habermas. a constelação pós-nacional, ensaios políticos

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  • 5/11/2018 HABERMAS. A Constelao Ps-Nacional, ensaios polticos

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    J lirgen Habermas

    A constelacaop6s-nacionalEnsaios politicos

    Traducao deMarcie Seligmann-Silva

    ~ J Littera~..,., M UN D I

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    Copyright Suhrkamp VerlagTitulo original:

    Die postnationa/e Konstellation: Po/itischeEssaysTraducao:

    Mareio Se/igmann-SilvaCoordenacao editorial:

    DirceuA. Scali Jr.

    _ ,IndiceRevisao:

    Ana M. BarbosaIrene Hikichi

    Introducao 1Capa:

    Doug/as LucasCornposicao eletronica:

    A. C. PinheiroI . Acerca do contexto nacional

    Dados Internacionais de Catalogaliao na Pubficacdo (CIP)(ea-mara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

    Habermas, jurgen, 1929-A constelacao pos-nacional : ensaios politicos I

    Jiirgen Habermas ; rraducao de Marcie Seligmann-Silva.-- Sao Paulo: Lit tera Mundi, 2001.

    1.0 que e urn povo?Acerca da autocompreensao das Ciencias Hurnanasno pre-marco 7

    2. Sobre 0ernprego publico da Hist6ria 37ISBN 8587492071

    003793 CDD320m

    II. A consteladio pos-nacional. Democracia 2. Estado nacional 3. Polirica _Filosofia 4. Politica mundial I.Titulo.

    NlI.de caralogo: 4007

    3. Aprender com as catastrofes?Urn olhar diagn6stico retrospectivosobre 0 breve seculo XX 534. A constelacao p6s-nacionale 0 futuro da dernocracia 75

    5. Acerca da legitimacao com base nosDireitos Hurnanos 143

    indice para catalogo sistematico1. Pol it ic a :

    Filosofia 320.01

    Todos os d ir ei to s des ta edi cao reservados aAugusto Laranja Editorial e Difusao Cultural Ltda.

    AI. dos Pamaris, 17104086-020 - Sao Paulo - SP

    Telefones: (OXX 11) 543-7299 I 5561-5306Fax: (OXXII) 5561-5306

    E-mail: [email protected]

    III. Acerca da autocompreensiio da Modernidade6. Concepcoes da Modernidade.Urn olhar retrospectivo sobre duas tradicoes 167

    mailto:[email protected]:[email protected]
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    7. Os diferentes ritmos da filosofia e da polftica.Nos cern anos de nascimento de Herbert Marcuse ..... 199

    IV. Um argumento contra clonar pessoasTres replicas

    Introducao8. Escravidao genetica?Fronteiras morais dos progressos damedicina da reproducao 209

    9. Nao e a natureza que proibe clonar.Nos mesmos devemos decidir 213

    10. A pessoa clonada nao seria urn casode dano ao direito civil.. 217

    "Rio e fronteira" e a imagem sugestiva para a nova cons-telacao das ultrapassagens de fronteira. Na assembleia degermanistas de Frankfurt em 1846, tratava-se do estabeleci-mento das fronteiras nacionais que vigoram hoje em dia. Osdois ensaios introdutorios iluminam 0nosso contexto nacio-nal a partir de duas perspectivas opostas. Naquela epoca 0olhar dirigia-se ao inicio republicano. Desiludidos, observa-mos hoje 0seu fim catastrofico.'o olhar diagnostico retrospectivo sobre 0 breve seculoXX tenta esclarecer a atmosfera atualmente disseminada de

    1.Nao e por teimosia que permito a reproducao do meucontroverso discursosobre Goldhagen (publicado em: K. D. Bredthauer e A. Heinrich, orgs., Aus de rGeschichte lernen, Bonn: edition Blatter 2, 1997, pp. 14-37). Pois nao tenho duvi-da alguma quanta a competencia dos historiadores que assumiram uma posturacritica diante de Goldhagen. Mas lamento que 0 tema anunciado no titulo do dis-curso tenha sido submerso no debate - refiro-me as diferenciacoes necessarias nouso publico da historia [Geschichte J. Esta perde-se justamente em polftica da his-toria demagogica se nao diferenciarmos de modo cuidadoso a postura moral, 0tratamento jurfdico, assim como a autocompreensao etico-polftica quanta a viola-c;oesdos direitos humanos e crimes em massa em ambito nacional que saopreparados, executados e tolerados ou apoiados por outros gracas a sua passivida-de. Sob esse ponto de vista tambem cabe urn merito filosofico ao procedimentornetodologico de Goldhagen. Ele Janca mao de uma moldura de interpretacao'quelhe permite introduzir a dimensao moral da Iiberdade de acao na analise historicados criminosos imediatamente envolvidos. "Liberdade" atribufrnos, nesse sentido,a urn ator que, conhecendo as alternativas de acao, agiu de modo imputavel, bemcomo normativamente justi ficado, segundo a sua propria visiio.

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    perplexidade iluminista. Dirigimos 0 olhar a urn problema in-quietante do proximo seculo: a democracia social-estatal podeser rnantida e desenvolvida tambem para alem das fronteirasnacionais? 0 ensaio que da titulo a este volume segue os ras-tros das altemativas politic as para a praxis neoliberal reinante- sem confianca na retorica de uma "terceira via" para alemdo neoliberalismo e da velha social-democracia.'

    Com 0 infcio da polftica europeia financeira centraliza-da observamos uma inversao das aliancas, Os pro-mercadoeuropeu [Markteuropiier], satisfei tos, fazem alianca com oseuroceticos [Euroskeptikem] - que pensam em termos do Es-tado nacional - para fixar 0 status quo de uma Europa eco-nomicamente integrada, mas tao politicarnente esfaceladaquanto antes. Presumivelmente ter-se-ia de pagar na moedada exclusao social urn preco que, para os parametres do ni-vel de civilidade hoje alcancado, e alto, al to dernais. Nao sepode ter legitimidade democratic a sem justica social. Entre-mentes, isso se tomou urn principio conservador. Desconfiou-se do utopico para alem da esquerda e da direita, mas pareceter ocorrido urna troca de papeis entre revolucionarios econservadores. Pois "revolucionarios" sao os esforcos paradesabituar a populacao aos parametres do universalismo igua-litario e para atribuir as desigualdades produzidas social-mente as caracteristicas naturais dos "que trabalham" e dos"fracassados" .

    No ambito nacional e decerto cada vez mais diffcil paraa polftica acornpanhar 0 passo de uma concorrencia globali-zada. Vejo uma altemativa normativamente satisfatoria - quepode por algo novo em movimento - apenas no aperfeicoa-mento federalista de uma Uniao Europeia capaz de agir emtermos de uma poli tica social e economica que, entao, pode-ra dirigir 0 olhar para 0 futuro de uma ordem cosmopolitasensfvel as diferencas e socialmente equilibrada. Uma Euro-

    pa que se engaje na domesticacao da violencia em cada urn etambem na configuracao social e cultural estaria protegidacontra a regressao pos-colonial no eurocentrismo. Tambem nodiscurso intercultural sobre os direitos humanos urna tal pers-pectiva bern descentralizada pode se fazer valer,

    As contribuicoes da terceira parte lembram de modo ru-dimentar 0 fundo filosofico com base no qual analiso os de-safios da constelacao pos-nacional na parte principal do livro.Tambem faz parte da autocompreensao da Modemidade urnconceito de autonomia que sugere urn argurnento contra 0ato de clonar organismos humanos, novamente em discussao,

    l.H.Stamberg, junho de 1998.

    2 . Est e t ex to servi u de preparacao para uma conversa com Gerhard Sch roder ,que ocorreu em 5 de junho de 1998, no ambito do forum cultural do SPD.2 3

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    I

    Acerca do contextonacional

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    o que e urn povo?Acerca da autocompreensao dasCiencias Humanas no pre-marco,com base na assembleia degermanistas de Frankfurt em 18461

    I. Estabelecendo duas metas

    .."

    o estabelecimento de duas metas provem da carta-convi-te "para uma assembleia de sabios [Gelehrtenversammlung]em Frankfurt a.M.", bern como da breve introducao para apublicacao das Verhandlungen der Germanisten [Debates dosgermanistas V A partir da iniciativa do jurista de Tubingen,Reyscher, reuniram-se conhecidos sabios como Jacob eWilhelm Grimm, Georg Gottfried Gervinus, Leopold Ranke,Ludwig Uhland, Friedrich Christoph Dahlmann, Georg Beselere Karl Mittermaier para fundar a unificacao das tres discipli-nas que tratavam conjuntamente do direito alemao, da hist6riaalema e da lingua alema, Trata-se, antes de mais nada, da ins-titucionalizacao de uma comunicacao cientffica melhor. Ateentao, para alem das habituais leituras de revistas e de livros,os contatos baseavam-se no conhecimento pessoal. Nesse con-texto, as trocas de correspondencia desempenhavam urn papelimportante. Isso valia nao apenas para 0 transite interdiscipli-nar entre osjuristas, cientistas da linguagem e historiadores,

    1. Pal es tr a profer ida por ocas iao da comemoracao do cent enar io na JohannWolfgang Goethe-Universi ti it de Frankfurt am Main.

    2. Verhandlungen der Germanisten, Frankfurt lM.: J. D. Sauerlanders Verlag,1847 (volume citado a par tir daqu i como Verhandlungen).

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    mas tambern para a cornunicacao no interior das areas,sobretudo entre os fi l6logos alemaes. Havia uma carenciade formas mais s6lidas do conhecimento pessoal , do ensinoe entendimento rmituos - "em urn discurso livre e sem amar-ras" e sem "palestras l idas". Os modelos eram os primeiroscongressos pangermanicos de especialistas, dos cientistas danatureza e dos medicos (desde 1822), bern como dos fil6lo-gos classicos (desde 1838). Os iniciadores estavam eviden-temente conscientes de que uma assembleia pangermanicade cientistas das humanidades [Geisteswissenschaftler] germa-nistas seria percebida como urn evento politico.

    A segunda meta, para alem das carencias disciplinares, erauma demonstracao - ainda que contida - a favor da unificacaoda patria politicamente esfacelada: "Seria esperar demais deuma reuniao de sabios se...fosse colocada como sua tarefa umaintervencao imediata na vida; mas nao esperamos nada menosda nossa assembleia, se ela , como nao se pode duvidar, afer-rada ao solo da pesquisa cientffica, ponderar tanto 0valor quan-to a gravidade da epoca, e cada urn sera preenchido peloentusiasmo que anima 0 todo". 30decorrer do encontro ira con-firmar essa expectativa. Mesmo n6s que nascemos depois, quegracas a profissao e a hist6ria de vida nos sentimos ligados asCiencias Humanas [Geisteswissenschaften] bern como a tradi-~ao republicana do nosso pais, ainda sentimos, ao ler 0proto-colo, 0movimento que entao tomou 0 orador. Olhandoretrospectivamente, reconhecemos decerto tambem 0 "apoli-tico" nas paixoes daqueles her6is da Escola Hist6rica alema,Em que pese toda a critica,ainda assim ninguem podera se sub-trair ao charme caracterfst ico desses infcios animados peloespfrito do Romantismo. 0envolvimento dos sabios com osseus objetos, as"antiguidades germanicas", coincide de urn modoquase inconsciente com a tendencia politic a do momento.o evento, no entanto, e marc ado por uma ironia tragica.Os inicios comemorados de modo enfatico significam justa-

    mente e em termos objetivos urn fim - tanto do ponto de vistapolitico como tambem da hist6ria da ciencia, As assembleiasde germanistas de 1846/47 em Frankfurt e em LUbeck foram aprimeira, mas tambem a ultima tentativa de reunir aquelas dis-ciplinas que de infcio conformavam 0 coracao das antigasCiencias Humanas. Uma decada e meia mais tarde osjuristase os fil6logos alemaes iran fundar suas respectivas associacoespr6prias. Isso correspondeu ao padrao totalmente normal dadiferenciacao das disciplinas cientfficas.

    Desde 0 final do seculo XVIII surgiram disciplinas dasCiencias Humanas isoladas, ao lado de areas estabelecidascomo a filologia classica ou a hist6ria da arte. Mas na molduradas conviccoes hist6ricas comuns elas nao haviam, de inicio,se afastado umas das outras, a ponto de representarem umaspara os outros universos disciplinares estranhos. No entanto,essa fase de nascimento aproximou-se do seu fim nos anos 40do seculo XIX,portanto na epoca da assembleia dos germanis-tas. Entre os participantes encontravam-se apenas quatrodaqueles pais fundadores que Erich Rothacker, 0 historia-dor das Ciencias Humanas, enumera, a saber, Jacob e WilhelmGrimm, Leopold Ranke e Friedrich Gottlieb Welcker. Eles saocomo que os iiltimos na serie ilustre dos Herder, Moser, Wolf,Friedrich e August Wilhelm Schlegel, dos Schleiermacher,Humboldt, Niebuhr, Savigny, Eichhorn, Creuzer, Gorres, Boppe Boeckh." Rothacker data com duas citacoes celebres essa fasede fundacao, na qual as areas ainda falam uma lingua em co-mum, nos oitenta anos que van de 1774 a 1854: "Toda nacaopossui em si 0seu ponto central de felicidade assim como todaesfera 0 seu centro de gravidade" (Herder); "Toda epoca eimediata a Deus e 0 seu valor nao consiste no que dela provem,mas sim na sua existencia mesma" (Ranke). A assembleia deFrankfurt, que queria abrir urn novo capitulo na hist6ria das suasciencias, na verdade encerrou 0perfodo dos fundadores. Ob-servando do ponto de vista da hist6ria da ciencia, ela serviu,

    3. Verhandlung, p. 6.4. E. Rothacker, Logik und Systematik der Geisteswissenchaften, Bonn, 1948,

    p.116.8 9

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    no limite, a uma translatio nominis: naquela epoca 0titulo dehonrade "germanista", que Jacob Grimmreclamou entao paraas ciencias da linguagem, passou, tambem no uso geral, doshistoriadores do direito para os filologos modernos.'

    Tambem mostrou ser ilusorio 0 papel que os germanistasacreditaram poder desempenhar, na esfera publica politica,como os genufnos interpretes do espfrito do povo. Como sesabe, dois anos depois, na vizinha Paulskirche, fracas sou atentativa de uma unificacao nacional no ambito de urn Estadode cunho liberal. Ainda assim, cerca de dez por cento dos par-ticipantes da reuniao reencontraram-se novamente naassembleia nacional , a maioria dos quais como membros doCentro. Wilhelm Scherer pode mais tarde caracterizar a assem-bleia de germanistas como "urn a especie de precursora doparlamento de Frankfurt'V O pre-marco foi 0 primeiro e 0 ul-timo perfodo no qual os representantes mais importantes dasCiencias Humanas possufram a vontade politic a de fazer usopublico do seu saber profissional como intelectuais e cidadaos.o que poderia parecer tal tentativa de influencia politico-inte-lectual na geracao dos meus professores - antes, durante e ap6s1933 - evidentemente nao recai sob essa categoria do engaja-mento civil. 0 papel do intelectual nao pode prescindir dasuperffcie de ressonancia de uma esfera publica e de umacultura poli tic a l iberais. Os germanistas, que ha 150 anos nasala do trono de Frankfurt exigiam liberdade de imprensa,possuiam uma clara consciencia desse fato. 0 mesmo nao podeser afmnado quanta a Julius Petersen, Alfred Baumler, ErnstBertram, Hans Naumann ou Erich Rothacker.o movimento da Paulskirche fracassou gracas a circuns-tancias hist6ricas que nao sao 0meu tema. Mas os germanistas,que me interessam como parte desse movimento, fracassam naoapenas gracas a circunstancias. Faz parte dos fatores inibitivos

    tambem uma autocompreensao polftica que e marc ada pelafilosofia das Ciencias Humanas anteriores. Nao apenas 0de-sejo de colocar-se para alem das fronteiras disciplinares, que,logo se evidenciaram, era vao, Tambem era problematic a aconstrucao "auto-ocultada" de relacoes de descendencia quedeveriam atribuir a na9ao a aparencia de urn ser organico. Se-guindo 0 fio condutor dos trabalhos de Jacob Grimm, esbocareibrevemente 0pano de fundo filosofico da Escola Hist6rica (II).Em seguida quero mostrar nas contradicoes que brotarao nadiscussao como a ideia do espfrito do povo, voltada para 0passado, aporta dificuldades para as intencoes liberais direcio-nadas para 0futuro (III). Gervinus escapa da dialetica fatal dadelimitacao e exclusao com base em uma dinamizacao histori-ca da doutrina do espirito do povo. Mas naquela epoca apenasdemocratas, como Julius Frobel- que nao estao representadosna assembleia dos germanistas -, dao satisfacao quanta a rela-9ao precaria do "povo", definido culturalmente, como a "nacao"dos cidadaos (IV). A germanistica nao repetiu a sua primeiratentativa grandiosa de se imiscuir em uma esfera publica repu-blicana. Concluindo, pretendo recordar os motivos internos aarea que dispuseram a germanfstica para uma autocompreen-sao apolftica (V).

    II. A imagem de mundo [Weltbild] das antigasCi(~nciasHumanasJacob Grimm abre a segunda sessao publica com uma ex-

    posicao sobre a relacao entre as Ciencias Naturais e asHumanas. A Qufrnica e a Ffsica servem a ele como exemplosde ciencias exatas, baseadas no calculo, que apreendem a na-tureza como urn mecanismo, decompoem-na e a mont amnovamente tendo em vista fins tecnicos. De modo totalmentediverso operam as ciencias "inexatas" que - gracas a urn ani-mo [Gemiit] sensfvel, formado com sutileza ("a uma disposicaorara de naturezas singulares") - penetram na multiplicidadeorganic a e no interior da criacao hist6rica da humanidade. Elas

    5. U. Mewes, "Zur Namengebung 'Germanistik'", in: J. Fohrmann, W.VoBkamp, Wissenschftsgeschichte der Germanist ik im 19. Jahrhundert, Stuttgart!Weimar, 1994, pp. 25-47.

    6. J. J. MUller, "Die ersten Germanistentage", in: J. J. MUller (org.),LiteraturwissenschaJt und SozialwissenschaJten 2, Stuttgart , 1974, pp. 297-318.

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    se caracterizam nao pela "alavanca e invencoes que geramadmiracao e amedrontam 0genero humano", mas, antes, pelovalor e dignidade dos seus objetos: "0 humano na linguagem,poesia, direito e historia esta-nos mais proximo do coracao queos animais, plantas e elementos". Ern uma virada surpreendentee tambem rnilitante, Grimm acrescenta: "Corn as mesmas ar-mas 0 nacional vence 0 estrangeiro [Fremde]".7Essa formulacao eliptica baseia-se na ideia de que asCiencias Naturais - que observam e explicam - abrangem fe-nomenos universais e contextos conforme a leis, enquanto asCiencias Humanas - voltadas para 0 entender - adaptam-se aparticularidadecultural e a individualidade dos seus objetos.Grimm tern na sua mira nao apenas a oposicao entre 0 univer-sal e 0 singular, entre as ciencias "nomoteticas" e as "ideogra-ficas", como Windelband depois diria. Ele relaciona a isso 0contraste do estrangeiro e do proprio. A visada hermeneutic ana estrutura de preconceitos do entendimento e desse modoagucada: compreendemos melhor 0 proprio que 0 estrangeiro.So 0 identico [Gleich] deve poder conhecer 0 identico, Isso semostra sobretudo na poesia que "para ser mais exato so podeser entendida nela (sc. na lfngua materna [Muttersprache])".o mesmo se passa tambem corn relacao as antiguidades ger-manicas. A penetracao plena de entendimento ern tais documen-tos do espfrito do povo que estao ocultos para 0presente nao enenhuma operacao cientffica neutra, mas sim, antes, lancaraizes profundas no animo. Aquele que quer entender traz todaa sua subjetividade em urn processo de entendimento que ternpor fim urn entusiastico reconhecer-se-no-outro. 0 entendimen-to hermeneutico parece viver do pathos da apropriacao que in-corpora: "0 crisol [Tiegel] ferve em qualquer fogo, e as novasplantas descobertas, que sao batizadas com nomes latinosfrios, sao esperadas e m to da p arte que possua uma zona eli-matica identica: mas ficamos mais contentes corn uma palavraalema extinta que foi desencovada do que corn a estrangeira,porque podemos novamente nos apropriar do nosso pais; que-

    remos dizer que toda descoberta na historia-patria reverte ime-diatamente a favor da patria"." Para Jacob Grimm, 0 carater in-c1usivo da comunicacao cientifica deriva exc1usivamente douniversalismo frio das Ciencias Naturais: "As ciencias exatasestendem-se sobre toda a Terra e sao boas tambem para 0 sa-bio estrangeiro, mas elas nao capturam os cora~oes".9Por suavez, as Ciencias Humanas mergulham de tal modo nas profun-dezas de cada cultura propria, que os seus resultados interes-sam principalmente aos seus membros. As "ciencias alemas"enderecam-se ao publico alemao.'?o espfrito de urn povo, que fornece a referencia para ademarcacao do proprio e do estrangeiro, expressa-se do modomais puro na sua poesia. E esta, por sua vez, esta intimamenteentretecida corn a "lingua patria". Por isso Jacob Grimm podedar a pergunta "simples": "0 que e 0povo?", a resposta sim-ples: "Urn povo e a essencia das pessoas que falam a mesmalfngua"." Apesar dessa determinacao a primeira vista cultura-lista, 0povo e substancializado. Nao por acaso as metaforaspara a lfngua, na qual as criacoes do espfrito do povo se articu-lam, sao retiradas da historia natural e da biologia.

    Quando 0 irmao de Jacob, Wilhelm Grimm, informou so-bre 0 projeto comum do W o rt er bu ch d er d eu ts ch en S pr ac he[ Dic io nd rio d a li ng ua a le m ii ], ele descreveu a desertificacaoda vida espiritual desde a Guerra dos Trinta Anos como a florade uma paisagem: "Tambem a lingua murchou e cada uma dasfolhas caiu dos galhos . .. No inicio do seculo XVIII ainda pai-ravam nuvens escuras sobre a velha arvore cuja forca vitalparecia exaurir-se . .. (Apenas) a estaca que (Goethe) golpeouno rochedo fez com que uma fonte corresse sobre os leitossecos; eles comecaram a verdejar novamente e as flores daprimavera da poesia novamente vieram a luz do dia". 12 A . con-

    7. Verhandlungen, p. 62.

    8. Verhandlungen, p. 60.9. Ibid.10. Verhandlungen, p. 62.11. Verhandlungen, p. 11 .12. Verhandlungen, p. 115.

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    cepcao organica da linguagem corresponde a atitude de prote-tor da natureza do guardiao da lingua [Sprachpjleger] que, semacorrentar a propria lingua via normas, quer purifica-la demisturas estrangeiras via intervencoes prudentes: "Nao creiao Senhor que 0 Dicionario, pelo fato de se submeter a trans-formacao historica da lingua, mostrar-se-a por causa dissotambem negligente ou indulgente. Ele vai censurar aquilo quese introduziu de modo injust ificado, mesmo se isso deva seraceito; aceito, porque em toda lingua certos galhos sao emara-nhados e atrofiados e nao podem mais crescer direito". 13

    Quem emprega uma linguagem naturalizada para definiro povo e 0 espfrito do povo quer demarcar c1aramente a nacaono tempo e no espaco: "Nossos antepassados, antes de teremsido convertidos ao Cristianismo, eram alemaes; e uma condi-~iio mais antiga, da qual devemos partir, que nos uniumutuamente como alemaes em urn la~0".14A continuidade his-torica da lingua do espfrito alemao confere 0 natural[Naturwuchsig] a nacao-povo [Volksnation]. Mas se a nacao eimaginada como planta [Gewiichs], 0 projeto nacional da uniaoperde 0 carater construtivo da produciio de uma nacao moder-na de cidadaos, 0 que vale para a extensao no tempo tambemvale para a dimensao espacial. Se a na~iio e ou deve ser coex-tensiva com a comunidade Iingufst ica, a contingencia dasfronteiras de territories estatais desaparece por detras dos fa-tos naturais da geografia lingufstica. Jacob Grimm apela a leisegundo a qual "nem rios nem montanhas constituem divisoesde povos, mas, antes, para urn povo que ultrapassa montanhase correntezas apenas a sua lingua propria pode estabelecer asfronteiras"." Essa conviccao constitui, de resto, 0 pano defundo para 0 fervor dos juristas e historiadores que utilizam aprimeira sessao publica para rejeitar a reivindicacao de here-ditariedade da coroa dinamarquesa quanto a incorporacao deSchleswig, que de fato nao faz parte da Liga Alema,

    Em 1874, Wilhelm Scherer, em urn olhar retrospectivo,caracteriza 0 espfri to da Escola Historica com uma serie depares conceituais: "A nacionalidade em oposicao ao cosmopo-litismo, a forca da natureza em oposicao a formacao [Bi/dung]artificial, os poderes autonomos em oposicao a centralizacao,a autogestao em oposicao a 'a~iio de fazer feliz' vinda de cima,a liberdade individual em oposicao a onipotencia do Estado, agrandeza da historia em oposicao ao ideal construido, a ve-neracao diante dos antigos em oposicao a caca pelo novo, 0desenvolvimento em oposicao ao feito [Gemacht], animo eintuicao em oposicao ao procedimento conc1usivo e ao enten-dimento, a forma organic a em oposicao a matematica, 0 sensualem oposicao ao abstrato, a forca criativa inata em oposicao aregra, 0 vivo em oposicao ao mecanico" .16Percebe-se de ime-diato os aspectos sob os quais a ideologia do espfrito do povoconverge para os fins liberais do movimento nacional. A partirdo crescimento espontaneo do espfrito do povo, piedosamentedespertado, pode-se depreender a forca produtiva, renovadorae ate mesmo emancipadora que se insurge contra a regulamen-ta~iiobaseada em burocracias estatais inflexiveis e que quer darao povo uma configuracao polftica propria, adequada a suanatureza historica, Por outro lado, deduz-se da descricao deScherer os traces de amor ao que e antigo; saudosistas, quie-tistas e contra-iluministas que nao predestinam 0 Historicismoexatamente ao papel de parteiro de urn Estado nacional bur-gues moderno.

    Decerto 0 Idealismo filosofico dos estudantes do Stift[Faculdade de Teologia] de Ttibingen [Hegel, Schelling eHolderlin] possufa urn mesmo impulso, assim como 0 pens a-mento romantico-historico de Herder, Moser e Hamann. Tam-bern Holderl in, Schelling e Hegel evocaram a imaginacao, aprodutividade e a espontaneidade sensfvel contra as classifica-~oes do pensamento baseadas no entendimento e contra as po-sitividades de uma tradicao petrificada. Tambem eles acentua-

    13. Verhandlungen, p. 11914. Verhandlungen, p. 17.15. Verhandlungen, p. 11.

    14

    16. W. Scherer, Vortriige und Aufsiitze (1874), pp. 340 ss. (ci t. in Rothacker ,cf. nota 4, p. 119).

    15

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    III. Sobre a dialetica da delimita~ao [Eingrenzung] eda exclusao [Ausgrenzung]

    gufstica na o seriam recobertas pelas fronteiras politicas da co-munidade juridica. As fronteiras do Estado nacional iriam.dequalquer modo exc1uir minorias falantes do alemao e inc1uiroutras falantes de linguas estrangeiras. A exclusiio politico-juridica dos alemaes-estrangeiros gera 0 desejo da suainclusiio cultural-lingufstica na comunidade. Daf os historia-dores proporem a fundacao de uma "associacao para amanutencao da nacionalidade alema no estrangeiro". Dessemodo, eles vao ao encontro de urn duplo fim. Muitos oradoresse importavam com 0 destino dos emigrantes que, entao, jus-tamente partiam em grande quantidade para a America doNorte; eles deveriam guardar tambem no estrangeiro a "antigalingua e, desse modo, a conexao quente com a mae-patria (!)[Mutterlande]"YMas com vista a "Europa, ou melhor, aosEstados fronteiricos com a Alemanha", tal politica necessitade outros "meios e fins" que aqueles "para as partes estran-geiras do mundo" .18 Sem querer "interferir no ambito politico",o relator da secao hist6rica Georg Heinrich Pertz recorda "osalemaes na Alsacia, na Lotaringia, nos Pafses Baixos, os ale-maes para alem doNiemen, os alemaes na Boemia, na Hungriae na Transilvania, que possuiam urn direito quanta a manuten-9ao da sua nacionalidade alema e lingua materna inata" .19 JacobGrimm ja havia comentado no seu discurso de abertura a la-mentavel via singular do holandes, "essa configuracaoevidentemente enfraquecida da lingua caracteristica do nossonoroeste", com a observacao: "Se (tambem) parece quase im-possfvel faze-lo voltar totalmente para n6s, logo permanecetanto mais desejavel multiplicar todas as ligacoes entre ele e 0nosso caminho"."

    A separacao entre os baixos-alemaes [Niederdeutschen] eos alto-alemaes [Hochdeutschen] recorda 0 pre90 que a unida-de imaginaria da nacao lingufstica exige - a mediatizacao dos

    ram a pertinacia e a individualidade do particular na estruturade urn todo organico, contra 0universal abstrato. Mas a filoso-fia tomou esses momentos contraries na razao mesma, enquantofaltam aoHistoricismo conceitos para 0universal da razao. Semtal referencia a razao, os germanistas tiveram de enfrentar se-riamente 0problema de como se poderiam tecer a partir do es-pfrito do povo os principios de uma constituicao liberal.

    Com a imagem de mundo das Ciencias Humanas, abriu-se uma perspectiva a partir da qual a uniao politic a da Alema-nha se mostra como uma conclusao atrasada de uma unidadeda na9ao culturalmente ha muito formada. Ao corpo-do-povo[Volkskorper], definido pela cultura e pela lingua, falta apenaso vestido politico adequado. A comunidade Iingufstica deve-ria ser, no Estado nacional, recoberta pela comunidade juridi-ca [Rechtsgemeinschaft]. Pois toda nacao, assim parecia,possuia a principio urn direito de independencia polfti ca.Nesse ponto, os membros da assembleia de germanistas, queinterpretaram esse principio a luz da doutrina do espiri to dopovo [Volksgeistlehre], iludiram-se quanta ao especificamen-te moderno das suas intencoes, Porque partiram do pressupos-to de que 0 Estado-nacao ja havia amadurecido com acu lt ur a- na c ao , n a o compreenderam 0 trace construtivo do pro-jeto deles. 0 espfrito do povo alemao, que deveria tomar umafigura politica na nova ordem, ja estava de qualquer modo ates-tado nos documentos mais antigos da poesia, da lingua alemae do direito alemao, Essa perspectiva explica as dissonanciascognitivas que apareceram no decorrer do debate. Primeiramen-te e a aceitacao de uma comunidade lingufstica homogenea, eque se delimita c1aramente, que deslancha uma dialetica dignade atencao.

    Mesmo no caso de uma solucao nos termos de umagrande Alemanha, as fronteiras culturais da comunidade lin-16

    17. Verhandlungen, p. 61 .18. Verhandlungen, p. 113 .19. Verhandlungen, p . 107.20. Verhandlungen, p. 13.

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    dialetos, para a qual Grimm faz uma equacao eufemica de per-das e ganhos." 0irmao Wilhelm reconhece 0 carater artificialda lingua literaria [Schriftsprache] sem a qual "as linhagensgeralmente nao se compreendem de modo algum". A homoge-neidade da comunidade Iingufstica nao e algo originario, elaexige urn nivelamento dos dialetos a favor de uma lingua lite-raria introduzida nas praticas administrativas. Mas nao combinacom a compreensao antiquada do espfrito dopovo natural 0 fatode ele ter tido que desenvolver a particularidade do nacional,digna de ser preservada apenas por meio de uma repressao departicularidades amadurecidas. Tambem e desconcertante 0 fatode que as linguas nacionais, que afinal devem fundar a indivi-dualidade dos diversos povos, sao misturadas umas com asoutras, influenciaram-se mutuamente e, portanto, nao formamunidades bern demarcadas.

    Em comparacao com as linguas "misturadas", como 0 in-gles ou mesmo 0 frances, 0 alemao, por sua vez, e tornado naverdade como uma lingua "pura". Mas tambem ela possui pa-lavras emprestadas cuja origem latina foi esquecida, palavrasestrangeiras sem as quais nao podemos sequer enfrentar 0 co-tidiano, bern como muitas expressoes terminologicas que semostraram indispensaveis para 0 saber especializado. WilhelmGrimm menciona esse fato sem desse modo "falar a favor dainterferencia [Einmischung] do estrangeiro". Ele espera que 0seu Worterbuch possa "despertar novamente a pureza da lin-gua". Seu purismo talvez nao seja "engomado", contra 0 queele se defende, mas, suficientemente ameacador, ele esbrave-ja, assim como 0 seu irmao,22 contra acorrupcao do proprio peloestrangeiro: "Abrem-se todos os portoes para colher aos reba-nhos as criaturas estrangeiras. A semente da nossa nobre linguaencontra-se no joio e na imundicie: quem possuiria a pa para

    espalha-la sobre a eira! Quantas vezes vi urn rosto bern forma-do e ate os traces espirituosos desfigurados por tais pustulas.Abra-se 0 primeiro livro, nao digo urn livro ruim, e vibra a bi-charada incontavel diante dos nossos 0Ihos".23

    Nesse sentido, osjuristas tern mais problemas que os filo-logos. Enquanto as linguas estrangeiras ao menos constituemambitos estranhos com relacao a lingua propria, 0direito ro-mano domina no proprio pais: "Nosso direito encontra-se emcontradicao com a vida, com a consciencia do povo, com ascarencias, habitos, conviccoes, opinioes do povo". 24 Beseler,Mittermaier e Reyscher representam na assembleia a lideran-ca da "jovem" germanistica. Assim como a escola de direitohistorica mais antiga, eles recusam 0 direito racional[Vernunftrecht] e cultivam a historia do direito como "iinicocaminho para 0verdadeiro conhecimento da nossa propria si-tuacao" (Savigny). Mas, diferentemente de Savigny, eles acen-tuam a oposicao entre "direito popular [Volksrecht] e direito dosjuristas [luristenrecht]". 25Compartilham da conviccao segun-do a qual 0direito como expressao do espfrito do povo deveriater uma outra configuracao em cada nacao; a recepcao do di-reito estrangeiro destruiria per se a cultura do direito que lan-ca rafzes nos habitos do proprio pOVO.26Essa versao juridica dadoutrina do espirito do povo esbarra sobretudo em tres proble-mas durante a discussao: (a) Os juristas tern dificuldades coma superioridade do direito romano, formado em termos dogma-ticos; (b) deveria lhes parecer paradoxal que algumas institui-~oes da tradicao do direito germanico podiam impor-se contraele (0direito romano) apenas com base em relacoes economi-cas especificamente modemas; (c) mas antes de mais nada naopodiam legitimar 0Estado constitucional democratico a partirdas proprias fontes da historia do direito.

    21. Verhandlungen, p . 13: "Desde Lut ero 0 dominio do dialeto alto-alemaoest a f irmado de modo i rr evogavel , e t odas as part es da Alemanha renunciam de boavontade a s vantagens singulares que acompanham todo dialeto famil iar, na medidaem que desse modo eles sao elevados a potencia e forc a da lingua litera ria[Schriftsprachej comuni ta ri a a mais nobre que jo rra a par ti r de todos e les" .

    22. "E urn pecado empregar palavras est rangei ras ali onde existem palavrasalemas iguais, ou mesmo melhores." Verhandlungen, p. 14.

    23. Verhandlungen, p. 123.24. Verhandlungen, p . 68.25. Volksrecht und Juristenrecht era 0 t it ul o da obra p rogramatica de Georg

    Beseler , publicada em 1843.26. G. Dilcher , B. R. Kern, "Die jur isti sche Germanist ik des 19. Jahrhunderts

    und die Fachtradi tion der Deutschen Rechtsgeschichte", in: Zschr. f. Rechtsgesch.,vol. CXIV, Germ. Abt ., 1984, pp . 1 -46.

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    (a) 0 que pode ser tornado das fontes do direito particula-rista de hereditariedade, do rural e do municipal, permaneceuabaixo do nfvel do direito romano, conceitualmente desenvol-vido, demodo que osjuristas nao puderam deixar de reconhecera superioridade do direi to romano, especialmente nos a m -bitos centrais do direito civil. Alguns oradores na discussaotentam rninirnizar esse fato alegando que 0 direito romano foimodificado e de certo modo germanizado na praxis do "direi-to comum" pelos "habitos, instituicoes e condicoes politicas esociais alemas'V'Mas outros oradores desencorajam a se ob-servar germanismo e latinismo como irmaos inimigos:"Terfamos de nos transportar para uma situacao de barbaric sequisessemos exterminar de uma vez aquilo que 0direito roma-no nos trouxe't.P Um colega quer diferenciar 0lado cientificoou formal do direito romano dos seus conteiidos: "Queremos,desde que isso corresponda aos nossos objetivos, receber 0borne 0uti l que se desenvolveu no ambito da ciencia em todos osEstados civilizados, e essa recepcao e uma exigencia da civili-zacao a qual a nacionalidade, que nao deve transformar-se emurn isolamento formal, nao se contrapoe" .29

    (b) Mas nao apenas 0purismo se defronta com proble-mas; 0 mesmo se passa com 0 recurso as "antiguidades" dodirei to que nao sao amoldadas conforme as relacoes de vidamodernas. Os exemplos que Mittermaier traz a baila contrao C6digo Justiniano e a favor do germanico desvendam a iro-nia do recurso as tradicoes antigas. Instituicoes juridic as[Rechtsinstitute] alemas podem justamente penetrar em areasperifericas como no direito comercial, de tftulos e social, ape-nas porque certos elementos do direi to municipal medievalmostram-se funcionais para a moderna circulacao economica,Daf a secao juridica ver de born grado a sua tarefa de "evacua-~ao [Ausscheidung] do heterogeneo [Fremdartig]" como atentat iva de determinar as "instituicoes juridicas que foram

    criadas no solo puramente alemao com base nas relacoes de cir-culacao modernas". 30

    (c) Mas para 0historiador liberal do direito, 0desafio pro-priamente dito nao esta no direito privado, mas antes no direi-to publico em que ha uma concorrencia nao entre 0 direitogermanico e 0 latino, mas sim entre 0hist6rico e 0natural. Paraa fundamentacao juridica racional da ordem constitucionalmoderna, nao existe evidentementenenhum equivalente nacio-nal. Mas a nacao unida precisa de uma Constituicao segundo 0modelo das constituicoes revolucionarias americana e france-sa. Decerto ha unanimidade quanta a necessidade de uma"legislacao universal". Alem disso, desde Savigny os juristasalemaes viram-se no papel de urn legislador substituto apoliti-co. Mas nesse ponto eles estavam pensando nas codificacoesdo direito civil, como no C6digo Civil posterior, e 0Parlamentos6 deveria ter a tarefa de ratificar conteiidos que proviessemdos usos e habitos dopovo. 31 Tanto quanta 0direito possa haurira sua legitirnidade a partir da forca continua do direito do povo,nao surge para 0direito positivo uma necessidade de fundamen-tacao que deveria ser protegida pelo procedimento democrati-co de urn legislador parlamentar. Os historiadores do direitoliberais de fato tracam uma linha de comunicacao que liga asprotocomunidades [Thinggemeinden] germanicas, as assem-bleias locais campesinas, as assembleias municipais e as cor-tes as modernas representacoes do povo. Mas as suasreivindicacoes de liberdade de imprensa, de direitos juridicosfundamentais ou de direitos fundamentais de urn modo geral-como logo seria formulado de modo exaustivo nos 131-189da Constituicao da Paulskirche - nao podiam ser justificadascom base em fontes do direito germanico. Logo, mesmo urnReyscher no fim tern de expressar 0desejo de que "a razao dirija

    27. Verhandlungen, p. 151.28. Verhandlungen, p. 82.29. Verhandlungen, pp. 73 ss.

    30. verhandlungen, p . 149.31. Verhandlungen, p. 100: "Onde Republicas, Estados const itucionais e Mo-

    narqu ias absolu tas est ao reunidos em uma l iga, eviden tement e nao se pode deman-dar urn C6digo abrangente . Mas ainda restam 0 grande volume da codif icacaoprivada ou civil e a codif icacao criminal" .

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    IV. Do povo do "espirito do povo" a na~aodoscidadaos

    sanimar pelo malogro da revolucao de 1848. Em uma anteci-pacao da sua historia do seculo XIX,publicou no final de 1852aquela marcante Einleitung [Introdur;iio]que the valeu 0fami-g~rado processo por alta traicao." Ali esbocou 0seu "ponto devista do desenvolvimento politico na epoca historica da eramoderna". Ele delineia 0panorama de uma luta em torno dasideias de liberdade e democracia , que retira a sua energia doembate rico em tensoes entre 0 espirito romano e 0 germanicoe que se estende da Idade Media tardia, passa pela Reforma,pelas revolucoes na Inglaterra, America e Franca e vai ate osmovimentos libertarios do seculo XIX. OS movimentos politi-cos do presente sao "carregados pelo inst into das massas" etendem no "sentido de uma liberdade interna ou de uma inde-pendencia externa, e, na maioria das vezes, para ambassimultaneamente"." Decerto contra ideias cosmopolitas abstra-tas "que querem apagar todas as diferencas entre os povos",Gervinus imaginava esses movimentos populares sobre urn "parde trilhos"; eles visam, "intemamente, ordens estatais mais li-vres; externamente, a manutencao da independencia dos povose das linhagens, uma separacao politic a que fosse adequada aseparacao natural das nacionalidades e linguas". 38 Mas os po-vos lutam pelos mesmos fins politicos; e esses surgem de umainteracao de espfritos do povo que se comunicam e aprendemuns com os outros.

    Gervinus havia lido com entusiasmo Tocqueville e ve naConstituicao democratica da America "0 modelo e a predile-~ao das massas" . 0 novo ideal de Estado dos Estados Unidosque dissolveu os modelos antigos, enrafza-se nao no direitoantigo, mas sim nas condicoes de vida modern as que geramtanto 0 igualitarismo quanto 0 individualismo: "Pois a buscada igualdade de todas as relacoes, da liberdade das pessoas uma

    por si mesma a uma certa concordancia dos conceitos juri-dicos"."

    Novamente fica manifesto que a ideia de uma nacao-povooriginariamente homogenea e claramente definida, que encon-tra a sua forma no Estado nacional, e inconveniente para aproveniencia universalista do liberalismo politico. Urn profes-sor Gaupp de Breslau recua ainda mais urn pas so certo.Remetendo a fusao inicial dos povos romanos e germanicos elerefere-se a uma interpretacao nao-identitaria da doutrina doespfrito do povo. Defende 0 "desenvolvimento de uma huma-nidade nobre com base na nacionalidade profundamentesentida". Recorda-se da ideia de Goethe de literatura univer-sal [Weltliteratur] para aproxima-la de urn espfrito "que nosjustamente denominamos de ocidental e que domina tanto a Eu-ropa quanta a America". 33 Georg Gottfried Gervinus ja redigiraa sua Geschichte der poetischen National-Literatur derDeutschen ([Histaria da literatura nacional poetica dos ale-miies] Leipzig, 1835-42), em cinco volumes, a partir dessaperspectiva.

    Tambem Gervinus - ao lado de Dahlmann, 0 lfder entreos historiadores e que ocasionalmente advertia os seus conter-raneos com relacao a "vaidade nacional e a jactancia'?' - apre-sentou 0periodo classico de Lessing a Goethe como urn legadoestetico para a emancipacao politica da nacao alema." Dife-rentemente da maioria dos seus colegas, ele nao se deixou de-

    32. Verhandlungen, p . 84.33. Verhandlungen, pp. 124 s s.34. Heidelberger Jahrbiicher der Literatur, 26, 1833, p. 555 .35. P. U. Hohendahl, Literarische Kul tur im Zei talter des Liberal ismus 1830-

    1870, Mtmchen, 1985, caps . VI e VD.

    36. W. Boehlich (org.), Der Hochverratsprozefi gegen Gervinus, FrankfurtIM.1967. '37. G. G. Gervinus, Einleitung in die Geschichte des Neunzehnten

    lahrhunderts, org. por W. Boehl ich, FrankfurtJM., 1967, pp. 153, 162.38. Gervinus ( cf, not a 37), p . 150.

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    -em relacao a outra, esta necessariamente fundada no auto-sen-timento da personalidade. Mas a igualdade politic a,quando naoe expressao da mesma opressao sob 0 despotismo, exige 0dominic da vontade do povo segundo a decisao da maioria;requer urn govemo que nao se fundamente na ilusao de urndireito divino ...; demanda uma legislacao que se assente sobrea carencia da sociedade, a qual 0 conjunto mesmo julga"."Esses principios juridicos nao se encontram mais em oposicaocom relacao as idiossincrasias nacionais, antes resultam de umacombinaciio singular dos espfritos do povo.

    Primeiro as ideias de liberdade religiosa e politic a forma-das nos pafses germanico-protestantes mudaram-se da Europa,por sobre 0Atlantico, para a America, para, entao, migrar no-vamente de volta para 0 leste em 1789.As ideias de liberdade,no entanto, retomaram a Europa apenas depois de terem sidofiltradas atraves do meio multiconfessional e multiculturalde imigrantes da sociedade americana e purificadas das "im-purezas" [Beimischungen] confessionais bern como nacionais.Em todo caso, assim Gervinus descreve a repercussao da Re-volucao Americana sobre a Francesa: "Na transmigracao daliberdade americana para a Franca 0 seu carater universalfoi mantido .. . A ideia politic a havia se libertado na Americadas impurezas religiosas, a saber, sob 0 democratismo[Demokratismus] puro de la, sob 0qual os membros de todasas nacoes viviam igualmente satisfeitos, ela se libertou mesmodas limitaciies nacionais. A singularidade germanico-protes-tante nao era mais uma condicao da continuidade da suaatuacao, Ela conquistou na sua volta, primeiro, 0 maior dospovos cat6licos e romanicos. Assim urn mundo totalmente novoabriu-se para ela como campo de acao"." A mensagem e clarae os "senhores" a compreenderam muito bern: ap6s a derrotade 18480 "cortejo triunfante da liberdade para 0 leste", inicia-do na Franca, espera justamente ser consumado no pais do quala ideia protestante de liberdade urn dia havia partido.

    Desse modo, Gervinus forca 0 particularismo da doutrinado espfrito do povo com 0 teor universalista do Estado consti-tucional democratico, Nele cada vez mais 0 romanico e 0germanico separam-se do solo dos povos concretos e se trans-formam em principios que mudam de urn pais para outro. Sobas maos do historiador, povo e espfrito do povo perdem os con-tomos claros e vinculados a uma ciencia da linguagem. DaiGervinus nao ter mais uma resposta clara para a pergunta "0que e urn povo?". Poderia te-la encontrado em Julius Frobel, 0sobrinho politicamente ativo do pedagogo reforrnista e urn de-mocrata alemao do sudoeste que,comoGervinus, esta fascinadopela "democracia na America" e que, de resto, sentou ao seulado na Paulskirche como deputado da Assembleia Nacional.

    Pela epoca da reuniao dos germanistas em Frankfurt,Frobel, sob 0pseudonimo C. Junius, havia publicado uma obrana qual, adiantando a definicao de povo de Jacob Grimm, co-mentava: urnpovo e "0 conjunto de todas as pessoas que falamuma lingua em comum - (mas) elas podem efetivamente pos-suir essa lingua como heranca de uma comunidade de linhagem[Stammgemeinschaft]; ou a mesma pode ser 0produto de umamistura de linhagens, com a qual 0povo surgiu como urn novo;ou tambem pode urn povo ter se misturado com 0 outro com 0abandono [Aufgebung] total da sua pr6pria lingua .. . Pode ser,alem disso, que 0 conjunto das pessoas que falam a lingua co-mum conformam urn tinico Estado, uma maioria de Estados ouuma liga de Estados; ou esse conjunto pode ser.. .uma parte dediversos Estados; ou ele pode, finalmente, viver totalmente semexistencia polftica, disperso, sem patria"." Para fins descriti-vos nao serve nem urn conceito de povo puramente poli tico,nem puramente geneal6gico, pois povos surgem e dissipam-se"na marcha da cultura". Observando normativamente, apenaso desejo de urn povo pela autodeterminacao democratic a podefundamentar a exigencia de independencia politic a: "0 momen-to etico [sittlich], livre, propriamente politico no ser [Dasein]

    39. Gervinus (cf. no ta 37) , p . 166.40 . Gervinus ( cf . nota 37) , p . 135.

    41. 1. Frobel, System der sozialen Pol it ik (segunda edicao, 1847) , NeudruckAal en , 1975 , vo lume I , pp . 242 ss.

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    dos povos e 0 laco de fratemidade da decisao livre"." Existel ima precedencia normativa da liberdade republicana comrelacao a unidade de uma nacao." Todavia Frobel, que viverana Sufca, reconhece 0quanto tambem a comunidade pre-poll-tica praticada - ou no minimo imaginada - de uma forma devida cultural dividida pode ser importante para a capacidadede vida de uma coletividade republicana: "a lingua e a litera-tura comuns, 0 tipo comum da arte e habito [Sitter e para ospovos que "ap6iam a sua existencia, sobretudo na associacaolivre e na confederacao", urn bern valioso, a saber uma fontede solidariedade social. N6s que estamos hoje no lirniar de umaforma p6s-nacional de estabelecimento da comunidade politi-ca ainda podemos aprender algo a partir desses pensamentospremonit6rios de Frobel.

    Com base no tratado deMaastricht a Uniao Europeia devese desenvolver para alem da condicao de uma comunidadeeconomica funcional. Em uma Europa politicamente unida,muitas decisoes deverao ser tomadas em muitos campos poli-ticos, inclusive da politic a social, que seriam entao igualmen-te obrigatorias para todos os membros - para dinamarqueses eespanhois, assim como para gregos e alemaes, mencionandoapenas esses. A aceitacao das decisoes, que cada urn deveassurnir perante 0outro, exige aquele tipo abstrato de solidarie-dade que se estabeleceu pela primeira vez ao longo do seculoXIX entre os cidadaos dos Estados nacionais. Os dinamarque-ses devem aprender a ver urn espanhol como "urn de n6s" e domesmo modo os alemaes a urn grego, bern como, inversamen-te, os espanh6is a urn dinamarques e os gregos a urn alemao.Em nenhuma coletividade 0 necessario compromisso entrediferentes bases de interesse e relacoes vitais pode ser atingi-do apenas gracas ao calculo inteligente de cada vantagem pro-pria. Daf os cientistas polfticos espreitarem tambem para a

    futura Europa "non-majoritarian sources of legitimacy". Enecessario uma consciencia da pertenca conjunta que tornarapossivel para os "confederados associados livremente" identi-ficarem-se reciprocamente como cidadaos,E evidente que no seculo XIX os povos europeus existiamcada urn por si e ainda nao estavam colocados, todos coletiva-mente, diante de urn problema estruturalmente semelhante. 0que ainda tern de ser construido hoje como identidade europeiaa partir de uma relacao comunicativa que ultrapasse as esferaspublic as nacionais era realizado entao pelas elites culturais soba configuracao de uma consciencia nacional perigosa. Decer-to a ideia da nacao na sua versao nacional-popular [volkisch]levou a exclusoes devastadoras, a expulsao dos inirnigos doReich - e ao aniquilamento dos judeus. Mas na sua versaoculturalista [kulturalist] ela tambem ajudou a fundar uma rela-craosolidaria entre as pessoas que ate entao eram estranhas[Fremde] umas as outras. A transformacao universalizante das"lealdades" herdadas para com vila e familia, regiao e dinas-tia, foi urn processo dificil e moroso que, mesmo nosEstados-nacoes classicos do Oeste, nao havia abarcado e pe-netrado toda a populacao antes do infcio do seculo xx. Aindaque nao estejamos em uma situacao comparavel noque diz res-peito a unificacao politic a da Europa, encontramo-nos diantede uma tarefa semelhante a qual, por sua vez, os nossos germa-nistas achavam-se comrelacao a unificacao politica da sua nacao.

    A moldura nacional-estatal para a implernentacao dosdireitos humanos e da democracia tomou possfvel uma novaforma mais abstrata de integracao social para alem das fron-teiras das linhagens e dialetos. Hoje nos encontramos dianteda tarefa de dar continuidade a esse processo com mais urnpasso na direcao da abstracao. Uma formacao da vontade de-mocratica que ultrapasse as fronteiras necessita de urn contextoapropriado. Para tanto, deve-se desenvolver uma esfera publi-ca politic a de dimensoes europeias e uma cultura politicacomum. Em uma tal relacao comunicativa que se estende paraalem das fronteiras das sociedades nacionais tambem devesurgir uma consciencia de co-pertenca a partir de uma rede de

    42 . Frobel (cf. not a 41 ), vol. I , p . 245.43 . Sob esse pon to de v is ta , a lias, Frobel cri ti ca j a naquela epoca 0 principio

    do direi to das na~Oes da nao int romissao em assuntos de urn outro Estado e defendeintervencoes humanitar ias, Cf. Frobel, volume I, p . 250.

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    Diante desse desafio atual, a assembleia de sabios deFrankfurt nos confronta com maior razao com a questao: porque desde aquela primeira tentativa fracassada nao partiu dasuniversidades alemas novamente uma iniciativa igualmentevisfvel de influenciar a esfera publica politica, Conc1uindo,quero apenas indicar no exemplo da germanfstica uma dispo-si9ao assentada no desenvolvimento mesmo da disciplina.Observando-se de modo sociol6gico, disciplinas universita-rias como a germanfstica recebem diferentes funcoes, Ao ladodos fins de pesquisa e de preparacao profissional, servem tam-bern a formacao geral e a autocompreensao publica dasociedade." A filologia alema preencheu essas funcoes de urnmodo sintomaticamente assimetrico: ela se concentrou essen-cialmente nas suas tarefas de pesquisa. Mas exatamente essacientificidade irrefletida nao protegeu a disciplina da politiza-9ao erronea,

    Observando-se de modo distanciado, a hist6ria da germa-nfstica parece encaixar-se discretamente em urn esquema quea sociologia cientifica estabeleceu de modo universal para 0de-senvolvimento das disciplinas academicas, Em tomo de 1800,a corporacao de sabios medieval e reestruturada na Alemanhanos termos de uma universidade secular com funcoes de pes-quisa e de formacao, No lugar da hierarquia das faculdadessuperiores e inferiores, introduz-se a Universitas das discipli-

    nas incorporadas em comunidades disciplinares que se diferen-ciam entre si em urn nivel horizontal. Com essa diferenciacao,tambem urn novo tipo de ciencia entra em atividade. 0 traba-lho cientifico e reorganizado segundo 0modelo das modemaspesquisas naturais, passando da sistematizacao do saber com-provado para a geracao met6dica do saber novo. 0 singular "da"ciencia nao serefere mais a virtude individual da erudicao quese possui, mas sim a racionalidade de urn procedimento impes-soal que se segue.

    A nomeacao del..achmann em 1818 e aDeutsche Grammatik[Gramdtica alenui] de Jacob Grimm de 1819 constituem, comose nota frequentemente, datas simb6licas para a demarcacao deuma ciencia germanistica com relacao ao trato diletante da li-teratura alema - e, a bern da verdade, nao apenas com relacaoa atividade de colecionador do erudito de tipo antigo, mas tam-bern com relacao as descobertas dos pesquisadores amadorese ao entusiasmo patri6tico daqueles amantes dos textos alemaesantigos que permaneciam presos ao espirito de epocaantifrances de entao." Depois de a disciplina ter formado umaidentidade filol6gica, seguiu-se a institucionalizacao das cadei-ras, das comunidades disciplinares e da comunicacao cientifica.Ao lado das filologias latinas e eslavas, a germanica constituiaagora 0canon disciplinar das filologias modemas. Ela estabe-leceu-se tambem como uma disciplina escolar e produziahist6rias da literatura para urn publico burgues em formacao.Por fim, a disciplina diferenciou-se intemamente em germanis-tica antiga e modema; a lingufstica geral separou-se entao, porsua vez, da ciencia da linguagem hist6rica. Quando ao longodo seculo XXimpos-se urn pluralismo de direcoes de pesquisae de metodos, a germanfstica parecia ter cumprido a carreiranormal de uma disciplina cientifica.

    No entanto, observando-se mais de perto, 0perfil hist6ri-co da disciplina mostra especificidades. Em primeiro lugar,

    interesses ha muito existente. Talvez excedamos os nossoscolegas no pre-marco em urn conhecimento consolador: iden-tidades coletivas sao mais feitas do que encontradas. Mas elaspodem criar unidade apenas entre heterogeneos, Mesmo entreos cidadaos de uma mesma coletividade cada urn e urn outropara os demais e possui 0direito de permanecer urn outro.

    v . A autocompreensao apolitica da filologia alema

    44. T. Par sons, G. M. Pla tt , The American University, Cambr., Mass., 1973,pp. 90 ss.

    45. K. Weimar, Geschichte der deutschen Literaturwissenschaft bis zum Endedes 19. lahrhunderts, Mi inchen , 1989 ; U. Hunger, "Die a ltdeu tsche Litera tu r unddas VerJangen nach Wissenschaft" , in: Fohrmann, VoBkamp (cf . nota 5), pp. 236-63.

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    devemos pensar em complicacoes politicas; certamente espe-ra-se que uma disciplina especializada na literatura nacionale na lingua materna tenha uma maior proximidade da vida so-cial e cultural e tambem da esfera publica politica que as outrasdisciplinas. Mas, por mais estranho que pareca, a germanfsti-ca universitaria acentuou sobretudo 0 seu encargo cientifico;durante todo 0 seculo XIX ela, antes, protegeu-se dos impera-tivos sociais. Em comparacao com a orientacao de pesquisa,os esforcos quanto aos sistemas de emprego e de formacao,bern como para com a esfera publica leitora e politic a eramsubdesenvolvidos, ou, no minimo, desequilibrados. A germa-nfstica preencheu de modo apenas insuficiente as funcoes depreparacao profissional, de formacao geral e de autocompreen-sao publica.

    Karl Lachmann, vindo da filologia chissica, desempenhouurnpapel de destaque, porque a disciplina adquiriu a sua iden-tidade gracas aos trabalhos filologicos em edicoes criticas. Elapode assegurar a sua cientificidade gracas a urn metodo empres-tado da fi lologia classica. Isso foi decerto importante para aconstituicao da disciplina. Mas, ao que tudo indica, apos 0fi-nal dessa fase, essa mesma consciencia metodologica em umadisciplina, ja ha muito estabelecida, levou a uma fetichizacaode uma exigencia cientffica, por detras da qual podiam se en-trincheirar professores que estavam pouco interessados napedagogia, na influencia publica e na popularizacao. A disci-plina, na sua configuracao filologica esquiva, submeteu-seapenas de modo hesitante as demandas por uma abertura emdirecao a escola e ao publico. Tambem deve ser compreendidaa partir desse contexto a assim chamada querela sobre osNibelungos [Nibelungenstreit] que se acendeu com a praticaeditorial de Lachmann, sobria e que se abstinha de cementa-rios. Os partidos opostos acusavam-se mutuamente, por urnlado, de especializacao infrutffera, por outro, de diletantismobem-intencionado."

    A "filologizacao" significava tambem 0 fim daquela his-toria da li teratura arrazoada no estilo de Gervinus e de Prutzque deveria servir ao esclarecimento [Aufkliirung] do grandepublico. Esse tipo caiu em descredito apos 1848, era tido comojornalistico e acientifico. Klaus Weimar fala da "expulsao doespirito da historia da literatura", pois esta e moldada no for-mato de urn programa de pesquisa historico-filologico, Desdea metade do seculo, a historia da literatura passa da competen-cia dos filosofos e historiadores, para as maos dos germanistasque haviam conquistado a sua reputacao na filologia alemaantiga. Eles haviam aprendido a editar e a comentar textos, istoe, a muni-Ios com explicacoes acerca das palavras e do objeto,mas nao a interpretar 0 texto." No entanto, constitui uma ex-cecao a essa praxis, que tambern inc lui apresentacoesbiograficas singulares, a Geschichte der deutschen Literatur[Hist6ria da literatura alema] de Wilhelm Scherer (da qualainda herdei urn exemplar da 12~edicao, de 1910, da epoca deestudante do meu pai).

    De modo geral, os germanistas universitarios fecharam-seas necessidades nao apenas do publico mais amplo, mas tam-bern da escola. Ate 0 final do seculo XIX 0 ensino filologicopermaneceu, nos ginasios alemaes, uma instrucao nas linguasantigas e na literatura classica. 0la tim e 0 grego ainda pos-suiam 0monopolio na formacao [Bildung]; 0 alemao desem-penhava urn papel marginal no horario escolar." Nao que 0lobby sobre 0Ministerio da Educacao prussiano fosse fracodemais. Apos a analise dos protocolos da "Assembleia dos fi-lologos e pedagogos alemaes" entre 1862 e 1934, Detlev Koppconcluiu que os germanistas nao estavam de modo algum inte-ressados em uma maior participacao nas aulas: "0 interesseprincipal da germanfstica universitaria ... se dirigia muito me-

    ate 0 ponto de uma "disciplina eli ti sta esoterica", cf. R. Krohn, "Die Altgermanistikdes 19. Jahrhunderts und ihre Wege in d ie Offen tiichkei t" , in : id ., pp. 264 -333.

    47. Weimar (cf. nota 45), pp. 319-46.48. D. Kopp, "Deutsche Phi ioiogie und Erziehzungssystem", in: Fohrmann,

    VoBkamp (cf . nota 5), pp. 669-741.46 . R . Kolk , "Li ebhaber, gei eh rt e, Exper ten" , i n: Fohrmann , VoBkamp (cf .

    nota 5), pp. 84-7; quanto ao desenvoivimento da discipl ina, dos infcios romanticos

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    nos a praxis escolar ... e, antes, visava ... elevar 0valor da disci-plina na hierarquia das ciencias"."

    Se uma germanfstica, que queria derivar toda a sua repu-ta~ao da pesquisa, percebe apenas de modo insuficiente as suastarefas sociais e culturais, isso decerto ainda nao diz nada so-bre a sua influencia latente sobre a mentalidade da burguesiaformada. Como vimos, a germanfstica antiga enraizava-se emuma filosofia das ciencias humanas que marcava monumentosda lingua e herancas literarias como testemunhos do espfritodo povo dignos de veneracao. Diante desse pano de fundo, 0trabalho metodico rigoroso de textos assume os traces do ri-tual; ele e compreendido como a reapropriacao veneradora eque garante a identidade de urn patrimonio infinitamente va-lioso. Com isso, a escolha dos textos assume 0 valor de umacanonizacao, Com 0 seu ethos profissional de garantia e puri-ficacao de textos que pertencem a heranca nacional digna deser guardada, a disciplina esoteric a conquistou urn amplo efei-to de formacao da consciencia a medida que canonizou os pa-trimonios nacionais de formacao decisivos. A germanistica"que em uma primeira fase aplicou os metodos da fi lologiaantiga aos textos de linguagem vulgar [volkssprachlich] daIdade Media e que, em urn segundo momento, voltou-se para ahistoria da literatura alema ... encontrou 0 seu complemento nacanonizacao dos classicos alemaes, 0 que e posto emmovimen-to pela ciencia historica, na canonizacao classica e retirado dacorrente do tempo e paralisado para a contemplacao imovel ouvisao obrigatoria", 50oHumanismo tinha a sua disposicao 0 conceito de "clas-sico" para 0 valor intrinseco dos objetos nos quais 0 espfritodeve se formar. Mas ja com Friedrich Schlegel esse conceitohavia se libertado da antiguidade classica e fora posto livre paraoutros usos; desde entao pode ser aplicado tambem aos obje-

    tos modernos." As filologias modernas aproveitaram-se disso,em particular a germanista. Para os leitores agora contam como"classicas" todas as obras das quais ele pode aprender algoessencial, independentemente da distancia temporal. 52A ques-tao e quem decide 0que e essencial. Nem 0texto nem 0leitordecidem sozinhos quanto ao teor essencial de uma obra; a suadignidade classica deve se mostrar na lei tura mesma. Dessemodo surge uma indeterminacao que a fi lologia alema podecombater com facilidade, pois 0metodo filologico, sem 0qualo texto nao se torna acessivel ao leitor, esta conectado a auto-ridade do espfrito do povo. Essa autoridade fundamenta per sea suposicao segundo a qual os textos nos quais 0 espirito dopovo se manifesta possuem urn teor formador de identidade,ou seja, essencial. A relacao com 0espfrito autentico do povo,atribuida por Herder as antigas ciencias humanas, garante urnencargo de formacao para a germanistica que acreditava ter depreenche-lo como disciplina filologica, e apenas como tal .Como ciencia ela realiza, entao, tambem com a sua praxis edi-torial, uma contribuicao para a transformacao de uma ideia deformacao prenhe de pietismo que passa da "humanidade" paraa "nacao",

    No mais tardar desde 0Imperio caminham de maos dadastambem nas cabecas dos proprios germanistas 0ethos apolfti-co da cientificidade e uma mentalidade marc ada pelos mitosnacionais.

    Nisso reflete-se 0que Aleida Assmann denominou de"coevolucao da cientificizacao [Verwissenschaftlichung] e dasacralizacao", Agora, desenvolve-se justamente uma divisao so-cial do trabalho entre, por urn lado, ciencias diferenciadas entre

    51. N. Wegmann , "Was heiBt e inen ' klass ischen Text ' lesen? Phil ologi scheSelbstref lexion zwischen Wissenschaft und Bildung", in: Fohrmann, VoBkamp (cf.nota 5), pp. 334-450.

    52. 0 mesmo vale ainda para H. G. Gadamer, Wahrhei t und Methode,Tiibingen, 1960, p. 271: "Classico e 0 que resiste a critic a historica [historisch] por-que 0 seu dominic historico [geschichtlich], 0 poder const rangedor da sua val idadeque e tr ansmi ti da e conservada , j a ant ecede t oda reflexao h is to ri ca e man tem-senela".

    49. Id. , p . 705.50. A. Assmann, Die Arbeit am nationalen Gediichtnis, FrankfurtlM., 1993,

    p.61.

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    si, que administram e canonizam 0patrimonio nacional, e, poroutro, uma "cultura" [Bi/dung] exageradamente cultural, aomesmo tempo antidiferenciadora, aparentemente privada e quegera uma mentalidade rasamente nacional. Nas escolas, queforam abandonadas a si mesmas pela germanfstica universita-ria, 0 ensino do alernao assume 0 carater de aula deconsagracao; aqui os classicos sao festejados como herois ale-maes do espfrito; os seus textos sao venerados, mas naoanalisados." A cultura literaria marcada pelos monumentos e.associacoes testemunha, com os seus discursos oficiais, roma-rias e festejos, como se celebra publicamente uma literaturadirecionada para a pedagogia do nacional: "A configuracaoreligiosa da ideia de formacao [Bildungsidee] ganha 0 seuperfil onde 0percurso do desenvolvimento da ciencia, tenden-cialmente irresistfvel, e contraposto a solidificacao dos seusobjetos em uma ascensao absoluta dos valores". 54

    Sem diivida devido a sua esterilidade, a conta e apresen-tada a germanfstica cientificizada [verwissenschaftlich]. Noperiodo anterior a Primeira Guerra Mundial pessoas extemasa disciplina, como Wilhelm Dilthey ou Georg Simmel, toma-ram para si a interpretacao das obras de arte literarias, Em1911, Friedrich Gundolf causou grande impressao com 0seu Shakespeare und die deutsche Geist [Shakespeare e 0 es-pirito alemiio]. Na via aberta pela coletanea de textos deDilthey, Das Erlebnis und die Dichtung [A vivencia e a poe-sial (1906), ocorre entao uma "virada historico-espiritual"tambem no interior da disciplina. Desse modo, e verdade quefinalmente a ciencia universitaria abriu-se para 0Ginasio e paraa esfera publica. 55 Mas 0 culto do poetico simplesmente foiposto sob a direcao de uma ciencia com 0metodo mais dilui-do, que entao podia ser politizada tambem a partir de dentro.A atencao voltada para contextos de historia do espfrito certa-

    mente abriu uma abordagem hermeneutic a da obra de arte, masao mesmo tempo obstruiu outros caminhos, que poderiam dis-solver a fixacao no proprio, familiar e digno de veneracao.Incursoes em uma historia literaria comparada, tal comohaviam sido desenvolvidas na romanistica, nao encontrarameco algum; os primordios da sociologia da literatura, que ilu-minava os contextos funcionais e sociais da producao literariae da sua recepcao, foram marginalizados; apesar deWorringer,uma teoria estetica, que teria podido direcionar a atencao parao radicalmente outro e 0dissonante da modernidade tomada noseu infcio, nao chegou nem a nascer."

    Contra a miseria deuma "frente da teoria literaria fechadae irracionalista" que se aflige "pelo misterio da alma poetica",Leo Lowenthal teve de defender, ja em 1932, uma com-preensao racional do objeto literario e uma abordagem analiti-ca dele.57 0 ensaio de Lowenthal, "Zur gesellschaftlichen Lageder Literatur" ["Sobre 0 carater social da literatura"]' foi pu-blicado no primeiro ana da Zeitschrift fur Sozialforschung[Revista de Pesquisa Social] - e, ao mesmo tempo, 0 ultimoque pede aparecer na Alemanha. Juntamente com uma triun-fante historia do espfrito, urn outro espfrito havia conquistadoas universidades alemas. Theodor W. Adorno, ainda mais doque Benjamin, representava para ela 0contratipo por excelen-cia. Adorno conciliou Eichendorff com 0 surrealismo" e 0intemo da estrutura estetica com 0 extemo da praxis social. 59Ele reuniu em Frankfurt, depois da sua volta do exilio, aquelasaltemativas de pesquisa, a principio reprimidas, e, contra umaforma de pensamento exclusivamente orientada pela historiado espfrito, fez com que elas valessem mesmo dentro da ger-manfstica - como se pode observar de modo exemplar na obrade Peter Szondi.

    56. W . VoBkamp,''Literalursoziologie: Eine Alternative zur Geistesgeschichte?",in: Konig, Lammert (cf , nota 55) , pp. 291-303.

    57. Leo Lowenthal , "Zur gesel lschaftl ichen Lage der Literatur", in: Zschr. fSozialforschung; I, 1932, pp. 85-102.

    58. T. W. Adorno, Noten zur Literatur, FrankfurtlM., 1958.59. T. W. Adorno, Asthetische Theorie, FrankfurtlM., 1970, p. 24: "Nenhuma

    arte que nao possua em si enquan to momen to negado 0que ela repele de s i" .

    53. D . Kopp (cf, not a 48 ), p. 725.54. Assmann (cf. nota 50), p. 46.55. F. TrommIe r, "Germanistik und Offentlichke it", in: Ch. Konig, E .

    Lammert, Literaturwissenschaft und Geistesgeschichte, Frankfurt /M., 1993,pp. 307-30.

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    Sobre 0 emprego publicoda Hist6r ia

    o Demokratiepreis ["Premio Democracia"]' que foirecebido pela primeira vez por Barbel Bohley e WolfgangUllmann pelos ativistas dos direitos do cidadao da RDA, vaipara 0premiado deste ana com a seguinte justificacao: DanielGoldhagen "com base na penetracao e forca moral da sua ex-posicao, deu urn impulso essencial a consciencia publica daAlemanha"; ele agucou "a sensibilidade para os motivos ocul-tos e para os limites de uma 'normalizacao' alema", A referen-cia ao efeito retorico do livro e a questao controversa danormalizacao, que secoloca novamente na passagem para a Re-publica de Berlim, deixa reconhecer 0 que os curadores daBlatter fiir deutsche und internationale Poli tik tinham emmente com essa atribuicao dopremio - e 0que nao tinham. Elespodiam e nao queriam intervir em uma controversia cientifica.Tambem na Alemanha importantes historiadores - freqiiente-mente com a energia de toda uma vida academic a - conquista-ram urn grande reconhecimento com a pesquisa da era nazistae 0esclarecimento politico dos cidadaos sobre a complexa pre-historia do Holocausto. Eu citaria aqui, a titulo de exemplo, osnomes de Martin Broszat, Hans Mommsen e Eberhard Jaeckel,bern como, entre os mais jovens, Ulrich Herbert, Dietrich Pohle Jorg Sandkiihler. A questao nao equal dos historiadores dacontemporaneidade teria merecido a atencao de urn amplo cfr-culo de leitores, mas sim como deve serponderada a atencaonao usual por parte dos cidadaos interessados que 0 livro de

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    1. Este texto serviu de base para 0panegfrico que Iipor ocasiao da entrega dopremio no dia 10 de marco de 1997.

    di~gno~tico da negacao e confrontado com a acusacao da mo-ralizacao presuncosa, Esse conflito sem safda encobre a questaofun~amental: 0 ~ue significa em geral uma imputacao retros-pectrva de urn cnme a que procedemos hoje tendo por fim umaautocompre~nsao etico-pohtica entre cidadaos? Goldhagenf~m~ce urn lmpulso. a ~~s para a reflexao sobre 0 empregopubhco correto da historia [Historie].

    Nos, ~iscursos d~ autocompreensao - desencadeados porfilmes, ~e~e.sde televisao e exposicoes, bern como tambem porobras historicas ou por affaires -lutamos nao por fins e polfti-c~s de curto prazo, mas sim por ansiadas formas polit ic as davida em comum e tambem por valores que devem prevalecerna coletividade politica. Ao mesmo tempo, trata-se de sabercom re~peit~ a que podemos nos considerar reciprocamentecomo cidadaos dessa Republica - e como queremos ser reco-nhecidos pelos outros. A hist6ria nacional constitui nessesentido, urn fundo importante. Tradi~6es nacionais e ~entali-~ades que se tornaram parte da nossa pessoa remontamjustamente a muito antes dos infcios desta Republica. 0livrode Gold~agen tam~em toma-se relevante para nos a partir daper~~ectlva determinada pela associacao da autocompreensaopolft ica com a consciencia historica, Porque foi do meio do~osso contexto de vida que surgiu aquele crime singular a par-tir do qual sepode entao formar 0conceito de "crime contra ahumanidade", colocam-se, portanto, naturalmente, as seguin-tes qu~st?es.para?~ descendentes que querem compreender asu~ eXIs~e~cla?ohtlca neste pais: Pode-se, de modo geral, atri-burr a cnnunalidade emmassa a pessoas individuais oua gruposde ~essoas? Quem foram, nesse caso, os atores responsaveis eq~aIS foram os motivos? As justificativas normativas, na me-dida em que foram decisivas, estavam ancoradas na cultura emodo de pensar?. Dev~ a~etara nossa autocompreensao se Goldhagen atri-

    bui uma J.us~ficativa subjetiva - que seria uma parte integrantedas conviccoes fundamentais entao dominantes - a urn cfrculo~epre.sentativo de criminosos, de algum modo, sim, convictos:Os judeus representavam uma especie de fenda no tecido

    Daniel Goldhagen de fato recebeu. 0 sentido performativo daentrega do premio sugere que a ressonancia que 0livro e 0autorencontraram na Alemanha e tao merecida como digna de sau-dacao.'

    Essa entrega chocou-se com uma oposicao veemente. 0livro, segundo se diz, com a sua exposicao global e niveladorade urn fato complexo, satisfaz a necessidade de explicacoessimplistas da massa do publico. Por meios estilfsticos de umaestetica da crueldade ele obtem efeitos emocionais, com des-cricoes obscenas obscurece a faculdade de julgar. Outrascensuras visam menos 0 texto e muito mais os motivos doscompradores e leitores. Aqui encontramos os conhecidos es-tereotipos do "humanismo bondoso" [Gutmenschentum],"nacionalismo negativo" e "safda da historia". Os descenden-tes dos criminosos fariam urn desagravo gratuito e presuncosocom base na identificacao posterior com as vftimas. Eles apro-veitariam novamente a oportunidade de se desvencilhar dalealdade a propria tradicao e de fugir no quimerico pos-nacio-nal. Devo confessar que nao compreendo essas reacoesirritadas. Elas procuram explicar urn fenomeno que nao preci-sa de explicacao.

    A ampla ressonancia de urn tallivro era evidente de ante-mao. Deve-se apenas deixarclarocomo os dois se engrenam: 0estudo decaso analftico da aniquilacao dosjudeus de Goldhagene a postura receptiva de urn publico que esta interessado noesclarecimento desse capitulo criminoso de sua historia. Aspesquisas de Goldhagen sao talhadas exatamente sobre as ques-toes que polarizam as nossas discuss6es privadas e piiblicas hameio seculo, Desde 0 infcio da RFAperdura a oposicao entreaque1es que preferem explicar a quebra da civilizacao a partirdas circunstancias, como urn acontecimento natural, e aquelesque a atribuem, antes, a pessoas que atuavam demodo respon-savel, a saber, nao apenas Hitler e 0 seu grupo mais proximo.Hoje ambos os partidos encontram-se trocando acusacoes: 0

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    cultural alemao... uma fenda na qual todos os tabus culturaisse quebraram quando os alemaes se irritaram com osjudeus".'Pressupondo-se que cada geracao esta ligada - no modo do seupensamento e de sentir , no gestual da expressao e no mod? d~sua percepcao -, por meio de urn tecido de fios culturais, aforma de vida e ao modo de pensar das gera

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    interessa-se pela possibilidade de censura das acoes, 0 outropela explicacao dos seus motivos. Do ponto de vista do histo-riador, a imputabilidade de acoes nao decide sobre a culpa oua inocencia, mas sim sobre 0 tipo dos motivos explicativos. Naoimporta qual aparencia a explicacao tera - se os motivos en-contram-se mais nas pessoas do que nas circunstancias -enquanto tal, uma explicacao causal nao pode nem incriminarnem inocentar os autores da a~ao. E apenas a partir da perspec-tiva dos envolvidos, que se encontram diante do tribunal ou nocotidiano e exigem satisfacao urn do outro, que as questoes deimputacao transformam-se em juridicas - ou tambem morais.

    Pois no julgamento dojusto e injusto tambem trata-se dospontos de vista morais, ainda que sem as regras de procedimen-to estritas da ordem do processo criminal. Assim como para osfins dajustica, naturalmente conhecimentos historicos tambempodem ser empregados no cotidiano para discussoes morais -como na discussao proverbial entre "pais e filhos". Em ambosos casos 0 saber historico toma-se, em uma mesma relacao, re-lev ante para os envolvidos. Essa relaciio com a justicadiferencia-se, no entanto, daquele aspecto sob 0 qual as gera-~oes descendentes se certificam de uma heranca historica, daqual eles como cidadaos de uma coletividade politic a devem,de urn modo ou de outro, se apossar. E essa diferenca que meinteressa aqui. As imputacoes explicativas do historiador re-cebem uma outra funcao do ponto de vista da autocompreensaoetico-po[(tica dos cidadaos, do que elas teriam em discursosmorais ou juridicos.Aqui nao se trata em primeiro plano de culpa ou de des-culpa dos antepassados, mas sim de uma autocertificacao criticados descendentes. 0 interesse publico dos que nasceram maistarde, que nao podem saber como e1es teriam se comportadoentao, dirige-se a urn outro fim que nao 0fervor de contempo-raneos julgando moralmente, que se encontram na mesmarelacao de interacao e pedem explicacoes uns aos outros. Des-cobertas dolorosas acerca do comportamento dos proprios paise avos, que na verdade so poderiam desencadear luto, perma-necem urn assunto privado entre os imediatamente envolvidos.

    Como cidadaos, no entanto, os descendentes possuem urn in-teresse publico com relaciio a si mesmos no capitulo maisobscuro da sua historia nacional. Nisso eles nao apontam paraos outros. Querem esclarecer a matriz cultural de uma herancaincriminada para conhecer pelo que eles respondem coletiva-mente e 0que eventualmente da tradicao, que entao formaraurn funesto pano de fundo para a motivacao, ainda atua e ne-cessita uma revisao. De uma atitude culposa individualamplamente difundida no passado surge a consciencia da res-ponsabilidade coletiva; isto nao tern nada a ver com a imputacaode culpa coletiva, que ja em termos conceituais e urn absurdo.'

    II

    o estudo de caso de Goldhagen, em particular as pesqui-sas sobre os batalhoes de policia e as marchas da morte, den-tro de determinada moldura teorica, devem, a partir dos modosde a~ao observados, permitir deduzir conclusoes quanto aos pa-droes de interpretacao [Deutungsmuster] que orientavam e asmentalidades. As pesquisas baseadas nas ciencias sociais po-dem ser lidas como experimentos armados, e neste ponto obe-decem aos caprichos da pesquisa autonoma. Mas ao mesmotempo os pontos de vista analiticos, sob os quais se compreen-de os criminosos responsaveis, os motivos das suas acoes ex-cepcionais e os padroes cognitivos, vern ao encontro daquelesinteresses piiblicos que nos, no pais dos criminosos, possufmosquanta a uma autocompreensao sincera, ou seja nao-moralizan-teo Decerto uma estrategia de analise clara ainda nao decidequanto a exatidao dos resultados. Mas entrementes estabele-ceu-se uma benfazeja discussao dos especialistas acerca dos

    3 . H. Jager, e le mesmo auto r de urn estudo ant er ior sobre a viol encia do crimenazista, acentua que 0 l ivro de Goldhagen nao afi rma uma culpa colet iva, como mui-t as vezes !he foi a tri bu ido, mas s im "poe diante dos nossos o!hos uma culpa indiv i-dual em massa". "Die Widerlegung de s funktionalistischen Tate rbildes", in:Mittelweg 36, fev.lmar. 1997.

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    detalhes, que quebrou com a dramatizacao. Os especialistasfamiliarizados com 0materiallevantam uma serie de objecoesquanta aos pormenores, mas tomam a serio a abordagem deGoldhagen.4Fiquei impressionado com 0desenho claro da argumenta-~ao. Goldhagen define 0 ambito dos criminosos que ele pes-quisa com base na pertenca as insti tuicoes de homicidio e naparticipacao imediata em a~Oes de aniquilamento dos judeus.Esses criminosos operam como que na ponta de uma comple-xa cadeia de acontecimentos. Desse modo resolvem-se ques-toes quanta a imputacao objetiva que nao sao faceis de serdecididas, tendo em vista os percursos adrninistrativos do as-sassinato em massa, organizado de modo fortemente anonimoe baseado na divisao de trabalho. Ao mesmo tempo, responde-se de modo automatico a outras questoes - quais normas fo-ram violadas e se os criminosos tinham conhecimento disso -gracas ao tipo de crime. A analise inicia-se com a pergunta seos assassinos agiram subjetivamente de modo imputavel, seeles, portanto, conheciam e quiseram as conseqiiencias, ante-cipaveis e evitaveis, das suas~ . A partir da logica de situa-~oes cotidianas, intemas ou extemas ao "service" criminoso,Goldhagen deduz um campo livre que os participantes devemter tido para uma tomada de posicao refletida quanta as suasproprias a~Oese envolvimentos: "os criminosos viviam em ummundo no qual meditacao, discussao e debate eram possiveis"(p.318). . ..Em seguida, Goldhagen verifica questoes de imputabili-dade: as circunstancias nao tomaram impossfvel urn outro com-portamento? Aqui ele aponta para acoes [Aktionen] para asquais se encontrou voluntaries ou as quais foram realizadas poriniciativa propria; para ofertas para se liberar da participacaonos massacres; e para as oportunidades de se subtrair impune-mente in actu das a~oes assassinas. E patente que os homenstambem sabiam que eles, em caso de necessidade, podiam se

    fazer transferir ou ate mesmo se recusar a cumprir ordens, semque a sua liberdade e vida corressem perigo. Tampouco a vio-lencia "superflua", ou seja, a crueldade excessiva das acoesassassinas (que Goldhagen aborda devido a motivos analiticos),corresponde a uma situacao de obrigatoriedade inevitavel.Goldhagen acredita poder descartar outras desculpas, como apressao do grupo atuando em termos sociopsicol6gicos, 0 ha-bituar-se a criminalidade em massa sancionada pelo Estado ouuma ligacao inconsciente com a autoridade estatal. A suposi-c;aoevidente segundo a qualesses tipos de criminosos poderiamestar fixados de um modo particular na autoridade formal dossuperiores, Goldhagen contrapoe exemplos de oposicao e pro-testo aberto em outros casos que nao tinham nada a ver com 0assassinato dos judeus. Mesmo interesses pr6prios parecem naoter tido um peso deterrninante. De qualquer modo, para 0res-tante do raciocinio de Goldhagen e importante 0pressupostode que corrupcao, ambicao ou interesses na carreira nao foramdecisivos. Uma confirmacao e 0 comportamento bizarro dasequipes de acompanhamento as marchas da morte durante osii ltimos dia da guerra. Mas se essas pessoas agiram de modopremeditado, sem nenhuma obrigacao extema drastica ou in-tema explfcita e nem ao menos a partir de consideracoes sobreo proveito, impoe-se a imagem de criminosos que nao possuiamuma consciencia da injustica,

    Do ponto de vista filosofico, a pesquisa de Goldhagen einspirada por uma ideia: nao e apenas a mera agressao comotal que e rna, mas sim aquela que 0 criminoso cre-se legitima-do a fazer. 0 mal e 0bem invertido. Goldhagen sustenta commuitos detalhes - da ausencia de esforco para se manter 0 se-gredo indo ate aos obscenos encontros para fotografia - quemuitos criminosos devem ter considerado a sua ac;aocomo le-gitima. Quem participa com base na conviccao em uma praxisque segundo parametres normais e tomada como criminosa,vale dizer, como pura e simplesmente abominavel, deve termotivos normativos fortes parajustificar excecties de tal mododramaticas, E de se compreender que Goldhagen recorra asrepresentacoes que setinha "dos judeus". Uma vez que tem de4. Dieter Pohl, "Die Holocaust-Forschung und Goldhagens Thesen", in:Vierteljahreshefte for Zeitgeschichte, 1 99 7, p p. 1 -4 8.

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    reconstruir a partir do comportamento manifesto os motivospara as consideracoes moralmente seletivas, ele reiine eviden-cias quanta ao trato diversificado das vitimas des~gnadas. Asfndrome anti-semita explicita-se no fato de que osjudeus, emsituacoes comparaveis, sofreram regularmente uma sorte ain-da pior do que os poloneses, russos, prisioneiros politicos etc.Os criminosos comportavam-se de modo ainda mais malvadocom relacao aos judeus do que com as outras vitimas. Se hoje,por ocasiao da discus sao sobre 0memorial ao Holocaus,t? emBedim, faz-se troca do desejo dos descendentes das vit imasquanta a modos diferenciados de rememorar, d~~er-s::ia ~ecor-dar por quem essa "hierarquia dos grupos de viumas foi esta-belecida. Desse modo, Goldhagen chega a afirmacao centralsegundo a qual, em ultima instancia, conviccoes anti-semitasexplicam a praxis assassina dos criminosos. . Ao passo final da argumentacao baseia-se na circunstanciaja sugerida pelo ti tulo da pesquisa modelar de ChristopherBrowning: os criminosos justamente foram "pessoas tota1mentecomuns't. ' Goldhagen radicaliza essa tese referindo-se a "ale-maes totalmente comuns". Ele comprova com base nos tracesusuais da estatistica social que a composicao do Batalhao dePolfcia 101 era aproximadamente representativa da populacaomasculina da Alemanha de entao. Naturalmente os dados apu-rados retrospectivamente nao podem, sem mais, ser igualadosaos dados da pesquisa de opiniao. Por isso restricoes conside-ravels sao apresentadas quando setrata esse Batalhao de Polfciacomo uma mostra representativa e se conclui "que tambemmilhoes de outros alemaes nao teriam agido de outro modo setivessem chegado as mesmas posicoes" (p. 22). No nosso con-texto deve-se destacar que tal conclusao nao deve nos levar aacusacao estigmatizante do tipo: os alemaes constituem "urnpovo de assassinos'" ou simplesmente de "assassinos poten-ciais". Pois acusacoes [Vorwiirfe] morais contrafaticas[kontrafaktisch] sao sem sentido. Repreensiies morais podem

    referir-se face toface apenas ao agir ou a omissao faticos. Outracoisa e a consideraciio contrafatica de Goldhagen que possuiurn sentido positivo dentro de urn contexto hist6rico ao apon-tar para a incontestavel grande difusao das disposicoesanti-semitas na populacao alema daquela epoca.

    IIIA questao do enraizamento do anti-semitismo na cultura

    alema contemporanea ultrapassa as fronteiras do estudo decaso. Goldhagen tern de estender a visada sobre 0 mimeroconsideravel dos criminosos para 0grande mimero dos parti-cipantes indiretos. A populacao judaica foi passo a passodesativada de modo conseqiiente desde 1933 de todos os a m -bitos da vida da sociedade alema, e esse processo se realizoude modo totalmente publico. Isso nao teria sido possfvel sem aconcordancia tacita de amp las camadas da populacao.Goldhagen pergunta-se com razao quanta a s elites: "Quantoseclesiasticos niio eram nos anos 1930 da opiniao de que os ju-deus seriam urn perigo? ... Quantos generais ... niio queriamlimpar os judeus para fora da Alemanha? ... Quantos juristas,quantos medicos, quantos academic os achavam urn puro absur-do 0 anti-semitismo publico, onipresente com os seus tracesinsanos? ... Decerto nem todos os eclesiasticos, generais, juris-tas e outras liderancas aprovaram 0aniquilamento dos judeus.Alguns queriam apenas deporta-los, outros desejavam a este-ri lizacao, ja outros queriam 'apenas' ret irar os seus direi tosfundamentais. Mas mesmo essas visoes encontravam-se fun-damentadas em uma ideia de eliminacao" (p. 503). Contra issopode-se, quando muito, argumentar que Goldhagen esqueceu-se dos professores universitarios alemaes,

    Por outro lado, esses fatos nao justificam 0discurso acer-ca da aniquilacao dos judeus como urn "projeto nacional dosalemaes", Goldhagen mesmo alude ao ambito da "conversasocial" no qual as intencoes de eliminacao deveriam se articu-lar. Ja a constituicao intersubjetiva e a dinamica da comunica-5. Christopher R. Browning, Ordinary Men, New York, 1992.6. J. H. Schoeps, Ein Yolk von Mordemr, Hamburg, 1996.

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    c;aopublica demandam uma imagem diferenciada. Mesmo nascondicoes assimetricas de uma ditadura, as opinioes e os mo-delos cognitivos atingem 0 dominio apenas contra opinioesconcorrentes e contra outros modelos. A querela dos historia-dores inflamou-se, no entanto, sobretudo gracas a tese polemicade urn "caminho reto ate Auschwitz" (p. 497). Contra esseGoldhagen que parece exceder 0 credito da sua pesquisa em-pirica de modo intencionalista, deduzindo da f uma pretensaode explicacao global, pode-se recorrer ao proprio Goldhagen:aquele que se bate de modo decidido contra abordagens mo-nocausais, que ere com conviccao no procedimento compara-tivo e que naturalmente sabe que para a explicacao doHolocausto "nao podemos nos restringir apenas ao anti-semitismo, mas devemos tambem incluir muitos outros fato-res" (p. 8). De resto, urn nao-histonador que se informe, porexemplo, junto a Ian Kershaw 7 quanto as controversias no am-plo ambito da pesquisa sobre 0nazismo tera a impressao de queas abordagens antes se complementam em vez de se excluirem.

    Quanto a esse ponto, no entanto, nao cabe a mim urn juizode especialista. 0 que temos dejulgar nessa oportunidade saoos meritos alcancados por urn historiador judeu americano comrelacao ao trato correto dos alemaes com urn episodic crirni-noso da sua historia. Para finalizar, quero lancar mao de umaobservacao que urn colega jurista, Klaus GUnther, fez quantoao trato publico em geral com a historia da crirninalidade poli-tica. E manifesto que depende nao apenas dos fatos, mastambem da nossa visao dos fatos, como decidimos nas ques-toes de imputabilidade. A observacao historica retrospectivatambem depende de uma pre-compreensao com a qual aborda-mos 0ocorrido, qual participacao atribuimos as pessoas equalas circunstancias, onde tracamos as fronteiras