorreu, por

exemplo, em postulação junto ao Superior Tribunal de Justiça – STJ acerca da

possibilidade de oferecimento domiciliar de ensino fundamental (Mandado de

Segurança no. 7.407 – DF). Da mesma forma, pode-se citar, no âmbito da

jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, o caso do oferecimento da educação

infantil pelo Poder Público municipal, anteriormente à Emenda Constitucional no. 59,

de 11/11/2009 (Agravo Regimental no Recurso Extraordinário 410.715-5).

1.1- O Mandado de Segurança nº. 7.407 – DF.

No primeiro caso, os requerentes, com fundamento no dever educacional da

família e dos pais (artigos 205 e 227 da Constituição Federal), alegaram dispor de

liberdade constitucionalmente assegurada para escolher a forma de oferecimento de

estudos a seus filhos, o que não lhes foi reconhecido. Conforme restou decidido no

paradigmático acórdão proferido pela Primeira Seção do STJ no MS 7.407 – DF, o

ensino fundamental não pode ser ministrado em casa, à vista de sua particular natureza

Page 9: Hard-cases e leading-cases no campo do direito à educação o … · 2018-09-27 · 1 Hard-cases e leading-cases no campo do direito à educação: o caso das quotas raciais. Nina

9

no conjunto do direito à educação e do preparo da pessoa para o exercício da

cidadania. 17

Nesse caso, foram apreciadas diversas questões relacionadas aos direitos

fundamentais, a saber: o direito à educação, os direitos da família, os direitos das

crianças e adolescentes, o dever do Estado e da família no oferecimento da educação e

suas relações com os direitos de liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o

pensamento, a arte e o saber; a prevalência do poder parental na escolha da educação a

ser oferecida aos filhos; as repercussões penais da não-matrícula escolar. Mas o que

estava em jogo, fundamentalmente, era o primado da família sobre o Estado, como

base da sociedade (art. 226), diante da obrigação constitucional de atendimento do

ensino fundamental em instituições escolares.

Os fundamentos da decisão do STJ centraram-se, basicamente, em três aspectos

principais, assim apontados pelo Relator, Min. Francisco Peçanha Martins:

a) a freqüência à escola é direito dos menores, previsto

na Constituição Federal e regulamentado pela Lei de Diretrizes

e Bases da Educação e pelo Estatuto da Criança. Tal

regulamento não pode ser desafiado pela convicção filosófica

dos pais; b) mesmo reconhecida, a capacidade dos pais de

ministrar boa educação não é razão suficiente para privar a

criança do direito ao convívio escolar; c) não pode o Poder

Judiciário desprezar o ordenamento jurídico em favor da

convicção política e filosófica dos pais.

No voto do Relator, é importante notar a definição da precedência do Estado

sobre a família nesta matéria específica. A fundamentação, como fica claro no voto do

Min. Peçanha Martins, reside na exigência da formação da cidadania em espaço

público, aqui considerada direito das crianças:

17MS Nº 7.407 - DF (2001/0022843-7). Rel. Ministro Francisco Peçanha Martins. “1. Direito líquido e certo é o expresso em lei, que se manifesta inconcusso e insuscetível de dúvidas. 2. Inexiste previsão constitucional e legal, como reconhecido pelos impetrantes, que autorizem os pais ministrarem aos filhos as disciplinas do ensino fundamental, no recesso do lar, sem controle do poder público mormente quanto à freqüência no estabelecimento de ensino e ao total de horas letivas indispensáveis à aprovação do aluno. 3. Segurança denegada à míngua da existência de direito líquido e certo.” A Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça, (...) por maioria, denegou a segurança. Vencidos os Srs. Ministros Franciulli Netto e Paulo Medina. Votaram com o Relator os Ministros Humberto Gomes de Barros, Eliana Calmon, Francisco Falcão, Laurita Vaz e Garcia Vieira. Brasília (DF), 24 de abril de 2002.

Page 10: Hard-cases e leading-cases no campo do direito à educação o … · 2018-09-27 · 1 Hard-cases e leading-cases no campo do direito à educação: o caso das quotas raciais. Nina

10

Os filhos não são dos pais, como pensam os Autores.

São pessoas com direitos e deveres, cujas personalidades se

devem forjar desde a adolescência em meio a iguais, no

convívio social formador da cidadania.

O direito à educação fundamental obrigatória, portanto, encerra dois direitos de

cidadania: o direito à formação, que o ensino fundamental propicia, e o direito de

recebê-lo em estabelecimento de ensino fundamental, público ou privado. O

fundamento axiológico do direito de cidadania assim expresso concentra-se, pois, na

idéia do inter sum, que se concretiza, em sua inteireza, no espaço público, local onde

se expressa a pluralidade resultante das relações humanas que envolvem o outro e, por

conseqüência, onde se expressa a solidariedade e a res publica.

De outra parte, confirma-se judicialmente que o nexo entre o indivíduo e a

participação na vida coletiva e no espaço público requer a transmissão formal, a cada

geração, de todo um conjunto de valores e princípios de extração democrática, por

meio do ensino escolar. É o que se extrai, repetimos, do art. 3º, mas também do art. 1º

da Constituição Federal, nos quais estão patentes, sobretudo , a soberania popular, a

cidadania, a dignidade humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o

pluralismo político.

Da premissa do dúplice conteúdo do direito à educação fundamental decorrem

três conclusões: as obrigações da família com o ensino fundamental em relação a seus

filhos têm caráter complementar às obrigações do Estado; os deveres dos pais, neste

nível fundamental, não são excepcionáveis à luz da liberdade de ensino nem da

pluralidade de concepções pedagógicas a ponto de facultar o ensino domiciliar, nem há

exceções à freqüência escolar (art. 208, § 4º). O princípio da liberdade no Estado

Democrático de Direito, aliás, só pode ser compreendido com referência ao bem

comum (art. 3º, I).

A liberdade de ensino e de orientação pedagógica, portanto, concerne à escolha

entre a escola pública ou a privada, ao método pedagógico da educação formal e à

eventual orientação religiosa, dentre outras possíveis opções, mas não entre ensino

formal e informal. De outra parte, se já eram evidentes as limitações ao pátrio poder e

à prevalência da família em razão das normas de proteção da criança e do adolescente,

a decisão do STJ definiu mais uma, de extração constitucional.

1.2- O Agravo Regimental no Recurso Extraordinário 410.715-5.

Page 11: Hard-cases e leading-cases no campo do direito à educação o … · 2018-09-27 · 1 Hard-cases e leading-cases no campo do direito à educação: o caso das quotas raciais. Nina

11

No segundo caso, o objeto era a afirmação da educação infantil como

prerrogativa indisponível de crianças de zero a seis anos em creches e escolas de

educação infantil (ação interposta ante da EC 53/06, que ampliou o ensino

fundamental ao nele incluir as crianças de seis anos), figurando o Município de Santo

André como recorrente em virtude de decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo –

TJSP, que conheceu e deu provimento à tutela requerida pelo Ministério Público do

Estado de São Paulo, em benefício da garantia de atendimento do direito.18

No voto do relator Min. Celso de Mello, em acórdão da Segunda Turma do

STF que, por unanimidade, negou provimento ao recurso de agravo (22/11/05; DJ

03/02/06), foram apresentados cinco argumentos principais:

(a) a educação infantil é prerrogativa indisponível que assegura o atendimento

em creches e o acesso à pré-escola às crianças de zero a seis anos de idade, por força

do art. 208, IV;

(b) esta prerrogativa impõe ao Estado a obrigação constitucional de criar

condições objetivas que possibilitem de maneira concreta aquele acesso e

atendimento;

(c) a educação infantil é direito fundamental que não se expõe a avaliações

discricionárias da Administração Pública, nem se subordina a razões de pragmatismo;

(d) embora a questão seja pertinente à reserva do possível, os Municípios não

podem se demitir do mandato constitucional do art. 208, IV, juridicamente vinculante,

à vista de sua responsabilidade prioritária pelo ensino fundamental e pela educação

infantil (art. 211, § 2º);

(e) o Judiciário tem competência para determinar excepcionalmente a

implementação de políticas definidas pela própria Constituição por órgãos estatais

inadimplentes, cuja omissão pode comprometer a eficácia e a integridade dos direitos

sociais; ao não determinar a efetivação desses direitos, o próprio STF estaria

incorrendo em grave omissão.

18 O mesmo objeto foi discutido nos seguintes recursos extraordinários: RE 431.773, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ 15/09/04; RE 411.518, REl. Min. Marco Aurélio, DJ 03/03/04; RE 402.024, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ 05/20/04; RE352.686, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ 19/10/04; RE 411.332, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ 19/10/04; RE 398.722, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ 19/10/04; RE 443.158, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ 21/03/05; RE 410.715, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 22/11/05; RE 436.996, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 26/10/05, RE 438.493, Rel. Min. Joaquim Barbosa, DJ 30/11/05, RE 463.210-1, rel. Min. Carlos Velloso, DJ 06/12/05; RE 384.201, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ 26/04/07, dentre outros.

Page 12: Hard-cases e leading-cases no campo do direito à educação o … · 2018-09-27 · 1 Hard-cases e leading-cases no campo do direito à educação: o caso das quotas raciais. Nina

12

Com efeito, a norma constitucional do art. 208, IV, indica com precisão o

âmbito de proteção do direito à educação infantil (a existência de creches e escolas

para crianças de até cinco anos, sendo na ocasião do julgado até seis anos), o principal

e primeiro responsável pela garantia do direito (o Município, art. 211, § 2º), o

responsável subsidiário (a União, art. 211, §1º e art. 30, IV), a primazia de atendimento

(art. 211, §1º e art. 227), os recursos econômicos que deverão apoiar o seu

oferecimento (art. 212 e §§, art. 167, IV, art. 3º, IV); a possibilidade de intervenção do

Estado no Município em hipótese de não aplicação do mínimo de 18% da receita

resultante de impostos na manutenção e desenvolvimento do ensino (art. 35, III).

Ora, a absoluta prioridade, no caso da educação infantil, significa que o

atendimento das crianças tem primazia nas políticas públicas e na atuação dos

governantes, legisladores, família, comunidade e sociedade, com o objetivo de

concretizar os direitos enumerados no próprio art. 227 da Constituição e no art. 4º do

ECA (direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à

profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência

familiar e comunitária). Segue-se da previsão do art. 227 que o Município também

deverá assegurar, em suas creches e pré-escolas, programas suplementares de

alimentação, pelo menos.

Desde logo, a decisão confirma que a educação infantil tem a natureza de

direito subjetivo fundamental, posto integrar o núcleo consubstanciador do mínimo

existencial cuja integralidade e intangibilidade devem ser asseguradas. Nesse sentido,

dá concretude ao conteúdo do mínimo existencial, considerado, na doutrina, como

direito a condições mínimas de existência humana digna que exige prestações positivas

do Estado. A intervenção do Judiciário, sob este prisma, em virtude de sua

inobservância, faz-se, simetricamente, em atendimento ao fundamento da dignidade da

pessoa humana (CF, art. 1º, III). 19

Assim sendo, o não atendimento do direito de crédito em questão qualifica-se

como inconstitucionalidade por omissão, ressalvada a ocorrência de justo motivo

objetivamente aferível sob invocação da cláusula da reserva do possível. É deste

ângulo que incide a razoabilidade, isto é, o “justo equilíbrio entre os meios

19 Ricardo Lobo Torres, O mínimo existencial e os direitos fundamentais, Revista de Direito da Procuradoria Geral, Rio de Janeiro, n. 42, julho-setembro 1990, p. 69-70; Ana Paula de Barcelos, A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o princípio da dignidade da pessoa humana, Rio de Janeiro, Renovar, 2002, p. 248 e 252-253.

Page 13: Hard-cases e leading-cases no campo do direito à educação o … · 2018-09-27 · 1 Hard-cases e leading-cases no campo do direito à educação: o caso das quotas raciais. Nina

13

empregados e os fins a serem atingidos”, por meio do qual “o juiz analisará a situação

em concreto e dirá se o administrador público ou o responsável pelo ato guerreado

pautou sua conduta de acordo com os interesses maiores do indivíduo ou da

coletividade, estabelecido na Constituição e nas leis “.20

Neste caso, o paradigmático voto do relator assegurou a consolidação de nova

construção jurisprudencial na promoção e garantia do direito à educação, confirmando

a tendência já notada no STF de determinar a execução, pelas autoridades

competentes, de políticas públicas constitucionais na área da educação pelas

autoridades competentes. A decisão do STJ tornou-se, por essas razões, um paradigma

para decisões futuras.

É também o que deve ocorrer em relação aos casos levados à apreciação do

Supremo Tribunal Federal relativamente à constitucionalidade das cotas raciais

instituídas pela Universidade de Brasília - UnB (Argüição de Descumprimento de

Preceito Fundamental 186-2), pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul –

URGS (Recurso Extraordinário 597.285/RS) e pela Lei no. 4.151 de 2003, do Estado

do Rio de Janeiro, que instituiu, naquele Estado, o sistema de reserva de vagas para o

ingresso na Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ e na Universidade

Estadual do Norte Fluminense – UENF (Ação Direita de Inconstitucionalidade 3.197-

RJ).

2- Possíveis leading-cases no direito à educação: a ADPF 186-2, o RE

5.97.285/RS e a ADIn 3.197-RJ.

2.1- Os casos.

Na ADPF 186-2, proposta pelo partido político “Democratas” (DEM),

questionam-se os atos administrativos praticados pela UnB que criaram a reserva de

20% das vagas do seu vestibular para estudantes negros, mediante realização do exame

e aprovação da matrícula por comissão interna que analisa o fenótipo do candidato.

20 Cf. Ada Pellegrini Grinover que, apoiada em sólida doutrina,conclui que “a intervenção judicial nas políticas públicas só poderá ocorrer em situações em que ficar demonstrada a irrazoabilidade do ato discricionário praticado pelo poder público, devendo o juiz pautar sua análise em atenção ao princípio da proporcionalidade.”, op. cit. p. 125. Cf. O controle de políticas públicas pelo Poder Judiciário, in Carlos Alberto de Salles (coord.), As grandes transformações do processo civil brasileiro - Homenagem ao Prof. Kazuo Watanabe, São Paulo, Quartier Latin, 2009, p. 109-134. Cf. também J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 6.ed., Coimbra: Almedina, 2002, p. 513 e ss.

Page 14: Hard-cases e leading-cases no campo do direito à educação o … · 2018-09-27 · 1 Hard-cases e leading-cases no campo do direito à educação: o caso das quotas raciais. Nina

14

No RE 597.285/RS, diversamente, a postulação é individual, tendo-se iniciado

com mandado de segurança interposto contra o Reitor da UFRGS por candidato ao

curso de administração oferecido pela instituição que, apesar de ter alcançado a 132ª

posição na classificação geral, não logrou realizar matrícula, eis que, do total de 160

vagas oferecidas no vestibular, 44 haviam sido reservadas para o sistema de cotas.

Embora a liminar inicialmente concedida tenha sido confirmada em primeiro grau, a

decisão foi revertida em sede de apelação.

Nos dois casos, o problema radica na interpretação do princípio da igualdade de

condições de acesso e permanência na escola (art. 206 da Constituição Federal),

corolário do princípio constitucional da igualdade, com vistas a apoiar e promover

determinados grupos socialmente marginalizados. Seu foco específico é propiciar a

inclusão de negros nos níveis mais elevados do ensino, sob o argumento da eliminação

da discriminação educacional e da conseqüente correção de distorções nas condições

de acesso. Tal discriminação seria o resultado de políticas de exclusão praticadas no

Brasil em relação aos negros, potencializadas pelo seu passado escravocrata e

patriarcal.

O mesmo problema já havia sido levantado na ADIn 3.197-RJ pela

Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino – COFENEN, ainda pendente

de julgamento pelo STF (Rel. Min. Celso de Mello), em relação à reserva de vagas

para o ingresso na Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ e na

Universidade Estadual do Norte Fluminense – UENF, determinada pela antes citada lei

estadual nº. 4.151, de 04/09/03.

De acordo com o sistema fluminense, o percentual mínimo de 45% do total de

vagas do vestibular fica obrigatoriamente reservado a estudantes carentes na seguinte

conformidade: 20% para estudantes negros, exclusivamente; 20% para estudantes

egressos da rede pública estadual do Rio de Janeiro e 5% para pessoas com deficiência

e integrantes de minorias étnicas (art. 1º da Lei 4.151/03). A COFENEN contesta a

constitucionalidade da lei, em virtude da violação dos princípios da isonomia e da

interdição de discriminações, com fundamento no art. 5º, caput, da Constituição

Federal, e também por violação dos arts. 206, I e 208, V, da mesma Constituição

Federal. A lei fluminense de 2003, ao ser editada, revogou anterior sistema de reserva

de 40% do total das vagas do vestibular da UERJ e da UENF, instituído pela lei no.

Page 15: Hard-cases e leading-cases no campo do direito à educação o … · 2018-09-27 · 1 Hard-cases e leading-cases no campo do direito à educação: o caso das quotas raciais. Nina

15

3.708, de 09/11/01, em favor da “população negra e parda”, empregado apenas no

vestibular de 2003.

Não há dúvida de que as circunstâncias envolvidas nos casos acima indicados,

relativamente às cotas raciais, levarão a Suprema Corte a pronunciar-se sobre o que

são ações afirmativas na educação e quais os seus âmbito e limites constitucionais.

Tais decisões deverão fixar jurisprudência, pelo menos em relação aos seguintes

problemas: A inexistência de quotas raciais configura um problema de discriminação

racial? O direito à educação, previsto no art. 205, compreende quotas raciais ou quotas

sociais, de alcance mais amplo? Quotas sociais atendem ao desiderato das quotas

raciais? Contra quem a Constituição deve criar esses direitos?

2.2- As controvérsias constitucionais.

Conforme sintetizaram Magalhães, Montenegro e Righetti, “o debate jurídico

sobre o sistema de cotas para o ensino superior, basicamente, gira em torno de duas

idéias: da inconstitucionalidade das cotas, a partir de uma interpretação de que os

direitos de todo e qualquer brasileiro são iguais, e da constitucionalidade da política,

pela interpretação de que se trata de uma ação de inclusão que, inclusive, pode ser

realizada com base em princípios estabelecidos em cada universidade pública.”21

A controvérsia aponta, ainda, na direção do desatendimento de outros quatro

dispositivos constitucionais: (a) o princípio da igualdade (art. 5º), dado o

favorecimento de pessoas ou grupos sociais em face de critérios discriminatórios; (b) o

princípio da eficiência da Administração Pública (art. 37, caput); (c) o princípio da

impessoalidade da administração pública (art. 37, caput), que implica o não

favorecimento de pessoas ou grupos sociais; (d) a garantia da autonomia universitária

(art. 207), que tem como corolário a forma e as condições de seleção de ingressantes,

bem como dos critérios de mérito para progressão acadêmica.

Neste tema é importante esclarecer que o ensino superior público, diversamente

do que ocorre em relação aos níveis fundamental e médio, não se destina a todos (CF,

art.208, I e II). Em outras palavras, o Estado brasileiro não pretende universalizar o

ensino superior público, limitando-se o dever do Estado à garantia de acesso, segundo

a capacidade de cada um (CF, art.208, V). Daí porque a garantia de acesso (entrada,

21 Cf. Camila Magalhães, Fernanda Montenegro Menezes e Sabine Righetti, Ações Afirmativas e Cotas no Ensino Superior: uma reflexão sobre o debate recente, “in” Nina Ranieri (coord.), Direito à Educação, Aspectos Constitucionais, São Paulo, 2009, EDUSP, p. 269.

Page 16: Hard-cases e leading-cases no campo do direito à educação o … · 2018-09-27 · 1 Hard-cases e leading-cases no campo do direito à educação: o caso das quotas raciais. Nina

16

ingresso), condicionada ao mérito, supõe seleção e, por via de conseqüência,

classificação diante de um número finito de vagas.

O que não significa, entretanto, que as diferenças econômicas, sociais e

culturais inerentes à sociedade brasileira, que influenciam a aferição do mérito, devam

ser desconsideradas. A exigência de equidade nesta situação está, pois, ligada ao

princípio da igualdade de condições para o acesso e permanência na escola (CF, art.

206, I). Garanti-las é dever do Estado brasileiro, o que consiste em compromisso legal

internacionalmente assumido pelo País, ex-vi do art. 26, da Declaração Universal dos

Direitos do Homem (1948), dos arts. 13 e 14 do Pacto dos Direitos Econômicos,

Sociais e Culturais (1966), e da ratificação da Convenção da UNESCO relativa à luta

contra a discriminação na educação (Decreto nº 63.223 - de 6 de setembro de 1968).

O art. 4º da Convenção da UNESCO, que neste ano de 2010 completa

cinqüenta anos de vigência, exige que os estados-partes se comprometam a formular,

desenvolver e aplicar uma política nacional que vise a promover, por métodos

adaptados às circunstâncias e usos nacionais, a igualdade de oportunidades e

tratamento em matéria de ensino, e principalmente:

“a) tornar obrigatório e gratuito o ensino primário: generalizar e tornar acessível a todos o ensino secundário sob suas diversas formas; tornar igualmente acessível a todos o ensino superior em função das capacidades individuais; assegurar a execução por todos da obrigação escolar prescrita em lei;

b) assegurar em todos os estabelecimentos públicos do mesmo grau um ensino do mesmo nível e condições equivalentes no que diz respeito à qualidade do ensino dado;

c) encorajar e intensificar, por métodos apropriados, educação de pessoas que receberam instrução primária ou que não a terminaram e permitir que continuem seus estudos em função de suas aptidões;

d) assegurar sem discriminação a preparação ao magistério. “

As mesmas obrigações constam do art. 13 do Pacto dos Direitos Econômicos,

Sociais e Culturais, salientando-se no seu 2º parágrafo, letra “c”, que “a educação de

nível superior deverá igualmente tornar-se acessível a todos, com base na capacidade

de cada um, por todos os meios apropriados e, principalmente, pela implementação

progressiva do ensino gratuito.”

É evidente que a atribuição formal do direito de acesso não significa a

possibilidade de exercê-lo em igualdade de condições. A dicotomia igualdade formal/

igualdade material revela que os direitos são os mesmos para todos, mas que nem

Page 17: Hard-cases e leading-cases no campo do direito à educação o … · 2018-09-27 · 1 Hard-cases e leading-cases no campo do direito à educação: o caso das quotas raciais. Nina

17

todos se acham em condições de exercê-lo. Necessário se faz, por conseguinte, criar

condições para que se alcance uma igualdade real de acesso e permanência para todos

aqueles que possam vir a procurar o ensino superior, sendo certo que a igualdade

jurídica é a condição preliminar dessa garantia.

A Constituição Federal aponta tais condições nos mencionados incs. I e II do

art. 208: educação básica obrigatória e gratuita com progressiva universalização do

ensino médio, e garantia de qualidade. Esta é a opção nacional, em termos

educacionais, para todos os níveis de governo (ADCT, art. 60). O que varia entre os

entes federados é o grau de atuação em prol do financiamento, manutenção e

desenvolvimento do ensino fundamental público e do ensino médio.

Dos municípios, a Constituição Federal exige prioritariamente o oferecimento

do ensino fundamental (art. 211 § 2º) e da educação infantil (conforme a decisão do

STF antes mencionada), garantindo-se, ainda, a alfabetização de jovens e adultos, ex-vi

do art. 214, I, da Constituição Federal, nos termos do Plano Nacional de Educação. A

atuação municipal nos outros níveis de ensino (médio e superior), com os recursos

públicos vinculados à educação, far-se-á apenas depois de atendidas plenamente as

necessidades antes mencionadas, e com recursos não vinculados (LDB, art. 11, V).

Dos estados a Constituição exige prioridade no oferecimento do ensino médio,

desde que assegurada a universalização do ensino fundamental (art. 211, § 2º, e LDB,

art.10, VI) em colaboração com os municípios (art. 211, § 4º), inclusive para aqueles

que não tiveram acesso à educação básica na idade própria (art. 208, I da CF, com a

redação da EC no. 59/09). À União cabe ação supletiva e redistributiva para garantir a

equalização de oportunidades educacionais mediante assistência técnica e financeira a

estados e municípios, voltada prioritariamente para a escolaridade obrigatória (art. 208,

I: LDB, art. 9º). Para o atendimento de tais encargos deverão ser utilizados os recursos

vinculados da educação, de acordo com os percentuais fixados no art. 212.

A Lei de Diretrizes e Bases também cuidou da garantia de acesso equânime ao

ensino superior por meio da liberdade de seleção conferida às instituições de ensino, na

forma do art. 44; liberdade limitada, evidentemente, pela noção de igualdade nos critérios

de seleção. Mas não só sob este ângulo. A quebra do modelo universitário (art.45), a

possibilidade de criação de cursos seqüenciais de diferentes níveis de abrangência (art.44,

I), a obrigação de as universidades se articularem com o ensino médio na definição de

Page 18: Hard-cases e leading-cases no campo do direito à educação o … · 2018-09-27 · 1 Hard-cases e leading-cases no campo do direito à educação: o caso das quotas raciais. Nina

18

critérios e normas de seleção e admissão de estudantes (art. 51) são marcos de equidade

no sistema de ensino superior.

Mas o fato é que, apesar de todo o arcabouço constitucional e legal, a equidade

nas condições de oferta e permanência da educação básica está longe de ser alcançada,

especialmente quando consideradas as diferenças entre alunos brancos e alunos negros,

como o demonstram diversas pesquisas.22 A imposição constitucional do critério do

mérito como condição de ingresso e permanência nas universidades públicas, nessas

condições, revela-se, portanto, perversa.

De fato, apesar do muito que se alcançou no campo da educação após a edição

da Constituição de 1988, destacando-se o considerável progresso dos níveis

educacionais da população em geral e dos jovens em particular (o que praticamente

permitiu a universalização do ensino fundamental), o círculo de iniqüidades

educacionais é, ainda, considerável em relação à atual população negra com mais de 17

anos.

O Censo Escolar MEC/INEP 2007, que aponta 56 milhões de matrículas na

Educação Básica, e os dados da Pesquisa Nacional por amostra de Domicílios – PNAD

de 2007 mostram que se na educação infantil e na pré-escola o percentual de

matrículas de crianças negras e brancas - quando comparado - apresenta diferenças

pouco expressivas (13,8% / 17,6% e 60,6% / 65,3%, respectivamente), o mesmo não

ocorre em relação ao ensino médio: das cerca de 8.369.369 matrículas neste nível de

ensino, cerca de 60% são de alunos brancos e 40% de alunos negros, com acentuada

distorção idade-série neste último caso (78,7%).23

O que chama atenção neste último dado é o fato de a taxa de freqüência e

conclusão dos alunos negros no ensino médio haver decrescido, em números relativos,

quando comparada à do ano de 1987: neste ano, cerca de 21% das matrículas era de

alunos brancos e 9% de alunos negros. A diferença entre uma e outra em 1987 seria,

portanto, de 11%, aproximadamente, enquanto que em 2007, de 20%, apesar da

22 Cf. além dos dados oficiais do Ministério da Educação, dentre outras pesquisas: “Análise hierárquica de resultados – Características de alunos, professores e direitores associados a diferentes desempenhos de estudantes”, Instituto de Protagonismo Jovem e Educação – PROTAGONISTES, com apoio da Fundação Bradesco, 2009. www.fb.org.br/Institucional/ProjetosEducacionais/EducamaisAcao/ Acesso em 18/04/10. “Gestão para o sucesso escolar”, pesquisa realizada pelo Instituto de Protagonismo Jovem e Educação – PROTAGONISTES, com apoio da Fundação Lemman. 2003. www.protagonistes.com.br Acesso em 18/04/10. 23 Cf. www.ibge.gov.br. Acesso em 15/04/10.

Page 19: Hard-cases e leading-cases no campo do direito à educação o … · 2018-09-27 · 1 Hard-cases e leading-cases no campo do direito à educação: o caso das quotas raciais. Nina

19

expansão do ensino médio. Não se pode afirmar, contudo, que a população negra não

tenha se beneficiado dos efeitos daquela expansão, tendo-se em conta o critério de

autodeclaração que orienta tais pesquisas. Segundo o IBGE/PNAD 2007, 49,4% da

população brasileira se autodeclarou branca e 49,7% negra; destes últimos, 42,3% se

autodeclarou pardo e apenas 7,4% preto.

Por outro lado, dados do recente estudo da Organização das Nações Unidas

para a Educação, Ciência e Cultura - UNESCO sobre os primeiros anos da educação

fundamental no Brasil – “Uma Visão dentro de Escolas Primárias” 24 – demonstram,

que apenas 10% dos estudantes no Brasil se encontram hoje em escolas privadas e que

um em cada dois alunos encontra-se matriculado em escolas cuja maioria, ou todos os

alunos, são provenientes de famílias com pais que não haviam completado a educação

primária.

Esses resultados mostram-se tanto mais relevantes quando considerados os

dados relativos aos índices de pobreza na população brasileira. Para o Instituto de

Pesquisas Econômicas Aplicadas – IPEA, o qualificativo “pobre” aplica-se a todos os

indivíduos com renda per capta inferior a meio salário mínimo. Em relação ao

conjunto da população autodeclarada negra, 44% dos negros encontram-se nessa

condição, enquanto que os autodeclarados brancos somam 20,5% dos indivíduos em

igual situação. No universo dos “pobres”, 66% são negros e 20,5% brancos.25 Ou seja:

atualmente, em relação ao ensino infantil, à pré-escola e ao ensino fundamental, as

taxas de freqüência escolar por raça/cor e critério sócio-econômico não apontam para a

perpetuação das iniqüidades tradicionalmente presentes na educação brasileira, pelo

contrário.

Não há dúvida de que os resultados positivos alcançados nas últimas duas

décadas advêm do enfrentamento público de questões recorrentes da educação

brasileira, tais como universalização, financiamento, garantias de acesso e

permanência na escola, qualidade do ensino, dentre outras. Também não há dúvida de

que tais avanços repercutirão paulatinamente na melhoria do acesso e permanência no

ensino médio e superior, à medida que a oferta compulsória da educação básica

determinada pela EC 59/09 opere os seus desejáveis e importantes efeitos.

24 Cf. www.unesco.org.br. Acesso em 10/06/08. 25 Cf. www.ipea.gov.br. Acesso em 15/04/10.

Page 20: Hard-cases e leading-cases no campo do direito à educação o … · 2018-09-27 · 1 Hard-cases e leading-cases no campo do direito à educação: o caso das quotas raciais. Nina

20

Por enquanto, em relação ao ensino superior, a taxa de freqüência de indivíduos

com 16 anos, ou mais, encontra-se determinada em 5,6% para brancos e 2,8% para

negros.

2.3- As questões políticas e as considerações externas ao texto

constitucional

É equivocado imaginar que as decisões a serem tomadas no casos das cotas

sejam representativas da jurisprudência habitual da Corte. Como já mencionado, serão

decisões extraordinárias, de natureza política que, além de enfrentarem as dificuldades

inerentes à atividade hermenêutica, serão fortemente influenciadas pela injustiça da

exclusão social e do preconceito racial, religioso, étnico e econômico, a ressaltar a

natureza dinâmica da Constituição, que expressa o seu significado tanto pela evolução

interpretativa como pela pressão dos eventos.

Prova disso foi a realização de audiência pública pela Corte, em março de

2010, por determinação do Ministro Ricardo Lewandowski (relator da ADPF 186-2 e

do RE 5.97.285/RS), que obteve grande repercussão na mídia e vem alimentando

intensa e salutar discussão acerca das quotas raciais, muito além dos limites dos

tribunais e da academia. Durante as exposições, que foram organizadas de modo a

garantir o contraditório entre os defensores da tese da constitucionalidade e os da tese

da inconstitucionalidade das políticas de reserva de vagas por quotas raciais,

confrontaram-se, em breve síntese, os argumentos que se seguem.

De parte dos defensores da constitucionalidade: (a) a Constituição Federal de

1988 já prevê, em diversos dispositivos, quotas para deficientes, mulheres e idosos,

visando não só a inclusão de minorias na vida social, econômica e política, mas

também assegurar a igualdade substancial numa sociedade plural e diversificada; (b) as

quotas raciais consistem em políticas de justiça compensatórias que visam fazer frente

aos efeitos nefastos da escravidão, ainda não superados; (c) as quotas raciais não

devem ser entendidas pela lógica indenizatória, mas pela da redução de desigualdades;

(d) as quotas raciais são exigência constitucional implícitas, sendo inconstitucionais os

processos seletivos excludentes; (e) no campo da educação, os notáveis avanços

observados no País desde a edição da atual Constituição, tanto em termos quantitativos

como qualitativos, não favoreceram os negros que, comprovadamente, permanecem

menos tempo na escola, mantendo-se, por esta e outras razões, a desigualdade

educacional, não obstante a universalização e a compulsoriedade da educação

Page 21: Hard-cases e leading-cases no campo do direito à educação o … · 2018-09-27 · 1 Hard-cases e leading-cases no campo do direito à educação: o caso das quotas raciais. Nina

21

fundamental (recentemente ampliada para a educação média pela EC 59/09); (f)

apesar dos auto-declarados negros e pardos comporem, hoje, 56% da população

brasileira, nota-se uma renitente estabilidade da desigualdade racial não explicável,

unicamente, pelos efeitos inerciais do passado e nem apenas em face de condições

socioeconômicas; (g) a permanente exclusão dos negros na sociedade vem desafiando

os limites das políticas sociais clássicas, o que justificaria a adoção das quotas raciais;

(h) é necessária a diversidade para a construção do saber na instituição universitária.

De parte dos defensores da inconstitucionalidade: (a) do ponto de vista

biológico não há raças; (b) no Brasil não se justifica, cientificamente, o uso da cor da

pele como critério de distinção legal haja vistas à permanente e comprovada

miscigenação entre brancos, negros e índios; (c) as quotas raciais incentivam e

potencializam a divisão da sociedade em brancos e negros, o que levaria à racialização

do Brasil; (d) as quotas propiciam a segregação dos mecanismos de entrada na

universidade: um mais rigoroso para brancos e orientais, outro menos rigoroso para

negros, com desvalorização destes últimos no conjunto do alunado; (e) é falsa a

identificação entre ascendência africana e inferioridade intelectual; (f) as quotas não

devem ser raciais, mas sócio-econômicas, baseadas em critérios de hipossuficiência,

tal como ocorre nas situações de isenção de taxa de vestibular; (g) as quotas não

podem monopolizar a discussão, deixando de lado a questão mais geral da

desigualdade educacional, sendo imprescindível identificar e analisar a natureza dos

obstáculos que impedem a escolarização adequada dos negros; (f) quebra do princípio

da igualdade e do da dignidade humana; (h) quebra do princípio da proporcionalidade.

Como se pode notar, a clivagem dos argumentos mais atravessa linhas

ideológicas, filosóficas e políticas que científicas ou jurídicas. É por esta razão que os

termos “raça” e “quotas raciais” ora são empregados em relação à cor da pele, ora a

etnias, ora a grupos da população, prevalecendo, porém, tanto o entendimento de

“raça” como o de “quotas raciais” como indicativos ou relativos a indivíduos de cor

negra. Nos atuais debates este sentido é ideologicamente mais forte que o científico

(que proclama a existência de uma única raça, a humana) ou o econômico (que

proclama a hipossuficiencia econômica como critério geral de definição de ações

afirmativas). Não se pode deixa de considerar, no encaminhamento das discussões

naquela direção, o papel decisivo das organizações e instituições da sociedade civil na

Page 22: Hard-cases e leading-cases no campo do direito à educação o … · 2018-09-27 · 1 Hard-cases e leading-cases no campo do direito à educação: o caso das quotas raciais. Nina

22

expansão dos limites das ações afirmativas, em benefício da implantação das quotas

para negros.

De forma sintética, pode-se dizer, portanto, que a tipologia das justificações

para a adoção das quotas raciais no Brasil comporta a reparação, a justiça distributiva e

a diversidade. Grosso modo, os mesmos argumentos foram empregados nos diferentes

contextos sociais da Índia e dos Estados Unidos, exemplos paradigmáticos de políticas

de reserva de vagas no ensino superior, tendo sido o modelo americano, em particular,

o grande influenciador da ação afirmativa no Brasil.

Na Índia, as políticas afirmativas foram adotadas ainda sob o domínio colonial

inglês, sendo posteriormente incorporadas à Constituição de 1947. No contexto

indiano, conforme Feres Júnior, os quatro princípios de justificação dessas políticas

são: (a) a compensação por injustiças cometidas no passado contra determinado grupo

social; (b) proteção dos segmentos mais fracos da comunidade e dos intocáveis em

particular; (c) igualdade proporcional, considerada a dimensão relativa de cada grupo

ou casta na sociedade; (d) justiça social em relação a desigualdades específicas de

determinados grupos e, portanto, passíveis de ser objeto de políticas públicas

específicas.26 Note-se, portanto, que as políticas, desde o início, não se restringiram a

um determinado grupo, focando antes a proteção dos hipossuficientes nos diversos

grupos sociais que compõem a multifacetada população indiana.

No caso americano, as quotas para negros dominaram as políticas da primeira

metade da década de 1960, sob as justificativas da reparação e justiça sociais. Mas se

o argumento da reparação foi paulatinamente ampliado no correr dos anos, de forma a

abranger qualquer grupo ou minoria discriminada por raça, credo ou origem nacional,

o mesmo não ocorreu com o argumento da justiça social. A partir da década de 1970 e

ao longo das décadas de 1980 e 1990, nota-se uso cada vez mais restrito dessas

políticas sob o argumento de que as ações afirmativas no ensino superior, concebidas

para ter vigência limitada no tempo, já teriam alcançado os efeitos esperados, eis que

negros, mulheres e outras minorias já gozariam de condição evidentemente melhor na

sociedade americana, comparativamente à sua situação no início do emprego de tais

políticas. Desde então, a diversidade na sala de aula tem sido o principal argumento

das ações afirmativas no ensino superior, tal como reconhecido pela Suprema Corte

26 Cf. João Feres Júnior, Comparando justificativas das políticas de ação afirmativa: EUA e Brasil. Acesso em

Page 23: Hard-cases e leading-cases no campo do direito à educação o … · 2018-09-27 · 1 Hard-cases e leading-cases no campo do direito à educação: o caso das quotas raciais. Nina

23

americana. Diversidade de aptidões individuais, de origem social e geográfica,

combinada com o critério de raça e etnia, representa hoje a principal justifica das

políticas de identidade naquele país, diluindo a idéia de reparação, como também

aponta Feres Júnior27, além de Joaquim B. Barbosa Gomes, antes citado.

3- Antecedentes legais e ações afirmativas existentes nas universidades

públicas

Atos normativos e projetos de lei em matéria de ações afirmativas voltadas ao

ingresso no ensino superior não são novidade no País. De modo geral, a legislação e os

projetos de lei sobre a matéria adotam variáveis como renda individual ou familiar,

tempo de permanência na escola pública, raça, etnia, cor da pele ou local de residência,

para estabelecer o discrimen.

Outros diversos atos legislativos e normativos disciplinam, direta ou

indiretamente, matéria conexa, sendo a idéia de diversidade ou de igualdade racial

marcada, também nesses casos, como indicativa, ou relativa, a indivíduos de cor negra,

a denotar forte preocupação com o tema da inclusão.

No âmbito federal, por exemplo, a Lei no. 10.558/2002 (projeto de autoria de

Fernando Henrique Cardoso) criou o Programa de Diversidade na Universidade; a Lei

10.678/2003 criou a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Social;

a Lei no. 10.678/2003 tornou obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileiras

nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficial e particular.

Mais especificamente, sobreleva indicar a lei no. 7.437/1985, que inclui, entre

as contravenções penais, a pratica de atos resultantes de preconceito de raça, de cor, de

sexo ou de estado civil, dando nova redação à Lei 1.390, de 3 de julho de 1951 (Lei

Afonso Arinos), e a lei no. 7.716/1989, que define crimes resultantes de preconceito

de raça ou de cor, alterada pela lei no. 9.459/1997.

Dentre os atos normativos, veja-se, v.g., o Decreto no. 4228/2002 que instituiu,

na Administração Pública Federal, o Programa Nacional de Ações Afirmativas.

Decreto nº 4886/2003 instituiu a Política Nacional de Promoção da Igualdade Racial –

27 Op. cit., p. 10.

Page 24: Hard-cases e leading-cases no campo do direito à educação o … · 2018-09-27 · 1 Hard-cases e leading-cases no campo do direito à educação: o caso das quotas raciais. Nina

24

PNIPIR; o Decreto nº 6872/2009 aprovou o Plano Nacional de Promoção da Igualdade

Racial – PLANAPIR.

No Estado de São Paulo, podemos citar, dentre outras, a lei nº. 5.466/1986, que

dispõe sobre o Conselho de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra; a

Lei nº. 5.680/1987, que institui o mês da consciência negra, a ser comemorado

anualmente em novembro; a lei nº. 7.576/1991 criou o Conselho Estadual de Defesa

dos Direitos da Pessoa Humana; a lei nº. 7.968/1992, que instituiu o Dia da

Consciência Negra; a lei nº. 9.156/1995 oficializou o Hino à Negritude; a lei nº.

9.757/1997 dispõe sobre a legitimação de posse de terras públicas estaduais dos

remanescentes das comunidades quilombolas, em atendimento ao artigo 68 do Ato das

Disposições Constitucionais Transitórias- ADCT; e a lei nº. 10.237/1999, que institui

política para a superação da discriminação racial no Estado.

Há também que se fazer referência ao Decreto nº. 34.117/1991, que dispõe

sobre o Conselho de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra; o decreto

nº. 36.696/1993, que criou a Delegacia Especializada de Crimes Raciais; o Decreto no.

48.328/2003, que institui, no âmbito da Administração Pública do Estado de São

Paulo, a política de ações afirmativas para afro-descendentes. Em 2003, o Decreto nº.

49.602 criou o sistema de pontuação acrescida para afro-descendentes e egressos do

ensino superior público para as Escolas Técnicas Estaduais - ETECs e para as

Faculdades de Tecnologia – FATECs, do Centro Estadual de Educação Paula Souza.

Estão em andamento atualmente no Congresso Nacional os seguintes projetos

relativos a ações afirmativas e quotas raciais:

(a) PLC 180 de 2008 (Projeto de Lei da Câmara), Autor: Deputada Nice Lobão.

Ementa: Dispõe sobre o ingresso nas universidades federais e estaduais e nas

instituições federais de ensino técnico de nível médio e dá outras providências.

Explicação: reserva 50% das vagas para serem preenchidas mediante seleção de alunos

nos cursos de ensino médio – cota universitária.

(b) PLS 479 de 2008 (Projeto de Lei do Senado). Ementa: Reserva de 20% das

vagas dos vestibulares para os cursos de graduação das universidades públicas federais

e estaduais para estudantes oriundos de família com renda per capita familiar de até um

salário mínimo e meio.

Page 25: Hard-cases e leading-cases no campo do direito à educação o … · 2018-09-27 · 1 Hard-cases e leading-cases no campo do direito à educação: o caso das quotas raciais. Nina

25

A idéia de reserva de vagas no ensino superior é antiga no Brasil. No séc. XIX,

embora desde 1808 a admissão de candidatos em escolas superiores estivesse

condicionada à aprovação em “exames preparatórios”, a partir de 1837 os alunos

egressos do recém criado Colégio D. Pedro II obtiveram o privilégio da matrícula

automática naquelas instituições, independentemente da realização dos referidos

exames. Proclamada a República, Benjamin Constant, Ministro da Instrução Pública,

Correios e Telégrafos, estendeu o privilégio da matrícula automática a todos os

egressos de colégios estaduais organizados nos moldes do Ginásio Nacional (antigo

Colégio D. Pedro II), por via do Decreto no. 981, de 08/11/1890. Em 1911, com a

Reforma Rivadávia (Lei Orgânica do Ensino Superior e Fundamental da República,

Decreto no. 8.659) o privilégio foi extinto devido à obrigatoriedade legal de realização

de exame vestibular.

Durante o período militar, a Lei 5.465/68 (conhecida pejorativamente como “lei

do boi”) instituiu reserva de vagas (50%) para candidatos agricultores ou filhos destes,

proprietários ou não de terras, que residissem com suas famílias na zona rural, e 30%

(trinta por cento) a agricultores ou filhos destes, proprietários ou não de terras, que

residissem em cidades ou vilas que não possuíssem estabelecimentos de ensino médio.

A lei, vigente até o Governo do presidente José Sarney, beneficiou alunos mais

favorecidos economicamente do que a população de menor renda.

Mais recentemente, o Poder Judiciário do Ceará, por via de decisão do o MM.

Juízo da 6a Vara Federal, em sede de ação civil pública, determinou, em 15 de

setembro de 1999, que a Universidade Federal do Estado do Ceará, em virtude do

princípio da isonomia, reservasse cinqüenta por cento (50%) das vagas de todos os

seus cursos para estudantes egressos da rede pública de ensino, até ulterior deliberação.

Desde 2001, diversas universidades públicas em todo o País vêm adotando

ações afirmativas, mediante reserva de vagas em seus vestibulares para candidatos que

atendam às condições especificadas pelas próprias instituições, mercê da autonomia

que a Constituição Federal lhes confere (art. 207) e a LDB lhes assegura (arts. 52 e

seguintes). 28

28 O direito de recrutamento de alunos na forma estabelecida pela própria universidade, aliás, é prerrogativa de autonomia universitária reconhecida legalmente desde a instituição das primeiras universidades ocidentais, já no séc. XIII. Cf. a propósito, Nina Ranieri, Autonomia Universitária, são Paulo, EDUSP, 1994, pp. 41 e seguintes.

Page 26: Hard-cases e leading-cases no campo do direito à educação o … · 2018-09-27 · 1 Hard-cases e leading-cases no campo do direito à educação: o caso das quotas raciais. Nina

26

De acordo com os resultados da pesquisa DIPES/MEC 2009, dentre as 59

instituições participantes foram identificados os seguintes critérios conformadores de

ações afirmativas:

a) étnico/racial – empregado por 8 universidades federais, 8

universidades estaduais e 8 institutos federais;

b) renda – empregado por 11 universidades federais, 14 universidades

estaduais e 18 institutos federais;

c) portadores de necessidades especiais – 2 universidades federais, 6

universidades estaduais e 7 institutos federais;

d) minorias (quilombolas, assentados da reforma agrária etc.) –

nenhuma universidade federal, 3 universidades estaduais e 4

institutos federais;

e) outros – 1 universidade federal, 2 universidades estaduais e 3

institutos federais. 29

Ainda segundo o MEC, nas 51 instituições participantes do Sistema de Seleção

Unificada – SiSU (Portaria Normativa nº 02/ 2010) 30 verificaram-se 64 diferentes

opções de ação afirmativa.

No Estado de São Paulo, em 2004, foi implantado na Universidade Estadual de

Campinas – UNICAMP, o primeiro programa brasileiro de ação afirmativa sem

utilização de cotas. Trata-se do Programa de Ação Afirmativa e Inclusão Social –

Paais, por via do qual os alunos egressos da rede pública optantes do programa

recebem pontuação a maior na nota final do vestibular, proporcionalmente ao seu

desempenho na prova. Dentre estes, os candidatos autodeclarados negros, pardos e

indígenas recebem mais dez pontos na nota final.

Ações afirmativas com fator racial para egressos da rede pública, e não com

reserva de vagas, desde então, têm sido o sentido das políticas públicas paulistas de

inclusão. As ETECs e as FATECs, do Centro Estadual de Educação Paula Souza, já 29 Cf. Maria Paula Dallari Bucci, Igualdade e Autonomia, Apresentação do Ministério da Educação na Audiência Pública sobre a Constitucionalidade de Políticas de Ação Afirmativa de Acesso ao Ensino Superior – (versão sintética) na Audiência Pública realizada pelo STF, em 03 março de 2010, por determinação do Ministro Ricardo Lewandowski (relator da ADPF 186-2 e do RE 5.97.285/RS). 30 Esse conjunto compreende 26 institutos federais, 23 universidades federais, 1 universidade estadual e a Escola Nacional de Ciências Estatísticas do IBGE.

Page 27: Hard-cases e leading-cases no campo do direito à educação o … · 2018-09-27 · 1 Hard-cases e leading-cases no campo do direito à educação: o caso das quotas raciais. Nina

27

mencionadas, pautam-se pelo mesmo critério, assim como as demais universidades

públicas paulistas. A Universidade de São Paulo, por intermédio do “Inclusp”

combina inclusão social e mérito acadêmico mediante três modalidades de bonificação

(universal: até 3% sobre a nota do vestibular; até 9% da nota obtida pelo candidato no

ENEM; e mais 12% por via do “Pasusp”). A Universidade Estadual “Júlio de

Mesquita Filho” – UNESP oferece, desde 2007, cursos vestibulares gratuitos para

estudantes egressos de escolas públicas, com taxa de alta aprovação em instituições de

ensino superior públicas e privadas.

Como se pode notar, as cotas raciais não são a única modalidade de ação

afirmativa empregada pelas universidades públicas. A diversidade de alternativas e

modelos revela que as instituições vêm confrontando problemas sociais concretos e

desafios contemporâneos de forma heterogênea, consoante as necessidades e as

circunstâncias locais; a referência da autonomia universitária, aliás, não pode ser outra

senão o benefício da sociedade.

Não se pode esquecer, contudo, que o papel social da universidade, no nosso

sistema jurídico, consiste na geração, sistematização e difusão de conhecimentos, com

o objetivo de formar indivíduos que, além do desenvolvimento individual e do preparo

profissional, contribuam para o progresso da sociedade a que pertençam e a ela se

integrem participativamente. É desta perspectiva que o ensino superior se integra ao

comando do art. 205 da Constituição Federal. É desta perspectiva que também deve

ser vista a seleção de ingresso pelo mérito.

4- Considerações finais

Não é plausível imaginar que as cotas raciais resolvam o gap educacional entre

brancos e negros, seja no nível superior seja na educação básica. Nem o paternalismo

nem o protecionismo e muito menos a demagogia levarão à inclusão educacional

equânime, em benefício do indivíduo, da sociedade e do Estado e isto envolve não

apenas os negros, mas a população desfavorecida educacional e economicamente, em

sua totalidade. É necessário enfrentar diversas variáveis sociais, com investimentos

maciços na qualidade da educação, para que a lógica democrática da seleção pelo

mérito venha a ser alcançada. Não é razoável supor que tais condições venham a ser

alcançadas no espaço de uma geração.

Page 28: Hard-cases e leading-cases no campo do direito à educação o … · 2018-09-27 · 1 Hard-cases e leading-cases no campo do direito à educação: o caso das quotas raciais. Nina

28

Para a ciência jurídica e para o juiz em particular, qualquer caso é um

acontecimento problemático que reclama solução; e como ocorre em relação a todos os

problemas, a solução supõe a compreensão do caso. Casos críticos são o motor que

impulsiona o intérprete e põem o direito em movimento.

No Direito, porém, a compreensão do caso é dificultada pela oposição que se

estabelece entre o “dever ser” e a mutabilidade do sentido e do valor das regras

jurídicas, devido à dinâmica social.

Neutralizar tal oposição exige do intérprete a apreensão da lógica social da

regra jurídica, considerados os efeitos que potencialmente pode produzir, visando à

identificação dos parâmetros sociais que incidem sobre o caso. Desde esse ponto de

vista, a operação mental que envolve compreensão de sentido e valor num dado caso

apresenta natureza objetiva e não subjetiva. 31

Pode ocorrer, contudo, que o interprete venha a se deparar com situações em

que se verá sem outros parâmetros senão os que ele mesmo possa se dar “(...) seja

porque se trate de um novo tipo de ação e não haja um acordo sobre o seu sentido, seja

porque existam divergências sobre os valores.” 32

Não é o que se verifica em relação à ADPF 186-2, do RE 5.97.285/RS e da

ADIn 3.197-RJ, como demonstrado na Audiência Pública de no. 5/2010, realizada pelo

STF.

Nesses casos, o intérprete encontra parâmetros sociais produzidos por reflexão

madura a respeito dos efeitos que as cotas educacionais podem potencialmente

produzir, resultado de pesquisas no campo da educação, do direito, da psicologia e da

antropologia, e na aceitação geral das discriminações positivas como forma de induzir

a igualdade de oportunidades, o que de resto se verificou em relação a portadores de

deficiências físicas e mulheres, em diversas situações.33

Ademais, do ponto de vista jurídico, em se tratando de cotas educacionais, não

se está diante de um direito novo, mas de um desdobramento do direito à educação.

Cuida-se, mais especificamente, de um direito na educação, direito de natureza

31 Cf. G. Zagrebelsky, El Derecho Dúctil, Madrid, Editorial Trotta, 2008:136/7. 32 Id. Ib. 33 Veja-se, por todos, Maria Letícia Puglisi Munhoz, Diversidade, relações raciais e educação em direitos humanos, dissertação de mestrado sob orientação da Profa. Dra. Gislene Aparecida dos Santos, apresentada na Faculdade de Direito da USP, São Paulo, 2009.

Page 29: Hard-cases e leading-cases no campo do direito à educação o … · 2018-09-27 · 1 Hard-cases e leading-cases no campo do direito à educação: o caso das quotas raciais. Nina

29

instrumental, voltado, nesta hipótese, a garantir a igualdade de acesso e permanência

na escola, que se realiza por intermédio de ações e abstenções de parte do Estado,

submetido ao regime das liberdades e garantias, o que significa dizer que é direito

dotado de eficácia plena e aplicabilidade imediata.

O direito à educação é um direito a prestações positivas materiais, de custo

social. Seus desdobramentos, v.g., a igualdade de condições para o acesso e

permanência na escola; a gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais; o

ensino fundamental na língua materna das diversas comunidades indígenas; o

atendimento educacional especializado aos portadores de deficiências; a oferta de

ensino noturno; o atendimento ao educando no ensino fundamental, dentre outros

previstos na legislação brasileira, são essencialmente direitos de promoção e proteção,

realizados mediante ações positivas.

É por todas essas razões e pelos fundamentos jurídicos aqui expostos que

revejo, parcialmente, a minha posição anterior, de extração mais positivista que

principiológica, contrária ao sistema de cotas educacionais.34

Quero ressalvar, contudo, neste reposicionamento, a minha radical

contrariedade em relação ao critério racial como elemento determinador das ações

afirmativas. A razão é simples: apesar da inegável desigualdade social entre brancos e

negros e da real existência de preconceito em relação aos indivíduos de cor negra, não

podem ser negados os benefícios das ações afirmativas a todos aqueles que se

encontrem em situação de desvantagem educacional, devido a causas

socioeconômicas, independentemente da cor, etnia, procedência, religião, cultura ou

local de moradia. O direito à educação é universal, assim como os direitos na

educação, as cotas aqui incluídas.

A solução para o problema da igualdade de acesso e permanência no ensino

superior estaria, a meu ver, no emprego de cotas de natureza socioeconômica,

numericamente determinadas pelo percentual de alunos egressos do ensino médio,

público e privado, municipal ou regionalmente considerado, que se enquadrassem nas

condições exigidas. As cotas assim fixadas resultariam na criação de vagas adicionais

34 Aspectos da reserva de vagas nas universidades públicas. In Boletim de Direito Administrativo, São Paulo: Ed. NDJ, n° 3, Ano XVIII, mar-2002, pp.183-185. 3.4.18. A reserva de vagas nas universidades públicas. In Boletim de Direito Administrativo, São Paulo: Ed. NDJ, nº 9, set-2001, pp. 699 -701.

Page 30: Hard-cases e leading-cases no campo do direito à educação o … · 2018-09-27 · 1 Hard-cases e leading-cases no campo do direito à educação: o caso das quotas raciais. Nina

30

às vagas regulares, sem quebra do princípio da igualdade, da proporcionalidade ou da

razoabilidade, em respeito à mais ampla realização do principio da solidariedade.

Outra alternativa é a adoção da pontuação acrescida, conforme a situação do

candidato, como empregada nos diversos modelos desenvolvidos no Estado de São

Paulo, com ou sem utilização de cotas mediante vagas adicionais.

Essas são formas de inclusão mais equânimes, no caso brasileiro, que o das

cotas meramente raciais, tendo em vista o alcance global da democratização do ensino.

Page 31: Hard-cases e leading-cases no campo do direito à educação o … · 2018-09-27 · 1 Hard-cases e leading-cases no campo do direito à educação: o caso das quotas raciais. Nina

31

Como é evidente,

________________________________________________________________

* Nina Beatriz Stocco Ranieri, é Professora Associada do Departamento de Direito do Estado da

Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e Coordenadora da Cátedera UNESCO de Direito à

Educação da mesma Faculdade. É autora de diversas obras versando sobre direito à educação e direito

educacional e membro do Conselho Estadual de Educação e atual Secretária Adjunta de Ensino Superior

do Estado de São Paulo.