happening no contexto cultural dos anos 60

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O Happening surgiu como linguagem de expressão artística no final dos anos 50 nos Estados Unidos, mas também, quase em simultâneo, na Europa, e teve algumas das suas principais realizações durante os anos 60, em aparente ruptura com as práticas artísticas até então desenvolvidas. Eram eventos onde se sobrepunham, muitas vezes num espaço restrito, artistas, público, cenários, objectos, sons e odores. O público, deslocado da habitual posição periférica para o centro do acontecimento, achava-se envolvido por uma atmosfera que elicitava a experiência dos vários sentidos, visual, auditiva, táctil ou olfactiva. Ainda que um plano prévio mínimo emoldurasse a sua concepção, esta caracterizava-se pela ausência de qualquer estrutura narrativa e pela redução ao mínimo das palavras, cuja sequência de gestos e acontecimentos eram, por vezes, fruto do acaso das circunstâncias e do improviso. Em 1962 descrevia-o assim Susan Sontag 1 : “Surgiu recentemente em Nova Iorque um novo, e algo esotérico, género de espectáculo. Aparentando à primeira vista tratar-se de um cruzamento entre a exposição de arte e a representação teatral, estes eventos receberam o nome modesto e algo intrigante de Happenings. Realizam-se em sótãos, pequenas galerias de arte, pátios e pequenos teatros, perante audiências que oscilam entre as trinta e as cem pessoas. Para descrever um Happening para quem nunca viu nenhum implica começar por dizer que os Happenings não são. Não se desenrolam sobre um palco no sentido convencional do termo, mas sim no meio de um ambiente atravancado de objectos, que pode ter sido montado, reunido, ou encontrado ou as três coisas. Neste cenário um certo número de participantes, não actores, realizam movimentos e manipulam objectos antifonalmente e em concerto com o acompanhamento (por vezes) de palavras, sons inarticulados, música, luzes intermitentes, e cheiros.” No percurso público e crítico que atravessou nos anos posteriores envolveu-se de uma aura por vezes quase mítica que contribui para algumas distorções com que foi abjectamente rejeitada ou, no oposto, efusivamente celebrada 2 . Para isso contribuiu o nome com que foi designado, happening, que procurava sublinhar a ausência com qualquer conotação artística prévia e marcar a sua natureza de evento que se aproxima do fluir da vida 1 Sontag, Susan. Contra a Interpretação e Outros Ensaios. Gótica. Lisboa, 2004, p. 300 2 Kirby, Michael. Happenings: an Introduction. In Happenings and Other Acts. Ed. Mariellen Sandford. Routledge, London - New York, 1995.

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Happening nos anos 60

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O Happening surgiu como linguagem de expressão artística no final dos anos 50 nos Estados Unidos, mas também, quase em simultâneo, na Europa, e teve algumas das suas principais realizações durante os anos 60, em aparente ruptura com as práticas artísticas até então desenvolvidas. Eram eventos onde se sobrepunham, muitas vezes num espaço restrito, artistas, público, cenários, objectos, sons e odores. O público, deslocado da habitual posição periférica para o centro do acontecimento, achava-se envolvido por uma atmosfera que elicitava a experiência dos vários sentidos, visual, auditiva, táctil ou olfactiva. Ainda que um plano prévio mínimo emoldurasse a sua concepção, esta caracterizava-se pela ausência de qualquer estrutura narrativa e pela redução ao mínimo das palavras, cuja sequência de gestos e acontecimentos eram, por vezes, fruto do acaso das circunstâncias e do improviso. Em 1962 descrevia-o assim Susan Sontag1:

“Surgiu recentemente em Nova Iorque um novo, e algo esotérico, género de espectáculo. Aparentando à primeira vista tratar-se de um cruzamento entre a exposição de arte e a representação teatral, estes eventos receberam o nome modesto e algo intrigante de Happenings. Realizam-se em sótãos, pequenas galerias de arte, pátios e pequenos teatros, perante audiências que oscilam entre as trinta e as cem pessoas. Para descrever um Happening para quem nunca viu nenhum implica começar por dizer que os Happenings não são. Não se desenrolam sobre um palco no sentido convencional do termo, mas sim no meio de um ambiente atravancado de objectos, que pode ter sido montado, reunido, ou encontrado ou as três coisas. Neste cenário um certo número de participantes, não actores, realizam movimentos e manipulam objectos antifonalmente e em concerto com o acompanhamento (por vezes) de palavras, sons inarticulados, música, luzes intermitentes, e cheiros.”

No percurso público e crítico que atravessou nos anos posteriores envolveu-se de uma aura por vezes quase mítica que contribui para algumas distorções com que foi abjectamente rejeitada ou, no oposto, efusivamente celebrada2. Para isso contribuiu o nome com que foi designado, happening, que procurava sublinhar a ausência com qualquer conotação artística prévia e marcar a sua natureza de evento que se aproxima do fluir da vida diária. Mas também os locais onde os eventos tiveram lugar e a dinâmica com que subverteram o uso do espaço. Se ocasionalmente se desenvolveram nos espaços mais tradicionais da galeria de arte, como no happening de Allan Kaprow de 1959, 18 Happenings in 6 parts, magnificado repetidamente como o primeiro destes acontecimentos, executado na Reuben Gallery de Nova Iorque, foram escolhidos os mais variados ambientes, públicos ou privados, frequentemente de dimensões acanhadas onde público e artistas se sebrepunham sem qualquer 1 Sontag, Susan. Contra a Interpretação e Outros Ensaios. Gótica. Lisboa, 2004, p. 3002 Kirby, Michael. Happenings: an Introduction. In Happenings and Other Acts. Ed. Mariellen Sandford. Routledge, London - New York, 1995.

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delimitação definida, incluindo universidades, lojas, ginásios, ruas, garagens ou águas-furtadas. A dimensão reduzida da audiência, o carácter efémero e dificilmente reproduzível de cada evento, associados, por vezes, à fragmentação do espaço e à desmultiplicação em várias acções simultâneas, onde os participantes colhiam experiências diferentes, tendo dificuldade em abracar a totalidade, impregnou o happening de uma aparência excêntrica e misteriosa. Allan Kaprow em 1961 reconhecia que3:

“[O happening] pode tornar-se como os monstros marinhos do passado ou como os discos voadores de amanhã. Não me devo importar, assim enquanto o mito cresce por si mesmo, sem referência a nada em particular, o artista pode atingir uma agradável privacidade, famoso por algo puramente imaginário e liberto para explorar algo em que ninguém repare.”

Mesmo muitos dos críticos que se debruçaram posteriormente sobre a sua descrição e compreensão não tiveram acesso directo ao objecto da sua análise, ficando reduzidos às memórias estilhaçadas dos relatos de quem assistiu, das declarações dos artistas, dos seus estudos e guiões preparatórios ou de registos fotográficos documentais das acções. O happening resiste à compreensão plena positivista, “uma arte que é quase desconhecida e, em termo práticos, incognoscível”.4

Mas foi sobretudo a dissolução das fronteiras entre a arte a a vida, ou a ocupação do interstício que separa os dois, e o apelo directo à experiência sensível e à participação da audiência, abandonando a papel passívo de observador, que concorreram para a sua percepção pública com estranheza e para que alguns o olhassem como manifestação de decadência, veiculador de obscenidades ou fazendo o apelo ao erotismo e à promiscuidade sexual. O público podia não ter qualquer noção do lugar que ocupar no espaço da representação ou quando o evento começava ou acabava e podia ser seduzido ou incitado a participar, dando lugar ao desmoronar da segurança e da certeza, as quais constroem as defesas que enfrentam a vida diária. Mais que as palavras, os materiais e os objectos, recolhidos do quotidiano ou do ambiente industrial, eram fundamentais para o desenrolar do Happening, levando os intervenientes à utilização das suas propriedades físicas de forma frequentemente repetitiva, exaustiva e obsessiva. De igual modo o corpo humano era por vezes sujeito a reificação e utilizado como cenário, matéria ou explorado de forma sensual ou violenta, pelo próprio ou pelos outros.5

O movimento Dada já havia no início do século XX estreitado a distância entre arte e sociedade numa reacção crítica e irónica à sociedade racional cujos valores capitalistas e burgueses, afirmavam, tinham conduzido à primeira guerra mundial. Contudo, o retomar desta atitude nos anos nos finais dos anos 50 e na década de 60, neo-Dada na sua configuração

3 Kaprow, Allan. Essays on the Blurring of Art and Life. Ed. Jeff Kelley, University of California Press, 2003, p. 59.4 Idem, p. 61.5 Sontag, Susan. Op. Cit., 2004

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segundo a terminologia de alguns, contestando a ideia de uma arte pertencente a uma esfera autónoma em relação à vida real, consequência da narrativa linear modernista de uma arte tendente para a sua pureza, vem encontrar um ambiente social e cultural que lhe permitiu a rápida expansão, quer na dimensão pública, muito para além do que foram as suas limitadas audiências, quer na disseminação geográfica. Os Happenings, após as primeiras demonstrações cerca de 1958, começaram a ocorrer um pouco por todo o lado no underground cultural dos Estados Unidos e da Europa. Em 1966 havia homens e mulheres a realizar Happenings em lugares tão distintos como nos Estados Unidos, Japão, Holanda, França, Argentina, Dinamarca, França, Chescolováquia, Espanha, Alemanha, Austria, Suiça ou Islândia.6

Nos Estados Unidos as primeiras manifestações surgiram ligadas à actividade de pessoas centradas de algum modo em torno da Universidade de Rutgers em Nova Jersey entre os anos de 1957 e 1963, incluindo Allan Kaprow, George Segal, Robert Watts, Geoffrey Hendricks, Lucas Samara, Robert Whitman, Roy Lichtenstein e Geroge Brecht.7 A Geroge Brecht e Robert Watts são atribuídos os primeiros eventos proto-Fluxus nos finais da década de 50, movimento que se relacionou de forma estreita, quer na sua génese, quer na sua prática, com o Happening. Ainda que os primeiros Happenings tenham sido apresentado no campus universitário de Rutgers, o nome surgiu com o evento 18 Happenings in 6 parts e é aplicado, inicialmente, sobretudo ao trabalho de artistas da Reuben Gallery de Nova Iorque.8

Nos parágrafos subsequentes procura-se focar a atenção no final dos anos 50, nomeadamente 1958-1959, correspondente às primeiras manifestações do Happening, e na evolução subsequente na primeira metade da década de 60, não sem primeiro tentar caracterizar a sua envolvente histórica na contextualização social, cultural e artística. Ainda que sejam, sobretudo, analisados os artistas americanos e, em particular, os de algum modo ligados à Universidade de Rutgers, não se deixa de referenciar o correspondente, e quase contemporâneo, surgimento do Happening na Europa através de artistas como Yves Klein, que, para alguns, apresenta mesmo o primeiro evento que pode ser considerado um Happening, ou Jean Jacques Lebel.

O ambiente social e cultural dos finais das décadas de 50 e 60

Ainda que os anos imediatos ao fim da segunda guerra mundial em 1945 tenham sido marcados por algum pessimismo e pelo espetro da crise dos anos 30, que perdurou durante mais algum tempo no receio colectivo, o

6 Kaprow, Allan. Op. Cit., 20037 Marter, Joan. The Forgotten Legacy: Happenings, Pop Art and Fluxus at Rutgers University. In Off Limits: Rutgers University and the Avant-Garde, 1957-1963. Ed. Joan Marter, Newark Museum, 1999.8 Jacobs, Joseph. Crashing New York à la John Cage. In Off Limits: Rutgers University and the Avant-Garde, 1957-1963. Ed. Joan Marter, Newark Museum, 1999.

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período após 1947, e durante quase as duas décadas de 50 e 60, são marcados pelo crescimento económico, pela expansão demográfica e pela crescente sensação de bem-estar social, apioada, sobretudo na Europa, pelas reformas com bases num estado de providência em áreas como a saúde, educação, transportes e segurança no trabalho. Esta afluência crescente beneficiou particularmente os países com maior desenvolvimento industrial da Europa e os Estados Unidos. Os Estados Unidos não haviam sofrido os efeitos destrutivos directos da guerra no seu terreno e esta constituiu um pretexto para o desenvolvimento e impulso económico. São os anos dourados na palavras de Eric Hobsbawn: “o ouro reluziu com maior intensidade ante o panorama monótono e sombrio das décadas de crises subsequentes”.9

Causa e consequência deste progresso são o incremento da produção de todos os tipos de bens de consumo e o extraordinário desenvolvimento tecnológico, como a televisão, o transistor, o disco de vinil, a melhoria do telefone e das comunicações, o uso dos pláticos, a melhoria dos transportes ou a banalização dos electrodomésticos. Esta revolução tecnológica representou uma forte pressão ecológica, com a ameaça de contaminação e degradação ambiental, quer dos espaços naturais abertos, quer do meio urbano e industrial. Esquecida incialmente sob o bem-estar e euforia que a tecnologia proporcionava, começou, contudo, a partir dos finais da década de 50 a constituir uma das preocupações dos movimentos e subculturas que protagonizaram a crítica social. Os Happenings incorporavam frequentemente os materiais sujos da sociedade industrializada, não procurando transmitir uma posição moralista unívoca, mas a necessidade de sentir o ambiente.

Porém, criou uma verdadeira e alargada sociedade de consumo. Expandiu o seu alcance para além das elites e das classes média urbanas, de modo que grandes grupos de pessoas de zonas de geografia e cultura mais periféricas, que nunca haviam tido acesso a condições de abundância, entraram pela primeira vez nos hábitos do consumo. Se, de facto, a muitos ofereceu melhores condições de vida, mesmo que tocados marginalmente, por exemplo em áreas tão básicas como as condições de higiene, por outro lado gerou impulsões e rituais consumistas, visíveis no aparecimento de produtos cuja utilidade não era óbvia, mas que representavam uma novidade: “a primazia era que o novo não só queria dizer algo melhor, mas também revolucionário”10. Associados a estes estímulos, o estilo de vida, pelo menos nas áreas urbanas mais desenvolvidas, molda-se a novas exigências centradas no conforto e no lazer.

A Pop Art reflectiu esta nova sociedade obstinada no consumo, na publicidade e nos novos meios de comunicação, como o cinema e a televisão, mas também o desejo de perseguir a felicidade. Os objectos comuns desta nova realidade foram declarados arte e “não era necessário nada para marcar a diferença, externamente, entre as caixas Brillo de Andy

9 Hobsbawn, Eric. A Era dos Extremos. Breve História do Século XX, 1914-1991. Presença, 200210 Idem.

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Warhol e as caixas Brillo do supermercado”11. Também Allan Kaprow, num dos happenings mais famosos apresentado em Paris em 1963, denominado Bon Marché, que se desenrolou no conhecido centro comercial parisiense Le Bon Marché, transformou os tiques, gestos e rituais próprios daquele espaço em acções simultâneas, caóticas, absurdas e inúteis.

Paralelamente a estas evoluções, a estratificação e organização sociais vão sofrer importantes modificações, para o que foi significativo o progressivo esvaziamento do mundo rural, a contracção das profissões ligadas à agricultura e a transferência para a cidade de vastas franjas da população, a par com aparecimento de novos grupos profissionais e consequentes rearranjos hierárquicos. Mas é a acentuada valorização da juventude, uma faixa etária antes indefinida entre a criança e a vida adulta, cuja revelação como grupo autónomo já se vinha fazendo desde o século XIX, que marca de forma característica algumas das alterações sociais dos anos 60. Para isso contribui de forma significativa a instituição escolar e, de modo particular, a Universidade, com uma explosão de estudantes ao longo dos anos 50. A afirmação dos seus hábitos, valores e gostos, identificadores de um grupo específico, com estilos de vida, condicionamentos e linguagens próprias determinou a reacção e adaptação da sociedade de consumo a estes novos padrões cuja apetência invadiu a sociedade e extravasou os limites etários mais restritos da junventude12.

A juventude conquistou nesta época um mundo autónoma dos adultos, uma cultura independente ligada essencialmente ao meio urbano mas marcada por uma grande capacidade de difusão transnacional onde desempenharam papel importante as novas tecnologias e os novos meios de comunicação de massas, como a televisão e a rádio, mas também, e de forma particular, a música rock. A internacionalização da cultura juvenil acompanha-se de uma exaltação das culturas exóticas que, a partir de meados de 60, se torna particularmente significativo no consumo da India, não a sua realidade heterogénea, mas os artefactos, a linguagem, a literatura, as ideias ou a música descontextualizados, numa reacção contracultural às sociedades Americana e Europeias13. Os meios culturais participaram igualmente desta sublimação exótica. John Cage, cujas aulas foram seminais para os artistas da vanguarda americana dos anos 60, partilhava uma perspectiva do Budismo Zen da vida que transportava para as suas composições musicais.

Mas a juventude, que ocupava uma posição cada vez mais central no universo social, é um grupo naturalmente inquieto e irreverente, lugar de entusiamos e paixões, que coexistia numa sociedade moralmente conservadora, hieraquizada por conductas e códigos de classe, resistente à afirmação das minorias, onde o detentor do principal estatuto social era o homem-branco-profissional-pai de familia. A cultura juvenil foi a matriz

11 Danto, Arthur, After the End of the Art: Contemporary Art and the Pale of History, Princeton University Press, Princeton, New Jersey, 1997, p.1212 Bebiano, Rui. O Poder da Imaginação. Juventude, Revolta e Resistência nos Anos 60. Angelus Novus, Coimbra, 200313 Stephens, Julie. Anti-disciplinary protest : sixties radicalism and postmodernism. Cambridge University Press, Cambridge, 1998

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para uma revolução cultural nos comportamentos, códigos morais e afirmação de estratos sociais minoritários e marginais. Estava-se assim perante

“Um Universo singular (...) que projectava os sinais da juvenialização (...) como factores de um movimento que tendia para o embate, inevitável num tempo de profunda redefinição de modelos, com sectores que permaneciam afectos a um mundo dentro do qual cada um deveria reconhecer na perfeição o seu lugar, e no qual se era punido por não o fazer.”14

A revolução cultural vai expressar-se numa atitude antidisciplinar que rejeita as formas tradicionais de observar a política, a sociedade, a hierarquia, a organização e as lideranças. No campo literário e filosófico algumas figuras emergem, por vezes envoltos numa aura mítica, que suportam e dão consistência aos movimentos. Os escritores da Beat generation, como Allen Ginsberg, Jack Kerouac ou William Burroughs valorizam a espontaneidade e o indivíduo, em constante viagem interior, através da exploração de uma espiritualidade com recurso, muitas vezes, às religiões exóticas. Mas também rejeitam a materialidade e desafiam os limites da liberdade de expressão. No campo filosófico o existencialismo surgido após 1945, na sua principal figura que foi Sartre, considera que “a existência precede e governa a essência”, recusando a moral e a religião convencionais e dando primazia à liberdade subjectiva de actuar15. A escola de ideólogos de Frankfurt teve igualmente um peso determinante no pensamento dos anos 50 e 60, sobretudo Herbert Marcuse pela difusão das suas ideias, através dos escritos Reason and Revolution de 1941, Eros and Civilization de 1955 e One-dimensional Man de 1964.

A arte nas década de 50 e 60

O ambiente artístico que reflecte e, reciprocamente, legitima e recria as rupturas dos movimentos sociais. A procura, quase obsessiva, de novas linguagens, com a dissolução das velhas narrativas, manifesta-se num paroxismo de ‘ismos’ dos anos sessenta

Happening, arte como vida

Na escadaria do famoso centro comercial de Paris, Le Bon Marché, é dado a todos um embrulho branco atado com corda (ninguém sabe que contém uma pedra de 1 kilo). Chegados ao cimo, segurando os embrulhos, vagueiam soturnos. Em cinco balcões separados, com ténues lâmpadas sobre cada um, empregados olham inexpressivamente por cima dos seus artigos. Através de um sistema de amplificação sonoro, uma voz feminina 14 Bebiano, Rui, Op. Cit., p.2615 Stromberg, Roland. História intelectual europeia desde 1789. Madrid, 1994

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impessoal anuncia o tempo e as horas em várias partes do mundo; nos intervalos recomenda a compra de vários produtos. A voz cala-se e os artigos são mostrados, iniciando-se várias acções simultâneas como: máquinas de lavar são enroladas e desenroladas repetidamente em lonas; um pequeno indivíduo é levantado de um carrinho por outro mais alto para cima do balcão, enrolado em filme plástico e reposto no carrinho; numa mesa uma rapriga corta fatias de pão, põe compota, come e ri; ou outra rapariga, em pé sobre uma piscina azul para crianças, vestida, é coberta com filme plástico e com espuma de lavar, enquanto faz estalidos como uma máquina. As pessoas começam a perguntar aos que mostram os artigos ‘conseguiste o pão’ (um deles tem 50 francos dos novos e da-lo-á a quem perguntar no tempo correcto e nom tom de voz certo). A questão é ignorada durante 15 a vinte minutos e as acções simultâneas e ao acaso continuam. Entretanto um grupo de visitante entra em cena e monta as sua prórpias barracas vendendo o pão que rouba uns aos outros e progressivamente a atmosfera perde densidade. Então alguém grita ‘consegui o pão’, as acções param e a multidão precipita-se para o vencedor que exibe um pão com cinco notas de 10 francos no interior. De repente, o homem do sabão toma um ar terrível e grita numa voz poderosa ‘abram os embrulhos’. Sob sons de papel a rasgar e exclamações, todos decobrem as pedras. De novo a voz do altifalante diz, entrecortado com o anúncio do tempo e das horas, ‘senhores e senhoras, por favor coloquem as pedras na piscina e saiam como entraram’. O Happening termina quando a última pessoa pôe a pedra na piscina16.

O Happening Bon Marché foi apresentado por Allan Kaprow em Paris em 1963 para o festival de Verão do Theatre of the Nations. O tema havia-lhe surgido pela observação da actividade diária da loja, a troca de bens de consumo por dinheiro, comparada com a sensação de morgue durante a noite, os longos corredores com a mercadoria coberta. Antes do início da apresentação, Kaprow deslocou-se ao espaço do teatro, porque lhe disseram que o público francês nunca se deslocaria à loja para ver arte, onde explicou que ia ao teatro para deixar o teatro e expôs parte do Happening que iria decorrer na loja.

A ideia de arte total foi uma das preocupações do Happening. Mas esta apenas podia ser conseguida, não pela simples mistura dos diferentes géneros artísticos, mas pela transgressão das barreiras existentes e incorporação de novos modelos como o fluir da vida diária ou das coisas naturais onde as várias sensações formam um todo uniforme e constante. A incorporação na obra de arte dos fenómenos da existência e a sua experimentação similar à forma envolvente como sentimos a poluição, o cair da chuva, o ruído de um electrodoméstico ou o toque da superfície cutânea, tornaria possível a aproximação da arte à vida, não a arte como arte mas a arte como vida, uma arte de experiência total.

Mais do que os processos da arte, interessa o significado da vida. O Happening deve confluir com a existência, por isso ao artista deve

16 Lebel, Jean Jacques. New writers IV : plays and happenings. Calder and Boyards, London, 1967, p.92-95

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interessar a observação e a interpretação das ocorrências banais da vida, participar e deixar-se envolver nelas. A audiência deve abandonar o seu papel no Happening, que a desintegra e nega, e tornar-se parte do evento, como é parte comprometida da vida: “Temos roupas de cores diferentes; podemos mover-nos, sentir, falar, observar os outros de várias maneiras; e constantemente mudamos o significado da obra assim fazendo”17.

A utilização nos eventos de materiais e elementos do ambiente circundante, tem raízes nos métodos da collage que transporta para a obra de arte fragmentos da realidade, que readquirem novos significados e estabelecem relações eventualmente imprevisíveis. Neste sentido, começou a ser utilizada por Picasso e Braque, mas ganhou grande expressão com o Dadaismo e o Surrealismo, destacando-se os trabalhos de Kurt Schwitters. Na evolução da colagem, e da possibilidade de incorporação de qualquer material ou objecto nas assemblage, ultrapassando o limite da superfície, a obra invade o espaço real e envolve o espectador nos environments, de que Kaprow foi um dos pioneiros. Outras influências podem ser aduzidas para os Happenings como o teatro da Bauhaus, o teatro de Artaud, ou a poesia visual e sonora. Não obstante, Dada, para além da colagem, foi inovador em alguns aspectos que se tornaram essenciais para o Happening18. As performances do Cabaret Voltaire em Zurich, em 1916, incluiam diversas acções simultâneas, como a leitura de poemas ou jornais diários, trazendo para a representação o ambiente quotidiano. Objectos achados no dia a dia podiam igualmente ser utilizados e a confrontação do público fazia parte da atitude Dada.

Dois outros antecedentes adquiriram particular significado, o abstraccionismo expressionista de Pollock e as aulas de John Cage da segunda metade da década de 50, onde participaram Allan Kaprow e outros artistas que haveriam de ser cruciais para Happening, mas também para outras manifestações artísticas estreitamente relacionadas características da época, nomeadamente o movimento Fluxus e a Art Pop. Nesse aspecto, o percurso de Kaprow é instrutivo.

O Happening foi uma prática assumida essencialmente por pintores como Claes Oldenburg, Jim Dine ou Red Grooms entre outros, para além do próprio Kaprow. Mesmo que introduzisse sons, odores e a sensibilidade táctil, tinha um predomínio plástico visual, relacionando-se de uma forma próxima com o abstraccionismo expressionista, onde a gestualidade é trazida para o primeiro plano da criação pictórica. Kaprow, que estudou pintura com Hans Hoffman e história de arte com Meyer Schapiro, foi convidado para o departamento de História de Arte da Universidade de Rutgers por Helmut Von Erffa com o objectivo de ter alguém que conhecesse os antigos mestres e simultaneamente fosse um pintor da nova escola. Kaprow num artigo de 1958 sobre o legado de Pollock, logo após a morte do pintor, reconhece que aos no enredarmos nas linhas e manchas dos seus quadros somos levados para o espaço exterior, a pintura quer vencer os limites da tela, e escreve:

17 Kaprow, Allan. Op. Cit., 2003, p.618 Kirby, Michael. Op. Cit., 1995.

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“Pollock, como eu o vejo, deixou-nos no ponto onde devemos começar a ficar preocupados e mesmo atordoados com o espaço e os objectos da vida diária, quer sejam os nossos corpos, as roupas, as sala, ou, se necessário, a vastidão de 42ª Avenida.”19

Nas suas pinturas e trabalhos escultóricos Kaprow aproximava-se do expressionismo abstracto e, em particular, da combine painting de Rauschenberg, de quem era amigo, pela inclusão de fotografias, objectos e elementos pessoais.

19 Kaprow, Allan. The Legacy of Lackson Pollock. In Essays on the Blurring of Art and Life. Ed. Jeff Kelley, University of California Press, 2003, p.7