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DO REGIONAL AO EXISTENCIAL: O ESPAÇO COMO PERSONAGEM EM GRANDE SERTÃO: VEREDAS NA MÍDIA TELEVISIVA FROM REGIONAL TO EXISTENTIAL: THE SPACE AS A CHARACTER IN GRANDE SERTÃO VEREDAS ON TELEVISION MEDIA. Suely Fadul Villibor Flory * RESUMO O objetivo deste artigo é analisar como se concretizam as abordagens da minissérie televisiva Grande Sertão: Veredas, em relação às propostas do romance roseano. Tentaremos realizar o trabalho de volta; do texto televisivo ao literário, que lhe serviu de base, detectando as estratégias utilizadas para presentificar os desdobramentos da subjetividade do narrador e as paisagens recuperadas pela memória, que dialogam com o leitor, através de uma simbologia construída pelo entrelaçamento da trama ficcional e do percurso do herói. Acrescente-se, também, que sendo a televisão uma mídia de massa, opera numa escala de audiência tão grande que não se pode falar em elitismo, constituindo-se a minissérie analisada num marco de qualidade na produção televisiva brasileira destacando-se para fora da massa amorfa da trivialidade. * Profa. Livre-Docente em Literaturas Comparada – UNESP (aposentada) – Coordenadora do Programa de Pós-graduação em Comunicação (Mestrado) da Universidade de Marília -UNIMAR. 1

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Os desdobramentos da subjetividade e as paisagens da memria em Grande Serto: Veredas de Guimares Rosa

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DO REGIONAL AO EXISTENCIAL: O ESPAO COMO PERSONAGEM EM GRANDE SERTO: VEREDAS NA MDIA TELEVISIVA

FROM REGIONAL TO EXISTENTIAL: THE SPACE AS A CHARACTER IN GRANDE SERTO VEREDAS ON TELEVISION MEDIA.

Suely Fadul Villibor Flory *RESUMO

O objetivo deste artigo analisar como se concretizam as abordagens da minissrie televisiva Grande Serto: Veredas, em relao s propostas do romance roseano. Tentaremos realizar o trabalho de volta; do texto televisivo ao literrio, que lhe serviu de base, detectando as estratgias utilizadas para presentificar os desdobramentos da subjetividade do narrador e as paisagens recuperadas pela memria, que dialogam com o leitor, atravs de uma simbologia construda pelo entrelaamento da trama ficcional e do percurso do heri.

Acrescente-se, tambm, que sendo a televiso uma mdia de massa, opera numa escala de audincia to grande que no se pode falar em elitismo, constituindo-se a minissrie analisada num marco de qualidade na produo televisiva brasileira destacando-se para fora da massa amorfa da trivialidade.

Palavras-chave: minissrie televisiva; romance roseano; esttica da recepo; espao textual.

ABSTRACT:

The objective of this article is to analyze how the approaches on Grande Serto: Veredas, a television mini-series, happen related to what Rosas novel proposes. We will try to work backwards, from TV to the literary text on which it was based. We want to find out the strategies used to presentify the development of the narrators subjectivity and the landscape that are retrieved by the memory. Both dialogue with the reader through a symbology which was built by the interlacement of the fictional plot and the hero course.

Moreover, television is a mass media and it operates with large audience so we cannot talk about elite. The mini-series analyzed was considered a quality mark on Brazilian TV production, going beyond the amorphous mass of triviality.

Key words: television mini-series; Rosas novel; Aesthetics of reception; textual space.

[...] preciso (tambm) pensar a televiso como o conjunto dos trabalhos audiovisuais (variados, desiguais, contraditrios) que a constituem, assim como cinema o conjunto de todos os filmes produzidos e literatura o conjunto de todas as obras literrias escritas ou oralizadas, mas, sobretudo, daquelas obras que a discusso pblica qualificada destacou para fora da massa amorfa da trivialidade. O contexto, a estrutura externa, a base tecnolgica tambm contam claro, mas eles no explicam nada seno estiverem referidos quilo que mobiliza tanto produtores quanto telespectadores: as imagens e os sons que constituem a mensagem televisual. (MACHADO, 2000, p. 19).

A minissrie Grande Serto: Veredas, levada ao ar em 1985 pela rede Globo de televiso, com roteiro de Walter George Durst e direo de Walter Avancini, do romance original de Guimares Rosa, destaca-se na produo televisiva brasileira, para fora da massa amorfa da trivialidade por trs razes capitais: a competncia do roteirista em explorar os recursos da linguagem roseana, qualidade maior dessa obra literria inovadora, aproveitando dilogos e falas do original; a qualidade da direo, empenhada em conseguir fidelidade na criao de personagens, na ambientao das cenas, nos planos abertos que ressaltam as paisagens (regies do serto de existncia real e mtica) recuperadas pela memria do narrador no texto literrio e transformadas em imagens/smbolos, verdadeiros actantes que dialogam com os telespectadores e o sucesso da minissrie que conseguiu, a partir do regional, manter o eixo existencial, mensagem central do romance, que questiona a existncia do bem e do mal dentro do prprio homem: o direito e os avessos do homem. O que h homem humano.

O objetivo deste artigo analisar como se concretizam as abordagens da minissrie televisiva em relao s propostas do romance roseano. Tentaremos realizar o trabalho de volta; do texto televisivo ao literrio, que lhe serviu de base, detectando as estratgias utilizadas para presentificar os desdobramentos da subjetividade do narrador e as paisagens recuperadas pela memria, que dialogam com o leitor, atravs de uma simbologia construda pelo entrelaamento da trama ficcional e do percurso do heri.

Acrescente-se, tambm, que sendo a televiso uma mdia de massa, opera numa escala de audincia to grande que no se pode falar em elitismo. Como produzir um trabalho de qualidade, que consiga a penetrao indispensvel em uma audincia necessariamente to heterognea? Vale lembrar que j um best-seller literrio no Brasil um livro que venda 10.000 exemplares e a TV, por menor que seja a audincia do programa, tem cifras de milhes de espectadores.

O desafio de Avancini em transformar a seduo das palavras em uma seduo de imagens, respeitando o livro e a mdia televisiva que exige um ritmo mais gil e dinmico, fez com que a ordem da narrativa original, configurada por superposio de planos temporais de diferentes pocas do passado, fosse reconstruda na minissrie, numa ordem evolutiva linear, permitindo que a grande maioria do pblico, na medida de seus conhecimentos, viso de mundo e repertrio, pudesse entrar em contato com a obra de Guimares Rosa e compreend-la com sua capacidade interpretativa.A minissrie, dramatizao televisiva da obra maior de Guimares Rosa Grande Serto: Veredas, apoia-se, intrinsecamente, na tematizao infinita da dvida o bem e o mal, Deus e o Diabo, o homem e seus avessos esto sempre no limite do ser e do no ser, da essncia e da aparncia. Ressalta-se a constatao da relatividade de todas as crenas, a conscincia do homem como um ser em processo, que se constri diante de ns, juntamente com a prpria narrativa literria e televisiva. Configura-se uma dialtica entre o regional e o universal, entre a histria e a estria, entre a realidade e a fico, tendo como espao de dilogo o serto, e, implicitamente, a dicotomia serto/cidade. A partir das lutas regionais, dos embates dos federalistas e dos senhores do antigo regime questiona-se o destino do homem em sua vertente existencial, dilacerado entre o bem e o mal, procura da razo ltima do ser.

[...] O serto est em toda a parte [...] (GS:V,p.9)

O serto dentro da gente

[...]

Serto no malino nem caridoso, mano oh mano!: ... ele tira ou d, ou agrada ou amarga ao senhor, conforme o senhor mesmo.

[...]

Viver no ? muito perigoso. Por que ainda no se sabe. Porque aprender-a-viver que o viver mesmo. O serto me produz, depois me enguliu, depois me cuspiu do quente da boca... O senhor cr minha narrao? [...] (GS:V, p. 443)

A produo televisual permite, pela maior extenso, um acompanhamento mais minucioso da trajetria e sentimento dos atores/personagens da narrativa, reiterando-se temas secundrios ligados base cultural crist de sacrifcio, purgao e at mesmo de degradao, uma verdadeira descida aos infernos para se atingir a paz e a melhoria. O amor aparece ligado honra e ao poder patriarcal e a mulher para fugir ao seu papel secundrio de vtima ou simples parceira amorosa assume, muitas vezes, a violncia e a coragem para lutar por suas idias, ainda que tenha que se travestir em homem, como Diadorim/ Reinaldo.

Grande Serto:Veredas uma obra em metamorfose, uma obra aberta que, embora espacialmente limitada, modeliza um objeto ilimitado a realidade substituindo toda a vida representada no seu conjunto, pelo seu prprio espao o espao textual. O espao no texto literrio construdo a partir das descries feitas pelo narrador personagem ao contar sua histria de vida. Por sua vez o espao no texto televisivo montado atravs de seqncias de imagens criadas a partir das descries do discurso roseano, apresentadas em plano aberto, tpico do cinema e muito usado nessa minissrie, ou em plano fechado, focalizando objetos, detalhes, personagens, animais aliando-se focalizao da cmera, como se fosse o olhar dos espectadores. A necessidade de cortes, a montagem de cenas e os efeitos sonoros e visuais fazem da narrativa televisiva um mosaico de tramas paralelas e signos diversos, que o receptor deve decodificar para compreender a mensagem ltima que mantm a linha mestra da obra original.

A fico de TV utilizou toda a experincia desses dois veculos, o teatro e o cinema, e lhes acrescentou os recursos do rdio, sem esquecer uma das mais ricas e permanentes fontes de matria ficcional, a narrativa pura, a literatura de gnero pico, escrita ou no. (PALLOTTINI, 1998, p. 24)

Em Grande Serto: Veredas, tanto no romance quanto na minissrie, o destino de RiobaldoTataranaUrut-Branco individual, restrito, parte do universo reproduzido pela arte e, no entanto, representa, simultaneamente, a trajetria de qualquer homem, de qualquer indivduo conduzido e levado pelo destino, envolvido por acontecimentos que fogem ao seu controle.E o Urut-Branco? Ah, no me fale. Ah, esse [...] tristonho levado, que foi que era um pobre menino do destino [...] (GS:V, p. 16)

Esse eu que espelha o outro, que com ele se identifica, representa o reflexo de um objeto que tende a alargar-se at o infinito. Essa transferncia garante a permanncia da obra de arte, seja ela literria ou televisiva como objeto de sucessivas fruies. Acrescente-se, ainda que a minissrie prope em sua releitura, uma visualizao do pas, uma volta s origens e s identidades regionais, com seus conflitos de posse de terras e violncia de grupos rivais, configurando-se uma dinmica de relaes sociais, que ocupa um lugar no imaginrio tanto das elites como dos demais segmentos da sociedade.

A singularidade de Grande Serto: Veredas,que se estende ao texto transmutado, advm da sua especfica organizao sintagmtica, da composio dos elementos da trama que passam antes por uma decomposio paradigmtica, fundada em oposies, postas em evidncia, dentro de um campo semntico, onde personagens, paisagens, cenrios, ambincias, signos e smbolos interagem, com suas significaes alterveis no espao textual, campo de energia da fico narrativa.

[Guimares] [...] tomou um tipo humano tradicional em nossa fico e, desbastando-se os seus elementos contingentes, transportou-o, alm do documento, at a esfera da nossa humanidade, desprendendo-se do molde histrico e social de que partiram (CANDIDO, 1995, p. 174)

atravs do jaguno Riobaldo, tipo humano tradicional em nossa fico, que o receptor se reconhece, ambos inseridos na esfera de nossa humanidade e provenientes de um molde histrico social comum.Longa fala de um narrador a um doutor personagem/narratrio parceiro do dilogo figura do leitor presente dentro do prprio texto, a narrativa ficcional reconstruda, pela recuperao de fatos, paisagens e sentimentos que so vida passada, reminicncias e lembranas, organizadas por uma memria seletiva, por uma subjetividade que contamina e modifica a estrutura do narrado, enquanto na minissrie, nosso conhecimento das personagens, seus feitos, suas crenas e sentimentos, realiza-se atravs da ao dramtica, dos dilogos que se desenrolam diante do telespectador.

O romance inicia-se pelo fim dos acontecimentos, quando Riobaldo dono de terras, casado com Otaclia, rememora sua vida contando-a ao doutor da cidade que o visita. A narrativa a recuperao dos fatos que o levaram a fazer um pacto com o diabo, sendo conduzido pelo destino sua revelia. Encontra-se num presente do ato de narrar (plano da enunciao) relembrando os acontecimentos do passado (plano do enunciado ou da histria contada), onde ele o principal personagem.O texto literrio inicia-se, portanto, pelo final da narrativa (in ultimas res) estratgia literria comum a muitos romances.

A minissrie, no entanto, precisa criar cenas e imagens que falem por si e transmitam essa subjetividade do narrador/personagem, que substitudo pela cmera no texto transmutado. A abertura da minissrie, por necessidade da prpria mdia televisiva, deve atrair os telespectadores, oferecendo-lhes as coordenadas principais da narrativa, apresentando-lhes os principais personagens e evitando superposies temporais que dificultem o entendimento.

preciso ordenar a cronologia temporal da matria narrada e, assim, o incio do texto televisivo seleciona um momento crucial da narrativa, pelo meio dos acontecimentos (in mdias res), quando Riobaldo menino encontra-se, pela primeira vez, com Reinaldo/Diadorim tambm menino e atravessam juntos o Rio So Francisco. Encontram-se com um mulato, que insinua relaes ambguas entre os meninos e quer tomar parte delas, molestando Reinaldo. Este finge concordar e fere gravemente o agressor com uma faca, fazendo-o fugir.

A coragem de Reinaldo, sua reao e iniciativa rpidas revelam-nos que ele est acostumado a se defender, e ao mesmo tempo, constata-se sua ternura e suavidade com a natureza e as belezas do rio. Instaura-se, de incio um clima de ambigidade que permanecer at o fim da minissrie, sendo explorado em vrios breaks, configurando-se um elevamento de tenso em finais de captulo, atravs da focalizao do amor proibido entre os dois jagunos, insinuado pelas estratgias de closes nos atores envolvidos.

Riobaldo, vindo de um passado de pactrio, tendo praticado aes que necessita redimir, encontra-se, no incio da narrativa literria, num momento ainda atormentado do presente. Somente o mergulho no abismo, uma descida aos infernos, poder providenciar a necessria catarsis, que lhe poder trazer um presente liberto de culpa. Inserido numa paisagem de outono, matizada por uma harmonia aparente e por uma paz provisria, agora um homem de range rede Riobaldo procura entender suas veredas na luta/ serto em que se viu tragado e conduzido.

O continuum espacial do texto (LOTMAN, 1978, p. 359) o lugar das aes, onde a sucesso de paisagens, cenrios fsicos e humanos constroem atmosferas e ambincias, reproduzindo o mundo do objeto, ordenado segundo um certo plano, que intervm enquanto linguagem, expressando outras relaes no espaciais do texto. No romance e na minissrie, a existncia de determinados objetos, a descrio/inveno ou a focalizao de paisagens, lugares e animais compem o espao, onde se movimentam e agem as personagens, estabelecendo-se mensagens de um indivduo para outro, do narrador ao leitor, do criador ao coletivo, do particular ao social. Os objetos, paisagens e animais so mensagens em sua materialidade, em sua exterioridade, com sua prpria presena, cuja simbologia ultrapassa o simples papel de elementos decorativos. A simbolizao sobrepuja a significao funcional imediata, tanto no romance quanto na minissrie, atravs do jogo de imagens e das aproximaes metonmicas e analogias metafricas.

Assim sendo, as paisagens recuperadas pela memria, em Grande Serto: Veredas, configuram-se como actantes que dialogam com o leitor, atravs de uma simbologia construda, no texto literrio, pela subjetividade do narrador/ personagem Riobaldo e, no televisivo, pelo entrelaamento da trama ficcional, epopia pica de jagunos/cruzados, em busca de sua verdade e de sua razo de ser no mundo.

Maurice-Jean Lefebve, ampliando o conceito de objeto e englobando paisagens, animais e cenrios, observa que:

[...] nas paisagens e nos objetos, por mais naturais e inertes que possam parecer, dormita sempre, sob o efeito de uma espcie de feiticismo inconsciente, uma potencialidade mgica. O objeto no reenvia, de maneira puramente abstrata, a um trao de carter, a uma condio social ou a uma ideologia; dele emana uma atmosfera, ele portador de um poder, pelo menos virtual, de enfeitiamento.(LEVEBVE, 1975, p. 259)

Em Grande Serto: Veredas, o processo de constituio do espao do serto, como paisagem ficcional, articula-se no cruzamento do real e do simblico, do particular e do universal, transfigurando-se um espao real em um espao mgico. Investido de uma dimenso arquetpica, ligada ao tema de construo de uma identidade nacional, o cenrio ideal para a epopia do homem e o questionamento dos valores fundamentais do humano: amor, sofrimento, perda, vida e morte, Deus e o diabo, o homem retesado entre a essncia e a aparncia, o bem e o mal.

O prprio ttulo articula Grande Serto um espao amplo, coletivo com veredas espaos individualizados, o espao de cada um caminhos. Espao sntese da prpria vida, O serto est em toda a parte/ O serto o mundo... , por excelncia, um espao matricial de onde brota, viceja e concretiza-se a prpria vida. Os homens, seus encontros e desencontros, atos e pensamentos, nem sempre coerentes ou compreensveis, vo desenhando caminhos, vertentes por onde enveredam pelo seu prprio querer, por injunes da prpria vida ou por foras que no conseguem dominar ou compreender.

Delineia-se um serto, ao mesmo tempo mtico e tangvel. Tangvel pois recupera e re-inventa cenrios e realidades sertanejas e mtico pois compe o espao vivencial do homem do serto, de todos os homens, de todos os sertes. Walter Avancini em entrevista declara que precisou abandonar o serto realista e olhar o serto mgico para trazer Guimares o mais fiel possvel [...] (apud, LOBO, 2000, p. 200).

As fronteiras entre a realidade do texto mundo imaginrio e as realidades do receptor senhor do conhecimento catalogvel tornam-se instveis, estabelecendo-se, atravs da linguagem, novas articulaes dos acontecimentos, vividos e rememorados, ultrapassando a realidade sensvel. O autor flagra a vida, o estar no mundo, a partir do interior, da desmontagem de cada elemento do todo, seja um louco, um jaguno, uma criana, uma ona, uma rvore, um objeto qualquer que se projeta, que se anima de vida revelia de tudo. A minissrie atravs das imagens da natureza, das paisagens, cenrios e efeitos especiais, realiza uma ficcionalizao do real, criando a par do serto fsico, o espao mtico do serto/vida.

Diluem-se os contornos entre homens e natureza, parceiros na luta entre o bem e o mal, na travessia onde caminhos e elementos da paisagem fazem-se aliados ou inimigos, como enigmas a serem decifrados, reflexos de olhos humanos que se revelam nas aes e vises dos prprios personagens.

Um complexo jogo entre narrao e focalizao cria um espao intersubjetivo onde fico e realidade, bem como identidade (o eu/narrador) e alteridade (o outro/doutor-narratrio e o prprio leitor) permitem uma reflexo sobre a razo do outro, materializando suas falas e pensamentos, preservando em cada ser, o que ele tem de irredutvel, diferente e intangvel.

Afirma, com muita pertinncia, Joo Adolfo Hansen em sua mais recente publicao que, nesse romance:

[...] Enunciao, tempo da narrao, ordena-se, por justaposio de blocos, em que o contar de um pedao a suspenso para contar-se uma estria b contempornea, suspensa para se narrar um ditado c simultneo: o efeito de alternncia narrativa que, dissolve o modelo causal-linear do romance [...] (HANSEN, 2000, p. 189-190)

Consequentemente, preciso, em cada bloco, construir a paisagem, o cenrio, a ambincia ou atmosfera, onde se inserem os acontecimentos, para que estes possam abrir-se a uma pluralidade de significaes, por parte do espectador. A alegorizao dos espaos, as metforas simultneas, articulando natureza, animais e objetos vo providenciar uma interrelao entre o real e o simblico, baseando-se em dados da realidade, potencializados pela linguagem roseana, que os recobre de significao, mantida na minissrie, na medida do possvel.

Deste modo os espaos ficcionais, os locais onde se desenvolve a ao dramtica, funcionam como narrativas dentro da narrativa, com descries altamente simblicas, onde os signos estabelecem significaes (leitura vertical ou paradigmtica) que iluminam a narrao e permitem vrias interpretaes. Configura-se nas descries das paisagens um serto referencializvel, legvel e reconhecvel pela emergncia da geografia flora e fauna, usos regionais e conhecimento dos gerais, re-inventados pela fala e memria de Riobaldo, com sua justaposio contraditria de discursos e verses de palavras e fatos.

O trabalho artesanal da descrio no romance e a montagem de cenas e ambientes, atravs do trabalho da cmera na minissrie, so responsveis pela construo das paisagens e objetos e nelas encontraremos signos balizadores para a compreenso da trama, uma vez que as circunstncias em que surgem so sempre indicadoras de leituras e interpretaes dos receptores. A narrao de Riobaldo responsvel pela mobilizao dos eventos, deslocando objetos no tempo e no espao, conferindo-lhes vida e sentido e na adaptao televisiva, o uso da cmera em closes, as focalizaes, os planos abertos e fechados vo desempenhar a mesma funo.

Configura-se uma ligao indissolvel entre dilogos e cenrios e estes, enquanto pausa ou corte na diacronia do narrado, permitem que as paisagens passem para o primeiro plano, com todo o potencial simblico dos objetos que os compem, participando dos conflitos, atualizando comportamentos e envolvendo-se no prprio processo de representao.

Deste modo, todas as passagens decisivas do romance e da minissrie esto intrinsecamente ligados ou, at mesmo, s podem ser compreendidas em suas virtualidades se forem decifrados os signos e smbolos do espao. A fala repetida por Riobaldo na narrativa televisiva O diabo na rua, no meio do redemunho, assim como no texto literrio, privilegia uma leitura da insero do mal na rua, espao urbano, lugar de homens e na natureza redemunho, ainda que catica e em desordenado movimento o diabo, as brutas (GS:V, p.21).

A primeira referncia a Diadorim no discurso narrativo vem associada vida, e natureza, e ser sempre ligada beleza, ao amor, delicadeza da vida, quando esto juntos e a ss. No entanto, nas cenas coletivas, no convvio com os jagunos ou nas lutas revela-se o duplo de Diadorim o jaguno Reinaldo que no conhece o medo o Di que luta com Hermgenes na rua, no paredo, no meio do redemunho.

Hem? O senhor? Olhe: o rio Carinhanha preto, o Paracatu, moreno; meu, em belo, o Urucia paz nas guas... vida (GS:V, p. 24)

[...]

Diadorim acendeu um foguinho, eu fui buscar sabugos. Mariposas passavam muitas, por entre as nossas caras, e besouros grados esbarravam. Puxava uma bris-brisa. O ianso do vento revinha com o cheiro de alguma chuva perto E o chiim dos grilos ajuntava o campo, aos quadrados. . (GS:V, p.24)

[...]

Diadorim me ps o rastro dele para sempre em todas essas quisquilhas da natureza. (GS:V, p.25)

Ser duplo, de sexualidade ambgua, Diadorim lembrada sempre pelos buritizais verdes, pelo topzio/ametista destinado por Riobaldo ao amor de sua vida e que nunca lhe chegou s mos, acabando na posse consentida e certa de Otacilia. estando s ss com Riobaldo marcada pelo sintagmas verde/esperana/Urucia/vida, vitualidades do no ser, potencialidades que so tragados pelo redemunho. A impossibilidade, o limite, o irrealizvel, a busca constante que s a morte d cobro sintetizam-se no mito da donzela guerreira que s possvel em um espao aberto, em plena natureza. Como numa missa, o ato de comunho com o sagrado tem o poder de re-ligar, ainda que por momentos, a harmonia homem/natureza pressentida pela descrio dos cenrios (canto, pssaros, cu) e pelo amor platnico e sublimado.

Por outro lado, entre os jagunos, a coragem de Diadorim sempre lembrada, transforma-se em ferocidade como se o Di, inserido em seu prprio nome, tomasse corpo, reforando um motivo recorrente em toda a narrativa o diabo no existe por si s, indivduo, soberano o que h a maldade do prprio homem, os avessos do homem.

[...]

Diadorim, travestida de jaguno mantinha com Riobaldo uma aliana de fora e sangue: precisava vingar a morte de seu pai, matando o signo do mal, Hermgenes. Essa aliana passava tambm por uma seduo mtua, um amor que no podia ser dito, porque naquele momento e naquele lugar, a opo que se colocava para Diadorim era a masculinidade, no seu sentido mais beligerante.[...] (LOBO, 2000, 188).

Na minissrie, o efeito surpresa da descoberta do verdadeiro sexo de Diadorim/Reinaldo, que no texto literrio ocorre no final da histria contada prejudicado pelo conhecimento dos telespectadores de que a atriz Bruna Lombardi, intrprete da personagem Diadorim uma mulher. Embora caracterizada como homem e assim vista por todos os personagens da minissrie, o receptor j conhece a verdade. Estabelece-se um pacto entre o emissor e o receptor, que partilham de indagaes comuns: como, quando, onde a revelao ser feita a Riobaldo e aos demais

E assim Diadorim, agora Reinaldo. Diadorim o suave, o Urucia, os buritizais, o amante da natureza que ensina Riobaldo a sentir o prazer das coisas simples, da integrao com a natureza. Reinaldo, o jaguno, o ser humano encerrando em si a maldade que tambm parte intrnseca de cada um de ns:

O Reinaldo. Diadorim, digo. Eh, ele sabia ser homem terrvel. Suspa! O senhor viu ona:boca de lado e lado, raivvel, pelos filhos? Viu rusgo de touro no alto campo, brabejando; cobra jararacuss emendando sete botes estalados; bando doido de queixadas se passantes, dando febre no mato? E o senhor no viu o Reinaldo guerrear!... Essas coisas se acreditam. O diabo na rua, no meio do redemunho [...]( GS:V, p.122/123).

A ambigidade de uma relao amorosa, inadmissvel entre dois jagunos, vai propiciar momentos de grande tenso, aproveitados na minissrie nos breaks de fim de captulo para prender o telespectador e motiv-lo para o captulo seguinte, mantendo-o preso continuidade da minissrie.

Durante o desenrolar da minissrie com uma cronologia temporal linear mas feita por blocos de acontecimentos, enfocados a partir de uma lgica interior, psicolgica, ligada ao fluxo da trama, os fatos vo se enredando e se auto-explicando, obrigando o leitor a preencher os vazios com sua prpria interpretao.

A paisagem, como j disse, construda cena a cena, atravs da alegorizao dos espaos, das metforas simultneas que articulam o real e o simblico, passando a paisagem, com seus signos, ao estatuto de um personagem que, interagindo com o receptor, atualiza suas potencialidades num dilogo subliminar, numa concretizao do que no foi dito mas deve ser assimilado pela fuso dos horizontes de expectativas do autor e do leitor, preparada pelas virtualidades do prprio discurso.

Para salvar o texto isto , para transform-lo de uma iluso de significado na percepo de que o significado infinito o leitor deve suspeitar de que cada linha esconde um outro significado secreto; as palavras, em vez de dizer, ocultam o no-dito; a glria do leitor descobrir que os textos podem dizer tudo.[...] (ECO, 1993, p. 46)

As passagens decisivas da narrativa esto ligadas a um cenrio especfico, criando uma atmosfera, onde os acontecimentos tornam-se plausveis, abrindo-se a muitas leituras e levando o leitor a preencher os brancos do texto com suas prprias projees interpretativas. Temos assim, dentre outras: o primeiro encontro entre Riobaldo e Diadorim na travessia do So Francisco, incio da minissrie; o julgamento de Z Bebelo (cena coletiva); a tentativa mal sucedida de transpor o Liso do Sussuaro, sob a chefia de Medeiro Vaz; o pacto com o diabo nas Veredas Mortas; a travessia do Liso do Sussuaro, sob a chefia de Riobaldo/Urut-Branco, pactrio; a morte de Diadorim e o resgate do pacto de Riobaldo.

Vejamos cada uma delas e suas interrelaes com a trama, comprovando a produtividade das paisagens, cenrios fsicos e humanos (cenas coletivas) como actantes, que dialogam com o receptor atravs de sua simbologia.

Encontro e Travessia do So Francisco.

O primeiro encontro entre Diadorim e Riobaldo, ambos ainda meninos/adolescentes ocorre s margens do So Francisco, e ir simbolizar um rito de passagem, do menino inocente que conhece o amor (embora no o reconhea) a maldade, a coragem e a morte. necessrio um batismo para aquele que vir a ser, num crescendo, o Tatarana e o Urut-Branco.

[...]

Se deu h tanto, faz tanto, imagine: eu devia de estar com uns quatorze anos, se.

[...]

Ai pois, de repente, vi um menino encostado numa rvore, pitando cigarro [...] e era um menino bonito, claro, com a testa alta e os olhos aos-grandes, verdes. (GS:V, p. 79/80).

[]

Mas eu olhava esse menino, com um prazer de companhia, como nunca por ningum eu tinha sentido. (GS:V, p.81).

[...]

(Diadorim) Sou diferente de todo o mundo. Meu pai disse que eu careo de ser diferente, muito diferente... E eu no tinha medo mais. Eu? O srio pontual isto, o senhor escute, me escute mais do que eu estou dizendo; e escute desarmado. O srio isto, da estria toda por isto foi que a estria eu lhe contei : eu no sentia nada. S uma transformao, pesvel. Muita coisa importante falta nome. (GS:V, p. 86).

A presena da gua lustral do batismo, o rio So Francisco, a paisagem amena das margens onde o sentimento do amor aflora muita coisa importante falta nome, a luxria e o aparecimento do mulato com a primeira insinuao de homossexualismo Voces dois, u, hum? Que que esto fazendo?[...] (GS:V, p. 85), a valentia de Reinaldo, que ainda no era Diadorim, so revelaes sublinhadas pela paisagem. o de-Janeiro, riozinho verde, tranquilo, como a infncia de Riobaldo, que vai dar, de repente, no So Francisco, largo, amedrontador, barrento, como a vida, prenhe de perigos e desafios:

Medo maior que se tem, de vir canoando num ribeirozinho, e dar, sem esperar, no corpo dum rio grande. At pelo mudar. A feiura com que o So Francisco puxa, se moendo todo barrento vermelho, recebe para si o de- Janeiro, quase s um rego verde s. (GS:V, p. 82).

Riobaldo, menino, como o de-Janeiro, ribeirozinho ameno jogado na vida adulta e, como o So Francisco, ir derrocando tudo e todos sua passagem para cumprir a travessia que lhe foi imposta pelo destino.

Julgamento de Z Bebelo uma cena coletiva, que nos revela a quebra do cdigo de honra da jagunagem onde Riobaldo, recm-chegado do grupo de Joca Ramiro defende a vida de Z Bebelo, no julgamento entre os jagunos e influencia os chefes na sua deciso de poupar o inimigo.

[...] A guerra foi grande, durou tempo que durou, encheu este serto. Nela todo o mundo vai falar, pelo Norte dos Nortes, em Minas e na Bahia toda, constantes anos, at em outras partes... Vo fazer cantigas, relatando as tantas faanhas... Pois ento, xente, ho de se dizer que aqui na Sempre-Verde vieram se reunir os chefes todos de bandos, com seus cabras valentes, montoeira completa, e com o sobregoverno de Joca Ramiro s para, no fim, fim, se acabar com um homenzinho sozinho se condenar de matar Z Bebelo, o quanto fosse um boi de corte? Um fato assim honra? Ou vergonha?...[...] (GS:V, p.209)

A fala de Riobaldo o espao privilegiado no romance e na minissrie, ela que possibilita a incorporao de velhas narrativas sertanejas ao universo ficcional do romance, fazendo da oralidade uma estratgia de aproximao do receptor e pondo em evidncia o encontro de dois espaos culturais distintos: o serto e a cidade, representados pelo narrador e pelo doutor. O homem culto da cidade precisa penetrar no universo sertanejo para compreend-lo e capt-lo pelo lado de dentro.

Redesenhando a cartografia da regio, atravs dos elementos da paisagem, que se constri a partir das descries de mincias, sons e cores, Guimares Rosa estabelece associaes e analogias entre diferentes universos, prximos e distantes que se aproximam e se afastam. A minissrie faz uma montagem primorosa das cenas coletivas, com plano aberto nas batalhas, recuperando o pico atravs de imagens construdas sobre as descries roseanas, carregadas de significao e duplos sentidos. Os homens compem os cenrios, configurando-se um espao social que dialoga com os telespectadores envolvidos pela trama narrativa:

Primeira passagem do liso do Sussuaro (sob a chefia de Medeiro-Vaz)

Medeiro Vaz na chefia no consegue vencer o Liso do Sussuaro pois no estava preparado. O espao do mal exige a purgao do heri, a entrega total e apenas Riobaldo, aps o pacto com o diabo estaria em condies de atravess-lo. A descrio, que serviu de base para os cenrios em ambiente da minissrie, mostra um deserto sem gua e sem vida, onde a morte presena constante. Outras pessoas que haviam tentado atravessar o LISO desistiram ou morreram.

Em o que afundamos num cerrado de mangabal, indo sem volvncia ... E as rvores iam-se abaixando, menorzinhas ... Os urubus em vasto espaceavam. Se acabou o capinzal de capim redondo e paspalho, e paus espinhosos ... Da, o sol no deixava olhar rumo nenhum. Vi a luz, castigo. Um gavio-andorim: foi o fim de pssaro que a gente divulgou. (GS:V, p.39) [...]

Era uma terra diferente, louca, e lagoa de areia. Onde que seria o sobejo dela, confinante? O sol vertia no cho, com sal, esfaiscava. De longe vez, capins mortos; e uns tufos de seca planta feito cabeleira sem cabea. As-exalastrava a distncia, adiante, um amarelo vapor. E fogo comeou a entrar, com o ar, nos pobres peitos da gente. (GS:V, p.39)

[]

S saiba: o Liso do Sussuaro concebia silncio, e produzia uma maldade feito pessoa!. (GS:V, p.41-42)

A paisagem configura-se com o locus terribilis, como domnio do sofrimento e da morte, como o inferno que s os iniciados tm condio de superar. A importncia crucial de atravessar o LISO advm do fato que era esta a nica forma de surpreender Hermgenes em sua fazenda, e conseguir venc-lo pelo inesperado do ataque. Era quase impossvel atravessar a regio inspita, que matava a todos que tentavam faz-lo, o que representava uma certeza de segurana ao inimigo. preciso o pacto com o mal para vencer o prprio mal. O heri induzido pelo seu prprio destino a transformar-se de Riobaldo a Tatarana e Urut-Branco, e s este, o pactrio, poder vencer o espao do inferno.

O pacto com o Diabo

Do mesmo modo j visto na primeira tentativa de atravessar o Liso, o cenrio dialoga com o telespectador na passagem do pacto com o diabo nas Veredas Mortas. O monlogo interior de Riobaldo sublinhado por uma atmosfera fantasmagrica, propiciando o questionamento sobre a existncia do diabo, a validade de um pacto onde a alma do homem pertencente a Deus, portanto inegocivel possa vir a ser moeda de troca.

Eu caminhei para as Veredas-Mortas. Varei a quissassa; depois, tinha um lance de capoeira. Um caminho cavado. Depois, era o cerrado mato; fui surgindo. Ali esvoaavam as estopas eram uns cabors. E eu ia estudando tudo. Lugar meu tinha de ser a concruz dos caminho. . (GS:V, p.316/317)

[]

Lcifer! Satanaz!...

S outro silncio. O senhor sabe o que o silncio ? a gente mesmo, demais.

Ei, Lcifer! Satanaz, dos meus Infernos!

Voz minha se estragasse, em mim tudo era cordas e cobras. E foi a. Foi. Ele no existe, e no apareceu nem respondeu que um falso imaginado. Mas eu supri que ele tinha me ouvido. (GS:V, p.319)

A travessia do Liso do Sussuaro sob a chefia do Urut-Branco.

A travessia do Liso do Sussuaro obtida com a maior facilidade, depois do pacto de Riobaldo. Da em diante assume a chefia o Urut-Branco, nico capaz de se defrontar com as foras do mal, de desafiar Hermgenes, tambm pactrio. Todas as agruras, desespero e mortandade de homens e cavalos da primeira vez, desaparecem e os obstculos so vencidos pois apenas os iniciados podem vencer o domnio da maldade, o espao infernal.Na minissrie, o ritmo mais lento da travessia sublinha as dificuldades e o sofrimento do bando, verdadeiros cruzados numa guerra santa contra o mal

A fortes braos de anjos sojigado. O digo? Os outros, a em passo em passo, usufruam quinho da minha andraja coragem. Rasgamos serto. S o real. Se passou como se passou, nem refiro que fosse difcil-ah; essa vez no podia ser! Sobrelgios? Tudo ajudou a gente, o caminho mesmo se economizava. As estralas pareciam muito quentes. Nos nove dias, atravessamos. Todos; bem, todos, tirante um. Que conto. (GS:V, p.384)

[...]

Os jagunos meus, os riobaldos, raa de Urut-Branco. Alm! Mas, da, um pensamento que raro j era que ainda me vinha, de fugida, esse pensamento ento tive. O senhor sabe. O que me mortifica, de tanto nele falar, o senhor sabe. O demo! Que tanto me ajudasse, que quanto de mim ia tirar cobro? Deixa, no fim me ajeito... que eu disse comigo. Triste engano. Do que no lembrei ou no conhecesse, que a bula dele esta: aos poucos o senhor vai, crescendo e se esquecendo... . (GS:V, p.385)

A morte de Diadorim.

A morte de Diadorim vai significar o resgate do pacto de Riobaldo. A rua deserta, de repente palco de uma luta sangrenta, o p de vento, o redemunho, espaos onde o Diabo, segundo as crenas populares, gosta de se esconder, so testemunhas do sofrer de Riobaldo, que, definitivamente, perdeu parte de si mesmo. Diadorim/Reinaldo, seu duplo, parte integrante de sua alma, resgata, com sua morte, o pacto feito. O Urut-Branco no existe mais. Riobaldo, daqui para a frente ser um ser por metade. O pacto, existente ou no, cumpriu-se. Veredas mortas no existem mais. So agora Veredas Altas, um lugar como outro qualquer, esvaziado de sua alma maligna, de seu significado simblico. Cenas do clmax do romance e da minissrie, as lutas dos bandos inimigos e a batalha final Reinaldo e Hermgenes so marcadas pela trilha sonora, pelos efeitos especiais e pela caracterizao das personagens, que ressaltam a violncia do encontro.

Mas eles vinham, se avinham, num p-de-vento, no desadoro, bramavam, se investiram... Ao que fechou o fim e se fizeram. E eu arrevessei, na nsia por um livramento... Quando quis rezar e s um pensamento, como raio e raio, que em mim. Que o senhor sabe? Qual... o Diabo na rua, no meio do redemunho... O senhor soubesse... Diadorim eu queria ver segurar com os olhos... Escutei o medo claro nos meus dentes... O Hermgenes: desumano, dronho nos cabeles da barba ... [...] (GS:V, p.450)

O romance e a minissrie realizam um jogo entre a abertura para o exterior (natureza) e o fechamento para a interioridade (dilogos e falas) da personagem, dando um movimento ritmado narrativa. Movimento ritmado de respirao, de vida, decorrente do alargamento e estreitamento do foco narrativo, do tempo e do espao tanto fsico como psicolgico. O narrador, partindo de um presente atormentado e, na minissrie, aps todo o decorrer de sua prpria vida, chega a catarsis, atravs da purgao, do sofrimento que o libertou do pacto com o Diabo.

O rio aparece como a metfora da existncia humana, da vida em seu fluir. Sua travessia a da vida, o espao do homem, sua passagem ritual entre o nascer e o morrer.

Riobaldo/So Francisco homem de range rede, cuja imobilidade compartilhada com o prprio personagem:

Cerro. O senhor v. Contei tudo. Agora estou aqui, quase barranqueiro. Para a velhice vou, com ordem e trabalho. Sei de mim? Cumpro. O Rio de So Francisco que de to grande se comparece parece um pau grosso, em p, enorme[...] (GS:V, p.460)

Verifica-se, portanto, que os desdobramentos da subjetividade imprimem-se nas paisagens, que marcam as diferentes etapas e espaos da narrativa, tanto televisiva como literria, numa interrelao altamente simblica e reveladora. Configura-se, como afirmamos no incio, uma leitura vertical, uma decomposio paradigmtica, fundada em oposies, onde personagens e paisagens dialogam com o receptor. Acumulam-se, no decorrer da minissrie e do genial romance roseano, indcios, signos e smbolos, que se presentificam no espao textual, com interpretaes alterveis, interagindo com o repertrio e com o horizonte de expectativas do receptor, parceiro indispensvel para a travessia do texto/serto, onde estamos todos imersos.

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RESUMO

O objetivo deste artigo analisar como se concretizam as abordagens da minissrie televisiva Grande Serto: Veredas, em relao s propostas do romance roseano. Tentaremos realizar o trabalho de volta; do texto televisivo ao literrio, que lhe serviu de base, detectando as estratgias utilizadas para presentificar os desdobramentos da subjetividade do narrador e as paisagens recuperadas pela memria, que dialogam com o leitor, atravs de uma simbologia construda pelo entrelaamento da trama ficcional e do percurso do heri.

Acrescente-se, tambm, que sendo a televiso uma mdia de massa, opera numa escala de audincia to grande que no se pode falar em elitismo, constituindo-se a minissrie analisada num marco de qualidade na produo televisiva brasileira, destacando-se para fora da massa amorfa da trivialidade.

Palavras-chave: minissrie televisiva; romance roseano; esttica da recepo; espao textual.SUELY FADUL VILLIBOR FLORY

RUA 9 DE JULHO, 974

19800-021

* Profa. Livre-Docente em Literaturas Comparada UNESP (aposentada) Coordenadora do Programa de Ps-graduao em Comunicao (Mestrado) da Universidade de Marlia -UNIMAR.

Passaremos a designar as citaes do romance em estudo pela sigla GS: V seguido do nmero da pgina. ROSA, Joo Guimares. Grande Serto:Veredas.10. ed. Rio de Janeiro: Jos Olimpio, 1976,