há mais de um século, mais precisamente a 1 de outubro de · como peixe na água. a facilidade de...

13

Upload: trannguyet

Post on 22-Jan-2019

212 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Há mais de um século, mais precisamente a 1 de Outubro de 1908, foi lançado nos Estados Unidos da América o famoso Ford T, à data com uma capacidade máxima de 55 km/h e visto como um brinquedo ruidoso e caro.

Actualmente, o automóvel ocupa um lugar central na locomoção das pessoas, e a indústria automóvel, apesar da crise instalada no sector, continua a ser uma das mais relevantes no tecido económico e industrial da sociedade. Todavia, numa altura em que assistimos a um forte abalo neste sector provocado pela escalada dos preços do petróleo e pela crise global, arriscamos dizer que se impõe uma reflexão sobre a mobilidade.

Nesta edição conversámos com Silvana Bessone, directora do primeiro museu mundial dos transportes – o Museu Nacional dos Coches –, que nos falou do património hipomóvel e do pioneirismo da rainha D. Amélia em construir um museu dos coches. Aproveitá-mos a oportunidade para abordar a mudança de casa do Museu e as mais-valias do novo Museu Nacional dos Coches.

Foi justamente deste Museu que partiu, em jeito de performance, a mais recente obra de Ana Fonseca, ALMACK´S #1, que propõe uma reflexão artística sobre o enraizamento do carro na nossa história cultural. Partindo do imaginário de uma liteira, utilizada desde a Antiguidade até ao final do século XIX para transportar pessoas em curtas distâncias, Ana Fonseca cria um novo meio de transporte que resulta da combinação deste veículo com os actuais concept cars.

Dada a complexidade dos aspectos técnicos desta obra, fizemosuma viagem pelas várias paragens necessárias à concretizaçãode ALMACK´S #1, só realizável com muita arte e engenharia. Convidamo-lo a seguir viagem connosco, num meio de transporte à sua escolha.

Terminamos a jornada da história aos quadradinhos “A Ermida” de Rui Lacas, que nos acompanhou ao longo de quatro edições e que, agora, é transportada para as páginas de um livro editado pelas Edições Polvo.

Nas duas edições deste ano, teremos ainda o privilégio de contar com o escritor Gonçalo M. Tavares e os fotógrafos Luís Baptista e Diogo de Castro Guimarães, que se juntaram à nossa viagem para benefício dos leitores que nos acompanharem.

: http://www.facebook.com/efemeride

N.º7/Maio – Setembro 2011

Foto

s: ©

Lui

s M

aria

Ba

ptis

ta .

Dio

go

Ca

stro

Gui

ma

rãe

s -

LMB

. DC

G

N.º7EFEMÉRIDE, BOLETIM CULTURAL

Maio – Setembro 2011Distribuição Bianual Gratuita

N.º de Registo ERC 125891Projecto Travessa da Ermida

2 3

EfeMErideBOLETIM CULTURAL

A beleza é a mitologia principal dos olhos. Distinguir formas, cores, o perto do longe, o direito do esquerdo: apenas pormenores. Vemos, acima de tudo, porque temos apetite de beleza. Ver é uma alínea do instinto de detecção do Belo.

Mas também há beleza escutada. E podes ainda pensar numa beleza tocada – estou de olhos

fechados a tocar na beleza! – e mesmo numa beleza cheirada ou numa beleza saboreada.

A cozinha produz beleza. E as suas gastronomias maternas – ou vindas de uma geração ainda mais acima – são esteticamente perfeitas quando tocam, com bom toque, nas células gustativas. Também na cozinha só sabe bem o que é belo. Aquilo a que chamamos bom sabor é a beleza que o interior da boca detecta. Uma certa especialização particular: da boca ao estômago: a beleza sabe (de sabor e saber).

Em suma: a beleza transmite informações agradáveis às paredes do estômago, e eis a boa digestão. Há, pois, muitas belezas – e a arte, por vezes, apenas explora metade de pouco; distraída que está com os belos olhos de quem vem ver.

Sobre a beleza

GONÇALO M. TAVARES

Foto

s: ©

Lui

s M

aria

Ba

ptis

ta .

Dio

go

Ca

stro

Gui

ma

rãe

s -

LMB

. DC

G

4 5

Almack’s #1COMO NASCE UMA LITEIRA AERODINÂMICA NO SÉCULO XXI? COM ARTE E ENGENH(O)ARIA.

por Catarina da Ponte e Margarida Rocha de Oliveira

À conversa com...

6 7

OLHANDO PARA ALMACK´S #1 TORNA-SE DIFÍCIL IMAGINAR QUE, NA SUA ORIGEM, ESTEVE UM ESQUIÇO E QUE DESSES TRAÇOS NASCEU UM OBJECTO ÚNICO DE TECNOLOGIA DE PONTA. PELO NOME E PELO ASPECTO, PODERÍAMOS SER LEVADOS A PENSAR TRATAR-SE DO ÚLTIMO PROTÓTIPO DE UMA MARCA DE AUTOMÓVEIS INTERNACIONAL, UM DOS MUITOS “CONCEPTS CARS” APRESENTADOS NAS GRANDES FEIRAS INTERNACIONAIS. MAS TRATA-SE DA MAIS RECENTE OBRA DA ARTISTA ANA FONSECA, EM EXPOSIÇÃO NA ERMIDA DE BELÉM, QUE PRETENDE COLOCAR EM CONFRONTO AS PREOCUPAÇÕES CONTEMPORÂNEAS DA ECOLOGIA E UMA REFLEXÃO SOBRE HIERARQUIZAÇÃO SOCIAL E O ENRAIZAMENTO DO CARRO NA NOSSA HISTÓRIA PASSADA E ACTUAL.

DO CARRO À LITEIRA: EM MARCHA ATRÁS

A reflexão de Ana Fonseca sobre os carros como meios de transporte privilegiados ao longo da história tem origem em 2009, ano em que a criadora fez parte de um ateliê que a Italian Motor Village, num gesto mecenático, cedeu a um conjunto de artistas da associação Artinpark, permitindo-lhes que trabalhassem num espaço amplo sob uma das suas lojas em Lisboa, na Avenida da República. Foi aí que tomou maior consciência do mercado dos automóveis, e da sua quebra em tempos de crise, bem como da necessidade de trabahar sobre o assunto. À realidade actual, Ana associou a memória de um antigo transporte: a liteira.

Ana Fonseca foi assim beber ao imaginário das liteiras, usadas desde a Antiguidade até ao final do século XIX, para transportar pessoas em curtas distâncias. Estas cadeiras portá-teis, abertas ou fechadas, eram suportadas por duas varas laterais e carregadas por homens ou animais. Numa perfor-mance, a decorrer no dia da inauguração da exposição, a artista accionará a obra colocando-se dentro dela e fazendo-se transportar por quatro homens. De forma crítica e humorística – e não temendo ser acusada de elitista ou mesmo neo-colonialista –, Ana Fonseca utiliza a liteira como interacção entre o passado e o presente, de forma a gerar uma reflexão sobre o carro que, em todas as formas que adoptou, foi sempre objecto de desejo.

Apesar de se ter alterado ao longo da história, o carro funciona também como um “sinal dos tempos”. Na apropria-ção da liteira, a artista quis agarrar este símbolo, contrariando, porém, “a invenção da roda”. Ana Fonseca escolheu “um veículo que obriga a pensarmos o que nos custaria na pele produzir a energia que usamos todos os dias”. Nesse sentido, a liteira exige uma relação mais próxima com o próprio corpo e com quem a transporta. Para distanciar qualquer tipo de subordinação entre os transportadores e a pessoa que segue

sentada – neste caso, a própria artista, naquilo que se poderia considerar um statement sobre a própria profissão – Ana Fonseca esclarece: “Não é escravatura, é um desporto – o alteroficárdio com vertente holística –, uma relação de interdependência, que não pressupõe a soberania de um elemento sobre outro, porque eu também posso carregar”, comenta rindo.

ANA FONSECA E UM BAÚ CHEIO DE VIAGENS

Esta ironia e boa disposição são marcantes no cariz auto-biográfico do trabalho da artista. A sua identidade pessoal, atravessada pela multiculturalidade, interliga-se em permanência com a exploração da identidade histórica e cultural dos objectos que cria. Almack’s #1 tem na sua origem a biografia de Ana Fonseca, que é composta por viagens constantes, ora temporais, ora geográficas.

Fascinada desde pequena pelos objectos que o avô coleccionava, foi aí que começou a interessar-se mais pelas histórias dessa memorabilia familiar e pela História enquanto disciplina. Hoje, quando inicia um trabalho novo, Ana mergulha no estudo de cada época histórica, pesquisa até ficar completamente embrenhada num determinado período para, então, começar a criar. É a partir deste estudo e da observação constante do mundo em que vive que Ana interpreta, habita e associa o passado e o presente.

Além de um humor contagiante, também uma ligeira música na pronúncia denuncia as outras viagens que Ana Fonseca tem vindo a fazer ao longo da vida. De nacionalidade brasileira (São Paulo, 1978), a artista mudou-se ainda adolescente para Portugal. Mais tarde, estudou Belas-Artes em Londres, onde, durante sete anos, se sentiu como peixe na água. A facilidade de aceder a museus, que frequentava regularmente, e a aceitação da sua pessoa e do seu trabalho enquanto estrangeira fascinaram-na.

Apesar de passar por portuguesa, ainda hoje se podem sentir estas viagens na sua obra, no cruzamento de três culturas distintas: brasileira, portuguesa e inglesa. Na obra que a artista apresenta agora, o título remete para a cultura britânica – “Almack’s #1” é o nome de um clube de sociedade londrino do princípio do século XIX.

DO DESENHO LIVRE PARA O “ENGENHÊS”

Almack’s #1, que a artista apresenta agora na Ermida de Belém, nasce destas viagens, dos cruzamentos entre o passado e o presente e de um imaginário que inclui referências distantes, que a artista vai integrando nos seus trabalhos actuais. Apesar da sua formação multidisciplinar (fotografia, instalação, performance), Ana Fonseca pertence ao reduto daqueles para quem o desenho é base de toda a linguagem das artes visuais. E é através dele que começa por veicular a suas ideias e criatividade. Porém, contrariamente ao que tem sido habitual no percurso da artista, na origem desta obra não estão só a biografia, a mão e o desenho de Ana Fonseca.

Os aspectos técnicos ambiciosos desta obra exigiram que a liteira Almack’s #1 fosse produzida por várias mãos pelo país fora. Da arquitectura à engenharia, foram várias as empresas que estiveram envolvidas na materialização de uma liteira do século XXI, um projecto pouco comum para as empresas que aceitaram o desafio.

Inicialmente, os desenhos de Ana Fonseca foram interpretados por André Ataíde, que, habituado à expressão artística da mãe, a artista Cristina Ataíde, os transformou em desenhos técnicos ou, nas palavras de Ana Fonseca, em “engenhês”. O ateliê de André Ataíde, habituado também a funcionar com parceiros multidisciplinares, fez a ponte entre as ideias da artista e todo o grupo de produção, montagem, desenho e 3D.

Mas quando uma obra artística passa a ser produzida por uma indústria habituada a trabalhar com produtos comercializáveis, também é necessário definir um plano de produção. Os engenheiros do INEGI, Instituto de Engenharia Mecânica e Gestão Industrial, situado no Porto, estranharam o pedido. Quando perceberam que o projecto de Ana Fonseca implicava uma reflexão sobre a sociedade, a energia e os

transportes, entusiasmaram-se e reagiram positivamente “ao anacronismo e humor da liteira”, num projecto que iria “dar mais cor à criatividade dos engenheiros envolvidos”, segundo Nuno Correia, um dos profissionais activamente envolvidos com a obra de arte. Abraçaram a causa e logo se dispuseram a fazer os devidos ajustamentos geométricos ao modelo tridimensional de Ana Fonseca e a sua modelação parcelada para permitir que todo o processo de produção da obra pudesse funcionar de forma computadorizada. Para este “protótipo”, forma como encararam o desafio, os engenheiros do INEGI desenvolveram ainda a peça frontal e as partes laterais da liteira, em moldação manual, recorrendo a resinas e fibras de vidro.

E se, no início, Ana Fonseca pensara que os moldes da liteira seriam feitos manualmente, esta obra foi adquirindo contornos cada vez mais impressionantes. Os moldes da parte frontal e dos lados da liteira Almack’s #1 foram construídos em madeira, a partir do desenho tridimensional do INEGI, pela Esmomolde, uma empresa de Cortegaça, Ovar, que coloco a tecnologia de ponta ao serviço da arte.

O dia-a-dia de outra empresa do Norte, mais precisamente de Espinho, a Famopol, especializada na indústria de transformação de peças em polyester e na fabricação de todo o tipo de partes em materiais compósitos, também andava longe da produção de obras de arte. Porém, depois de analisarem este projecto fora do comum, decidiram lançar mãos à arte, adaptar as técnicas ao contexto artístico e utilizar métodos manuais. Indo também ao encontro do conceito da obra, usaram materiais “amigos do ambiente”, tais como resinas, mantas de vidro, para fabricar moldes e peças, e tintas aquosas para a pintura final da liteira. Com o intuito de “ajudar neste projecto ambicioso”, também o dono da empresa Acrílicos Salvador Nunes colocou ao serviço da liteira o acrílico cortado a laser utilizado na cápsula, a sua moldagem e a sua realização.

Com o fôlego dado pela indústria portuguesa, onde apenas interferiu, sempre que lhe foi solicitado, com o apoio estético, Ana Fonseca não podia estar mais satisfeita ao ver a sua obra crescer e tornar-se num projecto de dimensão considerável. Enquanto os desenhos ganham vida pelas mãos da

engenharia eficiente da indústria portuguesa, a artista dedicou-se ao interior de Almack’s #1. Numa estética que reúne dois tempos – o futurismo e o estilo império –, a artista criou elementos decorativos baseados nos frescos e detalhes de mobiliário imperial, colocando esfinges no assento e, até, uma coroa de louros. No “tablier” instalou um mp4 e respectivas colunas de som. Depois da integração de todos os componentes da liteira pelo INEGI – agora sim – todos a bordo: a viagem parece estar pronta para começar.

A OBRA VIVA NA PERFORMANCE

Almack’s #1 habita na Ermida de Belém como instalação, acompanhada por um vídeo promocional que explica o conceito. No entanto, Ana Fonseca escolheu apresentá-la numa performance organizada para a inauguração da exposição, que funcionará como viagem inaugural da liteira e uma ignição no pensamento de quem a acompanhar. Neste momento, todas as questões até aqui contidas em desenho e materializadas por arquitectos, engenheiros e todos os que abraçaram a construção desta obra, serão espoletadas e activadas pela performance.

A artista será, então, carregada desde o Museu dos Coches até à Ermida de Belém dentro da liteira por quatro homens. Além de roupas criadas para esta ocasião pela dupla de moda White Tent, os cinco performers “vestirão” a obra e, como numa peregrinação, o público seguirá esta viagem. A pé.  

Ilust

raç

õe

s: ©

Ana

Fo

nse

ca

OLHANDO PARA ALMACK´S #1 TORNA-SE DIFÍCIL IMAGINAR QUE, NA SUA ORIGEM, ESTEVE UM ESQUIÇO E QUE DESSES TRAÇOS NASCEU UM OBJECTO ÚNICO DE TECNOLOGIA DE PONTA. PELO NOME E PELO ASPECTO, PODERÍAMOS SER LEVADOS A PENSAR TRATAR-SE DO ÚLTIMO PROTÓTIPO DE UMA MARCA DE AUTOMÓVEIS INTERNACIONAL, UM DOS MUITOS “CONCEPTS CARS” APRESENTADOS NAS GRANDES FEIRAS INTERNACIONAIS. MAS TRATA-SE DA MAIS RECENTE OBRA DA ARTISTA ANA FONSECA, EM EXPOSIÇÃO NA ERMIDA DE BELÉM, QUE PRETENDE COLOCAR EM CONFRONTO AS PREOCUPAÇÕES CONTEMPORÂNEAS DA ECOLOGIA E UMA REFLEXÃO SOBRE HIERARQUIZAÇÃO SOCIAL E O ENRAIZAMENTO DO CARRO NA NOSSA HISTÓRIA PASSADA E ACTUAL.

DO CARRO À LITEIRA: EM MARCHA ATRÁS

A reflexão de Ana Fonseca sobre os carros como meios de transporte privilegiados ao longo da história tem origem em 2009, ano em que a criadora fez parte de um ateliê que a Italian Motor Village, num gesto mecenático, cedeu a um conjunto de artistas da associação Artinpark, permitindo-lhes que trabalhassem num espaço amplo sob uma das suas lojas em Lisboa, na Avenida da República. Foi aí que tomou maior consciência do mercado dos automóveis, e da sua quebra em tempos de crise, bem como da necessidade de trabahar sobre o assunto. À realidade actual, Ana associou a memória de um antigo transporte: a liteira.

Ana Fonseca foi assim beber ao imaginário das liteiras, usadas desde a Antiguidade até ao final do século XIX, para transportar pessoas em curtas distâncias. Estas cadeiras portá-teis, abertas ou fechadas, eram suportadas por duas varas laterais e carregadas por homens ou animais. Numa perfor-mance, a decorrer no dia da inauguração da exposição, a artista accionará a obra colocando-se dentro dela e fazendo-se transportar por quatro homens. De forma crítica e humorística – e não temendo ser acusada de elitista ou mesmo neo-colonialista –, Ana Fonseca utiliza a liteira como interacção entre o passado e o presente, de forma a gerar uma reflexão sobre o carro que, em todas as formas que adoptou, foi sempre objecto de desejo.

Apesar de se ter alterado ao longo da história, o carro funciona também como um “sinal dos tempos”. Na apropria-ção da liteira, a artista quis agarrar este símbolo, contrariando, porém, “a invenção da roda”. Ana Fonseca escolheu “um veículo que obriga a pensarmos o que nos custaria na pele produzir a energia que usamos todos os dias”. Nesse sentido, a liteira exige uma relação mais próxima com o próprio corpo e com quem a transporta. Para distanciar qualquer tipo de subordinação entre os transportadores e a pessoa que segue

8 9

sentada – neste caso, a própria artista, naquilo que se poderia considerar um statement sobre a própria profissão – Ana Fonseca esclarece: “Não é escravatura, é um desporto – o alteroficárdio com vertente holística –, uma relação de interdependência, que não pressupõe a soberania de um elemento sobre outro, porque eu também posso carregar”, comenta rindo.

ANA FONSECA E UM BAÚ CHEIO DE VIAGENS

Esta ironia e boa disposição são marcantes no cariz auto-biográfico do trabalho da artista. A sua identidade pessoal, atravessada pela multiculturalidade, interliga-se em permanência com a exploração da identidade histórica e cultural dos objectos que cria. Almack’s #1 tem na sua origem a biografia de Ana Fonseca, que é composta por viagens constantes, ora temporais, ora geográficas.

Fascinada desde pequena pelos objectos que o avô coleccionava, foi aí que começou a interessar-se mais pelas histórias dessa memorabilia familiar e pela História enquanto disciplina. Hoje, quando inicia um trabalho novo, Ana mergulha no estudo de cada época histórica, pesquisa até ficar completamente embrenhada num determinado período para, então, começar a criar. É a partir deste estudo e da observação constante do mundo em que vive que Ana interpreta, habita e associa o passado e o presente.

Além de um humor contagiante, também uma ligeira música na pronúncia denuncia as outras viagens que Ana Fonseca tem vindo a fazer ao longo da vida. De nacionalidade brasileira (São Paulo, 1978), a artista mudou-se ainda adolescente para Portugal. Mais tarde, estudou Belas-Artes em Londres, onde, durante sete anos, se sentiu como peixe na água. A facilidade de aceder a museus, que frequentava regularmente, e a aceitação da sua pessoa e do seu trabalho enquanto estrangeira fascinaram-na.

Apesar de passar por portuguesa, ainda hoje se podem sentir estas viagens na sua obra, no cruzamento de três culturas distintas: brasileira, portuguesa e inglesa. Na obra que a artista apresenta agora, o título remete para a cultura britânica – “Almack’s #1” é o nome de um clube de sociedade londrino do princípio do século XIX.

DO DESENHO LIVRE PARA O “ENGENHÊS”

Almack’s #1, que a artista apresenta agora na Ermida de Belém, nasce destas viagens, dos cruzamentos entre o passado e o presente e de um imaginário que inclui referências distantes, que a artista vai integrando nos seus trabalhos actuais. Apesar da sua formação multidisciplinar (fotografia, instalação, performance), Ana Fonseca pertence ao reduto daqueles para quem o desenho é base de toda a linguagem das artes visuais. E é através dele que começa por veicular a suas ideias e criatividade. Porém, contrariamente ao que tem sido habitual no percurso da artista, na origem desta obra não estão só a biografia, a mão e o desenho de Ana Fonseca.

Os aspectos técnicos ambiciosos desta obra exigiram que a liteira Almack’s #1 fosse produzida por várias mãos pelo país fora. Da arquitectura à engenharia, foram várias as empresas que estiveram envolvidas na materialização de uma liteira do século XXI, um projecto pouco comum para as empresas que aceitaram o desafio.

Inicialmente, os desenhos de Ana Fonseca foram interpretados por André Ataíde, que, habituado à expressão artística da mãe, a artista Cristina Ataíde, os transformou em desenhos técnicos ou, nas palavras de Ana Fonseca, em “engenhês”. O ateliê de André Ataíde, habituado também a funcionar com parceiros multidisciplinares, fez a ponte entre as ideias da artista e todo o grupo de produção, montagem, desenho e 3D.

Mas quando uma obra artística passa a ser produzida por uma indústria habituada a trabalhar com produtos comercializáveis, também é necessário definir um plano de produção. Os engenheiros do INEGI, Instituto de Engenharia Mecânica e Gestão Industrial, situado no Porto, estranharam o pedido. Quando perceberam que o projecto de Ana Fonseca implicava uma reflexão sobre a sociedade, a energia e os

transportes, entusiasmaram-se e reagiram positivamente “ao anacronismo e humor da liteira”, num projecto que iria “dar mais cor à criatividade dos engenheiros envolvidos”, segundo Nuno Correia, um dos profissionais activamente envolvidos com a obra de arte. Abraçaram a causa e logo se dispuseram a fazer os devidos ajustamentos geométricos ao modelo tridimensional de Ana Fonseca e a sua modelação parcelada para permitir que todo o processo de produção da obra pudesse funcionar de forma computadorizada. Para este “protótipo”, forma como encararam o desafio, os engenheiros do INEGI desenvolveram ainda a peça frontal e as partes laterais da liteira, em moldação manual, recorrendo a resinas e fibras de vidro.

E se, no início, Ana Fonseca pensara que os moldes da liteira seriam feitos manualmente, esta obra foi adquirindo contornos cada vez mais impressionantes. Os moldes da parte frontal e dos lados da liteira Almack’s #1 foram construídos em madeira, a partir do desenho tridimensional do INEGI, pela Esmomolde, uma empresa de Cortegaça, Ovar, que coloco a tecnologia de ponta ao serviço da arte.

O dia-a-dia de outra empresa do Norte, mais precisamente de Espinho, a Famopol, especializada na indústria de transformação de peças em polyester e na fabricação de todo o tipo de partes em materiais compósitos, também andava longe da produção de obras de arte. Porém, depois de analisarem este projecto fora do comum, decidiram lançar mãos à arte, adaptar as técnicas ao contexto artístico e utilizar métodos manuais. Indo também ao encontro do conceito da obra, usaram materiais “amigos do ambiente”, tais como resinas, mantas de vidro, para fabricar moldes e peças, e tintas aquosas para a pintura final da liteira. Com o intuito de “ajudar neste projecto ambicioso”, também o dono da empresa Acrílicos Salvador Nunes colocou ao serviço da liteira o acrílico cortado a laser utilizado na cápsula, a sua moldagem e a sua realização.

Com o fôlego dado pela indústria portuguesa, onde apenas interferiu, sempre que lhe foi solicitado, com o apoio estético, Ana Fonseca não podia estar mais satisfeita ao ver a sua obra crescer e tornar-se num projecto de dimensão considerável. Enquanto os desenhos ganham vida pelas mãos da

engenharia eficiente da indústria portuguesa, a artista dedicou-se ao interior de Almack’s #1. Numa estética que reúne dois tempos – o futurismo e o estilo império –, a artista criou elementos decorativos baseados nos frescos e detalhes de mobiliário imperial, colocando esfinges no assento e, até, uma coroa de louros. No “tablier” instalou um mp4 e respectivas colunas de som. Depois da integração de todos os componentes da liteira pelo INEGI – agora sim – todos a bordo: a viagem parece estar pronta para começar.

A OBRA VIVA NA PERFORMANCE

Almack’s #1 habita na Ermida de Belém como instalação, acompanhada por um vídeo promocional que explica o conceito. No entanto, Ana Fonseca escolheu apresentá-la numa performance organizada para a inauguração da exposição, que funcionará como viagem inaugural da liteira e uma ignição no pensamento de quem a acompanhar. Neste momento, todas as questões até aqui contidas em desenho e materializadas por arquitectos, engenheiros e todos os que abraçaram a construção desta obra, serão espoletadas e activadas pela performance.

A artista será, então, carregada desde o Museu dos Coches até à Ermida de Belém dentro da liteira por quatro homens. Além de roupas criadas para esta ocasião pela dupla de moda White Tent, os cinco performers “vestirão” a obra e, como numa peregrinação, o público seguirá esta viagem. A pé.  

OLHANDO PARA ALMACK´S #1 TORNA-SE DIFÍCIL IMAGINAR QUE, NA SUA ORIGEM, ESTEVE UM ESQUIÇO E QUE DESSES TRAÇOS NASCEU UM OBJECTO ÚNICO DE TECNOLOGIA DE PONTA. PELO NOME E PELO ASPECTO, PODERÍAMOS SER LEVADOS A PENSAR TRATAR-SE DO ÚLTIMO PROTÓTIPO DE UMA MARCA DE AUTOMÓVEIS INTERNACIONAL, UM DOS MUITOS “CONCEPTS CARS” APRESENTADOS NAS GRANDES FEIRAS INTERNACIONAIS. MAS TRATA-SE DA MAIS RECENTE OBRA DA ARTISTA ANA FONSECA, EM EXPOSIÇÃO NA ERMIDA DE BELÉM, QUE PRETENDE COLOCAR EM CONFRONTO AS PREOCUPAÇÕES CONTEMPORÂNEAS DA ECOLOGIA E UMA REFLEXÃO SOBRE HIERARQUIZAÇÃO SOCIAL E O ENRAIZAMENTO DO CARRO NA NOSSA HISTÓRIA PASSADA E ACTUAL.

DO CARRO À LITEIRA: EM MARCHA ATRÁS

A reflexão de Ana Fonseca sobre os carros como meios de transporte privilegiados ao longo da história tem origem em 2009, ano em que a criadora fez parte de um ateliê que a Italian Motor Village, num gesto mecenático, cedeu a um conjunto de artistas da associação Artinpark, permitindo-lhes que trabalhassem num espaço amplo sob uma das suas lojas em Lisboa, na Avenida da República. Foi aí que tomou maior consciência do mercado dos automóveis, e da sua quebra em tempos de crise, bem como da necessidade de trabahar sobre o assunto. À realidade actual, Ana associou a memória de um antigo transporte: a liteira.

Ana Fonseca foi assim beber ao imaginário das liteiras, usadas desde a Antiguidade até ao final do século XIX, para transportar pessoas em curtas distâncias. Estas cadeiras portá-teis, abertas ou fechadas, eram suportadas por duas varas laterais e carregadas por homens ou animais. Numa perfor-mance, a decorrer no dia da inauguração da exposição, a artista accionará a obra colocando-se dentro dela e fazendo-se transportar por quatro homens. De forma crítica e humorística – e não temendo ser acusada de elitista ou mesmo neo-colonialista –, Ana Fonseca utiliza a liteira como interacção entre o passado e o presente, de forma a gerar uma reflexão sobre o carro que, em todas as formas que adoptou, foi sempre objecto de desejo.

Apesar de se ter alterado ao longo da história, o carro funciona também como um “sinal dos tempos”. Na apropria-ção da liteira, a artista quis agarrar este símbolo, contrariando, porém, “a invenção da roda”. Ana Fonseca escolheu “um veículo que obriga a pensarmos o que nos custaria na pele produzir a energia que usamos todos os dias”. Nesse sentido, a liteira exige uma relação mais próxima com o próprio corpo e com quem a transporta. Para distanciar qualquer tipo de subordinação entre os transportadores e a pessoa que segue

sentada – neste caso, a própria artista, naquilo que se poderia considerar um statement sobre a própria profissão – Ana Fonseca esclarece: “Não é escravatura, é um desporto – o alteroficárdio com vertente holística –, uma relação de interdependência, que não pressupõe a soberania de um elemento sobre outro, porque eu também posso carregar”, comenta rindo.

ANA FONSECA E UM BAÚ CHEIO DE VIAGENS

Esta ironia e boa disposição são marcantes no cariz auto-biográfico do trabalho da artista. A sua identidade pessoal, atravessada pela multiculturalidade, interliga-se em permanência com a exploração da identidade histórica e cultural dos objectos que cria. Almack’s #1 tem na sua origem a biografia de Ana Fonseca, que é composta por viagens constantes, ora temporais, ora geográficas.

Fascinada desde pequena pelos objectos que o avô coleccionava, foi aí que começou a interessar-se mais pelas histórias dessa memorabilia familiar e pela História enquanto disciplina. Hoje, quando inicia um trabalho novo, Ana mergulha no estudo de cada época histórica, pesquisa até ficar completamente embrenhada num determinado período para, então, começar a criar. É a partir deste estudo e da observação constante do mundo em que vive que Ana interpreta, habita e associa o passado e o presente.

Além de um humor contagiante, também uma ligeira música na pronúncia denuncia as outras viagens que Ana Fonseca tem vindo a fazer ao longo da vida. De nacionalidade brasileira (São Paulo, 1978), a artista mudou-se ainda adolescente para Portugal. Mais tarde, estudou Belas-Artes em Londres, onde, durante sete anos, se sentiu como peixe na água. A facilidade de aceder a museus, que frequentava regularmente, e a aceitação da sua pessoa e do seu trabalho enquanto estrangeira fascinaram-na.

Apesar de passar por portuguesa, ainda hoje se podem sentir estas viagens na sua obra, no cruzamento de três culturas distintas: brasileira, portuguesa e inglesa. Na obra que a artista apresenta agora, o título remete para a cultura britânica – “Almack’s #1” é o nome de um clube de sociedade londrino do princípio do século XIX.

10 11

DO DESENHO LIVRE PARA O “ENGENHÊS”

Almack’s #1, que a artista apresenta agora na Ermida de Belém, nasce destas viagens, dos cruzamentos entre o passado e o presente e de um imaginário que inclui referências distantes, que a artista vai integrando nos seus trabalhos actuais. Apesar da sua formação multidisciplinar (fotografia, instalação, performance), Ana Fonseca pertence ao reduto daqueles para quem o desenho é base de toda a linguagem das artes visuais. E é através dele que começa por veicular a suas ideias e criatividade. Porém, contrariamente ao que tem sido habitual no percurso da artista, na origem desta obra não estão só a biografia, a mão e o desenho de Ana Fonseca.

Os aspectos técnicos ambiciosos desta obra exigiram que a liteira Almack’s #1 fosse produzida por várias mãos pelo país fora. Da arquitectura à engenharia, foram várias as empresas que estiveram envolvidas na materialização de uma liteira do século XXI, um projecto pouco comum para as empresas que aceitaram o desafio.

Inicialmente, os desenhos de Ana Fonseca foram interpretados por André Ataíde, que, habituado à expressão artística da mãe, a artista Cristina Ataíde, os transformou em desenhos técnicos ou, nas palavras de Ana Fonseca, em “engenhês”. O ateliê de André Ataíde, habituado também a funcionar com parceiros multidisciplinares, fez a ponte entre as ideias da artista e todo o grupo de produção, montagem, desenho e 3D.

Mas quando uma obra artística passa a ser produzida por uma indústria habituada a trabalhar com produtos comercializáveis, também é necessário definir um plano de produção. Os engenheiros do INEGI, Instituto de Engenharia Mecânica e Gestão Industrial, situado no Porto, estranharam o pedido. Quando perceberam que o projecto de Ana Fonseca implicava uma reflexão sobre a sociedade, a energia e os

transportes, entusiasmaram-se e reagiram positivamente “ao anacronismo e humor da liteira”, num projecto que iria “dar mais cor à criatividade dos engenheiros envolvidos”, segundo Nuno Correia, um dos profissionais activamente envolvidos com a obra de arte. Abraçaram a causa e logo se dispuseram a fazer os devidos ajustamentos geométricos ao modelo tridimensional de Ana Fonseca e a sua modelação parcelada para permitir que todo o processo de produção da obra pudesse funcionar de forma computadorizada. Para este “protótipo”, forma como encararam o desafio, os engenheiros do INEGI desenvolveram ainda a peça frontal e as partes laterais da liteira, em moldação manual, recorrendo a resinas e fibras de vidro.

E se, no início, Ana Fonseca pensara que os moldes da liteira seriam feitos manualmente, esta obra foi adquirindo contornos cada vez mais impressionantes. Os moldes da parte frontal e dos lados da liteira Almack’s #1 foram construídos em madeira, a partir do desenho tridimensional do INEGI, pela Esmomolde, uma empresa de Cortegaça, Ovar, que coloco a tecnologia de ponta ao serviço da arte.

O dia-a-dia de outra empresa do Norte, mais precisamente de Espinho, a Famopol, especializada na indústria de transformação de peças em polyester e na fabricação de todo o tipo de partes em materiais compósitos, também andava longe da produção de obras de arte. Porém, depois de analisarem este projecto fora do comum, decidiram lançar mãos à arte, adaptar as técnicas ao contexto artístico e utilizar métodos manuais. Indo também ao encontro do conceito da obra, usaram materiais “amigos do ambiente”, tais como resinas, mantas de vidro, para fabricar moldes e peças, e tintas aquosas para a pintura final da liteira. Com o intuito de “ajudar neste projecto ambicioso”, também o dono da empresa Acrílicos Salvador Nunes colocou ao serviço da liteira o acrílico cortado a laser utilizado na cápsula, a sua moldagem e a sua realização.

Com o fôlego dado pela indústria portuguesa, onde apenas interferiu, sempre que lhe foi solicitado, com o apoio estético, Ana Fonseca não podia estar mais satisfeita ao ver a sua obra crescer e tornar-se num projecto de dimensão considerável. Enquanto os desenhos ganham vida pelas mãos da

engenharia eficiente da indústria portuguesa, a artista dedicou-se ao interior de Almack’s #1. Numa estética que reúne dois tempos – o futurismo e o estilo império –, a artista criou elementos decorativos baseados nos frescos e detalhes de mobiliário imperial, colocando esfinges no assento e, até, uma coroa de louros. No “tablier” instalou um mp4 e respectivas colunas de som. Depois da integração de todos os componentes da liteira pelo INEGI – agora sim – todos a bordo: a viagem parece estar pronta para começar.

A OBRA VIVA NA PERFORMANCE

Almack’s #1 habita na Ermida de Belém como instalação, acompanhada por um vídeo promocional que explica o conceito. No entanto, Ana Fonseca escolheu apresentá-la numa performance organizada para a inauguração da exposição, que funcionará como viagem inaugural da liteira e uma ignição no pensamento de quem a acompanhar. Neste momento, todas as questões até aqui contidas em desenho e materializadas por arquitectos, engenheiros e todos os que abraçaram a construção desta obra, serão espoletadas e activadas pela performance.

A artista será, então, carregada desde o Museu dos Coches até à Ermida de Belém dentro da liteira por quatro homens. Além de roupas criadas para esta ocasião pela dupla de moda White Tent, os cinco performers “vestirão” a obra e, como numa peregrinação, o público seguirá esta viagem. A pé.  

OLHANDO PARA ALMACK´S #1 TORNA-SE DIFÍCIL IMAGINAR QUE, NA SUA ORIGEM, ESTEVE UM ESQUIÇO E QUE DESSES TRAÇOS NASCEU UM OBJECTO ÚNICO DE TECNOLOGIA DE PONTA. PELO NOME E PELO ASPECTO, PODERÍAMOS SER LEVADOS A PENSAR TRATAR-SE DO ÚLTIMO PROTÓTIPO DE UMA MARCA DE AUTOMÓVEIS INTERNACIONAL, UM DOS MUITOS “CONCEPTS CARS” APRESENTADOS NAS GRANDES FEIRAS INTERNACIONAIS. MAS TRATA-SE DA MAIS RECENTE OBRA DA ARTISTA ANA FONSECA, EM EXPOSIÇÃO NA ERMIDA DE BELÉM, QUE PRETENDE COLOCAR EM CONFRONTO AS PREOCUPAÇÕES CONTEMPORÂNEAS DA ECOLOGIA E UMA REFLEXÃO SOBRE HIERARQUIZAÇÃO SOCIAL E O ENRAIZAMENTO DO CARRO NA NOSSA HISTÓRIA PASSADA E ACTUAL.

DO CARRO À LITEIRA: EM MARCHA ATRÁS

A reflexão de Ana Fonseca sobre os carros como meios de transporte privilegiados ao longo da história tem origem em 2009, ano em que a criadora fez parte de um ateliê que a Italian Motor Village, num gesto mecenático, cedeu a um conjunto de artistas da associação Artinpark, permitindo-lhes que trabalhassem num espaço amplo sob uma das suas lojas em Lisboa, na Avenida da República. Foi aí que tomou maior consciência do mercado dos automóveis, e da sua quebra em tempos de crise, bem como da necessidade de trabahar sobre o assunto. À realidade actual, Ana associou a memória de um antigo transporte: a liteira.

Ana Fonseca foi assim beber ao imaginário das liteiras, usadas desde a Antiguidade até ao final do século XIX, para transportar pessoas em curtas distâncias. Estas cadeiras portá-teis, abertas ou fechadas, eram suportadas por duas varas laterais e carregadas por homens ou animais. Numa perfor-mance, a decorrer no dia da inauguração da exposição, a artista accionará a obra colocando-se dentro dela e fazendo-se transportar por quatro homens. De forma crítica e humorística – e não temendo ser acusada de elitista ou mesmo neo-colonialista –, Ana Fonseca utiliza a liteira como interacção entre o passado e o presente, de forma a gerar uma reflexão sobre o carro que, em todas as formas que adoptou, foi sempre objecto de desejo.

Apesar de se ter alterado ao longo da história, o carro funciona também como um “sinal dos tempos”. Na apropria-ção da liteira, a artista quis agarrar este símbolo, contrariando, porém, “a invenção da roda”. Ana Fonseca escolheu “um veículo que obriga a pensarmos o que nos custaria na pele produzir a energia que usamos todos os dias”. Nesse sentido, a liteira exige uma relação mais próxima com o próprio corpo e com quem a transporta. Para distanciar qualquer tipo de subordinação entre os transportadores e a pessoa que segue

sentada – neste caso, a própria artista, naquilo que se poderia considerar um statement sobre a própria profissão – Ana Fonseca esclarece: “Não é escravatura, é um desporto – o alteroficárdio com vertente holística –, uma relação de interdependência, que não pressupõe a soberania de um elemento sobre outro, porque eu também posso carregar”, comenta rindo.

ANA FONSECA E UM BAÚ CHEIO DE VIAGENS

Esta ironia e boa disposição são marcantes no cariz auto-biográfico do trabalho da artista. A sua identidade pessoal, atravessada pela multiculturalidade, interliga-se em permanência com a exploração da identidade histórica e cultural dos objectos que cria. Almack’s #1 tem na sua origem a biografia de Ana Fonseca, que é composta por viagens constantes, ora temporais, ora geográficas.

Fascinada desde pequena pelos objectos que o avô coleccionava, foi aí que começou a interessar-se mais pelas histórias dessa memorabilia familiar e pela História enquanto disciplina. Hoje, quando inicia um trabalho novo, Ana mergulha no estudo de cada época histórica, pesquisa até ficar completamente embrenhada num determinado período para, então, começar a criar. É a partir deste estudo e da observação constante do mundo em que vive que Ana interpreta, habita e associa o passado e o presente.

Além de um humor contagiante, também uma ligeira música na pronúncia denuncia as outras viagens que Ana Fonseca tem vindo a fazer ao longo da vida. De nacionalidade brasileira (São Paulo, 1978), a artista mudou-se ainda adolescente para Portugal. Mais tarde, estudou Belas-Artes em Londres, onde, durante sete anos, se sentiu como peixe na água. A facilidade de aceder a museus, que frequentava regularmente, e a aceitação da sua pessoa e do seu trabalho enquanto estrangeira fascinaram-na.

Apesar de passar por portuguesa, ainda hoje se podem sentir estas viagens na sua obra, no cruzamento de três culturas distintas: brasileira, portuguesa e inglesa. Na obra que a artista apresenta agora, o título remete para a cultura britânica – “Almack’s #1” é o nome de um clube de sociedade londrino do princípio do século XIX.

DO DESENHO LIVRE PARA O “ENGENHÊS”

Almack’s #1, que a artista apresenta agora na Ermida de Belém, nasce destas viagens, dos cruzamentos entre o passado e o presente e de um imaginário que inclui referências distantes, que a artista vai integrando nos seus trabalhos actuais. Apesar da sua formação multidisciplinar (fotografia, instalação, performance), Ana Fonseca pertence ao reduto daqueles para quem o desenho é base de toda a linguagem das artes visuais. E é através dele que começa por veicular a suas ideias e criatividade. Porém, contrariamente ao que tem sido habitual no percurso da artista, na origem desta obra não estão só a biografia, a mão e o desenho de Ana Fonseca.

Os aspectos técnicos ambiciosos desta obra exigiram que a liteira Almack’s #1 fosse produzida por várias mãos pelo país fora. Da arquitectura à engenharia, foram várias as empresas que estiveram envolvidas na materialização de uma liteira do século XXI, um projecto pouco comum para as empresas que aceitaram o desafio.

Inicialmente, os desenhos de Ana Fonseca foram interpretados por André Ataíde, que, habituado à expressão artística da mãe, a artista Cristina Ataíde, os transformou em desenhos técnicos ou, nas palavras de Ana Fonseca, em “engenhês”. O ateliê de André Ataíde, habituado também a funcionar com parceiros multidisciplinares, fez a ponte entre as ideias da artista e todo o grupo de produção, montagem, desenho e 3D.

Mas quando uma obra artística passa a ser produzida por uma indústria habituada a trabalhar com produtos comercializáveis, também é necessário definir um plano de produção. Os engenheiros do INEGI, Instituto de Engenharia Mecânica e Gestão Industrial, situado no Porto, estranharam o pedido. Quando perceberam que o projecto de Ana Fonseca implicava uma reflexão sobre a sociedade, a energia e os

transportes, entusiasmaram-se e reagiram positivamente “ao anacronismo e humor da liteira”, num projecto que iria “dar mais cor à criatividade dos engenheiros envolvidos”, segundo Nuno Correia, um dos profissionais activamente envolvidos com a obra de arte. Abraçaram a causa e logo se dispuseram a fazer os devidos ajustamentos geométricos ao modelo tridimensional de Ana Fonseca e a sua modelação parcelada para permitir que todo o processo de produção da obra pudesse funcionar de forma computadorizada. Para este “protótipo”, forma como encararam o desafio, os engenheiros do INEGI desenvolveram ainda a peça frontal e as partes laterais da liteira, em moldação manual, recorrendo a resinas e fibras de vidro.

E se, no início, Ana Fonseca pensara que os moldes da liteira seriam feitos manualmente, esta obra foi adquirindo contornos cada vez mais impressionantes. Os moldes da parte frontal e dos lados da liteira Almack’s #1 foram construídos em madeira, a partir do desenho tridimensional do INEGI, pela Esmomolde, uma empresa de Cortegaça, Ovar, que coloco a tecnologia de ponta ao serviço da arte.

O dia-a-dia de outra empresa do Norte, mais precisamente de Espinho, a Famopol, especializada na indústria de transformação de peças em polyester e na fabricação de todo o tipo de partes em materiais compósitos, também andava longe da produção de obras de arte. Porém, depois de analisarem este projecto fora do comum, decidiram lançar mãos à arte, adaptar as técnicas ao contexto artístico e utilizar métodos manuais. Indo também ao encontro do conceito da obra, usaram materiais “amigos do ambiente”, tais como resinas, mantas de vidro, para fabricar moldes e peças, e tintas aquosas para a pintura final da liteira. Com o intuito de “ajudar neste projecto ambicioso”, também o dono da empresa Acrílicos Salvador Nunes colocou ao serviço da liteira o acrílico cortado a laser utilizado na cápsula, a sua moldagem e a sua realização.

Com o fôlego dado pela indústria portuguesa, onde apenas interferiu, sempre que lhe foi solicitado, com o apoio estético, Ana Fonseca não podia estar mais satisfeita ao ver a sua obra crescer e tornar-se num projecto de dimensão considerável. Enquanto os desenhos ganham vida pelas mãos da

12 13

engenharia eficiente da indústria portuguesa, a artista dedicou-se ao interior de Almack’s #1. Numa estética que reúne dois tempos – o futurismo e o estilo império –, a artista criou elementos decorativos baseados nos frescos e detalhes de mobiliário imperial, colocando esfinges no assento e, até, uma coroa de louros. No “tablier” instalou um mp4 e respectivas colunas de som. Depois da integração de todos os componentes da liteira pelo INEGI – agora sim – todos a bordo: a viagem parece estar pronta para começar.

A OBRA VIVA NA PERFORMANCE

Almack’s #1 habita na Ermida de Belém como instalação, acompanhada por um vídeo promocional que explica o conceito. No entanto, Ana Fonseca escolheu apresentá-la numa performance organizada para a inauguração da exposição, que funcionará como viagem inaugural da liteira e uma ignição no pensamento de quem a acompanhar. Neste momento, todas as questões até aqui contidas em desenho e materializadas por arquitectos, engenheiros e todos os que abraçaram a construção desta obra, serão espoletadas e activadas pela performance.

A artista será, então, carregada desde o Museu dos Coches até à Ermida de Belém dentro da liteira por quatro homens. Além de roupas criadas para esta ocasião pela dupla de moda White Tent, os cinco performers “vestirão” a obra e, como numa peregrinação, o público seguirá esta viagem. A pé.  

Ilust

raç

ão

© P

ed

ro P

alrã

o

14 15

O MUSEU NACIONAL DOS COCHES É UM DOS ESPAÇOS MUSEOLÓGICOS MAIS ANTIGOS DO PAÍS E PARA O ANO VAI MUDAR DE CASA PELA PRIMEIRA VEZ. SILVANA BESSONE, DIRECTORA DO MUSEU DESDE 1991, FALOU COM A EFEMÉRIDE SOBRE O PASSADO, PRESENTE E FUTURO DESTE MUSEU, QUE SE LANÇA AGORA NA CONTEMPORANEIDADE.

Catarina Cruz: O Museu Nacional dos Coches completa este ano 106 anos. Continua a ser o museu mais visitado do país?Silvana Bessone: Como museu é o mais visitado. Há também outros espaços, como Serralves e os das artes contemporâneas, que têm muitos visitantes, por vezes até mais, mas que são os mesmos que voltam. Aqui, são visitantes que vêm com

a escola ou turistas que chegam a Portugal, que quando regressam pela segunda vez provavelmente já não visitam este museu. Neste momento estamos nos 230 mil visitantes, [dados] relativos a 2010.

C.C.: O que torna esta colecção única a nível mundial?S.B.: Nós tivemos a sorte de não ter tido as guerras mundiais, que destruíram muito património hipomóvel, e tivemos a sorte de conseguir que a família real o protegesse, chegando até aos dias da rainha D. Amélia. E a Dona Amélia teve essa visão, de facto vanguardista à época, de fazer um museu. Foi o primeiro museu europeu, ou mundial, para sermos mais precisos, de coches e até, se formos mais técnicos,

de transportes, porque era o transporte na época. Este sempre foi um museu muito visitado pela qualidade da colecção. O núcleo principal é toda uma colecção real, cujo modelo mais antigo vem do século XVII – como modelo é de finais do séc. XVI, mas só chegou a Portugal no séc. XVII, que é o coche de Filipe II, do período espanhol. Daí para a frente temos exemplares franceses do séc. XVII; séc. XVIII francês, italiano, inglês; séc. XIX inglês e alguns portugueses, como é óbvio.

C.C.: A colecção vai mudar de casa pela primeira vez. Confirma-se a abertura do novo museu no início de 2012?S.B.: A ideia que está perspectivada é de abrir em Maio – no dia internacional dos museus [dia 18] ou no dia do museu [dia 23] – ou Junho. Aí, teremos de mudar de paradigma, esquecer um bocadinho este espaço e pensar novo, pensar contemporâneo.

C.C.: Esse exercício já começou a ser feito?S.B.: Eu, pessoalmente, já comecei a fazê-lo. Agora até pedi para me porem cá a maqueta [do novo edifício] para as pessoas começarem a familiarizar-se. Estamos aqui há muitos anos e este é um edifício… é um museu-monumento, como costumo dizer. Tem esta componente monumento que também é muito atractiva para os visitantes, que quando vêem a sala ficam espantados. A sala com os coches é uma caixa de jóias com as jóias dentro. Esse impacto é único. Todos os nossos colegas em museus internacionais ficaram muito chocados com a ideia de se tirar daqui o museu. Eu, no entanto, considerei que tínhamos falta de espaço e que era importante fazer um prolongamento do museu. Optou-se pela ideia de fazer um projecto de raiz, inovador, e, a partir do momento em que foi tomada essa decisão, abracei a causa.

C.C.: Vão continuar a utilizar o espaço do actual museu?S.B.: Propus, e espero que isso tenha sido aceite, deixar aqui coches e fazer um núcleo de arte equestre, ligado à utilização do picadeiro e com uma referência, também, ao cavalo lusitano. Portanto, ser o complemento “coche – cavalo”.

C.C.: O novo museu, com uma construção moderna e minimal, é uma mais-valia para as peças da colecção?S.B.: Penso que sim, que vamos valorizar o contraste com o minimalismo. A contemporaneidade e o barroco (escolhendo este caso) têm um contraste tão forte que penso que vai ser uma visão criativa. Vamos investir ao máximo na maneira de expor a colecção, que fica mais visível e onde cada carro terá mais brilho, porque vai ser permitida a circulação à volta deles. Além disso, permite trazer para Lisboa uma parte dos carros [do séc. XIX] que estão em Vila Viçosa, sem descapitalizar esse pólo. Vila Viçosa continua a ter uma colecção excelente e nós aqui completamos a linha cronológica até ao final do séc. XIX.

C.C.: Quais serão as principais apostas do novo museu?S.B.: Há coisas que valorizei muito e pedi que não falhassem: uma área de serviço educativo muito boa, precisamente porque nós temos e continuaremos a ter as escolas como principal visitante nacional; e uma grande oficina de restauro e conservação, que é importante para a formação de novas pessoas na área de conservação de viaturas. Sendo o museu de coches mais importante a nível mundial, é natural que julguem que nós temos aqui as oficinas mais sofisticadas e nos peçam trabalhos. Já recebemos muitos pedidos da Argentina, dos Estados Unidos da América – do Stony Brook, por exemplo –, porque há certos ofícios que foram desaparecendo e que Portugal ainda tem.

C.C.: Como é que surgiu a parceria com a Ermida de Belém para a criação do projecto “Almack’s #1”, da artista plástica Ana Fonseca?S.B.: Esta parceria foi-nos proposta pela Ermida e nós aderimos precisamente porque se insere muito num espírito que eu defendo, que é de uma certa inspiração do antigo para o novo, que haja essa passagem. Ainda não vi a peça, mas vi o protótipo em papel, e por aquilo que ela descreveu penso que agarrou bem. Claro que é uma peça mais fácil porque é uma liteira, uma cadeirinha. Ali é ambíguo, porque a liteira é de dois lugares transportados por mulas e o dela é a cadeirinha que é transportada por pessoas e com um lugar só,

mas ao mesmo tempo tem uma dimensão inspirada na liteira. Tudo isso é criativo. E, no fundo, tem muito a ver até com os novos automóveis, que são muito monobloco. E a cadeirinha e a liteira eram transportes muito urbanos para as ruas estreitas, para circular na cidade. Quando a “Almack’s #1” vier para cá, vamos expô-la no circuito onde há mais visitantes, pô-la em contraste com as outras. Pode ser que algum dia alguém queira o desafio de fazer um coche. O museu serve para isso, para a partir do antigo, das referências culturais do passado, se ser criativo no presente.

C.C.: É habitual receberem projectos de artistas contemporâneos?S.B.: O novo museu poderá potenciar mais isso. De facto, o nosso museu está sempre tão cheio de crianças e turistas, que não tem espaço para esses artistas contemporâneos entrarem e estabelecerem essa relação com as peças.

C.C.: Teremos um museu menos virado para o passado e mais virado para o futuro, mesmo a nível da programação?S.B.: Eu sou a directora do museu neste momento, não sei o que nos reserva o futuro. Não sei qual é o modelo de gestão do novo museu, isso está a ser estudado. Pelo menos, o meu trabalho vai ser mudar a colecção e instalá-la [no novo museu]. Tenho ideias de dinamização, como é óbvio. Neste momento, ainda estamos a trabalhar para o futuro, para a abertura do museu. Estando o museu montado, tenho em mente exposições temporárias que sempre quis fazer neste e não podia pela falta de espaço. E naquele museu vai ser possível…ultrapassada a crise. Aposto muito no contraste, acho que a força do novo museu é o contraste. As pessoas aqui olham para o conjunto todo, lá, se calhar, têm a possibilidade de olhar para detalhes que aqui não conseguiam ver.

Silvana Bessone“A FORÇA DO NOVO MUSEU DOS COCHES É O CONTRASTE”

por Catarina Cruz

Colecção

O MUSEU NACIONAL DOS COCHES É UM DOS ESPAÇOS MUSEOLÓGICOS MAIS ANTIGOS DO PAÍS E PARA O ANO VAI MUDAR DE CASA PELA PRIMEIRA VEZ. SILVANA BESSONE, DIRECTORA DO MUSEU DESDE 1991, FALOU COM A EFEMÉRIDE SOBRE O PASSADO, PRESENTE E FUTURO DESTE MUSEU, QUE SE LANÇA AGORA NA CONTEMPORANEIDADE.

Catarina Cruz: O Museu Nacional dos Coches completa este ano 106 anos. Continua a ser o museu mais visitado do país?Silvana Bessone: Como museu é o mais visitado. Há também outros espaços, como Serralves e os das artes contemporâneas, que têm muitos visitantes, por vezes até mais, mas que são os mesmos que voltam. Aqui, são visitantes que vêm com

a escola ou turistas que chegam a Portugal, que quando regressam pela segunda vez provavelmente já não visitam este museu. Neste momento estamos nos 230 mil visitantes, [dados] relativos a 2010.

C.C.: O que torna esta colecção única a nível mundial?S.B.: Nós tivemos a sorte de não ter tido as guerras mundiais, que destruíram muito património hipomóvel, e tivemos a sorte de conseguir que a família real o protegesse, chegando até aos dias da rainha D. Amélia. E a Dona Amélia teve essa visão, de facto vanguardista à época, de fazer um museu. Foi o primeiro museu europeu, ou mundial, para sermos mais precisos, de coches e até, se formos mais técnicos,

de transportes, porque era o transporte na época. Este sempre foi um museu muito visitado pela qualidade da colecção. O núcleo principal é toda uma colecção real, cujo modelo mais antigo vem do século XVII – como modelo é de finais do séc. XVI, mas só chegou a Portugal no séc. XVII, que é o coche de Filipe II, do período espanhol. Daí para a frente temos exemplares franceses do séc. XVII; séc. XVIII francês, italiano, inglês; séc. XIX inglês e alguns portugueses, como é óbvio.

C.C.: A colecção vai mudar de casa pela primeira vez. Confirma-se a abertura do novo museu no início de 2012?S.B.: A ideia que está perspectivada é de abrir em Maio – no dia internacional dos museus [dia 18] ou no dia do museu [dia 23] – ou Junho. Aí, teremos de mudar de paradigma, esquecer um bocadinho este espaço e pensar novo, pensar contemporâneo.

C.C.: Esse exercício já começou a ser feito?S.B.: Eu, pessoalmente, já comecei a fazê-lo. Agora até pedi para me porem cá a maqueta [do novo edifício] para as pessoas começarem a familiarizar-se. Estamos aqui há muitos anos e este é um edifício… é um museu-monumento, como costumo dizer. Tem esta componente monumento que também é muito atractiva para os visitantes, que quando vêem a sala ficam espantados. A sala com os coches é uma caixa de jóias com as jóias dentro. Esse impacto é único. Todos os nossos colegas em museus internacionais ficaram muito chocados com a ideia de se tirar daqui o museu. Eu, no entanto, considerei que tínhamos falta de espaço e que era importante fazer um prolongamento do museu. Optou-se pela ideia de fazer um projecto de raiz, inovador, e, a partir do momento em que foi tomada essa decisão, abracei a causa.

C.C.: Vão continuar a utilizar o espaço do actual museu?S.B.: Propus, e espero que isso tenha sido aceite, deixar aqui coches e fazer um núcleo de arte equestre, ligado à utilização do picadeiro e com uma referência, também, ao cavalo lusitano. Portanto, ser o complemento “coche – cavalo”.

16 17

C.C.: O novo museu, com uma construção moderna e minimal, é uma mais-valia para as peças da colecção?S.B.: Penso que sim, que vamos valorizar o contraste com o minimalismo. A contemporaneidade e o barroco (escolhendo este caso) têm um contraste tão forte que penso que vai ser uma visão criativa. Vamos investir ao máximo na maneira de expor a colecção, que fica mais visível e onde cada carro terá mais brilho, porque vai ser permitida a circulação à volta deles. Além disso, permite trazer para Lisboa uma parte dos carros [do séc. XIX] que estão em Vila Viçosa, sem descapitalizar esse pólo. Vila Viçosa continua a ter uma colecção excelente e nós aqui completamos a linha cronológica até ao final do séc. XIX.

C.C.: Quais serão as principais apostas do novo museu?S.B.: Há coisas que valorizei muito e pedi que não falhassem: uma área de serviço educativo muito boa, precisamente porque nós temos e continuaremos a ter as escolas como principal visitante nacional; e uma grande oficina de restauro e conservação, que é importante para a formação de novas pessoas na área de conservação de viaturas. Sendo o museu de coches mais importante a nível mundial, é natural que julguem que nós temos aqui as oficinas mais sofisticadas e nos peçam trabalhos. Já recebemos muitos pedidos da Argentina, dos Estados Unidos da América – do Stony Brook, por exemplo –, porque há certos ofícios que foram desaparecendo e que Portugal ainda tem.

C.C.: Como é que surgiu a parceria com a Ermida de Belém para a criação do projecto “Almack’s #1”, da artista plástica Ana Fonseca?S.B.: Esta parceria foi-nos proposta pela Ermida e nós aderimos precisamente porque se insere muito num espírito que eu defendo, que é de uma certa inspiração do antigo para o novo, que haja essa passagem. Ainda não vi a peça, mas vi o protótipo em papel, e por aquilo que ela descreveu penso que agarrou bem. Claro que é uma peça mais fácil porque é uma liteira, uma cadeirinha. Ali é ambíguo, porque a liteira é de dois lugares transportados por mulas e o dela é a cadeirinha que é transportada por pessoas e com um lugar só,

mas ao mesmo tempo tem uma dimensão inspirada na liteira. Tudo isso é criativo. E, no fundo, tem muito a ver até com os novos automóveis, que são muito monobloco. E a cadeirinha e a liteira eram transportes muito urbanos para as ruas estreitas, para circular na cidade. Quando a “Almack’s #1” vier para cá, vamos expô-la no circuito onde há mais visitantes, pô-la em contraste com as outras. Pode ser que algum dia alguém queira o desafio de fazer um coche. O museu serve para isso, para a partir do antigo, das referências culturais do passado, se ser criativo no presente.

C.C.: É habitual receberem projectos de artistas contemporâneos?S.B.: O novo museu poderá potenciar mais isso. De facto, o nosso museu está sempre tão cheio de crianças e turistas, que não tem espaço para esses artistas contemporâneos entrarem e estabelecerem essa relação com as peças.

C.C.: Teremos um museu menos virado para o passado e mais virado para o futuro, mesmo a nível da programação?S.B.: Eu sou a directora do museu neste momento, não sei o que nos reserva o futuro. Não sei qual é o modelo de gestão do novo museu, isso está a ser estudado. Pelo menos, o meu trabalho vai ser mudar a colecção e instalá-la [no novo museu]. Tenho ideias de dinamização, como é óbvio. Neste momento, ainda estamos a trabalhar para o futuro, para a abertura do museu. Estando o museu montado, tenho em mente exposições temporárias que sempre quis fazer neste e não podia pela falta de espaço. E naquele museu vai ser possível…ultrapassada a crise. Aposto muito no contraste, acho que a força do novo museu é o contraste. As pessoas aqui olham para o conjunto todo, lá, se calhar, têm a possibilidade de olhar para detalhes que aqui não conseguiam ver.

Publicação com o reconhecimento do Ministério da Cultura

N.º de Registo ERC 125891

—————————————DIRECÇÃO

Eduardo Fernandes

—————————————COORDENAÇÃO E PUBLICIDADE

Fábia [email protected]

(+351) 213 637 700

—————————————PROJECTO

Travessa Da ErmidaTravessa do Marta Pinto, Belém

—————————————EDITORA

Catarina da [email protected]

—————————————REDACÇÃO

Catarina Da Ponte, Catarina Cruz,

Margarida Rocha de Oliveira

—————————————REVISÃO

Daniela Agostinho

—————————————PROJECTO GRÁFICO

–nada–www.designbynada.com

—————————————ILUSTRAÇÃOPedro Palrão

www.pedropalrao.com

—————————————FOTOGRAFIAMarco Sádio

www.marcosadio.carbonmade.com

—————————————PRANCHARui Lacas

www.thelisbonstudio.com

—————————————NESTA EDIÇÃO

Gonçalo M. Tavares,Luis Maria Baptista,

Diogo Castro Guimarães,Ana Fonseca

—————————————IMPRESSÃO

LouresGráfica

—————————————DISTRIBUIÇÃO

Gratuita

—————————————PROPRIEDADE

Mercador do Tempo, Lda

—————————————TIRAGEM

7000

—————————————ISSN

1647-3418

—————————————PERIODICIDADE

Bianual

—————————————PAPEL

Renovaprinte 80gr

—————————————TIPOS DE LETRACentury Gothic

Parc

eiro

Me

dia

Parc

eiro

sPa

tro

cín

ios

Pro

mo

tor

Alm

ac

k’s

#1A

po

ios JOSÉ ÁLVARO

ILUMINAÇÃO 3D