hansen, joão adolfo - ut pictura poesis e verossimilhança na doutrina do conceito no século xvii...

Upload: giuliano-lellis-ito-santos

Post on 16-Feb-2018

221 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • 7/23/2019 HANSEN, Joo Adolfo - Ut Pictura Poesis e Verossimilhana Na Doutrina Do Conceito No Sculo XVII Colonial

    1/21

    UT PICTURA POESIS E VEROSSIMILHANA NADOUTRINA DO CONCEITONO SCULO XVII COLONIAL 1

    Joo Adolfo Hansen

    Neste texto, trato do pressuposto doutrinrio do conceitoengenhoso da poesia e da oratria seiscentistas, citando autoresbrasileiros, peruanos e mexicanos, como Gregrio de Matos, Vieira,Caviedes e Sor Juana Ines de la Cruz. A diversidade estilstica e ascircunstncias de produo e consumo de suas obras so obviamentegrandes e aqui no me ocupo de nenhuma delas em particular.

    Referindo-as segundo a oportunidade, vou tom-las como exemplosde doutrina neo-escolstica comum, que define a representao comoo desenhoexterno ou a evidncia da luz natural da Graa. Aconselhandoo juzo na inveno das obras, ela ilumina as despropores da fantasiacom a proporo analgica de sua Causa Primeira. No longo sculoXVII que no Brasil dura pelo menos at 1750 a doutrina do desenho um modelo cultural internacionalizado nas apropriaes catlicas da

    retrica aristotlica e dos textos italianos quinhentistas e seiscentistassobre a agudeza. Padres da racionalidade de Corte ibrica prudncia,discrio, agudeza, dissimulao modelam a representao, adaptada

    ao referencial dos discursos coloniais em vrias situaes. Como ummodelo supra-individual, o estilo ento sempre entendido como oresultado da emulao no-psicolgica de autoridades. o pressupostodoutrinrio comum que permite o estabelecimento de comparaes

    Floema Especial - Ano II, n. 2 A, p. 111-131 out. 2006

    1 Publicado em Revista de Critica Literaria Latinoamericana, Lima-Berkeley, v. 45,p. 177-191, 1997.

  • 7/23/2019 HANSEN, Joo Adolfo - Ut Pictura Poesis e Verossimilhana Na Doutrina Do Conceito No Sculo XVII Colonial

    2/21

    112 Joo Adolfo Hansen

    entre autores seiscentistas de lugares e obras bastante diversos. E, paraisso, talvez seja oportuno comear falando dos anjos.

    O intelecto anglico, como uma reverberao da inteligncia

    de Deus, no saberia conceber conceitos seno espirituais. A afirmaode Emanuele Tesauro, em Il Cannocchiale Aristotlico,2 lugar-comum no sculo XVII e deve ser tomada ao p da letra, quando se

    estuda a representao seiscentista produzida no Brasil, no Mxicoou no Peru. Como evidenciou Robert Klein ao tratar de assuntocorrelato, os tratados italianos de empresas do sculo XVI, opressuposto teolgico de que s o anjo conhece diretamente o universal

    implica, pelo avesso, o de que o conhecimento humano terico eanlogo, no divino. Se fosse possvel conhecer diretamente osconceitos de Deus, o prprio conceito e sua formulao no seriamnecessrios;3 logo, preciso encontrar os meios indiretos para afigurao das idias.

    Nas doutrinas seiscentistas do conceito que tiveram curso nas

    colnias ibricas, so meios agudamente indiretos, definidos como

    agudeza prudencial ou discreta, que reatualizam na prtica aassimilao feita no XVI de lgica (como dialtica) e arte (comoretrica): ento, o conceito expresso nas obras classificado comoornato dialtico, entendendo-se a atividade artstica como tcnica

    de efetuar um modelo interior achado ou emulado pelo engenho. Ointelectualismo artificioso das obras seiscentistas decorre, por isso,no de qualquer afetao ou ludismo gratuito, como rotineiramente

    se escreve no Brasil em crticas de determinao romntica queexcluem o Barroco da formao da nacionalidade, mas de o modelo

    emulado ser sempre definido como um conceito anlogo daSubstncia divina que refigurado por conceitos.

    O Livro III, da Retrica, que trata da elocuo, uma dasreferncias principais dos tratadistas seiscentistas do ornato dialtico.

    2TESAURO, Emanuele. Il Cannocchiale Aristotelico. 5. ed. Torino: Zavatta,1670, p. 65.3 KLEIN, Robert. La thorie de lexpression figure dans les traits italiens sur les imprese,1555-1612. In: ______. La forme et lintelligible. Paris: Gallimard, 1970. p. 136.3TESAURO,E. Dellargutezza et desuoi parti in generale, op.cit.

  • 7/23/2019 HANSEN, Joo Adolfo - Ut Pictura Poesis e Verossimilhana Na Doutrina Do Conceito No Sculo XVII Colonial

    3/21

    113Ut pictura poesise verossimilhana na doutrina doconceito no Sculo XVII colonial

    Entendendo-o como formulao mental resultante de operaes daperspiccia dialtica e da versatilidade retrica sobre os conceitos extremosde uma matria coletiva e annima, os autores seiscentistas brasileiros,

    mexicanos e peruanos tambm deslocam a conceituao tradicional dametfora, como fazem os tratadistas. Neles, a metfora passa de simplestropo para a base da inveno, como gran Madre di tutte le Argutezze.4

    Embora muitas vezes o fim dos engenhosos seja o hospital, pois o desejode ser agudo facilmente esquece a prudncia, como se diz ento, homensengenhosos no deixam de ser divinos, pois com a metfora seu engenhodo no-ente faz ente, emulando a criao.

    Generalizando-se as concluses de Klein, pode-se estabelecer ahomologia dos procedimentos tcnicos de produo das empresas eemblemas de seu estudo com os da poesia, da oratria ou da pinturado sculo XVII. E, com isso, propor-se que as doutrinas da agudezaconceituosa tm por primeiro postulado, tambm na AmricaPortuguesa e Espanhola, o carter universal do disegno. O disegno,

    no trocadilho italiano, segno de Dio, signo de Deus na mente, mais

    ainda nos lugares contrarreformados, em que a doutrina catlica daluz natural da Graa infusa na natureza e na histria, difundida entoprincipalmente pela Cia. de Jesus, orienta a representao com asanalogias de proporcionalidade, de proporo e de atribuio daSubstncia participada nas linguagens. Assim, as preceptivas quecircularam nas colnias ibricas tratam da possibilidade de tornar visvela Idia em receitas de agudezas, como o caso das 25 cautelas para o

    uso das agudezas, de Peregrini; dos teoremas prticos articulados sdez categorias aristotlicas, de Tesauro; ou das crisis, de Gracin.5

    Discutindo o desenho num texto de 1595, Tractatio de Posiet Pictura ethnica, humana et fabulosa collata cum vera, honesta

    et sacra, Antonio Possevino cita os versos 180-182 da Arte Potica,de Horcio:

    4 TESAURO, E. Dellargutezza et desuoi parti in generale, op.cit.5 Cf. PEREGRINI, Matteo. Delle acutezze che altrimenti spiriti, vivezze e concettivolgarmente si appellano. Bologna, 1639; TESAURO, Emanuele. Il CannocchialeAristotelico. 5. ed. Torino: Zavatta, 1670; GRACIN, Baltasar.Agudeza y Arte de Ingenio.In: ______. Obras Completas. Madrid: Aguilar, 1960.

  • 7/23/2019 HANSEN, Joo Adolfo - Ut Pictura Poesis e Verossimilhana Na Doutrina Do Conceito No Sculo XVII Colonial

    4/21

    114 Joo Adolfo Hansen

    Segnius irritant animos demissa per aurem,quam quae sunt oculis subiecta fidelibus et quaeipse sibi tradit spectator.6

    [As coisas que entram pelo ouvido impressionam os nimos

    mais debilmente que as oferecidas ao fiel testemunho dos olhose que o espectador percebe diretamente.]

    Tambm nesses, Horcio valoriza a viso em detrimento daaudio e, confirmando-o, Possevino afirma que a poesia, arte deimitao como a pintura, imagem:assim como o pincel imita ostopoi

    narrativos das ecfrases de autoridades, tambm a pena deve imitar o

    pincel, produzindo metforas visualizantes de efeitos maravilhosos,simultaneamente adequados utilidade e ao prazer. Lembra, nestesentido, que os gregos chamavam de graphein o verbo relativo faculdade do desenho, significando com ele tanto o figurado pela mo

    na forma de letras e linhas, quanto o expresso pela voz em palavras.Possevino entende desenho como o resultado exterior do desenhointerno ou conceito. Na doutrina do engenho seiscentista, que opera a

    inveno retrico-dialtica do desenho, a tpica de Possevino intensificada. A doutrina prescreve ento que o discurso interior umcontexto ordenado de metforas, sendo o exterior uma ordem de signossensveis, copiados das imagens mentais, como tipos do Arqutipo7oumetforas de metforas. A reatualizao de Aristteles nessas prticastambm implica, por isso, o entendimento do signo como definioilustrada, como se pode ler no Iconologia, de Cesare Ripa: o discurso

    metfora ou alegoria visualizantes, ordenadas por operaes dialtico-retricas do juzo. Como metaforizao que efetiva a virt visiva dositalianos do XVI, a arte exterior do desenho lana mo de letras, sons,linhas, volumes e cores, e sua finalidade o belo eficaz.

    Fruto do engenho, terceira faculdade a um tempo dialtica eretrica, o belo eficaz do desenho exterior do conceito evidencia-se

    6 Apud POSSEVINO, Antonio. Pictura similis Poesi. In: ______. Tractatio de Posi etPictura ethnica, humana et fabulosa collata cum vera, honesta et sacra.Lugduni, 1595;In: BAROCCHI, Paola. (A cura di). Scritti dArte del Cinquecento. Milano-Napoli:Riccardo-Ricciardi Editori, 1972, v. 32, t. I, p. 455-459.7 Arqutipo o nome seiscentista para o conceito na mente, antes da representao exterior.

  • 7/23/2019 HANSEN, Joo Adolfo - Ut Pictura Poesis e Verossimilhana Na Doutrina Do Conceito No Sculo XVII Colonial

    5/21

    115Ut pictura poesise verossimilhana na doutrina doconceito no Sculo XVII colonial

    como desgnio, ou resultado da deliberao de um juzo, de modo queo decoro retrico do estilo tambm demonstra a operao tica daprudncia do autor. Por isso, diz Possevino, assim como a pintura lana

    mo da aritmtica, da geometria e da ptica, como proportio oucommensuratio, para produzir seus efeitos ou o fingimento de sombras,cores e volumes, enganando a agudeza da vista pela perspectiva, que

    faz com que coisas distantes paream menores e vice-versa, tambm apoesia deve calcular com proporo seus efeitos maravilhosos quemovem os afetos. Como um pintor, o poeta e o orador devem observarestilisticamente a maior ou menor distncia da relao imagem/olho

    em suas metforas; a maior ou menor aplicao de ornatos queespecificam as clarezas adequadas a cada gnero; o maior ou menornmero de vezes que os efeitos devero ser examinados para serementendidos. Nos versos 280-360 de El Sueo, de Sor Juana Ins de LaCruz, a mesma doutrina aparece tratada como uma metalinguagem,explicitando-se neo-escolasticamente o juzo prudente que compe asagudezas hermticas do poema, segundo o ut pictura.8

    Segundo Aristteles, as imagens devem ser definidas como umafigurao sensvel produzida racionalmente como um entimema.9 Aretomada de sua definio nas prticas seiscentistas de representaotambm significa que, por mais pattica ou sensvel que seja aimagem exterior, sempre regrada como proporo inteligvel deimagem interna que, nos discursos, figura o conceito atravs departicularidades dos conceitos da matria tratada. Dito doutro modo,

    as imagens da elocuo seiscentista so sindoques argumentativas,que desdobram sensivelmente a argumentao 10. Como na poesia

    metafsica inglesa por exemplo, em Donne que recupera a

    8 SOR JUANA. Lrica Personal. Mxico: Fondo de Cultura Econmica, 1988, p. 342-344.(Obras Completas, v. I).9ARISTTELES. De anima III, III, em que a phantasia no meraaisthesis, mas resultadoda deliberao do juzo silogstico. Cf., a propsito, CAMASSA, Giorgio. Phantasia daPlatone ai Neoplatonici. In: PHANTASIA-IMAGINATIO. V Colloquio Internazionale. Roma9-11 gennaio 1986. Atti a cura di M.Fattori e M. Bianchi. Roma: Edizioni dellAteneo, 1988(Lessico Intellettuale Europeo).10TUVE, Rosemond. Elizabethan and Metaphysical Imagery.Renaissance Poetic and Twentieth-Century Criticism. 7th ed. Chicago: The University of Chicago Press, 1965, p. 27-44.

  • 7/23/2019 HANSEN, Joo Adolfo - Ut Pictura Poesis e Verossimilhana Na Doutrina Do Conceito No Sculo XVII Colonial

    6/21

    116 Joo Adolfo Hansen

    conveno aristotlica, como Rosemond Tuve j demonstrou para oAnthea, de Herrick, mesmo quando a matria do poema umaexperincia sensorial, a sua causa como causa final aristotlica

    nunca a representao da mesma por meios empiristas ou realistas,mas uma aplicao no-exterior da imagem. Como um silogismoretrico ou um entimema, a imagem demonstra um conceito da

    experincia potica da tradio de casos retricos, ou seja, no expressanem representa a experincia emprica filtrada nas impresses de umasubjetividade autonomizada. Logo, imagem sempre regrada comoproduo de efeitos verossmeis, segundo preceitos da enargeia ou

    evidentia, com que a beleza mimeticamente eficaz.Nessas prticas em que a metfora central, a Arte Potica

    apropriada como critrio retrico ordenador do decoro na emulaode obras, principalmente os versos 361-365, que fazem o paralelo depintura e poesia:

    [...] ut pictura poesis: erit quae, si propius stes,te capiat magis, et quaedam, si longius abstes;

    haec amat obscurum, volet haec sub luce videri,iudicis argutum quae non formidat acumen;haec placuit semel, haec deciens repetita placebit.11

    [Como a pintura, a poesia: haver aquela que, se estiveres mais perto,te mover mais, e outra, se estiveres mais longe;esta ama o obscuro, quer esta sob a luz ser vista,do juiz esta no teme o agudo juzo;esta agradou uma vez, esta dez vezes repetida agradar.]

    Como uma doutrina da proporo decorosa dos efeitos das obras,o ut pictura poesis fundamenta-lhes a apreciao como ponderao dojuzo. Como disse, a justeza elocutiva do decoro interno das imagensevidencia, como decoro externo, a eqidade do juzo que lheproporciona o estilo. Sendo uma conformao urbana da obra ao costume

    das autoridades do seu gnero, a ordenao no psicolgica. Por outraspalavras, no expresso de uma conscincia auto-reflexiva ou

    11Apud HORCIO. Q. Horati Flacci opera.Ed. F. Klingner. Leipzig, 1959, p. 307.

  • 7/23/2019 HANSEN, Joo Adolfo - Ut Pictura Poesis e Verossimilhana Na Doutrina Do Conceito No Sculo XVII Colonial

    7/21

    117Ut pictura poesise verossimilhana na doutrina doconceito no Sculo XVII colonial

    autonomizada de preceitos, como se pensa a partir da segunda metadedo XVIII, quando a instituio declina e substituda pela subjetivaoromntica da elocuo. retrica, isto , mimtica e prescritiva,

    objetivada nas prticas artsticas em esquemas que especificam usosautorizados como uma jurisprudncia de bons usos. Assim, tambm oportuno lembrar-se que, nos versos citados, Horcio no diz que a

    pintura poesia, ou que uma possa ser convertida outra, pois sabeque o ver no o dizer e, como diz Foucault, que a relao da linguagemcom a pintura relao infinita. E no porque a palavra seja imperfeitafrente ao visvel, mas porque o visvel e a linguagem so irredutveis,

    contnuo um, discreta a outra.12 O que Horcio prope, alis, nacomparao da partculaut, como, antes uma relao de homologiados procedimentos retricos ordenadores dos efeitos de estilo, no umarelao de identidade ou equivalncia das substncias da expressoplstica e discursiva.

    Quando fazem a comparao, os versos propem que h um

    modo especfico de formulao para cada gnero e, logo, da sua

    apreciao, o que imediatamente implica que o ut pictura poesis umadoutrina genrica da verossimilhana necessria em cada obra, segundosua inveno, disposio e elocuo, para que possa cumprir as trsgrandes funes retricas dedocere,delectaree movere, representadas nosversos citados.

    oportuno lembrar, como demonstra Wesley Trimpi, que podemser distribudos segundo 3 pares de oposies:

    a- distncia: nos termos de perto/longe(si propius stes/si longius abstes)

    b-claridade: nos termos de clareza/obscuridade(obscurum/sub luce)

    c-nmero: nos termos de uma vez/vrias vezes(semel/repetita)13

    12FOUCAULT, Michel. As Palavras e as Coisas (Uma Arqueologia das Cincias Humanas).So Paulo: Martins Fontes, 1981, p. 25.13Cf. TRIMPI, Wesley. Horaces Ut pictura poesis: The argument for stylistic decorum. In:______. Traditio (Studies in ancient and medieval history, thought and religion). New York:Fordham University Press, 1978, v. XXXIV.

  • 7/23/2019 HANSEN, Joo Adolfo - Ut Pictura Poesis e Verossimilhana Na Doutrina Do Conceito No Sculo XVII Colonial

    8/21

    118 Joo Adolfo Hansen

    Desta maneira, se a categoria distncia, dos versos 361-362,parece referir-se ao movere, evidenciado pelo verbo indicativo de pathos

    (te capiat magis), a categoria claridade implica o docere, explicitado no

    verso 364, que figura a avaliao do juzo (iudicis argutum quae nonformidat acumen), enquanto a categoria nmero, do verso 365, articula odelectare, bvio em verbo especificador do afeto agradvel (placuit;placebit).14

    As categorias delineiam, portanto, a generalidade das grandesfunes retricas. Em termos absolutos, lembrando-se aqui o modocomo Horcio valoriza a clareza e recusa os hibridismos, os critrios

    perto,clareza e uma vez

    poderiam especificar a sua prpria produopotica, enquanto longe, obscuridadeevrias vezesseriam rejeitados porela. Contudo, como se disse, as trs oposies so operadores dageneralidade do aptum retrico e, neste sentido, so aplicveis comocritrios de adequaes estilsticas das partes da obra ao todo, comodecoro interno, e tambm como decoro externo, na adequao da obra

    circunstncia convencionada de recepo. Os termos rejeitados, ou

    supostamente rejeitveis numa concepo unvoca de clareza, porexemplo, s o so de modo relativo ou diferencial, uma vez que,supondo-se os efeitos retrico-poticos de persuaso, s vezes o pior efetivamente o melhor, como licena potica. Lembre-se tambmque Horcio tem uma concepo negativa da virtude do estilo,definindo-a como falta de erro oufugere vitium, de modo que obra bemrealizada sempre aquela em que nada pode ser acrescentado e de que

    nada pode ser extrado, impondo-se justamente o sistema dos gnerose suas correes diferenciais, com suas clarezas e obscuridades especficas,que por vezes implicam os critrios longe, obscuridade e vrias vezes.

    No caso das letras seiscentistas coloniais hoje tidas comobarrocas, a doutrina horaciana aplicada como regulao dasincongruncias resultantes da transferncia da metfora para a basedos conceitos ou das tpicas da inveno. exemplar a pequena alegoria

    14 Estas relaes foram-me indicadas pela Prof Anglica Chiappetta, da rea de Lngua eLiteratura Latinas, do DLCV-FFLCH-USP.

  • 7/23/2019 HANSEN, Joo Adolfo - Ut Pictura Poesis e Verossimilhana Na Doutrina Do Conceito No Sculo XVII Colonial

    9/21

    119Ut pictura poesise verossimilhana na doutrina doconceito no Sculo XVII colonial

    contada por Emanuele Tesauro num texto de 1625, Il Giudicio, emque discute os decoros dos estilos tico e asitico num gnero popularem voga no sculo XVII, o sermo sacro.

    Os atenienses encomendaram uma cabea de Palas Atena a Fdiase a Alcmene para ser colocada num lugar alto. Quando as peas foramsubmetidas aos juzes, todos riram muito da de Fdias, que parecia

    apenas grosseiramente esboada, e muito admiraram a de Alcmene,que mostrava todas as linhas diligentemente definidas. Mas Fdias,escreve Tesauro, tinha o engenho mais agudo que o escalpelo e pediuque as cabeas fossem colocadas longe, sobre duas colunas elevadas.

    Ento a sua, reduzida pela distncia proporo adequada, apareceubelssima e a de Alcmene, tosca e mal formada.15

    Como alegoria do ut pictura poesis, o exemplo figura o intervaloque vai dos efeitos aos afetos, propondo que deve ser um intervaloregrado como maior ou menor congruncia das partes da obra, quandoesta posta em relao com um ponto de vista determinado. Como se

    sabe, a tpica dout pictura poesis antiqssima e, sendo certo que em

    Tesauro ela semantizada pela passagem da Retricaque discute osdecoros dos gneros deliberativo e epidtico, de que trato adiante, muito provvel que tambm inclua alguns dados da discusso posta noSofista, principalmente os passos em que o Estrangeiro eleata analisaa mmesis (Sofista, 234 bc), fazendo distino entre duas espcies deimagens, ou imagem icstica, proporcional ao paradigma, e imagem

    fantstica, deformao ou desproporo da imagem icstica (Sofista,

    235 b; 236 c). Neste dilogo e em outros, como o Filebo, Plato fazver que, como o observador de uma pintura ou escultura de grandes

    propores se encontra mais distanciado de certas partes que de outras,a desproporo aparente entre elas conflita com a memria ou oconhecimento que tem da matria figurada, alertando-o sobre aincongruncia. Para compensar a distoro visual, o artfice altera aspropores reais do seu modelo, ao invs de reproduzi-las com proporo

    15 TESAURO, Emanuele. Il Giudicio. In: ______. Panegirici. Torino, 1625. O texto foireeditado por RAIMONDI, Ezio. Il Cannocchiale Aristotelico.Scelta. Torino: Einaudi, 1978.

  • 7/23/2019 HANSEN, Joo Adolfo - Ut Pictura Poesis e Verossimilhana Na Doutrina Do Conceito No Sculo XVII Colonial

    10/21

    120 Joo Adolfo Hansen

    icstica: de um ponto de vista determinado, a imagem resultanteaparece deformada, como imagem fantstica; mas tambm parece estarproporcionada idia que o observador faz da matria figurada quando

    vista de um ponto de observao prprio (ikans,Sofista,236 b).16 bvio que, se a escultura ou a pintura pudessem ser vistas a

    partir de uma hipottica posio que inclusse todas as posies

    possveis, as compensaes produzidas pelo artfice apareceriam comodistoro e teriam de ser corrigidas. As obras so consumidas naempiria, contudo; na experincia dos sentidos, quando os excessosda desproporo so vistos ou de muito perto, ou de muito longe,

    aparecem tambm maiores ou menores do que efetivamente so.Assim, outra vez, se o observador puder ajustar sua distnciaconvenientemente, tambm ser capaz de abstrair tanto asdiminuies quanto os aumentos irreais da deformao. Nas palavrasde Trimpi, sua percepo fantstica da magnitude e intensidade dasgrandezas desproporcionadas se tornar uma percepo icstica da

    sua magnitude e intensidade relativas.17 Como na cabea de Palas

    feita por Fdias: vista de perto, a desproporo parece maior e oefeito cmico mais intenso, causando o riso dos juzes; vista sobrea coluna alta, de longe, a desproporo se proporciona, o fantsticose torna icstico e o afeto produzido pelo novo efeito agora demaravilhamento com a boa forma e com a engenhosidade do artifcio.Supondo-se que a pea fosse posta um pouco mais acima ou umpouco mais alm, de novo apareceria fantasticamente deformada.

    Logo, a desproporo fantstica pressupe, mimeticamente, oponto de vista icstico que a proporciona como desproporo: ela s

    fantstica como uma das sries da relao, ou seja, um efeito, ou umdiferencial. Esta relao objeto de uma arte das desproporesproporcionadas a cenografia, skenographia dos tratados de ptica.Reciclada no sculo XVII como agudeza, a desproporo proporcionadatambm se chama, nas palavras de Tesauro, inconvenincia conveniente

    16 PLATO. Le sophiste. 2. ed. Texte tabli et traduit par A. Dis. Paris: Belles Lettres,1950; Philbe. Texte tabli et traduit par A. Dis. Paris: Belles Lettres, 1949.17 TRIMPI, op. cit.

  • 7/23/2019 HANSEN, Joo Adolfo - Ut Pictura Poesis e Verossimilhana Na Doutrina Do Conceito No Sculo XVII Colonial

    11/21

    121Ut pictura poesise verossimilhana na doutrina doconceito no Sculo XVII colonial

    e despropsito proposital, como tcnica e efeito de contrafaco. Emseu Il Cannocchiale Aristotelico, ele mesmo aplica Retrica umdispositivo homlogo ao da alegoria da escultura de Fdias, quando a l

    atravs do instrumento ptico recentemente inventado por Galileu eaperfeioado na Holanda por ordem doStatholderMaurcio de Nassau, otelescpio. Com suas lentes, escreve, traz para perto do leitor o que est

    longe, torna maior o que pequeno, faz claro o que obscuro, vendovrias vezes o que Aristteles v uma s.18

    Pensando-se o ut pictura poesis cenograficamente, a relao deproporciona/desproporcional ou de icstico/fantstico implica no

    qualquer proximidade ou qualquer distanciamento, mas, sempre, acorreta distncia, a distncia exata, matematizada como commensuratio

    ou proportiono discurso antigo e nas letras do XVII, empenhadas emproduzir o fantstico como a maravilha que fa stupire, como dizMarino. A idia de correta distncia prescreve, por isso, nem o muitolonge, nem o muito perto, de um ponto fixo adequado a cada caso em

    cada gnero. a partir desse ponto fixo de observao encenado na

    obra que os dois eixos de perto/longe se interceptam e normalizam,produzindo-se a viso adequada em cada caso. Outra vez, como ocorrecom a cabea de Palas: vista de perto, deformada; vista de maislonge, tambm o ; logo, sua posio no alto da coluna um dostermos da relao da pea com o ponto de vista exato da observao.A alegoria de Tesauro tambm prope, desta maneira, que Fdias teriatido o cuidado prvio de calcular matematicamente a distncia entre a

    posio da cabea no alto da coluna e o ponto fixo para produzir oafeto de maravilhamento com o efeito deformante. Por isso, tambmteria calculado com exatido as espcies de efeitos deformados, como

    linhas, massas, volumes, sombreamentos, alturas, espessuras e largurasetc. Como escreve Tesauro, tinha o engenho mais agudo que o escalpelo o que tambm significa que, na alegoria, o engenho ordenado pelojuzo, que pondera a deformao.

    18 TESAURO, E. DellArgutezza et desuoi parti in generale. In: ______. Il CannocchialeAristotelico. 5. ed. Torino: Zavatta, 1670.

  • 7/23/2019 HANSEN, Joo Adolfo - Ut Pictura Poesis e Verossimilhana Na Doutrina Do Conceito No Sculo XVII Colonial

    12/21

    122 Joo Adolfo Hansen

    Quando se generaliza o procedimento, levando-se ao extremolimite o estilo cenogrfico de despropores proporcionadas, o objetoesculpido ou pintado deve ser observado de um ponto de vista calculado

    como construo de uma anamorfose, de que outro exemplo adequado,aqui, a tela de Holbein, Os Embaixadores. Nela, em primeiroplano, figura-se um espelho manchado, disposto diagonalmente sobre

    um tapete, ligando os ps do embaixador esquerda de quem olhacom um dos ps da mesa oculto pelo manto do outro, direita. Quandovista de um ponto calculado como distncia exata, a mancha do espelhose delineia como uma ntida caveira, figurando a morte bvia e o jogo

    infinito da representao. No caso dos discursos, o equivalente dadeformao plstica da pintura ou da escultura o acmulo de ornatos,que produzem a obscuridade ou que efetuam uma representaoestilisticamente no-unitria, como misto, ou uma disposio analtica,dividida e subdividida geometricamente como quiasmas, como ocorrenas letras coloniais ditas cultistas e conceptistas. Transposto aoextremo verbal como ornamentao e diviso, o estilo cenogrfico

    deve ser entendido como enigma ou alegoria fechada, tota allegoria,que exigem tambm o ponto fixo da hermenutica que os decifra. Nouso generalizado da agudeza ou ornato dialtico enigmticonas prticasletradas seiscentistas, prescreve-se um ponto fixo para que arepresentao seja justamente avaliada e fruda. Ele calculado, ento,segundo critrios da racionalidade de Corte que as anima, comoengenho, juzo, prudncia e discrio. Em El Sueo, de Sor Juana, o

    fechamento semntico do enunciado produz um destinatrio discreto,dotado de virtudes tico-polticas e de conhecimento retrico dasautoridades emuladas, como Gngora, que o tornam apto para entender

    a alegorizao programaticamente hermtica do poema.Wesley Trimpi refere o livro de Galileu, Considerazione al

    Tasso, que trata justamente desse estilo alegrico quando compara apoesia de Tasso com a de Ariosto. Conforme Galileu, as transies

    bruscas do estilo de Tasso, seus conceitos soltos, seus ornamentosagudamente hermticos, sua falta de coeso estilstica lembram uma

  • 7/23/2019 HANSEN, Joo Adolfo - Ut Pictura Poesis e Verossimilhana Na Doutrina Do Conceito No Sculo XVII Colonial

    13/21

    123Ut pictura poesise verossimilhana na doutrina doconceito no Sculo XVII colonial

    pintura trsia, associando-os com as tesserulae, ou pedrinhas demosaico, metaforizadas como lumina, luzes, por Ccero, Orat.,149, enquanto os versos de Ariosto vo dispondo os detalhes da

    narrativa um ao lado do outro, como as cores nitidamente separadasde uma tela. Conforme Galileu, o poema de Ariosto lembra umalonga galeria alta em que se dispem, em toda a extenso, obras de

    arte em espaos regulares, formando um todo unificado. O poemade Tasso, ao contrrio, oblquo e fantstico, parecendo, como propeWesley Trimpi com muita felicidade quando discute o texto, uma

    Kunst-und-Wunderkammer maneirista, ou uma saleta de maravilhas,

    repleta de curiosidades triviais individualizadas e isoladas, que devemser vistas uma a uma. Assim, se em Ariosto a poesia produzidacomo uma galeria de pinturas que o olho percorre linearmente, vendo-as com clareza e de uma vez, em Tasso cada mincia brilha naobscuridade da cmara para ofuscar o olho, que perde o sentido dotodo enquanto se detm e observa vrias vezes as partes19. Como em

    Tesauro, que agudamente escreve que a estrela da agudeza engenhosa

    evita a claridade onde perde a luz, exigindo a noite hermtica dosconceitos enigmticos para que seu brilho agudo passe sob o arco dotriunfo do clio do observador, tambm em El Sueoa metaforizaose fecha para evidenciar-se a agudeza do engenho que tenta superarGngora. Ou seja, o mesmo critrio de deformaes proporcionadasdo ut pictura regula as tcnicas metafricas da evidentiaretrica. Porexemplo, no gnero cmico aristotelicamente doutrinado, pintam-

    se tipos e caracteres como mistos incongruentes, uma vez que aspaixes no tm unidade por serem extremadas por falta ou por

    excesso, como Aristteles afirma na tica Nicomaquia. Trata-se,no caso especfico do cmico, de produzir imagens fantsticas einverossmeis que se tornam verossmeis e icsticas para representara no-unidade do vcio, o que ocorre quando so observadas a partir

    19 TRIMPI, Wesley The early metaphorical uses of SKIAGRAPHIA and SKENOGRAPHIA.In: ______. Traditio (Studies in ancient anda medieval history, thought and religion). NewYork: Fordham University Press, 1978, v. XXXIV, p. 412-413.

  • 7/23/2019 HANSEN, Joo Adolfo - Ut Pictura Poesis e Verossimilhana Na Doutrina Do Conceito No Sculo XVII Colonial

    14/21

    124 Joo Adolfo Hansen

    de um ponto fixo que, nas letras do sculo XVII, calculado comounidade virtuosa de sindrese,20 que inclui os motivos ticos, teolgicose polticos da racionalidade de Corte referida.

    Aplicando a antiga tcnica do retrato sistematizada no sculoXII por Geoffroy de Vinsauf, que consiste em traar a figura ridculasegundo um eixo imaginrio da cabea aos ps, recortando-lhe o corpo

    parte por parte, os poetas satricos seiscentistas, principalmenteCaviedes e Gregrio de Matos, produzem a fuso das partes do retratadocomo na indistino pictrica dos grylloide Bosch ou dos caprichosou

    hierglifosde algumas telas de Valds Leal: fazem um esboo rpido e

    grosseiro, sem nenhuma preocupao aparente com mincias dedesenho feito ponta de pluma ou pincel, modelando-o como seutilizassem um carvo grosso ou uma broxa, empastando as cores e aslinhas como um borro na efetuao muito esquemtica de caricaturas.Quando visto de perto pelas lentes de outros gneros, como o lrico, oesboo se apresenta malfeito e borrado; mas, compondo-se como visoa distncia pelo esquematismo dos traos, evidencia-se adequado ao

    tempo curto da recepo da rua que, no caso dos gneros baixos, noperde tempo com mincias, nem deseja conceituaes elaboradas. exemplar, como disse, a stira atribuda a Gregrio de Matos e Guerra,que a crtica brasileira, determinada por categorias romnticas queno consideram o ut pictura poesis horaciano, segue afirmando que mal realizada e estilisticamente tosca, quando comparada com a lricareligiosa e amorosa atribuda ao poeta.

    A stira gregoriana, no entanto, assim como a do peruanoCaviedes, realiza perfeio o esquema retrico prprio de um gnerobaixo, compondo o discurso como viso a distncia, clareza do esboo

    e uma s vez: nela, o efeito de mau acabamento programtico, comoaplicao de uma tcnica refinadissimamente precisa de produo de

    20Como centelha da conscincia, asindrese a presena da Lei natural na mente, aconselhandoo bem e vituperando o mal. No XVII, a noo relaciona-se com a doutrina do juzo e daprudncia, fundamentando asolrcia ou a sagacidade que especifica o tipo dodiscreto; tambma sindrese que evidencia, na forma exterior do decoro estilstico, as operaes ticas do juzo,como circumscriptio. Cf. SANTO TOMS DE AQUINO. Summa theologica, 2, I, 94, art.I, 2; 1 part., 79, art. XII.

  • 7/23/2019 HANSEN, Joo Adolfo - Ut Pictura Poesis e Verossimilhana Na Doutrina Do Conceito No Sculo XVII Colonial

    15/21

    125Ut pictura poesise verossimilhana na doutrina doconceito no Sculo XVII colonial

    inacabamento. No decorre de inpcia artstica do poeta, mas de totalaptido para fingir a inpcia dos traos, como contrafaco. Vejam-seexemplos em que a persona satrica se enuncia como pintor retratista,

    tambm enunciando com isso o ut pictura poesis:

    V de retrato Segundo pincel, la plumapor consoantes pintar pretende la ideaque eu sou Timantes con tinta, un originalde um nariz de Tucano a quien la tinta le adecua.ps de pato. En blanco quiero dejarPelo cabelo sus perfecciones, si aquestas

    comeo a obra, dan en el blanco, dejandoque o tempo sobra embebidas todas ellas.para pintar a giba Su pelo me est brindandodo camelo21 a la pintura y lo hiciera,pero el pelo su pellejo lo tiene adentro y no afuera.22

    Nos exemplos, as imagens caracterizadoras dos tipos pintadospelo pincel satrico so desproporcionadas, mistas e incongruentes,

    ferindo o preceito retrico da unidade verossmil da imitao.Ora, o mesmo Tesauro escreve, retomando antigo preceito, emIdea delle Perfette Imprese, que em muitas composies o poetafinge desprezar o decoro buscando a verossimilhana em metforasinverossmeis23. Como Aristteles, autoridade mxima da instituio,situa a perfeio dos discursos no efeito persuasivo, e como s se podepersuadir com o verossmil, e como ao verossmil repugna tudo quanto

    parea no-natural ou afetado, segue-se que a probabilidade nasce daconvenincia. Assim, reciclando o ut pictura poesis, Tesauro confirmaque a verossimilhana sistmica, aplicando-se como um diferencial:os mesmos vcios retricos de um gnero podem ser as virtudes deoutro, conforme a convenincia das inconvenincias. No caso do

    21GUERRA, Gregrio de Matos e. Obra Completa de Gregrio de Matos e Guerra(Crnicado Viver Baiano Seiscentista). Ed. James Amado. Salvador: Janana, 1968, 7 v., v. I, p. 219.22CAVIEDES, Juan del Valle y. Obra Completa.Edicin, prlogo, notas y cronologia Daniel

    R. Reedy. Caracas: Biblioteca Ayacucho, 1984, v. CVII, p. 259.23TESAURO, E. Che nellimpresa devesi guardar il decoro. In: ______. Idea delle PerfetteImprese (A cura di Maria Luisa Doglio). Firenze: Leo Olschki, 1975.

  • 7/23/2019 HANSEN, Joo Adolfo - Ut Pictura Poesis e Verossimilhana Na Doutrina Do Conceito No Sculo XVII Colonial

    16/21

    126 Joo Adolfo Hansen

    cmico, a formulao inverossmil apta para representar-se a no-unidade dos tipos vicioso e de suas aes desproporcionadas e vulgares.Logo, pela esquematizao incongruente das caricaturas, pela

    amplificao das paixes, pela monstruosidade dos mistos, o cmicodeforma, como imagem fantstica, a imagem icstica da opinio, demodo que seu destinatrio veja, nos efeitos, a contradio entre o

    conhecimento que tem dos opinveis das matrias figuradas endoxa

    retricos eeikonapoticos e a deformao com que so tratados. Nointervalo, evidencia-se para ele o ponto fixo da virtude donde o monstrodeve ser visto, como desproporo proporcionada a um fim: divertindo

    com a maravilha dos excessos, a representao simultaneamente ensinae move, pois captura a desproporo com a correo icstica, que aderea valores estabelecidos da opinio.

    Como disse, Tesauro repete a Retrica: nela, Aristtelescontrasta o estilo gil e imediatista dos debates pblicos orais, apreciadosa distncia nas grandes assemblias deliberativas, com o estilometiculosamente ornamental dos discursos epidticos, produzidos para

    serem analisados de perto, vrias vezes, obscuramente ou emparticular. Aristteles evidencia que existe uma distncia convenientepara a inveno e a elocuo de cada gnero; por exemplo, quandocompara a extenso de uma pea oratria, determinada pelo que amemria do ouvinte capaz de reter como unidade discursiva, com otamanho de um ser vivo que o olho apreende num relance. Assim, norudo e na movimentao da assemblia, o orador que aplique

    refinamentos estilsticos, como mincias ornamentais, ou quedesenvolva uma argumentao intrincada no seguido, nemapreciado.24No caso, o discurso deve ser genrico, desenvolvendo amatria em grandes traos, moda de um esboo rpido. O que tambmpode especificar o estilo de outros gneros, principalmente quando selembra sua destinao inicialmente oral: assim, o tema elevado dapica exige grandes traos caracterizadores de personagens e amplas

    aes; logo, pode ser menos trabalhado visualmente como24ARISTTELES. Retrica, 3, 9, 3, 140.

  • 7/23/2019 HANSEN, Joo Adolfo - Ut Pictura Poesis e Verossimilhana Na Doutrina Do Conceito No Sculo XVII Colonial

    17/21

    127Ut pictura poesise verossimilhana na doutrina doconceito no Sculo XVII colonial

    ornamentao descritiva. Como longo, o poema pico recitado oulido em voz alta exige distncia e plena claridade para a recepo e asminudncias descritivas contradizem essa destinao. J os temas

    familiares, tratados com meticulosidade, exigem exame de perto, vriasvezes. neste sentido, alis, que Horcio escreve que a comdia, porextrair seus temas da vida cotidiana, aparentemente exige menos

    trabalho, mas na verdade carrega um peso maior, pois a indulgnciapermitida ao autor pelo pblico menor.

    Levando em conta tais critrios, Tesauro afirma que s vezes sefinge desprezar o decoro para produzi-lo em outro grau de adequao.

    Por exemplo, se ao orador sacro esto vetadas a translao srdida eridcula, as hiprboles inchadas que evidenciam a arte, o muito agudo,distante e enigmtico, que obscurecem o discurso, e tambm o muitodoce e o ameno, que s divertem com a novidade das palavras, comose pode ler no sermo da Sexagsima, de Vieira. Nos panegricosouvidos ou lidos de perto as metforas devem ser mais freqentes eespirituosas que no sermo ou na oratria forense, pois o panegrico

    pressupe maior erudio e ostentao de engenho nos certames letradose dissertaes acadmicas e o caso da emulao do quinto sermodo Mandato, de Vieira, feita por Sor Juana segundo o gnero dacontrovrsia, cuja disputa acerca da maior fineza do amor tambmse acompanha da maior agudeza com que a freira mexicana emula ojesuta. Assim, tambm, na tragdia as metforas sero altivas emajestosas, pois falam personagens elevadas; na comdia, vis, devido

    baixeza das matrias; na lrica, mais inchadas; nos epigramas e motes,breves e agudssimas. E em muitas composies como versosfesceninos ou stiras finge-se o desprezo do decoro buscando-se a

    verossimilhana na pintura de mistos inverossmeis. Em todos os casos,o utpictura poesishoraciano o operador das convenincias dos efeitosdo estilo: implica uma doutrina da recepo.

    No sculo XVII colonial, principalmente em certos gneros de

    peas pequenas, como sonetos lricos e composies pastorais e elegacas,o ut pictura programa a obscuridade tendencialmente hermtica, que

  • 7/23/2019 HANSEN, Joo Adolfo - Ut Pictura Poesis e Verossimilhana Na Doutrina Do Conceito No Sculo XVII Colonial

    18/21

    128 Joo Adolfo Hansen

    exige exame de perto, repetidas vezes o que se esclarece comoprticahistricaquando se leva em conta que o destinatrio preferencialdramatizado nessas composies o corteso, agudo, discreto e

    prudente, capaz de entender a obscuridade programtica com oengenho que o diferencia hierarquicamente de um pblico vulgar,codificado institucionalmente como movido pela preferncia por

    outros gneros, de estilo familiar, baixo ou srdido. 25 A mesmaobscuridade hermtica inadequada, contudo, em gneros popularesedificantes, como o sermo sacro, que pressupe certo efeito deinacabamento que facilita seja ouvido uma nica vez, a distncia, e

    apreendido como um todo. neste sentido que Vieira, seguindo aslies de Gilio e Pallavicino,26 acusa os dominicanos rivais de nodeixarem em paz as palavras quando dispem o sermogeometricamente, como quem vai pondo azulejos, fazendo com quesua disposio se evidencie como um enorme quiasma. Oprocedimento tcnico da anlise dialtica das tpicas e da sua

    ornamentao retrica vem para a frente, enquanto a matria sagrada

    e sua argumentao vo para o fundo, como se explicita no sermoda Sexagsima. Pela geometrizao total do discurso, que se duplicana ornamentao agudamente hermtica, os dominicanos desnudamo artifcio e o efeito dessa radical clareza tcnica, segundo Vieira, obscurssimo. No excesso artificioso de desenho, v-se a ausncia daproporo teolgica dos efeitos. Tambm aqui opera o critrio da

    25

    exemplar o no para muchos fidalgo de Gngora: [...] Dems que honra me ha causadohacerme escuro a los ignorantes, que esa es la distincin de los hombres doctos, hablar demanera que a ellos les parezca griego [...]. GNGORA Y ARGOTE, Don Lus. Carta de donLus de Gngora, en respuesta de la que le escribieron. In: ARANCN, Ana Martnez (Selecinde textos). La Batalla en Torno a Gngora.Barcelona: Antoni Bosch Ed. S. A., 1978. p. 43.26Giovanni Andrea Gilio, em seu Due Dialogi (1564), adapta a retrica aristotlica s tesesde Trento sobre a arte quando, criticando o terrvel Michelangelo e a maniera, contrape fantasia do pintor poeta as formas icsticas do pintor historiador que, ao compor obrassacras, imita topoi da Escritura. Pallavicino parece retom-lo em seu tratado Arte delloStile, ove nel cercarsi lIdeal dello Scrivere Insegnativo(1647), quando critica as agudezasadaptando-as oratria sacra como instrumento do movere catlico. Neste sentido, tantoGilio quanto Pallavicino reduzem, em termos contrarreformados, o ut pictura poesis a umaespcie de ut theologia pictura ouut theologia poesis, lio repetida pela Companhia de Jesus

    tambm em seus colgios coloniais. Por exemplo, em Vieira, a caracterizao do estilo cultodos dominicanos rivais como escuro, negro, negro boal repe a reduo do ut picturapoesis, preceito estilstico, ao substancialismo da imitao da teologia.

  • 7/23/2019 HANSEN, Joo Adolfo - Ut Pictura Poesis e Verossimilhana Na Doutrina Do Conceito No Sculo XVII Colonial

    19/21

    129Ut pictura poesise verossimilhana na doutrina doconceito no Sculo XVII colonial

    proporo, como na escultura de Fdias, pois a evidncia do artifciofaz com que o ouvinte fique embasbacado com sua engenhosidade e,ao mesmo tempo, como diz Pallavicino,27 comece a desconfiar do

    efeito maravilhoso: decorre da sua prpria inteligncia ou dofingimento do orador? No intervalo da dvida, a persuaso diminui,destruindo-se a naturalidade especfica da proporo do mtodo

    escolstico de pregar. Como produto de um orador apenas poeta, oserno se desproporciona como espetculo teatral indecoroso para oplpito, que contrarreformado e por isso exige um oradorhistoriador, que pinte com teolgica proporo os casos da histria

    sacra. Por outras palavras, Vieira defende o desenho ntido e icsticoe critica a cor indefinida e fantstica, entendendo-a como apeloinverossmil da fantasia sem juzo. De modo algum contrrio cor, mas contra determinados graus da sua aplicao, que a fazemindiscreta ou indecorosa na actiodo sermo.

    A mesma concepo do ut pictura poesis como preceito dodecoro externo acha-se numa stira atribuda a Gregrio de Matos,

    em que a persona, compondo interlocutores discretos e vulgares,afirma-lhes que no utilizar o estilo agudo e fechado prprio degongricos, mas que ser vulgar, ou obscena. No caso, a obscenidade retoricamente decorosa, pois totalmente bvia, no necessitandode nenhuma interpretao, o que a faz prpria para ser entendida pordestinatrios vulgares na primeira vez em que ouvida ou lida:

    Cansado de vos pregar

    cultssimas profeciasquero das culteraniashoje o hbito enforcar:de que serve arrebentarpor quem de mim no tem mgoa?Verdades direi como gua

    27PALLAVICINO, Sforza.Arte dello Stile, ove nel cercarsi lIdeal dello Scrivere Insegnativo.Bologna: Giacomo Monti, 1647, cap. II, p. 18: [...] gli ornamenti delleloquenza tolgon la fedealla verit, e la rendono incerta; mentre il Lettore dubita, si la forza che sente farli allintelletto, derividallef icacia della raggione, dellartificio dello Scrittore; Perci, nelle sacre Lettere haver Dio volutouno stile semplice, e piano; col quale s convertito il mondo.

  • 7/23/2019 HANSEN, Joo Adolfo - Ut Pictura Poesis e Verossimilhana Na Doutrina Do Conceito No Sculo XVII Colonial

    20/21

    130 Joo Adolfo Hansen

    porque todos entendaisos ladinos, e os boais,a Musa praguejadora.Entendeis-me agora?28

    O poema tambm pode evidenciar que as famigeradascontradies psicolgicas, morais e ideolgicas de um Gregrio deMatos religiosssimo e padresco e simultaneamente obsceno elicenciosssimo, que assombram alguma crtica brasileira desde o sculo

    XIX, no decorrem necessariamente de uma psicologiaromanticamente pressuposta e construda como ressentida,

    pessimista, obnubilada, neurtica ou fora do lugar por meiode caracterizaes sempre circularmente extradas de personagens dastira e que se atribuem ao homem suposto, pois simplesmente noso contradies. Ao contrrio, so apenas resultados da aplicao dosdecoros retricos especficos de um gnero alto e de um gnero baixo,ordenados segundo o ut pictura poesis.

    Da mesma maneira, a desconsiderao desse critrio de regra

    sistmica do ut pictura nos estudos sobre as letras do XVII ibricocolonial faz com que ainda agora a morfologia de Wlfflin continuesendo aplicada aos discursos sem maiores mediaes, positivando-secomo oposio unvoca das duas generalidades estilsticas de Clssico/Barroco. A oposio, entendida sempre em termos romntico-expressivosde formalidade/informalidade, no leva em conta a ordenao retricados discursos seiscentistas, em nome de uma crtica da mesma como

    formalismo e outros anacronismos interessados. Logo, tambm noconsidera que os seus efeitos de informalidade nunca so informais,pois out pictura poesisregula o ponto fixo do juzo que lhes proporcionaa verossimilhana.

    O campo aberto para a aplicao do ut pictura poesis no XVII

    colonial difuso e aparece rotineiramente como apenas pedante ecasusta, o que por vezes efetivamente . Mas nunca confuso para

    autores e pblico seiscentistas, ainda que o seja bastante hoje, quando28 GUERRA, op. cit., v. II, p. 472.

  • 7/23/2019 HANSEN, Joo Adolfo - Ut Pictura Poesis e Verossimilhana Na Doutrina Do Conceito No Sculo XVII Colonial

    21/21

    131Ut pictura poesise verossimilhana na doutrina doconceito no Sculo XVII colonial

    outras concepes entendem a poesia como unidade orgnica do sentidoou fragmento alegrico de totalizao utpica e, j agora, em temposde anacronismo ps-moderno, como racionalidade cnica de estilizao

    ecltica. Neste sentido, a doutrina horaciana dout pictura poesisainda um futuro para uma historiografia literria que se disponha a abandonaros juzos moralistas de gosto de classificaes morfolgicas exteriores

    e no dissocie a representao colonial de sua prtica teolgico-retrica.

    So Paulo, agosto de 1994.