habitação de interesse social e megacidades: o caso de mumbai

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1 Autores: Camilla M. Sumi; Dr. Leandro Medrano. HABITAÇÃO DE INTERESSE SOCIAL E MEGACIDADES: O CASO DE MUMBAI RESUMO As cidades abrigam hoje mais da metade da população mundial, este fenômeno traduzido pela remodelação do espaço urbano conhecido por megacidade impacta de diferentes formas nas mais diversas partes do mundo. Os países em desenvolvimento, em sua maioria, apresentam uma urbanização em grande parte decorrente do desequilíbrio social. A Índia, segundo país mais populoso do mundo, é uma amostra desta realidade, e a questão da habitação há tempos é um problema grave do seu território urbanizado. É notório o caso da cidade de Mumbai, cujo déficit de moradias formais e um número elevado de autoconstruções, proporcionam uma grande quantidade de assentamentos precários. Dharavi, implantada no coração da capital financeira da Índia, tem sido alvo das medidas paliativas governamentais. Assim, através da literatura coletada, o artigo pretende expor os fatores, dados, tempo histórico, entre outros, que designam a atual situação habitacional desse país emergente, com destaque para favela de Dharavi. Seu conteúdo soma-se a outras pesquisas relacionadas às megacidades dos BRICs em desenvolvimento no Laboratório de Estudos em Arquitetura Contemporânea (LEAC) da Universidade Estadual de Campinas. ABSTRACT Cities now house more than half the world's population, this phenomenon translated by remodeling of urban space known megacity impacts of different

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Page 1: habitação de interesse social e megacidades: o caso de mumbai

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Autores: Camilla M. Sumi; Dr. Leandro Medrano.

HABITAÇÃO DE INTERESSE SOCIAL E MEGACIDADES:

O CASO DE MUMBAI

RESUMO

As cidades abrigam hoje mais da metade da população mundial, este

fenômeno traduzido pela remodelação do espaço urbano conhecido por

megacidade impacta de diferentes formas nas mais diversas partes do mundo.

Os países em desenvolvimento, em sua maioria, apresentam uma urbanização

em grande parte decorrente do desequilíbrio social. A Índia, segundo país mais

populoso do mundo, é uma amostra desta realidade, e a questão da habitação

há tempos é um problema grave do seu território urbanizado. É notório o caso

da cidade de Mumbai, cujo déficit de moradias formais e um número elevado

de autoconstruções, proporcionam uma grande quantidade de assentamentos

precários. Dharavi, implantada no coração da capital financeira da Índia, tem

sido alvo das medidas paliativas governamentais. Assim, através da literatura

coletada, o artigo pretende expor os fatores, dados, tempo histórico, entre

outros, que designam a atual situação habitacional desse país emergente, com

destaque para favela de Dharavi. Seu conteúdo soma-se a outras pesquisas

relacionadas às megacidades dos BRICs em desenvolvimento no Laboratório

de Estudos em Arquitetura Contemporânea (LEAC) da Universidade Estadual

de Campinas.

ABSTRACT

Cities now house more than half the world's population, this phenomenon

translated by remodeling of urban space known megacity impacts of different

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forms in various parts of the world. Developing countries, most of them have an

urbanization largely due to social imbalance. India, the second most populous

country in the world, is a sample of this reality, and the issue of housing has

long been a serious problem of its urbanized area. It is notorious the case of the

city of Mumbai, whose formal housing deficit and a large number of

autoconstruções, provide a large amount of settlements. Dharavi, implanted in

the heart of India's financial capital, has been the target of government

countermeasures. Thus, collected through literature, the article intends to

expose the factors, data, historical time, among others, that describe the current

housing situation of emerging country, especially in the Dharavi slum. It's

content adds to other research related to megacities in the developing BRIC

Laboratory Studies in Contemporary Architecture (LEAC) of Universidade

Estadual de Campinas.

BREVE RELATO DA ORGANIZAÇÃO ESPACIAL NOS PAÍSES

EMERGENTES

Desde a antiguidade o homem desenvolve técnicas e tecnologias para se

apropriar do espaço, infelizmente, esse processo não ocorre de maneira

equitativa, o que se reproduz em diferentes realidades. Isso não acontece

somente devido à variabilidade cultural, mas também por causa das

desigualdades e precárias condições de vida em que alguns povos vivem.

E a tendência da planificação cultural/econômica, isto é, a propagação de um

estilo de vida global, não atinge com a mesma intensidade os países em

desenvolvimento, pois a construção do espaço nas cidades desses países,

segundo Milton Santos, é fruto de uma organização baseada em interesses

distantes, numa escala internacional com diferentes níveis de impacto, acesso

e propriedades, levando a uma espacialidade seletiva.

"Enfim, o espaço dos países subdesenvolvidos é marcado pelas enormes

diferenças de renda na sociedade, que se exprimem, no nível regional, por uma

tendência à hierarquização das atividades e, na escala do lugar, pela

coexistência de atividades da mesma natureza, mas de níveis diferentes."

(SANTOS, 2008)

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A Índia é um dos países emergentes que compõem o BRICS (juntamente com

Brasil, Rússia, China, e, recentemente inserida ao bloco, África do Sul), termo

criado pela Goldman Sachs, que designa uma situação econômica e de

desenvolvimento comuns a esses territórios. Esses países buscam um lugar no

cenário político internacional e sofrem o impacto da recente "modernização"

dos mecanismos produtivos, abertura do mercado financeiro mundial,

transformações políticas internas, dentre outros processos afins da nova

conjuntura político-econômica.

Diferentemente do processo de industrialização ocorrido no século XVIII em

países considerados hoje desenvolvidos, os países do BRICS tiveram tal

estrutura imposta abruptamente. Há um salto de muitas etapas deste processo

de industrialização que envolviam a discussão política e a disputa por valores

de igualdade através da resistência dos movimentos sociais.

A ruptura do mundo rural para o urbano e o desejo de "progresso" são

testemunhados pela invasão da pobreza nos grandes centros urbanos, as

péssimas condições de vida, a falta de emprego, ausência de moradias,

educação, saúde, entre as muitas deficiências causadas por um Estado fraco

submetido aos interesses privados.

Dessa forma, a reprodução do espaço é modelada segundo as forças

econômicas, cuja arquitetura subordinada às engrenagens do capital muitas

vezes perde seu caráter único, tornando-se massificada. Processos como o de

gentrificação são sintomas dessa forma de ocupação injusta do espaço.

PROCESSOS QUE PROPORCIONARAM O CRESCIMENTO

POPULACIONAL NA CIDADE DE MUMBAI

As cidades metropolitanas da Índia experimentaram uma rápida explosão

populacional ocorrida após a independência do país em 1947. Vários autores,

entre eles, Chalana, Alaton e Dupont1, concordam que este crescimento está

associado aos efeitos do êxodo rural e das migrações ocorridas por refugiados

do Paquistão.

1 "Au lendemain de l'indépendance de l'Inde (1947), dans le contexte d'une capitale soumise à

de très fortes pressions démographiques et foncières suite à l'afflux des réfugiés du Pakistan occidental, voyant proliférer bidonvilles et lotissements illégaux, la question des slums est perçue comme un problème majeur." (DUPONT, 2007 p.52)

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Tal advento deve-se às aberturas política e econômica do país, a introdução

de indústrias, a falta de suporte à produção agrária, a propagação do espírito

de vida urbano, entre outros fatores. Além disso, até 1950 apenas algumas

cidades levavam o título que hoje conhecemos por megacidade - um enorme

contingente populacional nos centros urbanos já consolidados historicamente,

ora por sua densa demografia, ora por sua influência econômica - a partir de

então, é notada uma aceleração no crescimento urbano de países

considerados há tempos o "Terceiro Mundo". O quadro abaixo, de título

Emergence of Mega Cites, mostra três períodos referentes à distribuição da

população nas megacidades e uma projeção desses dados para 2015.

Fonte: Artigo The 21st Century: Asia Becomes Urban (Jan. 2005)

Mumbai, também considerada uma megacidade (sendo uma das mais

populosas do mundo, com uma densidade populacional de cerca de 272

hab./he em áreas legais e até 1200hab./he em determinadas favelas), é duas

vezes mais densa que New York, e transforma-se rapidamente a cada dia para

atender às necessidades do mercado financeiro.

Segundo Dupont e Yatzimirsky, Mumbai, a capital do Estado de Maharashtra,

deve seu rápido crescimento a indústrias manufatureiras que acabaram por

atrair a mão de obra migrante de toda Índia. No entanto,

"o efeito do fluxo migratório foi diminuindo a partir dos anos 1980, na medida

em que a cidade foi se transformando de metrópole industrial para um centro

financeiro e de serviços. A expansão espacial de Mumbai foi refreada por

restrições geomorfológicas e ecológicas. Essa ilha-cidade não tem

possibilidade de expandir-se, a não ser em direção ao lado norte, e está

fortemente congestionada(...) Sua faixa costeira, ocupada por mangues, é

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classificada como zona de não desenvolvimento (NDZ), e sua vasta floresta

urbana é um Parque Nacional protegido." (SAGLIO-YATZIMIRSKY; DUPONT,

2009 p.284).

Estas limitações geográficas (Mumbai é uma cidade - ilha com poucas ligações

de trânsito ao continente), proporcionaram, de certa forma, a especulação

imobiliária e consequente disputas por terras. (WEINSTEIN, 2008) Com a

apropriação do espaço desigual e seletiva, cresce o surgimento de áreas

consideradas informais, cujo conceito de humanidade e o direito à habitação

são anulados.

A URBANIZAÇÃO | DICOTOMIA URBANO VERSUS RURAL

Conforme mencionado anteriormente, Mumbai passou rapidamente de uma

cidade industrial para uma cidade financeira, marcada pela presença de

empresas multinacionais e pela criação de Center Business Districtis (CBD), a

partir da década de 1960.

No período colonial, segundo o excerto de Grant e Nijman, a organização

espacial da cidade estava voltada para sua bordas, ou seja, para as regiões

portuárias, facilitando o fluxo de mercadorias entre a Inglaterra e Bombay

(assim chamada até a segunda metade do século XX), e a conexão com o

interior era feita através da ligação ferroviária.

Havia também, ao lado do porto, uma área empresarial européia designada à

empresas estrangeiras, tal região possuía mercados tradicionais ou bazares,

por vezes referidos como "cidade cor", pois compreendia atividades comerciais

com produtos agrícolas e artesanais misturados aos das pequenas indústrias.

Ainda na leitura de Grant e Nijman, nota-se uma segregação espacial entre

estes comerciantes, e a ascensão do empreendedor nacional. Os mapas a

seguir mostram a distribuição espacial dos principais atores do espaço urbano

em dois tempos, um da época colonial (01) e o outro após a introdução do

neoliberalismo (02):

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Fonte: Globalization and the Corporate Geography of Cities in the Less-Developed World. (Jun. 2002)

Através dessas aberturas política e econômica, Mumbai, teve seu espaço

urbano alterado, atenuando-se as disparidades socioeconômicas presentes.

Atualmente, a modelagem da urbes é feita a partir dos impasses do mercado

financeiro e composta pela pobreza agrária, esta é atraída por oportunidades

de emprego e uma melhor condição de vida , como Jessie M. Hohmann

discute:

"As an important port and India's financial and trade capital, Mumbai has long

been a lure for migrants. They are drawn to the city by its glitter and possibility,

while crushing rural poverty pushes many to seek a new life in the metropolis.

As a result, the "pace and sheer scale" of urbanization has overwhelmed

Mumbai's infrastructure and its political organs." (HOHMANN, 2010 p.138)

Entretanto, a dicotomia do rural e urbano, há tempos presente na literatura, é

decorrida sob diversas perspectiva. Para Mike Davis, as principais cidades dos

países em desenvolvimento não oferecem empregos ao homem do campo,

mas sim reproduzem o quadro de pobreza no processo de urbanização:

"As cidades, apesar do crescimento econômico estagnado ou negativo e sem o

necessário investimento em nova infra-estrutura, instalações educacionais e

sistemas de saúde pública, simplesmente colheram o produto da crise agrária

mundial. Em vez do estereótipo clássico do uso intensivo de mão-de-obra no

campo e uso intensivo do capital na metrópole industrial, o Terceiro Mundo

apresenta hoje muitos exemplos de campo com uso intensivo de capital e

cidades desindustrializadas com uso intensivo de mão-de-obra. A

'superurbanização', em outras palavras, é impulsionada pela reprodução da

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pobreza, não pela oferta de empregos. Essa é apenas uma das várias descidas

inesperadas para as quais a ordem mundial neoliberal vem direcionando o

futuro." (DAVIS, 2006 p.26)

Ambas as discussões explicitam, que o homem da segunda metade do século

XX, ou seja, o homem do campo de países hoje em desenvolvimento,

acreditava na chance da vida citadina (maiores ofertas de emprego e melhores

condições de vida), entretanto, o despreparo do Estado proporcionou uma

urbanização elitista, isto é, uma ocupação segregativa com resultados mais do

que esperados: o aumento da pobreza urbana. Além disso, Davis nos lembra

que com a crise agrária/mecanização do campo nos países em

desenvolvimento, levou a uma inversão da clássica ideia dicotômica: rural

versus urbano, aonde o capital produzido na cidade desindustrializada, aquela

incorporada ao mercado global, é aplicado no campo (agroindústria). Nesse

sentido, os países emergentes, antes com sua base econômica voltada quase

que totalmente para produção agrária, de certa forma, permanecem

dependentes desse setor.

O inchaço das cidades nestes países, como a própria Mumbai, proporciona a

divisão desregular do solo. A urbanização nesses territórios, então, é realizada

pelas autoridades do desenvolvimento urbano a partir da instalação de

infraestrutura moderna na parte mais abastada da cidade em detrimento das

áreas de pobreza, com a intenção de conectar-se à cibereconomia mundial.

Ademais, há uma concordância entre os estudiosos, que estas cidades, em

relação a moradia pública, beneficiaram principalmente as classes média e as

elites. Nandini Gooptu traça as políticas favoráveis aos pobres no tempo de

Gandhi em seu adverso:

"Finalmente, o conceito grandioso de transformação urbana foi desbastado e

domesticado para atender os interesses imediatos das classes proprietárias.

Em vez de se desdobrar em projetos idealistas de regeneração social, os

sistemas de planejamento das cidades evoluíram como avenidas para

promover os interesses e aspirações dos proprietários e como instrumento da

crescente marginalização dos pobres." (GOOPTU, 2003)

Os moradores de Mumbai convivem lado a lado com a problemática da terra e

a falta de habitação. A cidade possui o lastimoso recorde de ter mais da

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metade da população abrigada em favelas2. São áreas insalubres com

moradias frequentemente construídas em locais de risco ambiental,

desprovidas de qualquer infraestrutura urbana.

A contenção da proliferação de ocupações informais3 é realizada pela

Autoridade para o Desenvolvimento da Região Metropolitana de Mumbai

(MMRDA), sob a jurisdição do governo de Maharashtra, e a Autoridade para o

Desenvolvimento da Área e Habitação de Maharashtra (MHADA).

Em linhas gerais, as atitudes governamentais foram realizadas em três etapas,

como descreve Dupont:

“Face à l'ampleur et à la persistance des slums, les pouvoirs publics ont mis en

ceuvre différents types d'intervention a posteriori: destruction avec - ou sans -

réinstallation, fourniture de services de base dans le cadre de programmes anti-

pauvreté, réhabilitation in situ. Ces trois grands types de politique peuvent

relever de différents niveaux d 'initiative - du gouvernement central, des États

ou des villes - et mobiliser divers types de financements - subventions

publiques, prêt, aide d'agences internationales, participation du secteur privé,

contribution des bénéficiaires - selon des combinaisons variées qui ont évolué

dans le temps.” (DUPONT, 2007 p.52)

Entretanto, os principais agentes são movidos por interesses econômicos,

efeito das relações ambíguas - público versus privado - as políticas adotadas a

respeito das favelas são constantemente impedidas de atuarem nesse cenário.

Fadados ao fracasso, os moradores reais são cada vez mais marginalizados e

expostos à batalha de restrições jurídicas e à pressão do mercado imobiliário.

2 “As autoridades de Mumbai elencam três tipos de slums: os zopadpatti ou jhopad pattis, os

chawls e os Patra-chawis (DUPONT & SAGLIO-YATSIMIRSKY, 2008). Não podemos desprezar o fato de que os pavements dwellers (moradores de rua) não são levados em conta no recenseamento da população das favelas, embora suas condições de vida sejam igualmente precárias.” (CHARLOTTE BELLE, 2009). Ainda sobre as condições dos moradores de rua: “O estereótipo tradicional do morador de rua indiano é o camponês que perdeu tudo, recém-chegado do interior, que sobrevive na mendicância parasitária, mas, como revelou a pesquisa em Mumbai, quase todos (97%) têm pelo menos um ganha-pão, 70% estão na cidade há pelo menos seis anos e um terço foi despejado de algum cortiço ou chawl. Na verdade, muitos moradores de rua são simplesmente trabalhadores – condutores de riquixá, operários da construção civil e carregadores do mercado -, forçados por causa do emprego a morar no caríssimo coração da metrópole.” (DAVIS, 2006 p.46). 3 “O déficit habitacional anual estimado de Mumbai de 45 mil unidades no setor formal traduz-

se em um aumento correspondente de moradias informais nas favelas.” (DAVIS, 2006 p.28).

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Voltando a Hohmann, "It is tempting to say Mumbai is a city defined by slums,

but the word slum is misleading in two ways. First, as discussed in greater detail

below, not all of those who lack adequate housing in Mumbai live in slums -

there are other forms of informal or illegal settlement, and other gradations of

homelessness, that define the lives of Mumbai's inhabitants. Second, the word

slum connotes physical squalor, social dysfunction and economic stagnation.

These stereotypes are often inappropriate to describe the homes and

neighborhoods of informal settlers in the city, Mumbai's informal settlements are

instead to the functioning of the city, but contribute cultural, economic, and

social vibrancy to it." (HOHMANN, 2010 p.139)

O julgamento mais comum que fazemos sobre a cidade indiana é descrevê-la

como um enorme abrigo de favelas, o que não é adequado na maioria das

vezes, dado que o espaço urbano é composto por ocupações informais desde

a época colonial, moradores sem teto, assentamentos, entre outras formas.

Dupont e Yatzimirsky elencam duas categorias de slum (favela). A primeira,

aquela definida pela lei de 1956 sobre as Áreas Faveladas (lei pioneira e de

referência), descreve as habitações antigas e degradadas, ou até mesmo como

Hohmann nos fala, as moradias da época colonial, e, que não estão

regularizadas legalmente por locatários ou proprietários. A segunda categoria

refere-se a estruturas autofabricadas, barracos amontoados e insalubres

conhecidos por jhopad patties, em geral, são terras ocupadas ilegalmente.

Exemplo da primeira forma de ocupação: moradores da colônia do oleiro de Kumbharwada (Dharavi), os mesmos foram realocados pelo governo. Fonte: Mumbai Dharavi - Scenarios for Development. Columbia University Graduate School of Architecture, Planning and Preservation Master in Architecture and Urban Design, 2009 p.7.

DESENVOLVIMENTO DE SLUMS: O CASO DE DHARAVI

A invasão de terras desocupadas e o aumento de moradias precárias são as

únicas opções para os pobres da área urbana, já que não há oportunidades no

setor formal.

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Dharavi, integrante da paisagem urbana de Mumbai, está entre as favelas mais

famosas do mundo, e tal importância deve- se ao fato da mesma abrigar mais

de um milhão de pessoas de diferentes grupos étnicos e nômades de todo o

país em um lugar aparentemente sem esperanças, que consegue manter uma

certa estabilidade econômica e produtiva.

Muitos estudiosos a descrevem como uma cidade à parte, o que Brugmann

classifica como citysystem. Na leitura de Alaton Salem,

"Brugmann describes a highly concentrated economic leverage with low

transportation costs, high mixed use of poverty, mutually beneficial association

among inhabitants and the proximity of manufacturers to suppliers and

specialized production concentrated in individual neighbourhoods. While the

compressed circusntances of life in Dharavi may continue to resemble those of

an extend slum, Brugmann finds something entirely remarkable here, a city built

by migrants that has 'achieved the most advanced pratice of urbanism: the

design, construction, and evolution of what i call citysystem'." (SALEM, 2009

p.8)

Isto é, a mistura social da forma que se reproduz, aquela compacta, resultou na

prática avançada do urbanismo. Em meio a morfologia labiríntica, as

construções em Dharavi são mais do que simples abrigos para as famílias, são

também espaços de produção, o alimento que sustenta a cidade formal. Outros

autores como Jim Masselos também atestam a dinâmica dessa favela:

“Larger slums may be noted for their productive energy as the location for

significant economic activity. Among such is Dharavi, often described as India's

largest slum: in the nineteenth century, while it was still well away from major

areas of habitation, it was where the tanneries were located. Since then it has

been surrounded by suburbs but retains a spatial identity of its own. The slum

has continued to produce and tool leather, but a range of cottage industries

make a variety of other goods, including even surgical catgut.” (MASSELOS,

2005, p.111)

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Primeira foto mostra o cotidiano dos moradores de Dharavi, a segunda, os arranhas céus,

marco do desenvolvimento financeiro da cidade e parte do entorno da mesma favela. Fonte:

Mumbai Dharavi - Scenarios for Development. Columbia University Graduate School of

Architecture, Planning and Preservation Master in Architecture and Urban Design, 2009 p.10-

11.

Assim, a maior parte da literatura encontrada pretende compreender esse

território diversificado que é Dharavi. Ademais a mesma adquiriu com o tempo

uma identidade espacial única: um território vizinho a arranha-céus de preços

estratosféricos que tornou- se área de interesse e disputa entre as empresas

do setor privado.

PRINCIPAIS POLÍTICAS PÚBLICAS ADOTADAS EM RELAÇÃO A

MORADIA

No ano de 1948, foi elaborado pela Bombay Municipality, prefeitura municipal

de Mumbai, ainda chamada de Bombay, o Master Plan for Greater Bombay4, o

qual previa a apropriação dos terrenos invadidos (slum clearance - limpeza das

favelas) para liberar mais espaços destinados a construção de moradias aos

slum dwellers (moradores da favela), isto é, consistia em um programa de

embelezamento da cidade. Entretanto, a paralisação dos aluguéis e o controle

de residências em locação, realizados pelo governo de Maharashtra (1947),

causou ainda mais a propagação de moradias precárias e insalubres.

Nos anos 1960 há uma explosão na falta de habitação e a disparidade social. A

políticas adotadas então, são voltadas para construção de moradias populares.

É sancionada pela Parlamento a Slum Area (Improvment and Clearance) Act,

lei urbana que colocou no mesmo patamar favelas e bairros pobres afim de

4 Refere-se a cidade de Bombay, não a Região Metropolitana de Bombay;

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melhorar as moradias degradadas junto ao Development Plan for Greater

Bombay. Os terrenos ocupados, segundo Charlotte Belle,

"aparecem como bolsões de pobreza no coração da cidade moderna, e tornou-

se conveniente inseri-los na malha urbana, erradicando-os ou reformando-os.

O plano de desenvolvimento identificou apenas as favelas da city (microcentro).

Para justificar essa omissão, o relatório evocou o aspecto muito precário dos

barracos e da população totalmente 'vagabunda'. Essa posição mostrou,

claramente, que, no que diz respeito às decisões públicas, a parte insular de

Bombay permaneceu sempre desconectada de sua periferia em expansão. A

ponta da ilha gozando de uma atenção pública especial. Os espaços

degradados prejudicaram o aspecto 'cidade moderna' de Bombay. O Slum

Improvment Programme (SIP) foi então lançado em ação conjunta, pelas

autoridades municipais e pelo Estado do Maharashtra, com a missão de levar a

esses terrenos as infraestruturas de base (água, estradas, drenagem e

eletricidade...)." (CHARLOTTE BELLE, 2009 p.226)

Já em 1971, o governo do Maharashtra foi designado aos programas de

remoção das zonas ocupadas (Maharashtra Slum Areas Improvement,

Clearance and Redevelopment Act), o que não foi possível devido a falta de

recursos financeiros e espaciais. Contemporaneamente a este programa o

Estado permitiu a reabilitação de prédios antigos (Mumbai Repairs and

Reconstructions Programme, 1960).

A cidade indiana, então, começa a se urbanizar e a valorizar o quadro da

moradia social. Forma-se o desejo de desenvolvimento em escala

metropolitana, e não é à toa que foi elaborado o Regional Plan for Bombay

Metropolitan Region e os instrumentos legislativos (Urban Land (Ceiling &

Regulation) Act) e urbanísticos (Hut Renovation Schemes), ambos pretendiam

oferecer à população desabrigada recursos para obtenção de terra e moradias

legais através dos planos de urbanização. Nesse período há também a

parceria com o Banco Mundial frente ao projeto Bombay Urban Development

Project, relevando a regularização dos terrenos e a providência de

infraestrutura para as favelas. Esse sociedade motivou dois programas: Slum

Upgradation Programme (SUP) e Low Income group Shelter Programme (Lisp).

Aquele "introduziu a noção de propriedade da terra às cooperativas de slums

dwellers instaladas nos terrenos de Bombay Municipal Corporation e do

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governo do Maharashtra, uma concessão de trinta anos, passível de

renovação, sobre bens imobiliários." (CHARLOTTE BELLE, 2009). Este

autorizou o governo do Maharashtra a distribuir lotes às famílias pobres.

Contudo, a liberação de 20 milhões de dólares para a melhoria da condição de

vida dos favelados, não foi suficiente, impedindo a realização de tais

programas. Até porque as ações foram questionadas tanto na esfera pública

quanto privada, pois estes agentes dividiam o mercado imobiliário.

Essa parceria, público-privado, comum ao nosso tempo, beneficiou

principalmente os agentes privados em detrimento das ações estatais. Por

exemplo, o Regional Plan for Mumbai Metropolitan Region (1996 - ) produzido

por Mumbai Metropolitan Regional Development Authority (MMRDA) conta com

a participação destes agentes e também com medidas fundiárias (Transfer of

Development Rights) e imobiliárias, fornecendo infraestrutura necessária para

o Estado continuar a manter tais territórios, como por exemplo, o recém projeto

Clean Mumbai, o qual proveu infraestruturas sanitárias básicas à algumas

favelas.

Em linhas gerais, as medida públicas ao todo não suprem o quadro de miséria

em que se encontra a cidade de Mumbai, por isso, algumas instituições,

empresas e outros, têm elaborado estudos, pesquisas e habitações

emergenciais, por exemplo, o projeto de moradias emergenciais desenvolvidas

pela Columbia University, além disso, há também participação de ONGs como

SPARC (The Society for the Promotion of Area Resource Centers). Esta,

formada em 1984, iniciou suas atividades sociais com moradores de rua, e hoje

atendem uma grande demanda da população de Mumbai e outras cidades

indianas juntamente com a organização nacional de grupos comunitários das

favelas ou assentamentos informais, mais conhecido por National Slum

Dwellers Federation.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como o arquiteto Charles Correa explicita:

"[Many low income housing projects] perceive housing as a simplistic problem

of trying to pile up as many dwelling units as many boxes as possible on a given

sites, without any concern for the other spaces involved in the hierarchy. Result:

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the desperate effort of the poor to try and live in a context totally unrelated to

their needs - a state of affairs not only inhuman, but uneconomic as well."

Os problemas habitacionais enfrentados por Mumbai, assim como em outras

cidades dos países em desenvolvimento, estão para além da simples produção

de moradias. Há um processo histórico socioeconômico que necessita de

atenção das entidades governamentais e da sociedade, visto que os

programas encontrados na literatura internacional mostram-se, em sua maioria,

fracassados.

Ademais, a construção da imagem de favelas como Dharavi, conhecidas

internacionalmente, é importante do ponto de vista do capital para a promoção

da cidade, isto é, como a cidade é reificada. E Dharavi se difere das demais do

mundo emergente, porque, gera uma produção econômica que sustenta a

cidade formal. Daí o interesse do governo em manter certos pontos de

pobreza. Nas palavras de Jessie Hohmann:

"What is clear, even impressionistically, is that the city of Mumbai cannot

function without its informal sector. The informal sector is itself more than half

the city. But at the same time a full life is not afforded to these citizens and they

are pushed to the margins, both literally and metaphorically." (HOHMANN, 2010

p.144)

Além disso, da mesma literatura, compreende-se que a questão habitacional

atualmente, na cidade de Mumbai, é tratada com parcerias público-privado e de

forma imediatista, ou seja, na maioria das vezes, as ações desenvolvidas são

de caráter emergencial. Os resultados obtidos com a interpretação e análise da

revisão bibliográfica, atentam para diversificadas opções de estudos sobre a

questão habitacional: não somente planos governamentais, mas também ações

e iniciativas paralelas aos mesmos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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drawn from some of the world's poorest communities. Canada: Review Canada,

Dezembro de 2009.

CORREA, Charles. Urban Housing in the Third World: The Role of the

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Page 15: habitação de interesse social e megacidades: o caso de mumbai

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CHARLOTTE BELLE, MARIE. Processos de megapolização – São Paulo e

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Medina);

DUPONT, Véronique. La place des slums in Urbanisme Revue, Paris, 2007 - nº

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GOOPTU, Nandini. The politics of the Urban Poor in Early Twentieth Century

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