gunther_segurança liberdade dossie direito penal do inimigo

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OS CIDADÃOS MUNDIAIS ENTRE A LIBERDADE E A SEGURANÇA * NOVOS ESTUDOS  83 ❙❙ MARÇO 2009     11 Klaus Günther tradução: Pedro Maia Resumo O 11 de setembro acelerou o desenvolvimento de uma arqui- tetura transnacional de segurança que intervém profundamente nas liberdades civis individuais, tanto nos direitos bási- cos dos cidadãos dos Estados como nos direitos humanos dos cidadãos mundiais. O artigo delineia essa arquitetura, mostra como ela dissolve as categorias jurídicas tradicionais que preservam a liberdade e discute por que hoje se aceita amplamente a prioridade da segurança sobre a liberdade. PALAVRAS-CHAVE: arquitetura transnacional de segurança; liberdades civis; direitos humanos; terrorismo. summARY The 9/11 attacks triggered the development of a transnatio- nal security architecture that interferes profoundly in individual civil liberties, in the basic rights of State citizens as much as in human rights of the world citizens. The article draws this architecture, shows how it dissolves traditional juridical categories that preserve freedom and discusses why today it’s accepted the priority of security over freedom. KEYWORDS: transnational security architecture; civil liberties; human rights; terrorism. [*] Tradução do texto “World ci- tizens between freedom and securi- ty”. Constellations, vol. 12, nº 3, 2005. Revisão técnica de José Rodrigo Ro- driguez . Na esteira de novas liberdades, a globalização trou- xe novas inseguranças. O alcance da liberdade econômica está se tornando maior; as tecnologias modernas expandem ainda mais as possibilidades da comunicação e, com elas, outro aspecto da liberda- de. Porém, o maior ganho em liberdade pode ser observado no direito internacional. Na qualidade de sujeito dos direitos humanos, o indiví- duo torna-se sujeito do direito internacional, e, junto com os Estados soberanos, o único portador de subjetividade jurídica internacional. Isso está expresso com a maior clareza no Estatuto de Roma, que criou o Tribunal Penal Internacional. A comunidade internacional co- loca o indivíduo sob sua proteção contra Estados soberanos que cometem as violações mais graves aos direitos humanos. Com isso, os cidadãos nacionais, em sua maioria, passam a ser, ao mesmo tempo, cidadãos mundiais. O diagnóstico otimista de Kant parece ter-se tor- nado finalmente realidade:

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direito penal do inimigo

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  • OS CIDADOS MUNDIAIS ENTRE A LIBERDADE E A SEGURANA*

    NOVOSESTUDOS83MARO2009 11

    Klaus Gnthertraduo: Pedro Maia

    Resumo

    O 11 de setembro acelerou o desenvolvimento de uma arqui-

    tetura transnacional de segurana que intervm profundamente nas liberdades civis individuais, tanto nos direitos bsi-

    cos dos cidados dos Estados como nos direitos humanos dos cidados mundiais. O artigo delineia essa arquitetura,

    mostra como ela dissolve as categorias jurdicas tradicionais que preservam a liberdade e discute por que hoje se aceita

    amplamente a prioridade da segurana sobre a liberdade.

    PALAVRAS-CHAVE:arquitetura transnacional de segurana; liberdades

    civis; direitos humanos; terrorismo.

    summARY

    The 9/11 attacks triggered the development of a transnatio-

    nal security architecture that interferes profoundly in individual civil liberties, in the basic rights of State citizens as much

    as in human rights of the world citizens. The article draws this architecture, shows how it dissolves traditional juridical

    categories that preserve freedom and discusses why today its accepted the priority of security over freedom.

    KEYWORDS:transnational security architecture; civil liberties; human

    rights; terrorism.

    [*] Traduo do texto World citizens between freedom and security. Constellations, vol. 12, n 3, 2005. Reviso tcnica de Jos Rodrigo Rodriguez .

    Na esteira de novas liberdades, a globalizao trou-xe novas inseguranas. O alcance da liberdade econmica est se tornando maior; as tecnologias modernas expandem ainda mais as possibilidades da comunicao e, com elas, outro aspecto da liberda-de. Porm, o maior ganho em liberdade pode ser observado no direito internacional. Na qualidade de sujeito dos direitos humanos, o indiv-duo torna-se sujeito do direito internacional, e, junto com os Estados soberanos, o nico portador de subjetividade jurdica internacional. Isso est expresso com a maior clareza no Estatuto de Roma, que criou o Tribunal Penal Internacional. A comunidade internacional co-loca o indivduo sob sua proteo contra Estados soberanos que come tem as violaes mais graves aos direitos humanos. Com isso, os cidados nacionais, em sua maioria, passam a ser, ao mesmo tempo, cidados mun diais. O diagnstico otimista de Kant parece ter-se tor-nado finalmente realidade:

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    [1] Kant, I. Perpetual peace: a philosophical sketch. In: Reiss, Hans (ed.). Kant: political writings. 2a ed. Cambridge: Cambridge University Press, 1991, pp. 107108.

    [2] Idem. Idea for a universal history with a cosmopolitan purpose, op. cit., p. 45, quinta proposio.

    Os povos da terra entraram assim, em graus variados, numa comunida-de universal, e ela se desenvolveu a tal ponto que uma violao de direitos em uma parte do mundo sentida em todos os lugares. A idia de um direito do cidado cosmopolita no , portanto, fantstica ou exagerada; um com-plemento necessrio ao cdigo no-escrito do direito poltico e internacional, transformando-o num direito universal da humanidade. Somente sob essa condio podemos nos orgulhar de estarmos avanando continuamente no sentido de uma paz perptua1.

    Essa viso otimista de uma sociedade civil que pode administrar a justia universalmente2 em escala mundial negada pelo fato de a maior e mais influente potncia mundial de hoje os Estados Uni-dos ter rejeitado essa relativizao cosmopolita de sua soberania. Entre os muitos motivos para essa recusa no dos menores o temor de que a perda do poder de decidir por si mesmo quanto aplicao de fora ameaaria tambm a segurana de seu modo de vida livre, que pode parecer a realizao da idia kantiana. Os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001 e o terrorismo internacional atual parecem confirmar essa apreenso quase que diariamente. Suspeita-se que os verdadeiros inimigos do cidado cosmopolita no so os Estados as-sassinos, mas terroristas e suas redes internacionais, lderes militares, governos criminosos (Estados prias) e o crime organizado. Diante dessas ameaas, os cidados mundiais voltam a se refugiar no estatuto de cidado nacional a fim de obrigar o Estado a tomar medidas apro-priadas para proteg-los. As ordens jurdicas nacionais do Ocidente esto no meio do caminho entre a disciplina constitucional do direito penal e do poder de polcia e um direito da segurana transnacional, institudo para alm das constituies nacionais. Tais ordens jurdicas j haviam comeado essa transio antes da crescente ameaa terrorista da qual o 11 de setembro o marco principal. Esse crime serviu apenas para acelerar embora com muita intensidade o desenvolvimento de uma arquitetura transnacional de segurana, processo que j estava em andamento. Essa arquitetura intervm profundamente nas liberdades civis individuais, tanto nos direitos bsicos dos cidados dos Estados como nos direitos humanos dos cidados mundiais (world citizens). A liberdade garantida ao cidado tomado como cidado do mundo parece ser suprimida pelas regras que tratam da segurana. Um exemplo vin-do da Unio Europia (UE) esclarece essa dialtica de ganhos e perdas de liberdade. Aps a abertura das fronteiras estabelecida pelo Acordo de Schengen, os controles que eram feitos originalmente na fronteira foram transferidos para dentro do pas. Alguns estados alemes intro-duziram a assim chamada Schleierfahndung [investigao velada], que permite abordar pessoas, independentemente de qualquer suspeita, dentro do marco do combate preventivo criminalidade. Ou seja,

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    a expanso da liberdade de movimento atravs das fronteiras (sem controle na travessia) foi acompanhada de uma perda de liberdade no interior do Estado (maior controle interno antes mesmo de se concre-tizar a situao limite em que se configuraria a suspeita de um perigo ou crime). A seguir, delinearei essa arquitetura transnacional de segu-rana e mostrarei como ela dissolve as categorias jurdicas tradicionais que preservam a liberdade. Em uma terceira etapa, procurarei os moti-vos e as explicaes que atualmente legitimam, e por meio dos quais se aceita amplamente, a prioridade da segurana sobre a liberdade.

    A ARquitetuRA tRAnsnAcionAl de seguRAnA

    Ao lado do direito penal, as regras que disciplinam o poder de po-lcia so elementos constituintes bsicos da arquitetura da segurana, entre os quais se incluem medidas de inteligncia e operaes milita-res. Juntos, constituem equivalentes funcionais para a criao de um espao de segurana interna, cujos limites externos no coincidem mais com as fronteiras nacionais, mas abrangem todos os Estados que buscam conjuntamente o objetivo de fornecer segurana. A Unio Eu-ropia compromete-se, assim, numa redundncia notvel do Artigo 29 da proposta de Constituio da UE, a oferecer aos cidados um alto grau de segurana dentro de um espao de liberdade, segurana e justia, mediante o desenvolvimento de um procedimento comum dos Estados membros no campo da polcia e da cooperao judicial em assuntos penais [...]. Desse modo, o direito penal j est alinhado com a proviso de segurana. Isso confirmado pelo Projeto de Tratado que estabelece uma Constituio para a Europa (Art. III-158), que obriga a UE a coordenar a cooperao de foras policiais e rgos de direito penal a fim de garantir um alto grau de segurana. O espao de liber-dade, segurana e justia um dos objetivos da Unio (Art. III). Na Carta dos Direitos Fundamentais, liberdade e segurana so nomea-das ao mesmo tempo; o Artigo II-6 diz: Toda pessoa tem o direito liberdade e segurana.

    A escolha de meios para criar o espao de segurana no se rege por princpios e por suas condies de aplicao, mas pelo objetivo de estabelecer um alto grau de segurana e pelas condies limitan-tes dos respectivos perigos e oportunidades. Os perigos contra os quais a arquitetura transnacional de segurana est sendo erguida so o crime organizado e, como o 11 de setembro de 2001 intensifi-cou e acelerou um processo j iniciado, o terrorismo internacional. Desde ento, quase que s se fala de direito penal em conexo com a segurana interna, e cada reforma do direito penal est baseada num pacote de medidas que inclui, alm das regras sobre poder de pol-cia, os servios secretos e, agora, tambm as foras militares. Isso

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    [3] Ver a apresentao resumida de Albrecht, PeterAlexis. Die vergessene Freiheit. Berlim: BMW, 2003, p. 96.

    [4] Sobre o desenvolvimento de um direito penal para o inimigo orientado para categorias militares e preocupado com (supostas) ameaas globais representadas pela criminalidade, ver Jakobs, Gnther. Das Selbstverstndnis der Strafrechtswissenschaft vor den Herausforderungen der Gegenwart. In: Eser, A., Hassemer, W. e Burkhardt, B. (eds.). Die deutsche Strafrechtswissens-chaft vor der Jahrtausendwende. Munique, C. H. Beck, 2000, pp. 46ss.

    ampliou ainda mais os limites e os poderes em cada rea do direito. No que diz respeito ao poder de polcia, cujas regras possibilitam medidas proporcionais de defesa contra perigos concretos, o limiar foi movido para muito alm da suspeita da existncia de uma situ-ao de perigo: a possibilidade de ao da autoridade depende ape-nas de uma avaliao subjetiva. Comeou h muito tempo o processo de expanso do direito penal a tal ponto que ele passa a violar os interesses protegidos por lei. Alm disso, a luta contra o crime or-ganizado abriu as portas para um enrijecimento drstico do direito penal material e processual (Lei de Controle do Crime Organizado, 1992). Ao mesmo tempo, isso levou a uma setorializao do proces-so penal: quando se investiga o crime organizado, permite-se mais e pode-se intervir nos direitos bsicos de forma mais profunda e abrangente do que em outros casos. A ateno pblica estava voltada para a introduo dos chamados Grossen Lauschangriffs grampos em residncias privadas tanto nas regras que disciplinam o poder de polcia no nvel dos estados como no processo penal. A eqidade dos procedimentos diminui proporcionalmente ao grau de organi-zao dos criminosos perseguidos. Ademais, medidas preventivas contra ameaas e represso policial esto cada vez mais entrelaa-das; a possibilidade de intercmbio entre elas que j se vislumbra no horizonte est firmemente ancorada: provas obtidas no combate preventivo ao crime tambm podem ser usadas nos procedimentos preliminares, e isso muito antes da configurao de uma suspeita inicial. Por fim, romperam-se as fronteiras no somente entre pre-veno do perigo e autoridades de investigao criminal, mas tam-bm entre estas e os servios de inteligncia: o Servio Federal de Inteligncia alemo pode iniciar processos criminais baseados em suas descobertas (Art. 1 1-3 G10)3. Isso um sinal de que a luta contra o crime organizado tambm tem sido levada a cabo, h muito tempo, com a utilizao de meios militares e de servios de inteli-gncia. A descrio outrora crtica dessa transformao como direi-to penal do inimigo [Feindstrafrecht] adquiriu um sentido positivo4. Por fim, a fico de um direito penal unificado e, em especial, de um procedimento penal unificado, deveria tambm ser abandonada. Na verdade, h muito tempo existem procedimentos completamente diferentes no direito penal que, por sua vez, so apenas tijolos da construo de uma arquitetura transnacional de segurana.

    Podemos falar de transnacionalizao pois muitos Estados, jun-tos e de forma coordenada, esto reformando suas ordens jurdicas nacionais respectivas na mesma direo. Isso no se manifesta tanto num fundamento jurdico comum de vigncia transnacional ou no es-tabelecimento de uma autoridade de segurana onipotente, mas sim na forma de coordenao e cooperao intergovernamentais. Os governos

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    concordam em tomar os mesmos tipos de medidas preventivas e re-pressivas de combate ao crime, de tal forma que a soberania legislativa nacional permanece intocada. Os resultados, no entanto, encaixam-se de tal modo que surge funcionalmente um direito de segurana trans-nacional homogneo. Alm disso, surgem redes intergovernamentais por meio da cooperao transnacional iniciada pelos governos entre os servios de inteligncia e as autoridades policiais e de persecuo penal, sobretudo no que diz respeito ao intercmbio de informaes. Essas redes so compostas por diferentes autoridades estatais, tan-to em nvel nacional, numa interconexo entre polcia, justia penal, servio secreto e autoridades militares, como em nvel transnacional, numa rede que atravessa as fronteiras nacionais.

    Esse desdobramento no contradiz o j citado declnio da signi-ficao da soberania nacional por meio da relativizao dos direitos humanos? O conceito moderno de soberania pressupe no somente um monoplio das tomadas de deciso finais e mais importantes, mas tambm dos meios de fora. Porm, o monoplio militar e policial da fora, paralelo ao monoplio da execuo e do cumprimento da pena, est cada vez mais separado de sua ncora no terreno mstico da so-berania nacional e sujeito, por assim dizer, racionalizao tcnica da segurana. A funo da segurana pode ser desvinculada do Estado-nao territorial: que eles ainda coincidam parece ser um fenmeno transitrio. Sob esse aspecto, o Estado est se transformando numa agncia de segurana que compete e coopera com outros provedores de servios de segurana. Entre esses, encontram-se os servios privados, cada vez mais organizados em nvel transnacional, bem como as redes e as cooperaes intergovernamentais, que tambm desempenham cada vez mais a funo nica de oferecer segurana. As agncias de se-gurana estatais no assumem tarefas qualitativamente diversas das assumidas pelos servios privados. Tais tarefas so apenas quantita-tivamente maiores e mais complexas. Do mesmo modo, os Estados-nao privatizam cada vez mais as tarefas de segurana, em especial as aes de preveno de perigo. Esse tambm o caso da proviso de segurana externa, como mostra a contratao de servios privados de segurana pelo governo norte-americano no Iraque. Sempre que o Estado no pode ou no quer mais oferecer segurana, aumenta a demanda por servios privados nessa rea.

    Evidentemente, uma conseqncia da organizao e comerciali-zao da segurana em termos de mercado que ela cai sob os impe-rativos do sistema econmico. A segurana est se tornando um bem escasso e caro pelo qual somente alguns podem pagar, e distribuda de modo desigual. Afinal, a proviso de segurana pelo Estado ainda se distinguia pelo imperativo do tratamento igual mesmo que, na rea-lidade, possa ter havido maior ou menor seletividade quanto a quem

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    [5] Para uma crtica dessa falsa oposio no que diz respeito ao debate nos Estados Unidos, ver Dworkin, Ronald. The threat of patriotism. New York Review of Books, vol. XLIX, no 3, 28 fev. 2002, pp. 4449, esp. p. 48.

    [6] Para uma viso crtica a esse respeito, ver Prittwitz, Cornelius. Krieg als Strafe: Strafe als Krieg. In: Prittwitz, C. e outros [eds.]. Festschrift fr Klaus Lderssen. BadenBaden: Namos, 2002, pp. 499514.

    era protegido de quais perigos. Porm, o que decisivo que o Esta-do, no seu papel de agncia de segurana, atende a uma demanda por segurana do mesmo modo que os servios privados o fazem, com a nica diferena de que ele no obtm uma recompensa monetria, mas poltica. Aqueles que exigem segurana de forma poltica e so fortes o suficiente para recompensar sua proviso de forma tambm pol-tica por exemplo, com uma maioria de votos na eleio seguinte recebem um pacote de segurana correspondente. Do ponto de vista formal, o direito sobre a segurana pode ainda estar preso legislao nacional e a um poder executivo sujeito lei, mas, do ponto de vista material, h muito tempo j se separou deles, tornando-se um servio que pode ser fornecido por quase qualquer um. A proviso de seguran-a pelo Estado em competio e cooperao com os servios privados, bem como numa rede transnacional com outros Estados, difere fun-damentalmente de uma concepo hobbesiana, em que a proviso de segurana praticamente a raison dtre da soberania estatal.

    A dissoluo dAs cAtegoRiAs juRdicAs

    Na discusso sobre o equilbrio apropriado entre liberdade e segu-rana que ocorreu aps 11 de setembro de 2001, a segurana claramen-te ganhou prioridade5. As conseqncias para a poltica contra o crime fortaleceram o caminho que j havia sido aberto para o surgimento de um direito transnacional de segurana. arquitetura da seguran-a foram acrescentados a guerra ofensiva preventiva e o uso da fora militar em primeiro lugar alm do caso at ento familiar da inter-veno humanitria. A rede funcional de direito penal e autoridades policiais, bem como servios secretos, foi expandida para incluir as foras militares. A guerra no Afeganisto pde ser justificada de vrias formas: como um ato retaliatrio de punio, como uma operao de perseguio penal contra aqueles que estavam por trs dos assassinos do 11 de setembro, como uma medida policial preventiva na luta contra o terrorismo internacional e, portanto, para prevenir ataques futuros, ou, ainda, como uma guerra preventiva para se defender de perigos iminentes. Essas diferentes justificativas independentemente de seu poder de persuaso, altamente questionvel6 neutralizam-se umas s outras no que diz respeito a seus pressupostos e conseqn-cias jurdicas. As categorias jurdicas dissolvem-se e, com elas, as com-petncias e as responsabilidades, os deveres e a accountability por sua possvel violao, bem como o modo como o exerccio da autorizao legal pode ser judicialmente supervisionado. Uma ao policial est ligada s precondies impostas pelas regras sobre poder de polcia a existncia de um perigo e a proporcionalidade do ataque por meio da reviso de um tribunal administrativo; uma medida de perseguio

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    [7] Sobre essa questo, ver Fletcher, George P. Romantics at war: glory and guilt in the age of terrorism. Princeton: Princeton University Press, 2002.

    [8] Bush, George W. The national security strategy of the United States, 17 de setembro de 2002 < http://www.whitehouse.gov/nsc/nss. html>, acessado em 12/11/2008. Sobre a subjetivizao das precondies da ao policial, ver Poscher, Ralf. Gefahrenabwehr: Eine dogmatis-che Rekonstruktion. Berlim: Duncker & Humblot, 1999.

    penal est ligada apresentao de fundamento para suspeita e est, do mesmo modo, sujeita ao princpio restritivo da proporcionalida-de, com as revises judiciais correspondentes; um ato de punio no pode acontecer sem um processo justo e reaes previamente estabe-lecidas, e a pena em si deve ser proporcional e, sobretudo, deve atin-gir somente os culpados e no os inocentes, com os assim chamados danos colaterais. Uma guerra de defesa preventiva poderia mover-se dentro de uns poucos marcos jurdicos muito bem definidos; porm, o direito humanitrio internacional j proibiu vrias medidas milita-res, em especial no que diz respeito ao tratamento de prisioneiros e interao com a populao civil.

    A dissoluo dos limites legais torna-se clara no tratamento dos prisioneiros em Guantnamo. O estatuto deles no est de forma algu-ma claro, sua designao muda de presos comuns para prisioneiros de guerra ou detidos preventivos segundo a justificao necessria a cada momento e as crticas que se pretenda rechaar. Com a inveno do estatuto de combatente ilegal, o governo dos Estados Unidos parece querer evitar todas as designaes costumeiras, junto com os direitos que lhes esto associados7. A captura de Saddam Hussein pelos mili-tares norte-americanos foi anunciada ao pblico com o comentrio Ns o pegamos! como acontece quando as autoridades policiais anunciam a captura de um suposto delinqente. Dessa perspectiva, a guerra do Iraque teria sido uma enorme operao para efetivar as leis. Por sua vez, outra coisa a nova doutrina da guerra ofensiva preventi-va. Para ela, os argumentos apresentados so semelhantes aos de me-didas policiais contra o perigo, com a mesma tendncia a aumentar e tornar subjetiva a possibilidade de avaliar a existncia de uma situao em que se configura um limiar de suspeita suficiente para justificar a ao como quando a polcia determina a iminncia de uma ameaa de acordo com suas prprias estimativas. Como diz a doutrina Bush sobre o uso preventivo da fora: Quanto maior a ameaa, maior o risco da inao e mais convincente o argumento a favor de aes antecipatrias para nos defender, mesmo quando h incerteza quanto ao momento e o lugar do ataque inimigo8. Essa doutrina pode ser lida, ao mesmo tempo, como a declarao central do novo direito de segurana transnacional.

    Ademais, na forma de coordenao intergovernamental, promulga-ram-se novas leis de segurana em vrias sries, reunindo e atualizan-do os desdobramentos descritos acima. Pode-se mostrar isso de forma exemplar nos dois pacotes de segurana alemes, cujas provises in-dividuais foram decididas nos dois ltimos anos. Fortaleceu-se a inte-grao estreita entre direito penal e poder Executivo com a introduo do pargrafo 129b no Cdigo Penal, que amplia a criminalizao das condutas daqueles que fornecem apoio a uma organizao terrorista

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    [9] Denninger, Erhard. Freiheit durch Sicherheit? Anmerkungen zum Terrorismusbekmpfungsgesetz. Strafverteidiger, 2002, p. 99.

    [10] Para detalhes a esse respeito, ver Lepsius, Oliver. Freiheit, Sicherheit, Terror. Leviathan, 2004, pp. 74ss.

    no exterior, mas, ao mesmo tempo, submete sua perseguio auto-ridade do poder Executivo (o ministro da Justia Federal), e isso sob uma precondio to vaga quanto o menosprezo pela idia de com-preenso internacional. Mas, sobretudo, expandem-se os poderes de controle e coleta de informaes das autoridades. Isso foi enfrentado apenas com argumentos organizacionais prticos em defesa de uma diviso institucional entre foras militares, servio secreto, polcia e autoridades encarregadas da persecuo penal. Erhard Denninger j fala, nesse contexto, de uma associao funcional de investigao pre-ventiva entre os servios de inteligncia e a polcia no campo da luta contra o terrorismo9. Com efeito, para a agncia de segurana estatal, o monoplio dos meios de violncia ainda essencial; porm, o ob-jetivo do combate preventivo ao terrorismo se transfere para antes da suspeita de perigo, sobretudo por meio da coleta, do armazenamento e da transferncia abrangentes de informao. Portanto, a associao funcional de investigao preventiva consiste, sobretudo, na regulao organizacional e legal dos poderes de coleta de dados atribudos s di-ferentes autoridades de segurana, ordem pblica, perseguio penal e inteligncia, bem como nos fluxos desimpedidos de dados entre elas10. Desse modo, ocorre uma interveno profunda nas liberdades civis b-sicas dos cidados, em especial no direito de autodeterminao relativa informao. As protees legais determinadas pela constituio con-tra a invaso dos direitos bsicos fracassaram na maioria dos casos por-que, graas ao sigilo necessrio das medidas, os tribunais no sabem nada a respeito delas, de tal modo que at a superviso judicial para garantir a liberdade permanece, em larga medida, excluda. Isso tambm limita a liberdade dos cidados. Por fim, a funo de proteo da liber-dade da diviso de poderes tambm corre perigo quando as autoridades que esto deliberadamente situadas em diferentes nveis do governo (por exemplo, o servio de inteligncia federal, as autoridades policiais e de persecuo penal estaduais) se combinam por meio de uma rede de informao, e o servio de inteligncia adquire poderes investigati-vos. A separao de funes e autoridades da preveno de ameaas, de persecuo penal, bem como de inteligncia e reconhecimento militar est entre os princpios bsicos de uma diviso de poderes que garante a liberdade. somente a estrutura em rede das diferentes agncias, atri-budas a diferentes autoridades, que distingue uma associao funcio-nal de investigao de um rgo de segurana centralizado.

    PoR que se AntePe A seguRAnA libeRdAde?

    Embora a lei de segurana transnacional nascente, promulgada ainda em grande parte por meio de legislao nacional, atinja pro-fundamente os direitos bsicos e humanos, e que as protees legais

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    [11] A esse respeito, ver Albrecht, op. cit.

    [12] Ignatieff, Michael. The lesser evil: political ethics in an age of terror. Princeton/Oxford: Princeton University Press, 2004, p. 59.

    [13] Ibidem, pp. 59 e 61.

    contra as infraes dos direitos cometidas pelo Estado estejam enco-lhendo e fiquem expostas ao poder invasor cumulativo de uma rede de segurana transnacional com base nos Estados, os cidados no percebem isso como uma restrio de seus direitos, ou ento aceitam tal restrio sem resistncia. difcil no suspeitar que a ameaa ence-nada pelos meios de comunicao de massa os convertem em vtimas de temores irracionais que so depois explorados por polticos po-pulistas para seus propsitos, ou que simplesmente esqueceram de seus direitos civis11.

    Michael Ignatieff adverte, no entanto, contra a suposio de que a maioria que apia ou aceita as restries aos direitos civis bsicos simplesmente estpida ou negligente: A no ser que assumamos que as pessoas so ingnuas, precisamos considerar a possibilidade de que medidas fortes, danosas para as liberdades civis, na verdade agradam a opinio da maioria12. A aceitao das restries s liber-dades talvez se explique, por outro lado, pelo fato de essa lei de segu-rana funcionar, na luta mundial contra o crime organizado e o terro-rismo internacional, como uma promessa de segurana aos bons cidados. As pessoas talvez estejam dispostas a aceitar restries s liberdades porque lhes do razes para esperar que, na qualidade de bons cidados, elas no venham a ser de forma alguma afetadas. improvvel que a maioria dos cidados venha a suportar quais-quer dos custos diretos do cerceamento13. Em termos de custo-benefcio, as pessoas esto provavelmente dispostas a aceitar um grau maior de restries potenciais liberdade se o alcance real de sua liberdade como um todo aumentado ou estabilizado supondo-se que as restries potenciais liberdade sejam reais apenas para a minoria de ovelhas negras, no para a maioria que se beneficiar de fato com a expanso e a segurana do espao de liberdade. Isso ainda mais vlido quando se trata da liberdade econmica, pois as restries impostas pela lei de segurana afetam somente os direitos civis burgueses clssicos.

    Tudo isso significa, evidentemente, a anulao do contrato social. Esse tipo de legislao viola uma norma fundamental que est na base da distino entre maioria e minoria no processo de legislao demo-crtica. Kant referia-se a essa norma fundamental como sendo uma caracterstica definidora de uma constituio republicana. a norma da imparcialidade ou reciprocidade da legislao que garante a liberdade e a igualdade dos cidados. De acordo com Kant, a liberdade externa e legtima uma autorizao para no obedecer a leis externas, exceto aquelas s quais eu possa dar meu consentimento, ao passo que a igualdade dentro de um Estado aquela relao entre os cidados pela qual ningum pode pr outra pessoa sob uma obrigao legal sem se submeter simultaneamente a uma lei que exija que ele mesmo

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    [14] Kant, Perpetual peace, op. cit., p. 99, primeiro artigo definitivo.

    [15] Neumann, Franz. Der Funktionswandel des Gesetzes im Recht der brgerlichen Gesellschaft. De-mokratischer und autoritrer Staat, no 63, 1967, pp. 757.

    seja posto sob o mesmo tipo de obrigao pela outra pessoa14. Essa regra fundamental no funciona mais se posso prever que uma lei que restringe a liberdade no afetar a mim, mas a outra pessoa. Isso in-teiramente possvel sob o manto de uma lei geral que se aplica a um nmero indeterminado de casos e pessoas, isto , a todos os cidados igualmente. A universalidade semntica da lei no pode evitar sua aplicao seletiva e discriminatria. Quando uma lei que permite ao Estado grampear apartamentos privados afeta apenas uma minoria, ou quando uma lei submete estrangeiros a uma vigilncia especial, ento a maioria pode prever que no ser afetada, que ningum pode reciprocamente submet-la mesma lei. A lei geral torna-se ento um instrumento de dominao de uma maioria sobre uma minoria.

    Ora, nem Kant nem os outros filsofos da tradio republica-na, de Rousseau a Rawls, afirmaram alguma vez que esse teste de imparcialidade tinha de funcionar na realidade. A hipottica auto-aplicao de uma lei restritiva da liberdade suficiente para testar se ela permite ou no privilgios ou discriminaes ilegtimas. Porm, essa auto-aplicao hipottica sempre fracassa quando posso ver por trs do vu da ignorncia e saber que uma lei, embora formal, no pode realmente me afetar. Em seu famoso e contestado ensaio de 1937 sobre A transformao funcional do direito na sociedade burguesa, Franz Neumann conjecturou que a caracterstica essen-cial do capitalismo monopolista era a instrumentalizao da gene-ralidade do direito em favor de interesses particulares15. Hoje, parece que a maioria est instrumentalizando a lei geral a fim de defender sua forma de vida contra a das minorias. O que est surgindo uma eticizao da lei geral pela qual a maioria protege seu entendimento das liberdades civis, seu modo de vida livre. Esse entendimento se-letivo: ele valoriza determinados aspectos da liberdade mais do que outros. Somente as violaes de alguns aspectos da liberdade e no de outros so consideradas ilegtimas.

    Um exemplo simples deixa claro quais aspectos da liberdade es-to envolvidos: hoje, um aumento de imposto percebido como um ataque mais grave liberdade do que o grampeamento de residncias privadas ou as restries relacionadas com as leis contra o terrorismo discutidas acima. A transformao do Estado, confirmada na rea dos direitos humanos, de seu papel original de fiador e oponente nato dos di reitos humanos para o de protetor deles contra terceiros pode ser registrada tambm nas regras sobre poder de polcia e direito penal domstico. O Estado que pune e defende contra ameaas no perce-bido, em geral, como um destruidor potencial da liberdade, mas como um protetor que sempre faz pouco. As ameaas liberdade vindas de terceiros so levadas mais a srio do que aquelas legadas por uma lon-ga experincia histrica, advindas de intruses arbitrrias do Estado.

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    [16] Para uma viso geral detalhada, ver Grimm, Dieter. Recht und Staat der brgerlichen Gesellschaft. Frankfurt: Suhrkamp, 1987; Bckenfrde, ErnstWolfgang. Staat, Gesellschaft, Freiheit. Frankfurt: Suhrkamp, 1976.

    [17] Uma nfase na oposio concepo antiga de liberdade encontrase em Constant, Benjamin. De la libert des anciens compares celle des modernes. In: De lesprit de conqute et de lusurpation. Paris: Flammarion, 1986 [1819], pp. 26591. No obstante, Quentin Skinner mostra que essa viso antiga desempenhou um papel central na autoconstituio da sociedade civil republicana moderna (Liberty before liberalism. Cambridge: Cambridge University Press, 1998).

    [18] Ver o resumo preciso de Rudolf Wiethlter em Brgerliches Recht. In: Grlitz, Axel (ed.). Handlexikon zur Rechtswissenschaft. Reinbek b. Hamburg, 1974, vol. 1, pp. 4754.

    A seguir, gostaria de reconstituir essa transformao com o exemplo de seus efeitos sobre o direito penal que, at o momento presente, sempre foi compreendido como algo que possibilita e pro-tege a liberdade.

    A conscincia moderna da liberdade desenvolveu-se inicialmente na histria por experincias negativas com o Estado que, em decorrn-cia de sua natureza (a posse do monoplio da violncia e o interesse dominante na autopreservao), busca restringir a liberdade indivi-dual. Na origem, foram especialmente as violaes da liberdade de religio que aguaram a conscincia da liberdade; depois, vieram para o primeiro plano as arbitrariedades do Estado absolutista (prises ar-bitrrias, lettres de cachet) e a regulamentao estatal da economia at os menores detalhes (mercantilismo, a luta por liberdade econmica). Aqui tambm a libertao dos laos de um Estado do bem-estar pater-nalista era ao mesmo tempo percebida como uma ameaa (resistncia das guildas). Por fim, no sculo XIX, surgiram as restries liberda-de de opinio, de imprensa e de reunio. Esses poucos e certamente no exaustivos estgios do desenvolvimento histrico da conscincia moderna da liberdade deixam suficientemente claro que a semntica da liberdade se alimentou principalmente do conflito com o Estado16. Fenomenologicamente, a liberdade moderna uma questo de liber-dade conquistada contra o Estado17. Essas experincias histricas po-dem explicar por que a inverso de papel dos cidados que criaram o direito penal, de autores a destinatrios da legislao, foi, ao menos parcialmente, bem-sucedida. At mesmo um bom cidado podia ter experincias negativas com o Estado punitivo porque pertencia a uma associao que fora banida ou expressava opinies que, tachadas de traidoras, eram perseguidas.

    A concepo de liberdade do liberalismo evoluiu a partir dessa dis-puta com e contra o Estado. Uma sociedade autnoma que se regula por si mesma, primordialmente por meio do mercado e da competi-o, precisa do Estado apenas para garantir a estrutura de auto-regu-lao liberdade igual mediante leis gerais (sobretudo, liberdade de propriedade e de contrato) e segurana externa18. Evidentemente, a histria das sociedades industriais modernas baseadas nessa concep-o de liberdade logo revela suas deficincias: o uso individual da liber-dade produz riscos novos que s podem ser absorvidos pela sociedade como um todo. Isso vale especialmente para as conseqncias sociais da ao econmica-racional livre. Os espaos de liberdade individual so, com efeito, formalmente distribudos de modo igual, mas pres-supe-se o acesso aos recursos materiais para que se possa fazer uso deles de fato. Esse acesso, por sua vez, distribudo de forma desigual. Ademais, a liberdade individual ameaada por perigos que no po-dem ser controlados pelo indivduo: acidentes, doenas, desemprego,

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    [19] Para um resumo, ver Stolleis, Michael. Konstitution und Intervention. Frankfurt: Suhrkamp, 2001.

    [20] Isensee, Josef. Das Grundrecht auf Sicherheit. Berlim/Nova York: Walter de Gruyter, 1983.

    [21] Garland, David e Sparks, Richard (eds.). Criminology and social theory. Oxford/Nova York: Oxford University Press, 2000, p. 8.

    [22] Ibidem, p. 9.

    idade. Em reao a essas ameaas, que se transformaram em fontes de instabilidade social, o Estado tornou-se intervencionista, estabele-cendo a igualdade social mediante a redistribuio, de tal modo que a liberdade individual pudesse ser exercida igualmente no s de forma normativa, mas tambm de fato19. Com o objetivo de controlar recur-sos suficientes para redistribuio, o prprio Estado tornou-se mais tarde economicamente ativo, assumindo o comando econmico: in-vestimentos, subsdios, empresas e bancos estatais. Quando os gastos pblicos, como porcentagem do PIB, aumentaram, a separao entre o Estado e a sociedade (essencialmente auto-reguladora) tornou-se obsoleta. Desse modo, o Estado passa de adversrio da liberdade a seu fiador. Isso transforma a experincia geral da liberdade e molda concre-tamente como ela compreendida: de liberdade pela qual lutamos para ns mesmos, protegida pelo Estado apenas em seus limites externos por leis determinadas, abstratas, gerais, previsveis, ela passa a ser uma liberdade constituda pelo Estado. A segurana social torna-se ento rapidamente uma segurana abrangente em face de todos os riscos e perigos, contra os quais se esperam garantias oferecidas pelo Estado intervencionista20. No paradigma do Estado do bem-estar social, a criminalidade , da mesma forma, interpretada como essencialmente um problema social ao qual o Estado intervencionista reage com meios especficos: a criminalidade era um problema social [...] apresentado na forma de atos criminosos individuais21. Conseqentemente, a cri-minalidade tem suas causas explicadas por circunstncias psquicas e sociais que fizeram do delinqente o que ele era no momento do cri-me. Acima de tudo, a desigualdade social, com suas conseqncias de privao, marginalizao e discriminao, considerada o fator causal mais importante para explicar o comportamento desviante:

    Se havia uma explicao central, era a assistencialista da privao so-cial e, posteriormente, a da privao relativa. Os indivduos tornavam-se delinqentes porque eram privados de educao adequada, ou de socializa-o familiar, ou de oportunidades de emprego, ou de tratamento adequado para seus problemas sociais e psicolgicos22.

    Em conseqncia, a reao criminalidade no deveria proteger a sociedade apenas: deveria compensar a socializao inadequada. A ressocializao torna-se o objetivo principal da punio (seo 2 do Cdigo Penal alemo). Tambm nessa perspectiva a inverso de papel entre os cidados que redigem a lei penal e seus destinatrios ainda possvel. O criminoso pertence inerentemente sociedade; por causa da desvantagem e da privao social (em relao qual o indivduo pouco ou nada pode fazer, mas a sociedade pode fazer tudo ou bastante), ele se tornou um delinqente. Portanto, impe-

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    [23] A esse respeito, ver Honneth, Axel (ed.). Befreiung aus der Mndi-gkeit: Paradoxien des gegenwrtigen Kapitalismus. Frankfurt/Nova York: Campus, 2002.

    [24] Bobbitt, Philip. The shield of Achilles. Londres: Penguin, 2003.

    [25] Ibidem, p. 229.

    [26] Ibidem.

    rativo que se tomem medidas apropriadas para transform-lo num membro livre e igual da sociedade, para ajud-lo a levar uma vida isenta de punio e fazer uso de sua liberdade de uma maneira que no cause dano aos outros.

    No foram somente os dficits na implementao desse programa que levaram ao abandono da ressocializao e de todo o paradigma do Estado do bem-estar. A crise fiscal do Estado gerencial, a globalizao da economia com suas diversas conseqncias, as revolues na tec-nologia das comunicaes tudo isso contribuiu para uma mudana de amplo alcance no pensamento sobre o Estado e sua relao com a sociedade23. O Estado do bem-estar era nacional e se as mltiplas reivindicaes de que era alvo podiam ser satisfeitas, isso acontecia somente no interior do territrio traado pelas fronteiras nacionais. O Estado de hoje, ao contrrio, um Estado-mercado, na expresso de Philip Bobbitt24, que age transnacionalmente, sobretudo para globa-lizar o sistema econmico a fim de assegurar oportunidades melhores para seus eleitores:

    Esse tipo de Estado depende dos mercados de capitais internacionais e, em menor grau, da moderna rede de empresas multinacionais para criar es-tabilidade na economia mundial, em preferncia gesto por rgos polticos nacionais ou transnacionais25.

    Enquanto o Estado do bem-estar busca promover um bem comum nacional redistribuindo ou fornecendo ele mesmo bens, para o Estado-mercado trata-se de expandir e assegurar opes e oportunidades:

    Tal como para o Estado-nao, para ele o Estado no passa de um prove-dor mnimo ou redistribuidor. Enquanto o Estado-nao se justificava como um instrumento para servir ao bem-estar do povo (a nao), o Estado-mer-cado existe para maximizar as oportunidades gozadas por todos os membros da sociedade26.

    Essa mudana de perspectiva criou uma compreenso negativa da liberdade, contra o modelo anterior do Estado do bem-estar, da condi-o de possibilidade da liberdade individual organizada pelo Estado e construda por meio da ao solidria. O Estado de bem-estar e suas normas jurdicas so agora vistos como restries ilegtimas liber-dade ilegtimas porque a liberdade consiste primeiramente na liberdade individual de escolha. A liberdade essencialmente liber-dade para consumir. O Estado no deve redistribuir os recursos dire-tamente para alguns e, desse modo, restringir a liberdade de outros, mas expandir as escolhas individuais e aumentar o espao das opes. Desse ponto de vista, as normas jurdicas do Estado do bem-estar fun-

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    cionam como um equivalente dos impostos, com os mesmo efeitos negativos: elas restringem as escolhas possveis dos consumidores ao tomar seus recursos financeiros e us-los para o bem comum, e, em relao a isso, o indivduo no pode decidir por si mesmo. Alm dis-so, dificultam a orientao para a oferta, essencial para a economia do Estado-mercado. O valor das normas legais medido pelo fato de au-mentarem ou diminurem os custos de transao. O Estado-mercado, que busca exatamente aumentar as escolhas individuais e diminuir os custos de transao, precisa, portanto, retirar-se das tarefas de promo-ver o bem comum, tpicas do Estado do bem-estar. Os meios para isso so a desregulamentao e a privatizao.

    Enquanto o Estado-mercado se retira do espao interno da liber-dade de consumo e deixa, em larga medida, a competio econmica global entregue a si mesma uma vez que qualquer regulamentao legal medida exclusivamente por seu efeito de expandir ou contrair o espao das opes, de aumentar ou diminuir os custos de transao , o oposto ocorre nos domnios em que crescem as ameaas a esse espao interno. Trata-se dos efeitos colaterais disfuncionais descritos acima: movimentos migratrios, crime organizado, mau funcionamento in-terno do sistema econmico, assim como, mais recentemente, o ter-rorismo internacional. Alm disso, a liberdade consumista, tal como qualquer aumento de liberdade, tem seu lado negro ameaador: au-mento do individualismo, dissoluo dos laos sociais e das tradies, risco de fracassar na competio econmica, tornando-se um dos per-dedores da modernizao e da globalizao. provavelmente a partir da experincia desses riscos que se desenvolve um temor enorme da criminalidade, que rene os medos de uma sociedade de mltiplas opes. O outro, com sua multiplicidade de opes altamente indi-vidualizada, torna-se um risco para a segurana. nesse ponto que entra o Estado da segurana. As reformas econmicas promovidas nos Estados Unidos por Ronald Reagan e na Gr-Bretanha por Margaret Thatcher foram acompanhadas por um forte aperto do direito penal e criminal. A liberao da economia em relao ao Estado baseava-se numa simultnea restrio aos direitos civis tradicionais, o que, no obstante, era afirmado como liberdade atravs do Estado a saber, como proteo da liberdade consumista das ameaas de terceiros. Es-ses terceiros esto situados fora do espao interno desregulado e, por-tanto, esto excludos de qualquer modo, ou excludos devido falta de sucesso em vender sua fora de trabalho no mercado. Da perspec-tiva interna do espao protegido da sociedade de mltiplas opes, os imigrantes ilegais so, de certo modo, a figura exemplar daquilo contra o qual devemos nos proteger: tal como algum que pegasse uma caro-na no dilema do prisioneiro, essencial para a legitimao do Estado-mercado, eles querem ganhar acesso ilegtimo ao espao de segurana

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    [27] Jrgen Habermas observa essa eticizao na poltica hegemnica do governo Bush em Der gespaltene Wes-ten. Frankfurt: Suhrkamp, 2004.

    [28] Krisch, Nico. Amerikanische Hegemonie und liberale Revolution im Vlkerrecht. Der Staat, vol. 43, n 2, 2004, p. 33.

    e liberdade, para gozar de suas vantagens sem que as restries liber-dade a isso conectadas sejam experimentadas pela maioria como uma ameaa. Na medida em que gozamos de nossa liberdade consumista dentro do espao interno da sociedade de opes mltiplas, no pode-mos conceber cair no espao da excluso social, onde as restries for-mais e gerais liberdade tm efeitos concretos e materiais. O Estado de segurana o outro lado da moeda do Estado-mercado, do direito de segurana transnacional, o outro lado da sociedade desregulada, glo-bal, de mltiplas opes.

    No difcil transferir essa mudana interna no entendimento da liberdade para o nvel internacional. A concepo de liberdade atual-mente dominante no Ocidente distingue-se pela ligao dos direitos humanos e da democracia economia de mercado que, entre outras coisas, deve ser implementada globalmente por meio da liberalizao do comrcio mundial. Os Estados Unidos e a Europa ocidental distin-guem-se menos pelo fim do que pelos meios de alcan-lo. O objetivo da sociedade civil governada universalmente pela lei passou a ser uma sociedade global de mltiplas opes. O perigo que se declara que o thos desse modo de vida a interpretao autntica da idia kan-tiana e ele se torna vinculante no direito internacional27. As medidas de segurana transnacionais asseguram a defesa desse modo de vida. Em relao aos outros sditos do direito internacional, isso repete a violao da regra de reciprocidade que j foi observada no direito de se-gurana nacional. O mundo ocidental influencia a implementao de normas jurdicas internacionais sem, ao mesmo tempo, considerar-se o destinatrio delas28. A ltima conferncia da OMC mostrou a resis-tncia que esse mundo apresenta quando se trata, pelo menos uma vez, da auto-aplicao de seus prprios princpios. Uma perspectiva cosmopolita exige transcender a perspectiva interna do modo de vida livre da sociedade de mltiplas opes. O Ocidente ainda precisa dar esse passo.

    Klaus Gnther professor de Teoria Jurdica e Direito Penal na Universidade J. W. Goethe, Frank-

    furt. autor de The sense of appropriateness: application discourses in morality and law (1993) e co-editor de

    Die ffentlichkeit der Vernunft und die Vernnft der ffentlichkeit (2001).

    NOVOS ESTUDOSCEBRAP

    83, maro 2009pp. 1125