guia politicamente incorreto da america latina

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Livro Guia politicamente incorreto da América Latina, muito bom para estudantes de história. Faz uma análise da histórida a Amérlica Latina, desconstruindo mitos.

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  • Ficha TcnicaCopyright Leandro Narloch e Duda Teixeira, 2011

    Diretor Editorial Pascoal SotoCoordenao Editorial Tain Bispo

    Coordenao de Produo Carochinha EditorialEdio Diego Rodrigues

    Reviso Tcnica Marco Antonio VillaPreparao de Textos Dbora TamayoseChecagem de Informaes Simone Costa

    Reviso de Provas Solange Lemos e Ceclia Madarsndice Ceclia Madars

    Capa Ana Carolina MesquitaIlustraes de Capa Gilmar Fraga

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)Ficha catalogrfica elaborada por Oficina Mirade, RJ, Brasil.

    N231 Narloch, Leandro, 1978Guia politicamente incorreto da Amrica Latina /

    Leandro Narloch, Duda Teixeira. So Paulo: Leya, 2011.336 p. : il.

    Inclui bibliografia e ndice.ISBN 9788580445855.

    1. Amrica Latina Histria Miscelnea. I. Teixeira,Duda. II. Ttulo.

    11-0133 CDD980

    Entre em contato com os autores:[email protected] / @lnarloch

    [email protected] / @DudaTeixeira2011

    Todos os direitos desta edio reservados Texto Editores Ltda.

    [Uma editora do Grupo Leya]Rua Desembargador Paulo Passalqua, 86

    01248-010 Pacaembu So Paulo, SP Brasilwww.leya.com.br

  • Larinha eao Luisinho.

  • A melhor coisa a fazer na Amrica [Latina] ir embora.SIMN BOLVAR

  • INTRODUO

  • COMO DEIXAR DE SER LATINO-AMERICANO

    Foram os franceses os primeiros a usar a expresso Amrica Latina. Por volta de1860, o imperador Napoleo III tentava aumentar sua influncia no Mxico, na poca umpas tumultuado por revoltas e guerras entre polticos liberais e conservadores. Um bomjeito de aproximar culturalmente os dois pases era destacando o que eles tinham emcomum, como a mesma origem do idioma. Tanto o francs quanto o espanhol e oportugus so lnguas derivadas do latim essa semelhana no s deixava a influnciafrancesa mais natural como isolava os imperialistas britnicos e seu idioma anglo-saxo.1

    Amrica Latina se tornou assim uma ideia to vazia quanto abrangente. Renesujeitos e povos dos mais diversos: o que h em comum entre ribeirinhos amaznicos,vaqueiros gachos, executivos da Cidade do Mxico, ndios das ilhas flutuantes do lagoTiticaca e haitianos praticantes de vodu? Eles falam lnguas derivadas do latim, mas... eda? Colocar todos em um mesmo saco no seria o mesmo que igualar sujeitos todiferentes quanto um xeque radical egpcio, um fazendeiro branco da frica do Sul e umpigmeu do Congo? So todos africanos, certo, mas pouca gente fala em uma nicaidentidade para a frica.

    Talvez a principal semelhana entre os latino-americanos no seja algo que venha denossos longnquos antepassados, como a lngua, e sim em um trao recente, forjadolentamente ao longo de sculos. Bolivianos, mexicanos, brasileiros e todos os demais,quando vislumbram o prprio passado, contam exatamente a mesma histria.

    como se ingredientes de sabores, cores e tamanhos diferentes entrassem todos numagrande batedeira para criar uma massa homognea; e como se essa massa fosserecortada por um mesmo molde de biscoito, dando origem a seres graciosos com omesmo formato e o mesmo discurso. To parecidas so suas narrativas, e to importante a histria para a identidade de um povo, que possvel tirar dessa massa algumas regraspara ser um tpico habitante da nossa regio. Na receita para se preparar um bom latino-americano, parece ser necessrio:

    1. Lamentar. Todo latino-americano nutre uma obsesso por episdios tristes de suahistria: o massacre dos ndios, os horrores da escravido, a violncia das ditaduras.Alm dessas histrias de opresso, nada de bom aconteceu.

    2. Encarar a cultura local como uma forma de resistncia. Fica proibido ligar na tomadainstrumentos musicais tpicos e populares e passa a ser um requisito moral usar ponchose saias coloridas ou pelo menos desfilar com um colar de artesanato indgena.

    3. Condenar o capitalismo. O latino-americano que honra o nome acredita que ocomunismo foi uma ideia boa, s que mal implantada. E, se j no luta para implantaresse falido modelo por aqui, ao menos defende sistemas mais sociais, solidrios,

  • justos e comunitrios.

    4. Denunciar a dominao externa. Se a responsabilidade pelos problemas do continenteno pode ser atribuda Espanha, Frana ou a Portugal, ento certamente tem algumamo da Inglaterra ou dos Estados Unidos. Ou, como prega o livro As Veias Abertas daAmrica Latina, clssico desse pensamento simplista, a cada pas d-se uma funo,sempre em benefcio do desenvolvimento da metrpole estrangeira do momento.

    5. Cultuar heris perversos. Quanto mais bobagens eles falarem e quanto mais sabotaremseu prprio pas, mais esttuas equestres e estampas em camisetas sero feitas em suahomenagem.

    Tudo neste livro contra essas regras to batidas para se contar a histria da AmricaLatina. No nos sentimos representados por guerrilheiros ou por indignados lderesandinos e suas roupas coloridas. No h aqui destaque para veias abertas do continente,mas para feridas devidamente tratadas e curadas com a ajuda de grandes potncias.Conhecemos bem as tragdias que nossos antepassados ndios e negros sofreram, mas,honestamente, estamos cansados de falar sobre elas. E acreditamos que todos os povospassaram por desgraas semelhantes, inclusive aqueles que muitos de ns adoramosacusar. Por isso, quando vtimas da histria aparecerem nesta obra, para revelarmos queelas tambm mataram e escravizaram e como elas se beneficiaram com ideias ecostumes vindos de fora.

    Figuras ilustres da Amrica Latina tambm passam neste livro, mas longe de nsmostrar somente que elas no so to admirveis quanto se diz. Na histria de quase todopas, comum abrilhantar as palavras de figuras pblicas e at inventar virtudes de seucarter e no passa de chatice ficar insistindo numa realidade menos interessante.Acontece que na Amrica Latina se vai alm: escolhem-se como heris justamente oshomens que mais atrapalharam a poltica, mais arruinaram a economia, mais perseguiramos cidados. No importam as tragdias que Salvador Allende, Che Guevara e Juan Perntenham tornado possveis. Importantes so o carisma, o rosto fotognico, a morte trgica,os discursos inflamados contra estrangeiros. Por isso, no h como escapar: ele, o falsoheri latino-americano, o principal alvo deste livro.

    1 John Charles Chasteen, Born in Blood & and Fire: A Concise History of Latin America, W. W. Norton & Company,2011, pgina 156.

  • CHEGUEVARA

  • UM OLHAR MATADOR

    No tem como negar: na Amrica Latina e mesmo fora dela, Che o cara. Seu nome eseu retrato esto em lbuns de rock, na capa de livros, no estepe externo de carrosesportivos. O guerrilheiro argentino d nome a dezenas de espaos pblicos com funesbonitinhas, como o Centro Urbano de Cultura e Arte (Cuca) Che Guevara, no Cear, ou aCooperativa de Trabalho Ernesto Che Guevara de Crdoba, na Argentina, alm de ruas epraas em todo o continente. possvel estudar na Escola Che Guevara tanto em Quito,no Equador, quanto na Argentina ou em Monte do Carmo, no interior do Tocantins. Oguerrilheiro foi homenageado pela escola de samba Unidos da Ilha da Magia, campe docarnaval 2011 de Florianpolis. A filha dele, Aleida, desfilou em um carro alegrico noformato de um tanque de guerra.2 A torcida Mfia Azul, do Cruzeiro, time de MinasGerais, j pintou a imagem de seu rosto em bandeiras e camisetas. Os nossos cineastasretratam Che como um mochileiro camarada, um jovem audacioso e sonhador. Qualquersindicato que se preze tem uma bandeira com Che. Um livro didtico para aulas deespanhol, distribudo pelo governo do Paran em 2008, reproduz versos sobre aqueleguerrilheiro louco que mataram na Bolvia e como depois daquele dia tudo parece maisfeio. Em So Paulo, onde moram os autores deste livro, h bares com o nome de Che,postos de sade com o nome de Che, dichavadores de maconha com o rosto de Che venda no posto de gasolina. Se no h mais camisetas com a imagem de Che, porqueelas saram de moda por saturao.

    Quem exibe a imagem ou o nome de Che tem seus motivos para admir-lo. Dizem que,diante de um mundo to voltado competio, ao sucesso individual e ao dinheiro, bomse lembrar de algum que deu a vida por uma sociedade diferente. Se no se pode mudaro sistema por completo, pelo menos se pode fazer um pequeno ato de protesto,estampando o rosto de um jovem aventureiro que, argumentam alguns, renunciou aoprprio bem-estar em prol de uma ideia, libertou-se da vida convencional para defenderos oprimidos e apostar no sonho de um mundo melhor. Che para essas pessoas umsmbolo de tudo o que dizem defender: a paz entre os povos, a tolerncia, a defesa dosdireitos dos mais fracos e dos trabalhadores e o fim da explorao econmica.

    Mas Che Guevara lutou contra as bandeiras que os seus fs mais defendem. Como sever a seguir, h quatro grandes contradies entre sua vida e a admirao que ela inspira.As informaes a seguir vm das principais biografias do guerrilheiro e de instituiesdas mais puritanas: rgos de direitos humanos e associaes de familiares de mortos edesaparecidos polticos. Mas a principal fonte o prprio Che Guevara. Suas palavras,presentes em livros, manifestos, dirios e no depoimento de seus colegas, deixam claroque, nos dias de hoje, quem nutre sentimentos politicamente corretos em favor da paz,dos direitos humanos e do bem-estar dos mais pobres precisa manter o guarda-roupa omais longe possvel do rosto de Che Guevara.

  • Che e a liberdade artstica e sexualAntes de mergulhar nas crenas e nas aes do famoso revolucionrio, preciso fazer

    uma viagem Cuba da dcada de 1950, pouco antes de Che e os outros guerrilheiroscomandados por Fidel Castro tomarem o poder. O passeio cheio de turbulncia. Quemainda hoje a favor do regime comunista costuma descrever a ilha dos tempos pr-revolucionrios como um bordel dos americanos, um playground para marmanjos repletode prostitutas, mafiosos e cubanos miserveis. J aqueles que se opem ao regime tratamde destacar o progresso da Cuba anterior revoluo e alguns nmeros de qualidade devida da poca bem melhores que a mdia latino-americana.Ao interromper o turismo para Cuba, a revoluo deu impulso a outros polos tursticos, que passaram a atender aosamericanos interessados no Caribe. Nos anos 70, grandes empresas hoteleiras, muitas das quais tinham sido expulsasde Havana, se instalaram a 200 quilmetros de Cuba, numa praia mexicana at ento deserta Cancn.

    mais complicado que isso. Como qualquer grande cidade turstica da Amrica, Cubatinha prostitutas, corruptos, ricos e pobres, verdade. Havana formava com Las Vegas eMiami um tringulo de negcios de turismo que envolvia cassinos administrados pormafiosos, shows internacionais e grandes hotis. Os mafiosos que inspiraram o filme OPoderoso Chefo tinham negcios em Cuba no toa que o protagonista, MichaelCorleone, visita a ilha no segundo filme da trilogia. Charles Lucky Luciano, lder damfia siciliana de Nova York, se escondeu em Havana depois de ser deportado pelosEstados Unidos para a Itlia; em Cuba ele se reunia com outros chefes, como o judeuMeyer Lansky e Vito Genovese. Esses figures mantinham negcios com o ditadorFulgencio Batista, ningum menos que o presidente e ditador de Cuba.Babalu uma msica cubana que virou hit das rdios e dos canais de TV dos Estados Unidos nos anos 40. A letra uma homenagem a Babalu Aye, deusa da santera cubana, o equivalente ao candombl. Me d 17 velas, para pr lna cruz, e d um pedao de tabaco e um jarro de aguardente, dizia a msica.

    No entanto, como tambm de esperar de qualquer lugar com o turismo em ascenso,Cuba vivia um surto de crescimento e otimismo. Na dcada de 1950, a economia mundialse recuperava e o uso dos avies a jato se difundia. O turismo de massa ganhou assim umbelo impulso e a ilha caribenha foi um dos primeiros destinos dos novos turistasamericanos. Combinado com os baixos custos da viagem depois da Segunda Guerra,Havana de repente se tornou um destino extico de escolha de centenas de milhares deamericanos excitados para ver a terra de Babalu, afirma o historiador Peter Moruzzi nolivro Havana before Castro.3 A maior vantagem competitiva era a de ser um destinointernacional a apenas 150 quilmetros dos Estados Unidos. Excitante, extica. Cuba:onde o passado encontra o futuro, dizia um anncio de 1957 da Comisso Cubana deTurismo, similar s propagandas de qualquer cidade turstica que deseja atrair visitantes emovimentar a economia. Havia na poca 28 voos dirios entre cidades cubanas eamericanas e muitos americanos viajavam para Cuba de carro, por meio de um serviodirio de ferryboat a partir da Flrida.Se hoje os cubanos fogem de seu pas, na dcada de 1950 acontecia o contrrio: imigrantes se mudavam para Cuba.Entre 1933 e 1953, mais de 15 mil judeus, 74 mil espanhis e 7.500 alemes se mudaram para l. Sobre essa poca,at mesmo Che Guevara afirmou que Cuba tinha um padro de vida relativamente elevado.4

    Essa expanso dava dinheiro no s a mafiosos, prostitutas e magnatas, mas tambm adonos de restaurantes, garons, chefs de cozinha, guias de turismo, empresas de city tour,

  • enfim, todos os trabalhadores e empresrios envolvidos com o turismo. O crescimentolevava mais cubanos classe mdia e aquecia outros setores da economia, como aconstruo civil. Prdios e casas cheios de novidades arquitetnicas se espalhavam porHavana e atraam ateno internacional. A recuperao da economia durante a SegundaGuerra e o crescimento do turismo tiveram um efeito estimulante no setor de construo,levando a um boom que encorajou a pesquisa de formas e novas tecnologias, afirma oarquiteto Eduardo Luis Rodrguez.5 As cidades, onde vivia 66% da populao,6 sebeneficiavam ainda do dinheiro vindo da alta do preo da cana-de-acar, principalproduto de exportao de Cuba. Engenheiros e arquitetos ligados ao modernismotransformavam Havana construindo arranha-cus e edifcios de linhas retas e longascurvas os mesmos que marcariam a arquitetura modernista latino-americana. Com trsrevistas especializadas em arquitetura, a ilha abrigava encontros internacionais eraquando profissionais de todo o mundo visitavam obras de arquitetos formados naUniversidade de Havana no comeo dos anos 40, como Nicols Arroyo e MarioRomaach. Em 1955, com um grupo de profissionais experientes, Havana criou um planourbanstico que previa ruas s para pedestres e edifcios modernistas, espao especialpara pequenas lojas nas ruas do centro histrico, limite de altura aos prdios fora docentro financeiro, aumento de reas verdes e recreativas pela cidade.7J o investimento americano em Cuba tinha o dobro do tamanho: em 1958 ultrapassou 1 bilho de dlares. Tendoem vista o tamanho dos pases, o investimeno cubano nos EUA muito mais impressionante.8

    Se Havana era um playground dos americanos, o movimento inverso tambmacontecia. Os cubanos ricos e da crescente classe mdia adoravam se divertir nos EstadosUnidos. Existia entre os dois pases um turismo bilateral, assim como o de brasileiros nasruas de Buenos Aires e de argentinos nas praias brasileiras. No eram nmerosdesprezveis. Em meados dos anos 50, havia mais cubanos em frias nos Estados Unidosque americanos em Cuba.9 A classe mdia cubana era um grupo consumidor toimportante nos Estados Unidos que as lojas de departamento da Califrnia, de NovaYork e da Flrida frequentemente anunciavam promoes nos jornais de Havana,conforme descreve o historiador Louis A. Prez Jr. no livro Cuba and the United States:Ties of Singular Intimacy. Assim como os americanos investiam em Cuba, empresascubanas apostavam nos vizinhos. Pouco antes da revoluo, o investimento doimperialismo cubano nos Estados Unidos ultrapassava meio bilho de dlares.10

  • CORTESIA COLEO PETER MORUZZI

    Antes da revoluo, havia 28 voos dirios entre cidades americanas e cubanas e at mesmo um servio de ferryboat,para as famlias que quisessem viajar de carro ao pas vizinho.

    O entretenimento era outro setor desenvolvido. Os cubanos tinham mais televisores,telefones e jornais per capita que qualquer outro pas da Amrica Latina, e estavam emterceiro no ranking de rdios per capita (atrs do Mxico e do Brasil), afirma DeborahPacini Hernandez, no livro Rockin las Amricas. Em 1950, quase 90% das residnciascubanas tinham um rdio que podia sintonizar mais de 140 estaes.11 A indstriafonogrfica tambm impressionava: havia sete gravadoras que distribuam discos paramultinacionais como a Odeon e a EMI. Alm das radiolas caseiras, as msicas eramreproduzidas em cerca de 15 mil jukeboxes instaladas em cabars e bares do pas.12

    A ilha vivia uma efervescncia musical que daria luz clssicos da msica latino-americana. Compositores e intrpretes de bolero, rumba, mambo e chachach estouravamnas rdios da Argentina aos Estados Unidos, difundindo esses ritmos pelo continente.Artistas cubanos eram celebridades da Broadway e da TV americana, como Xavier Cugat,conhecido como o Rei da Rumba, e Desi Arnaz, que eternizou a msica Babalu noseriado I Love Lucy, da dcada de 1950. A msica cubana atraa turistas ilha e osturistas atraam a msica. Em 1955, o canal americano NBC transmitiu um programa aovivo no Tropicana, o principal cabar de Cuba. Carmen Miranda, Frank Sinatra, Nat KingCole e boa parte dos artistas mais famosos da poca se apresentavam nos teatros e noscabars de Havana. ramos o que Las Vegas hoje, contou, muitos anos depois, acantora Olga Guillot, a Rainha do Bolero. No, muito mais! ramos Las Vegas e a

  • Broadway misturadas e o mundo todo ia a Havana para nos assistir.13Na poca da revoluo, Cuba tinha 600 salas de cinema. O ingresso era barato e havia salas espalhadas por todosos bairros de Havana. Sob a meta de popularizar o cinema, um dos objetivos da revoluo, foi construda uma sala em cinco dcadas. As que j existiam esto abandonadas.

    Assim como o turismo, que uniu duas populaes de culturas diferentes, mas prximasgeograficamente, o intercmbio musical foi recproco e intenso. Se os americanos seencantavam com os ritmos caribenhos, os cubanos se apaixonaram pelo rock. Os cinemasde Havana exibiam filmes como Rock Around the Clock; as rdios tocavam os sucessosde Elvis Presley, Little Richard e Chuck Berry. Cuba foi um dos primeiros pases a secontagiar por esse ritmo, a ter pelas ruas jovens cabeludos com calas jeans justssimas etambm as primeiras bandas de rock fora do eixo Estados Unidos-Inglaterra, como LosLlpis, Los Armnicos e os Hot Rockers.

    Os cubanos tambm ficavam mais escolarizados. Havia a Universidade de Havana,com suas aulas de medicina, farmcia, biologia e direito (onde Fidel Castro estudou) euma escola de belas-artes. O Colgio de Belm, inaugurado em 1854 sob o comando depadres jesutas, era a principal referncia na educao secundria. Foi l que Ral Castrose formou. Na dcada de 1920, um novo prdio foi construdo, onde tambm passou afuncionar um colgio tcnico. Em toda a ilha, havia 1.700 escolas privadas e 22 milpblicas. O pas dedicava 23% de seu oramento educao quantia de dar inveja nosgovernos atuais.14

    No o cenrio que se imagina encontrar em um bordel, no?Pepn Bosch, executivo-chefe da destilaria Bacardi, deu 38 mil dlares ao grupo de Fidel (que hoje valeriam cercade 280 mil dlares). J Daniel Bacardi, um dos donos da destilaria, liderou uma greve de empresrios da cidade deSantiago contra Fulgencio Batista em 1957.15

    O nome do movimento vem do dia 26 de julho de 1953, quando Fidel e outros 165 jovens tentaram tomar o quartel-general de Moncada, em Santiago de Cuba. O ataque no deu certo: quase todos os guerrilheiros foram ou mortos,ou presos. Fidel ficou na cadeia at 1955, quando se exilou no Mxico, onde conheceria Che.

    O problema estava na poltica. O presidente Fulgencio Batista, depois de assumir opoder pela segunda vez, em 1952, passou a impor uma ditadura que tornou frequentes emCuba os atos de tortura, o desaparecimento de opositores e as prises arbitrrias. Batistaproibiu em alguns momentos a circulao de jornais e o direito de greve e retaliavaempresrios que no o apoiavam. Em resposta, estudantes, professores, advogados,padres e pastores protestantes montavam passeatas, distribuam panfletos e agiam comobombistas, nome dado s pessoas que espalhavam pequenas bombas em rgospblicos. Entre 15 acusados de bombismo presos em agosto de 1957, havia estudantes,trabalhadores das docas, vendedores e senhoras proprietrias de apartamentos.16 FidelCastro, ento o mais conhecido inimigo do ditador, canalizou esse clima dedescontentamento. Ganhou apoio at mesmo de grandes empresrios e agricultoresinsatisfeitos com a instabilidade poltica, como os Bacardi, a mais tradicional famlia deempresrios de Cuba. O movimento de simpatia para com Castro aumentava mesmoentre a opulenta classe mdia; e durante 1957 mesmo o maior baro do acar, JulioLobo, entregou oposio 50 mil dlares, conta o historiador ingls Hugh Thomas nolivro Cuba ou Os Caminhos da Liberdade, a principal referncia sobre a histria polticada ilha.17 Ao viajar para a cidade de Santiago, o jornalista americano Jules Dubois seespantou com o apoio de gente endinheirada aos rebeldes. Os homens mais ricos eproeminentes de Santiago, dos quais a maioria nunca se envolveu com poltica, esto

  • apoiando o rebelde Fidel Castro como um smbolo de resistncia a Batista, escreveu eleno Chicago Tribune.18 O apoio era possvel porque os rebeldes pareciam a todos umaopo pela democracia. O movimento rebelde que Fidel ajudou a fundar, o 26 de Julho,tinha entre seus participantes diversos polticos moderados e mesmo anticomunistas.Fidel viajava aos Estados Unidos para arrecadar fundos para a luta poltica e negavaveementemente ser comunista ou favorvel a ditaduras (veja quadro nas pginas 34-35).

    No incio de 1959, tanto os guerrilheiros moderados quanto os empresrios e ostrabalhadores comemoraram a mudana de governo. Graas presso exercida porestudantes revoltosos, por soldados que lutaram na cidade e no campo, por empresriosque financiaram aes rebeldes e por polticos, Fulgencio Batista enfim tinha sidodeposto. O ditador, depois de perder o apoio dos Estados Unidos e vendo os guerrilheiroschegarem a Havana, fugiu com sua corte de avio durante o rveillon de 1959. A maiorparte dos cubanos saiu s ruas para festejar. Livre da tirania de Batista, a populaoestava ansiosa por participar da poltica e confiante para construir uma democracia. Apoltica, at ento a maior pedra no caminho dos cubanos, tinha se tornado motivo deesperana. A destilaria Bacardi publicou anncios nos jornais saudando o pas por podervoltar a usar seu slogan. Obrigado ao povo de Cuba e Revoluo Cubana. Por causa deseus esforos e de seu sacrifcio, podemos dizer uma vez mais Que sorte tem ocubano!.19

    2 Filha de Che Guevara desfila em tanque de guerra de Carnaval, Folha de S. Paulo, 4 de maro de 2011.

    3 Peter Moruzzi, Havana before Castro, Gibbs Smith, 2008, pgina 10.

    4 Alberto Bustamante, Notas y estadisticas sobre los grupos etnicos en Cuba, revista Herencia, volume 10, 2004; eCarlos Tablada, El Pensamiento Econmico de Ernesto Che Guevara, Casa de las Americas, 1987, pgina 66.

    5 Eduardo Luis Rodrguez, The Havana Guide: Modern Architecture, 1925-1965, Princeton Architectural Press, 2000,pgina XVII.

    6 Humberto Fontova, O Verdadeiro Che Guevara, Sentinel, 2007, localizao 3038 (edio Kindle).

    7 Eduardo Luis Rodrguez, pgina XXII.

    8 Louis A. Prez, pgina 219.

    9 Humberto Fontova, O Verdadeiro Che Guevara, Editora , 2009, pgina 223.

    10 Louis A. Prez, Cuba and the United States: Ties of Singular Intimacy, University of Georgia Press, 2003, pgina 208.

    11 Deborah Pacini Hernandez, Rockin las Amricas: The Global Politics of Rock in Latin America, University ofPittsburgh Press, 2004, pginas 45 e 46.

    12 Deborah Pacini Hernandez, pgina 46.

    13 Rosa Lowinger e Ofelia Fox, Tropicana Nights, Harcourt, 2005, pgina 251.

    14 Pedro Corzo, Cuba: Perfiles del Poder, Ediciones Memrias, 2007, pgina 198.

    15 Tom Gjelten, pginas 195 e 197.

    16 Hugh Thomas, Cuba ou Os Caminhos da Liberdade, Bertrand, 1971, pgina 241.

  • 17 Hugh Thomas, pgina 239.

    18 Tom Gjelten, Bacardi and the Long Fight for Cuba, Penguin Books, 2008, pgina 194.

    19 Tom Gjelten, pgina 206.

  • Um lder poltico organiza um golpe de Estado, toma o poder deCuba, impe regras trabalhistas mais severas, intervm nas indstrias e nas fazendas eganha o apoio do Partido Comunista. No, no estamos falando de FidelCastro, mas de Fulgencio Batista, ele prprio, o ditador do pas at aRevoluo Cubana.

    FULGENCIO, O COMUNISTA,

    Duas dcadas antes de ser derrubado por Che e Fidel, Fulgencio ganhou o apoio doscomunistas locais. Em 1933, participou da Revolta dos Sargentos, que derrubou oditador da poca, Gerardo Machado. Conquistou, assim, o cargo de chefe das forasarmadas e passou a governar informalmente o pas. Logo anunciou reformas dalei trabalhista e aes de controle estatal de produtores e empresrios. As indstriasdo acar e do tabaco passariam a sofrer uma interveno maior do Estado; ostrabalhadores receberiam seguro, frias pagas e outras vantagens, afirma o historiadorHugh Thomas.20 Essas medidas esquerda atraram a simpatia dos comunistas.Em 1938, Fulgencio aprovou a legalidade do Partido Comunista, que tratou de elogi-lo.As pessoas que trabalham para afastar Batista no esto mais a atuar em defesa do povocubano, lia-se no principal jornal do partido naquela poca.21

    Quando voltou presidncia de Cuba na dcada de 1950, Fulgencio j tinha seafastado desses aliados. Mas ainda nessa poca foi acusado de ser simpatizante dosvermelhos. Pelo prprio Fidel Castro. Em 3 de julho de 1956, o homem que seria o maislongo ditador comunista do sculo 20 acusa seu opositor de ser... comunista. Qual odireito moral que o senhor Batista tem de falar em comunismo, quando ele era ocandidato presidencial do Partido Comunista nas eleies de 1940, quando seus sloganseleitorais se escondiam atrs da foice e do martelo, quando meia dzia dos seusatuais ministros e colaboradores confidenciais so importantes membros do PartidoComunista?, escreveu Fidel revista Bohemia.22

    E FIDEL, O CAPITALISTA

    Se Fulgencio comeou vermelho e aos poucos mudou de cor, Fidel tomaria o rumocontrrio. At declarar que levaria Cuba para o rumo de Moscou, um ano depois de tomaro poder, ele se dizia grande inimigo dos socialistas. Numa entrevista ao New York Times

  • em abril de 1959, disse: Eu no concordo com o comunismo. Ns somos democrticos.Somos contra todo tipo de ditadores. por isso que somos contra o comunismo. Para ocubano Huber Matos, um dos guerrilheiros da Sierra Maestra hoje exilado em Miami,Fidel no era mesmo comunista. O irmo dele, Ral, e Che que eram marxistas. Fidelcedeu influncia deles porque percebeu que o comunismo era um bom meio decontrolar o poder de Cuba e eliminar adversrios.23

    20 Hugh Thomas, pgina 33.

    21 Hugh Thomas, pginas 37 e 38.

    22 Hugh Thomas, pginas 187 e 188.

    23 Entrevista com Huber Matos realizada em 12 de maio de 2011.

  • Mas aquela jogada deu azar. Logo aps a queda de Batista, teve incio um violentoembate entre a classe mdia e o grupo de guerrilheiros que havia conquistado umaenorme popularidade lutando contra o exrcito na Sierra Maestra, uma regio demontanhas no sudeste da ilha. Sorrateiramente, os integrantes desse grupo, liderados porFidel Castro, dominaram o governo provisrio recm-instalado, expulsaram todos os quepensavam de forma diferente e declararam-se abertamente marxistas-leninistas. Osaliados mais moderados e democrticos foram logo presos ou expulsos do pas peloprprio governo de Fidel. Um dos principais revolucionrios isolados pela nova ordem do26 de Julho foi Huber Matos, at ento amigo de Che. Por ser contra a ditadura comunistaque dava as caras, ele foi capturado pelos prprios companheiros e jogado em prises,onde permaneceria por 20 anos. Hoje com 92 anos, exilado em Miami, Huber Matosconta:

    O Movimento 26 de Julho no era comunista. Ns lutvamos para restaurar a democracia pluripartidria que tinhasido extinta com o golpe de Fulgencio Batista em 1952. Nos primeiros seis meses depois de tomarmos o poder,acreditvamos que os partidos e as eleies voltariam. Mas ento os Castro e Che levaram a revoluo para umaditadura comunista. Logo percebemos que tnhamos cado numa iluso. Muitos guerrilheiros que pensavam como euficaram quietos, acabaram ganhando cargos menores no governo e vivendo sob a chantagem de Fidel. Aqueles que,como eu, se pronunciaram contra o comunismo foram pouco a pouco eliminados. Che e os Castro ficaram cinco diasdecidindo se deveriam me fuzilar ou no. Acabaram s me deixando preso, com medo do protesto dos colegas.24

    Sem consultar a populao ou mesmo a maioria de seus colegas, esse grupo de homensarmados fez uma revoluo comunista dentro da revoluo democrtica. Ou seria umacontrarrevoluo? De qualquer forma, foi nesse momento que Che Guevara, um mdicoargentino que integrou o bando de rebeldes na Sierra Maestra, ganhou importnciadecisiva.

    Para aqueles cidados de Cuba que trabalharam, tiveram ideias empreendedoras,arriscaram seu dinheiro em novos negcios, prosperaram com o turismo e a exportaode acar e lutaram pela democracia, o recado de Che era claro:

    Jurei ante um retrato do velho camarada [Josef] Stlin no descansar at ver aniquilados estes polvos capitalistas.25

    24 Entrevista com Huber Matos.

    25 Pedro Corzo, pgina 31.

  • Em 1957, Fidel Castro comandava 18 homens mal armados, que cuidavam de seesconder dos policiais e dos soldados de Batista na Sierra Maestra. A maioria dapopulao cubana achava que ele sucumbira aps ataques das tropas legalistas.Foi quando Herbert Matthews, reprter e editorialista do New York Times , recebeu umconvite para uma exclusiva com Castro. Os trs artigos que Matthews publicou, e queforam reproduzidos em Cuba clandestinamente, diziam que Castro estava vivo.

    COMO O NEW YORK TIMES CRIOU FIDEL

    At a, tudo bem. Mas Matthews foi muito alm. Para ele, Fidel era dono de umapersonalidade irresistvel. Foi fcil perceber que seus homens o adoram etambm ver por que ele seduz a imaginao da juventude cubana em toda ailha. Ali estava um fantico instrudo, dedicado, um homem de ideais, de coragem e denotveis qualidades de liderana.O americano escreveu ainda que o programa do seor Castro era radical, democrticoe, portanto, anticomunista. Tem ideias enrgicas sobre liberdade, democracia,justia social, a necessidade de restaurar a Constituio, de realizar eleies, escreveu.Disse ainda que os rebeldes estavam divididos em colunas de at 40 homens cada,armados com 50 rifles de mira telescpica uma gigantesca mentira contada por Fidel.

    A propaganda gratuita do New York Times alou Fidel condio de heri nacional,eclipsando todos os demais grupos de oposio. Muitos jovens se uniram ao gruporadical e democrtico depois disso. Meses depois da queda da ditadura, j com Fidelexpropriando terras, fuzilando inimigos e se assumindo publicamente como marxista-leninista, Matthews virou motivo de chacota dos colegas. Pelos servios prestados revoluo, o jornalista ganhou uma medalha Misso de Imprensa da Sierra Maestra,das mos do prprio Fidel Castro. Uma foto sua est at hoje na parede do Hotel Sevilla,onde o americano se instalou antes de seguir para a entrevista. Segundo Castro disse,apontando para Matthews: Sem a sua ajuda e a do New York Times , a revoluo emCuba jamais teria acontecido.26

    26 Anthony DePalma, O Homem Que Inventou Fidel, Companhia das Letras, pgina 190.

  • Diante de promessas como essa, no demorou para empresrios, compositores,cantores de mambo, roqueiros e arquitetos irem embora de Cuba. O arquiteto RicardoPorro, que desenhou a Escola de Belas-Artes de Havana e outros edifcios a pedido deFidel Castro, se exilou na Frana nos anos 60. O compositor Osvaldo Farrs, autor doclssico bolero Quizs, Quizs, Quizs, deixou Cuba em 1962 e nunca mais pde voltar.Frank Dominguez, famoso pela msica T Me Acostumbraste, gravada no Brasil porCaetano Veloso e Emlio Santiago, vive hoje em Mrida, no Mxico. Celia Cruz, a maiorcantora cubana, saiu da ilha logo que Che e Fidel tomaram o poder. Expulsa do prpriopas, a Rainha da Salsa expressou sua revolta em msicas de exlio. A famosa canoCuando Sal de Cuba lembra composies que lamentam outras ditaduras militares daAmrica do Sul:

    Nunca podr morirme,mi corazn no lo tengo aqu.Alguien me est esperando,me est aguardando que vuelva aqu.

    Cuando sal de Cuba,dej mi vida dej mi amor.Cuando sal de Cuba,dej enterrado mi corazn.

    O novo governo logo limitou a liberdade artstica e passou a perseguir hippies eroqueiros. Nos anos 60, o cantor e compositor Silvio Rodriguez foi demitido de seutrabalho no Instituto de Rdio e Televiso de Cuba por citar os Beatles como uma de suasinfluncias.27 Ele continuou no pas, resignando-se a cantar apenas inofensivas msicastradicionais. Diversos jovens cubanos, identificados como perigosos reprodutores doimperialismo cultural americano, foram enviados para campos de reabilitao por tocarem bandas de rock e cometer atos to imorais quanto o de andar pela rua com cabeloscompridos.28

  • CORTESIA COLEO PETER MORUZZI

    Rua Netuno, em Havana: o crescimento do turismo e a alta do preo da cana-de-acar na dcada de 1950 faziam aclasse mdia aumentar e enriqueciam as maiores cidades da ilha.

    Mesmo os msicos tradicionais se deram mal. Em 2007, um projeto cultural criado em parceria com a UniversidadeFederal de Pernambuco levou msicos cubanos da banda Los Galanes para cantar no Recife. Logo depois dasapresentaes, metade dos msicos se recusou a ir embora. Ao pedir asilo poltico ao Brasil, disseram serperseguidos em Cuba e impedidos de tocar certas msicas.29

    A mais ousada banda cubana de rock chama-se Porno Para Ricardo (procure no YouTube). punk rock com letrasanticomunistas: Voc sabe como ferrar um comunista? Ponha rock para tocar e prenda-o num poro do BuenaVista.Assim como as orquestras e grupos de bal de inquestionvel qualidade tcnica que serviam como propaganda daUnio Sovitica, a clebre banda Buena Vista Social Club espalhou a simpatia pelo regime cubano tocando asmesmas msicas por cinco dcadas. O presidente Hugo Chvez, da Venezuela, usa como propaganda a OrquestraSinfnica Jovem Simn Bolvar.

    Muitos jovens seguiram ouvindo rock s escondidas. Sintonizavam clandestinamenterdios americanas do Arkansas e de Miami em volume baixo, para no causarproblema. As bandas locais entraram na clandestinidade. Sem o apoio do Estado paraobter instrumentos e a instruo disponvel aos msicos dos estilos aprovados pelogoverno, os roqueiros de Cuba tinham que improvisar, conta a historiadora DeborahPacini Hernandez em seu compndio sobre o rock na Amrica Latina. Ensinaram a siprprios como tocar guitarras eletrnicas e frequentemente tinham que construir seusprprios equipamentos, usando fios de telefone para cordas de baixo e montandotambores de bateria com pedaos de metal ou filmes de raio X.30 Oficialmente, aproibio ao rock durou pouco. Com o sucesso dos Beatles pelo mundo e o esprito derevoluo associado a esse tipo de msica, ficou difcil proibi-lo, a ponto de o prprioFidel Castro homenagear John Lennon em 2000. Mas o estilo continuou marginalizadoem Cuba. Ainda hoje, bandas que tocam um som digno de nota (e que corajosamenteatacam a ditadura) poderiam ser contadas com os dedos de uma nica mo. J os adeptosde ritmos tradicionais cubanos rodam o mundo em shows patrocinados pelo governo.Salvo raras excees, a cena musical cubana atual se resume aos trios folclricos quetocam nos restaurantes para estrangeiros, inacessveis para um cubano comum. Aocaminhar por Havana e ouvir pela centsima vez Guantanamera, guajira guantanamera,o turista facilmente constata: a msica cubana parou no tempo.

    Por trs da perseguio de jovens, msicos e artistas, estava a ideia de fazer todos oscubanos se parecerem entre si como soldadinhos de chumbo. Para construir ocomunismo, tem de se fazer o homem novo, escreveu Che.31 A expresso, que ele repetiadiversas vezes em discursos e escritos, tem uma longa histria. Vem da crena dosfilsofos iluministas de que a natureza humana malevel, que o homem uma tbularasa em que se pode gravar diferentes comportamentos, dependendo da educao, doesprito revolucionrio ou da influncia da sociedade. O homem altrusta e bondoso, quedeveria deixar de lado interesses individuais e colocar-se disposio do governo, era umprincpio que norteava ideias no s de Che, mas de todos os comunistas. Na prtica, essabusca resultou na perseguio de todos aqueles que pareciam no se encaixar na moldurado tal homem novo.

    Em discursos, entrevistas e falas em reunies, Che deixou claro esperar dos jovensdisciplina e obedincia. Numa das poucas vezes que falou de msica, disse que as pessoasdeveriam trabalhar ao som de cnticos revolucionrios.32 A ideia central era desviar-se

  • de interesses individualistas e se concentrar no trabalho, no estudo e no fuzil, alm deobedecer aos mais velhos. No discurso O Que Deve Ser um Jovem Comunista, de 1962,Che pede para os jovens se acostumarem a pensar como massa e atuar com as iniciativasque nos oferece a classe trabalhadora e as iniciativas dos nossos dirigentes supremos.33Sim, ele usa mesmo a expresso dirigentes supremos.Rebeldia juvenil? S se dentro do quartel. Che adorava uniformes do exrcito e seus smbolos. Em abril de 1959,ento chefe de instruo das Foras Armadas Revolucionrias, ele fundou a revista Verde Olivo, de assuntosmilitares. Em 1963, ajudou a aprovar a maior inimiga dos jovens: a lei do servio militar obrigatrio. Ironicamente, oprprio Che tentou escapar do servio militar da Argentina, em 1946, quando completou 18 anos.

    Essas ideias foram transmitidas pelo prprio Che aos policiais e aos soldados queagiam nas ruas e nas vilas cubanas. Logo aps a revoluo, uma das principais misses doguerrilheiro foi capacitar as foras armadas, um dos maiores pilares do regime de FidelCastro. Em 1959, quando Fidel ainda no havia declarado oficialmente que adotaria umgoverno comunista, as escolas de instruo militar de Che j doutrinavam os soldadospara impor uma ditadura do proletariado. Em pouco tempo, ele inaugura vrios cursosrpidos para formao de oficiais e da tropa, conta o bigrafo Jorge Castaeda. Oscolaboradores comunistas de Che na Sierra [Maestra] ou na invaso [da baa dos Porcos,em 1961] e outros, como o hispano-sovitico Angel Ciutah, formam o ncleo dosinstrutores.34

    Che montou o primeiro campo de trabalho forado de Cuba, na regio deGuanahacabibes, a mais oriental da ilha, em 1960. A ideia era reeducar pelo trabalhopessoas consideradas imorais pela revoluo. A Guanahacabibes mandamos aqueles queno devem ser presos, aqueles que cometeram faltas contra a moral revolucionria demaior ou menor grau, disse ele numa reunio do Ministrio da Indstria de 1962. Ocampo serviu de modelo para as Unidades Militares de Ayuda a la Produccin (Umaps),que abrigaram cerca de 30 mil jovens em menos de uma dcada. O caso foi denunciadopela Comisso Interamericana de Direitos Humanos (a mesma organizao quedenunciava crimes de outras ditaduras da Amrica Latina). Um relatrio divulgado pelacomisso em 1967 diz o seguinte:

    Os jovens so recrutados fora por simples disposio da polcia, sem que se faa nenhum julgamento nem sejapermitido o direito de defesa. Logo depois de presos so enviados a alguma granja estatal para serem incorporadosna Unidade Militar de Ajuda Produo. Em muitas ocasies os familiares s so notificados semanas ou mesesdepois da deteno. Os jovens recrutados so obrigados a trabalhar gratuitamente na granja estatal por mais de 8horas dirias e recebem um tratamento igual ao que se d em Cuba aos presos polticos. [...] Esse sistema cumpredois objetivos: a) Facilitar a mo de obra gratuita do Estado. b) Castigar os jovens que se negam a participar dasorganizaes comunistas.35

    Os campos de concentrao cubanos abrigaram todos aqueles que no se encaixavamna ideia de homem novo: gays, catlicos, testemunhas de Jeov, alcolatras, sacerdotesdo candombl cubano e, mais tarde, portadores de HIV. Como poderia o homem novo selibertar do capitalismo? Essa era a questo central para os lderes revolucionrios dapoca, principalmente Che Guevara, um insistente proponente da ideia de homem novo eum dos mais convictos lderes homofbicos do perodo, afirma o escritor cubano EmilioBejel no livro Gay Cuban Nation.36 O pensamento corrente entre os revolucionrios, ideiaque chegou a ser defendida num artigo de jornal pelo intelectual comunista Samuel

  • Feijo, era a de que o homossexualismo em Cuba logo terminaria. Afinal, o socialismotinha o poder de curar comportamentos e doenas sociais. Elementar.

    verdade que, nos anos 60, eram raros os pases que respeitavam os direitos doshomossexuais. Mas em poucos lugares houve uma perseguio oficial de cidados porcausa de sua opo sexual. At gays favorveis ao regime se deram mal. O poeta edramaturgo Virgilio Piera, por exemplo, tinha sido exilado poltico da ditadura anterior,a de Fulgencio Batista. Em 1961, foi preso durante a Noite dos 3 Ps. Amigo e colega detrabalho de Virgilio, o escritor Guillermo Cabrera Infante explicou o episdio no livroMea Cuba. Um departamento especial da polcia, chamado de Esquadro da Escria, sededicara a deter, vista de todos, na rea velha da cidade, todo transeunte que tivesse umaspecto de prostituta, proxeneta ou pederasta, escreveu Infante.37 Virgilio conseguiriaescapar da priso, mas no do preconceito de Che Guevara. Anos depois, Che viajou paraa Arglia e visitou a embaixada cubana local. Ao dar uma olhada nos livros da estante daembaixada, deparou-se com o Teatro Completo de Virgilio Piera. Como que vocpode ter o livro dessa bicha na embaixada?, disse ao embaixador enquanto atirava olivro na parede. O embaixador desculpou-se e jogou a obra no lixo.38

    As denncias internacionais fizeram o governo cubano deixar, em 1968, de mandargays para campos de trabalho forado. No que os problemas deles tenham sidoresolvidos. Durante o Congresso de Educao e Cultura de 1971, uma resoluo proibiuhomossexuais de ocupar cargos pblicos que pudessem converter a juventude. S em1979 a sodomia foi retirada do cdigo criminal cubano. Por fim, beijos homossexuais empblico davam cadeia por atentado ao pudor at 1997.

    Completa-se assim a primeira grande contradio entre Che Guevara e seus fs. Omesmo homem que incentivou perseguies por motivos artsticos e sexuais teve entreseus admiradores justamente artistas que criaram famosas canes de resistncia e quediziam lutar pela liberdade individual. Um exemplo a argentina Mercedes Sosa, que foipresa pelos militares durante um show de 1979. Se o cantor se cala, a vida se cala,advertia a cantora. Apesar daquelas roupas estranhas, quem no concordaria com ela?Talvez ela prpria. Mercedes Sosa interpretou a composio Hasta Siempre Comandante,em homenagem morte de Che, e passou a vida elogiando o compatriota.

    Che, a paz e o amorLogo depois de Cuba, o famoso casal de intelectuais franceses desembarcaria no Brasil. Durante dois meses, os doisforam Amaznia, s cidades histricas mineiras e at ao interior de So Paulo. Numa palestra na cidade deAraraquara, Sartre foi recebido por um professor da USP ento com 29 anos: Fernando Henrique Cardoso, dcadasdepois presidente do Brasil.

    Em 4 de maro de 1960, um cargueiro com mais de 70 toneladas de armas belgasexplodiu no porto de Havana. O acidente provocou a morte de 75 operrios e instalou nailha a suspeita de que o episdio teria sido fruto de sabotagem promovida pelos EstadosUnidos. No dia seguinte, Fidel Castro e sua cpula encabearam o cortejo fnebre pelasruas de Havana. Na hora de encerrar a cerimnia, o lder cubano subiu com seus colegasnuma pequena varanda e, de l, fez um discurso inflamado, acusando agentes americanospela tragdia. Cabia ao fotgrafo oficial de Fidel, Alberto Korda, registrar o chefe ao

  • microfone, assim como a presena de convidados ilustres que o acompanhavam. Osentusiasmados filsofos franceses Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir passavamuns dias em Cuba conhecendo a experincia socialista. Korda tirou diversas fotos de Fidele do casal de intelectuais, mas foi uma outra imagem daquele dia que o tornaria clebre.Entre o grupo que acompanhava Fidel, Korda conseguiu enquadrar o rosto de CheGuevara. O guerrilheiro foi fotografado de baixo para cima, olhando ao longe com umaincrvel aparncia de dor e determinao. Nascia ali o famoso retrato de Che, a foto maisfamosa e mais reproduzida em todo o sculo 20.O prprio Feltrinelli se envolveria no terrorismo anti-imperialista na Itlia. Em 1972, ele foi encontrado morto aolado de uma torre de alta tenso nos arredores de Milo. Foi provavelmente vtima dos explosivos que tentavainstalar na torre eltrica.

    O retrato de Che permaneceu pouco conhecido at 1967, quando o editor italianoGiangiacomo Feltrinelli adquiriu cpias e comeou a distribuir a imagem pela Europa.Em agosto daquele ano, o retrato estaria na revista francesa Paris Match. Dois mesesdepois, logo aps a morte de Che, um pster com a foto foi visto pela primeira vez numprotesto de rua, em Milo. A imagem ento se espalhou. Pelo menos 2 milhes depsteres de Che Guevara foram vendidos na Europa entre 1967 e 1968. O rosto de Cheestava nas barricadas do Maio de 1968 contra os generais franceses, em protestos deanarquistas holandeses, nas comunidades hippies da Califrnia, entre as passeatas contraa Guerra do Vietn de diversas cidades dos Estados Unidos. A foto contribuiu para queChe se tornasse um cone da paz e do amor ao lado de Gandhi e Madre Teresa de Calcut.

    Pois considere as seguintes palavras escritas pelo mesmo homem daquela foto:

    cone dos pacifistas dos anos 60, Che adorava armas. Em 1959, quando o oficial da KGB Nikolai Leonov visitouCuba, soube bem o que escolher na hora de presentear os lderes cubanos. Para o Che, que gostava de armas,compramos duas, uma excelente pistola e uma pistola de modelo esportivo de alta preciso, com munio. Para Ralcomprei um jogo de xadrez, pois era muito bom enxadrista.39

    O dio como fator de luta, o dio intransigente ao inimigo, que impulsiona para alm das limitaes naturais do serhumano e o converte em uma efetiva, violenta, seletiva e fria mquina de matar. Nossos soldados tm de ser assim;um povo sem dio no pode triunfar sobre um inimigo brutal.

    H que levar a guerra at onde o inimigo a leve: sua casa, a seus lugares de diverso, torn-la total. H que impedi-lo de ter um minuto de tranquilidade, de ter um minuto de sossego fora dos quartis, e mesmo dentro deles: atac-loonde quer que se encontre; faz-lo sentir-se uma fera acossada onde quer que esteja.40

    Estou imaginando o orgulho daqueles companheiros que estavam numa quatro bocas, por exemplo, defendendosua ptria dos avies ianques e de repente tm a sorte de ver que suas balas atingiram o inimigo. Evidentemente, omomento mais feliz da vida de um homem. uma coisa que nunca se esquece. Nunca o esquecero oscompanheiros que viveram essa experincia.41

    preciso dizer mais alguma coisa?. Che Guevara, dolo dos jovens rebeldes e pacifistas, no s considerava o dio um

    sentimento nobre como agiu para que houvesse uma guerra nuclear na Amrica. Em1961, ele viajou Rssia para fechar com o lder sovitico Nikita Kruschev um acordo dainstalao dos msseis com ogivas nucleares em Cuba. Em discursos e entrevistas, Cheno teve pudor ao afirmar que, sim, queria armar um pesadelo atmico nos EstadosUnidos. E, sim, sabia que desencadearia uma reao americana (maior potncia nucleardo mundo) no mesmo nvel sobre as cidades cubanas.

  • Essa postura ficou bem clara logo aps a Crise dos Msseis, em 1962, um dosmomentos em que o mundo mais esteve perto de uma Terceira Guerra Mundial. Emoutubro daquele ano, avies de espionagem americanos fotografaram instalaesmilitares de Cuba. Mostraram que msseis nucleares de mdio alcance (apontados para osEstados Unidos) estavam sendo instalados no oeste da ilha. Tratava-se de 42 msseissoviticos 20 deles com ogivas nucleares e mais meia dzia de lana-msseis tambmarmados com ogivas. O presidente dos Estados Unidos, John Kennedy, criou um bloqueiomartimo ilha e exigiu a retirada imediata dos armamentos. Graas diplomacia entreas duas superpotncias, os soviticos acabaram cedendo nem Moscou, nem Washingtonachavam uma boa ideia comear uma guerra de armas atmicas. Mas o governo deHavana, sim. A retirada dos msseis foi uma deciso dos soviticos que deixou os lderescubanos revoltados e irritados. Fidel Castro chamou o russo Nikita Kruschev de filho daputa, cago e bunda-mole.42 Fidel ficou puto da vida, e eu tambm, disse Che ao seuamigo Ricardo Rojo. Para descarregar a tenso que havia se acumulado, Fidel deu umavolta de 180 graus e soltou um pontap na parede.43

    Che no conseguiu esconder sua decepo com a moderao e a prudncia dos russos.Sonhava com uma guerra nuclear e disse isso em voz alta durante entrevistas que seseguiram crise. Se os msseis tivessem ficado em Cuba, usaramos todos, apontando-ospara o corao dos Estados Unidos, inclusive Nova York, para nos defendermos daagresso, disse ao London Daily Worker, o jornal do Partido Comunista da Inglaterra.Ele sabia que os americanos revidariam o ataque, provocando um massacre nuclear emCuba e o sacrifcio de centenas de milhares de cubanos. Mas era isso mesmo quedesejava, conforme escreveu meses depois:

    [Cuba] o exemplo tremendo de um povo disposto ao autossacrifcio nuclear, para que suas cinzas sirvam dealicerce para uma nova sociedade.44

    Para quem considerava o homem no um fim em si mesmo, mas um meio para a revoluo, matar ou sacrificarpessoas era perfeitamente racional e correto. Rebeldes como Che acreditavam que revolues anteriores tinhamfracassado porque seus lderes hesitaram em agir em nome de um ideal. Como em tantos casos do sculo 20, foi odesejo radical de mudar o mundo que nutriu a barbrie.

    Se um sujeito quer dedicar a vida ao autossacrifcio em nome de um ideal, seudireito. Deve ter a liberdade de fazer o que bem desejar com a prpria vida. Mas nopode, por mais fotognico que seja e por mais belo que considere seu ideal, obrigarmilhes de outros indivduos a tomar o mesmo caminho. A instalao de msseis emCuba havia sido decidida em sigilo por Fidel e Ral Castro, Che e outros trs lderescubanos. Apenas seis pessoas.45 Os milhes de cidados cubanos no sabiam, mas seuadmirado lder Che Guevara tinha decidido lev-los a um holocausto nuclear.

    Prevendo ataques americanos, os lderes da revoluo logo se preocuparam emperguntar ao embaixador sovitico, Alexander Alexeyev, se havia espao no abrigoantiareo da embaixada sovitica em Cuba.46 No tiveram a mesma preocupao com oresto dos cubanos.

    Che e os direitos humanos

  • Continente que amargou tantas ditaduras militares, a Amrica Latina tem hoje diversosmovimentos de reparao a torturas, assassinatos e outras perseguies polticas. Nabatalha para fazer os carrascos militares pagarem por seus crimes, organizaes comoTortura Nunca Mais, do Brasil; Madres de La Plaza de Mayo, da Argentina; Verdade eJustia, do Paraguai; ou as comisses de verdade e reconciliao do Chile e do Peru sogeralmente as fontes mais acessadas de relatrios de mortes, dados das vtimas edepoimentos de sobreviventes. Lutam tambm contra a pena de morte e os abusospraticados por policiais nos dias de hoje.

    BETTMANN/CORBIS/LATINSTOCK

    Che na assembleia da ONU, em 1964: Nosso regime um regime morte.

    Do mesmo modo, o Projeto Verdade e Memria, da organizao Arquivo Cuba, renedados de cubanos que foram perseguidos desde 10 de maro de 1952, quando o ditadorFulgencio Batista suspendeu os direitos polticos da ilha, at hoje. Segundo essainstituio, o argentino Ernesto Guevara de la Serna se envolveu em pelo menos 144mortes entre 1957 e 1959, perodo que compreende a guerrilha pela tomada de poder emCuba e o primeiro ano de governo revolucionrio. Entre as vtimas, h colegas do grupoguerrilheiro, policiais mortos na frente dos filhos, menores de idade e principalmenteopositores polticos executados no presdio montado dentro do Forte de La Cabaa.Nos Dirios de Motocicleta, Che revela tambm um pouco de seu racismo. Da Venezuela, escreve que os negrosmantiveram sua pureza racional graas ao pouco apego que tm em tomar banho. Comparando negros eportugueses, escreve que o desprezo e a pobreza os unem na luta cotidiana, mas o diferente modo de encarar a vidaos separa completamente; o negro, indolente e sonhador, gasta seu dinheiro em qualquer frivolidade, o europeu tema tradio de trabalho e economia.47

    Mais uma vez, as palavras de Che confirmam o que se diz sobre suas aes. Bem antesde o argentino sonhar em ser lder de uma revoluo, j descrevera seu mpeto assassino.Em 1952, quando viajou de moto pela Amrica do Sul, registrou a viagem num dirio. As

  • anotaes viraram o livro e o filme Dirios de Motocicleta, em que Che aparece comoum personagem mais camarada que Jesus Cristo. O filme deixou de fora passagens menossimpticas dos escritos de Che a mostrar sua obsesso com a violncia justificada emnome de um ideal. interessante imaginar o ator mexicano Gael Garca Bernal, queinterpreta Che no filme do brasileiro Walter Salles, dizendo estas palavras:

    Estarei com o povo, e sei disso porque vejo gravado na noite que eu, o ecltico dissecador de doutrinas epsicanalista de dogmas, uivando como um possesso, atacarei de frente as barricadas ou trincheiras, banharei minhaarma em sangue e, louco de fria, cortarei a garganta de qualquer inimigo que me cair nas mos. [...] Sinto minhasnarinas dilatadas pelo cheiro acre da plvora e do sangue do inimigo morto. Agora meu corpo se contorce, prontopara a luta, e eu preparo meu ser como se ele fosse um lugar sagrado, de modo que nele o uivar bestial doproletariado triunfante possa ressoar com novas vibraes e novas esperanas.

    Che chegou a Cuba no fim de 1956. Era um dos 81 guerrilheiros que acompanhavamFidel Castro na travessia do Mxico ilha de Cuba a bordo do Granma, o iate que depoisdaria nome ao jornal oficial cubano. O grupo sofreu um ataque do exrcito, obrigando ospoucos sobreviventes a se esconder na Sierra Maestra. Foi ali que Che comeou a realizarseus desejos. Logo de incio, revelou traos tpicos dos piores ditadores comunistas: ocontrole extremo da conduta individual, a paranoia com a traio e o fato de considerar oideal da revoluo acima de qualquer regra de convivncia. Poucos homens estavamimunes ao olhar desconfiado de Che, conta o bigrafo John Lee Anderson, que completa:

    Havia um ntido zelo calvinista na perseguio movida por ele aos que se desviavam do caminho correto. Cheabraara fervorosamente la Revolucin como corporificao definitiva das lies da Histria e como o caminhocorreto para o futuro. Agora, convencido de que estava certo, olhava em volta com os olhos implacveis de uminquisidor em busca daqueles que poderiam pr em perigo a sobrevivncia da Revoluo.48

    O primeiro cubano morto diretamente por Che Guevara foi Eutimio Guerra, umcampons que servia de guia aos guerrilheiros na Sierra Maestra. Acusado de serinformante das foras armadas, ele teve a pena de morte autorizada por Fidel emfevereiro de 1957. A identidade do executor de Eutimio ficou em segredo por 40 anos. Sem 1997, depois que o bigrafo John Lee Anderson conseguiu com a viva de Che ooriginal de seu dirio, foi possvel saber quem o matou. O guerrilheiro conta que, nomomento de sua execuo, um forte temporal caiu sobre a serra. Como ningum sedispunha a cumprir a ordem, ele tomou a iniciativa. Repare na frieza da narrativa:

    Era uma situao incmoda para as pessoas e para [Eutimio], de modo que acabei com o problema dando-lhe umtiro com uma pistola calibre 32 no lado direito do crnio, com o orifcio de sada no temporal direito. Ele arquejouum pouco e estava morto. Ao tratar de retirar seus pertences, no consegui soltar o relgio, que estava preso ao cintopor uma corrente e ento ele [ainda Eutimio] me disse, numa voz firme, destituda de medo: Arranque-a fora,garoto, que diferena faz.... Assim fiz, e seus bens agora me pertenciam. Dormimos mal, molhados, e eu com umpouco de asma.49

    No dirio de Che, no h sinal de culpa ou de alguma inquietao quanto execuo.Horas depois da morte do campons, seus interesses j eram outros. Se Che ficouperturbado com o ato de executar Eutimio, no dia seguinte no havia qualquer sinaldisso, escreve Anderson. No dirio, comentando a chegada fazenda de uma bonitaativista do 26 de Julho, escreveu: [Ela uma] grande admiradora do Movimento, e amim parece que quer foder mais do que qualquer outra coisa.50

  • Che tambm foi tirano com seus companheiros na Bolvia. Segundo o brasileiro Cludio Gutierrez, participantes dogrupo de Che foram executados pelos prprios companheiros de esquerda incrivelmente pelo consumo escondido,e solitrio, de latas de leite condensado. Entre os mortos estaria Lus Renato Pires de Almeida, que at hoje constana lista de vtimas da ditadura militar brasileira...51

    Segundo o Arquivo Cuba, foram pelo menos 22 execues na Sierra Maestra entre1957 e 1958. Quase todas as vtimas eram membros do prprio grupo rebelde de FidelCastro e Che Guevara trs acusados de querer abandonar o grupo, oito consideradossuspeitos de colaborar com o exrcito e os outros 11 mortos por cometer crimes ou porrazes desconhecidas.

    No dia a dia de paranoias e crises de confiana entre os guerrilheiros da Sierra Maestra,Fidel Castro tinha de segurar a onda de Che Guevara. O argentino com frequncia sugeriaacabar com companheiros diante da menor desconfiana. Depois que os guerrilheirosganharam comida na casa de uma famlia de camponeses e passaram mal, Che disse aFidel para que voltassem l para tirar satisfaes Fidel o deteve. A pressa em resolveras coisas bala recaa at mesmo sobre companheiros antigos, como Jos Morn, ElGallego, um veterano do Granma. Diante da suspeita de que Morn traa o grupo, Chequeria logo execut-lo. muito difcil saber a verdade sobre o comportamento doGallego, mas para mim trata-se simplesmente de uma desero frustrada, escreveu emseu dirio. Aconselhei que ele fosse morto ali mesmo, mas Fidel descartou o assunto.Fidel acabaria se tornando o lder do regime no democrtico mais duradouro do sculo20. Imagine se Che assumisse esse posto.

    27 Deborah Pacini Hernandez, pgina 43.

    28 Deborah Pacini Hernandez, pgina 47.

    29 Programa Fantstico, 15 de abril de 2008, disponvel em http://fantastico.globo.com/Jornalismo/FANT/0,,MUL698091-15605,00.html.

    30 Deborah Pacini Hernandez, pgina 62.

    31 Che Guevara, Textos Polticos, Global, 2009, pgina 60.

    32 Che Guevara, pgina 36.

    33 Che Guevara, pgina 34.

    34 Jorge Castaeda, Che Guevara: A Vida em Vermelho, Companhia de Bolso, 2009, pgina 197.

    35 Arquivo da Comisso Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), disponvel emwww.cidh.org/countryrep/cuba67sp/cap.1a.htm#_ftnref4.

    36 Emilio Bejel, Gay Cuban Nation, The University of Chicago Press, 2001, pgina 24.

    37 Guillermo Cabrera Infante, Mea Cuba, Companhia das Letras, pgina 91.

    38 Guillermo Cabrera Infante, pgina 341.

    39 Jorge Castaeda, pgina 225.

    40 Che Guevara, pgina 82.

    41 Che Guevara, pgina 39.

  • 42 Jorge Castaeda, pgina 302.

    43 Ricardo Rojo, Meu Amigo Che, Civilizao Brasileira, 1983, pgina 138.

    44 Jorge Castaeda, pgina 305. O artigo foi publicado postumamente, em 1968, na revista Verde Olivo.

    45 Jorge Castaeda, pgina 300.

    46 Humberto Fontova, Fidel: Hollywoods Favorite Tyrant, Regnery Publishing, 2005, pgina 23.

    47 Che Guevara, Dirios de Motocicleta, verso digital, pgina 230.

    48 John Lee Anderson, Che Guevara, Objetiva, 1997, pgina 293.

    49 John Lee Anderson, pgina 288.

    50 John Lee Anderson, pgina 289.

    51 Jos Mitchell, Segredos Direita e Esquerda na Ditadura Militar, RBS Publicaes, 2007, pgina 253.

  • uma histria horripilante e difcil de acreditar, mas foi divulgada pelaComisso Interamericana de Direitos Humanos, a mesma entidade que denunciava oscrimes das ditaduras militares da Amrica do Sul e que at hoje pressiona os governospara punir os carrascos daquela poca. No item E do relatrio divulgado pela organizaoem 7 de abril de 1967, h a denncia da extrao de sangue de condenados morte emCuba. Pouco antes de fuzilar os condenados, os algozes do presdio de La Cabaaretiravam o sangue das vtimas.

    OS VAMPIROS REVOLUCIONRIOS

    No dia 27 de maio, 166 cubanos civis e militares foram executados e submetidos aosprocessos de extrao de sangue, a uma mdia de 7 pintas por pessoa [cerca de 3 litros],afirma o relatrio. Este sangue objeto de venda no Vietncomunista por 50 dlares a pinta, com o objetivo duplo de prover-se dedlares e contribuir com o esforo do vietcongue. Com tanto sangue extrado, as vtimaseram levadas ao paredo j desmaiadas ou inconscientes. Conforme a Comisso,hematlogos cubanos e soviticos trabalhavam no presdio de La Cabaa para analisar omaterial colhido e conservar sua qualidade. Como at hoje o governo cubano no foisubmetido a investigaes internacionais, no se pode atestar se a denncia ou nofundamentada na realidade. Mas a histria do mundo mostra que, em se tratando deregime comunista, tudo possvel.52

    52 Arquivo da Comisso Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), disponvel emwww.cidh.org/countryrep/cuba67sp/cap.1a.htm#_ftnref4; e Humberto Fontova, O Verdadeiro Che Guevara, Editora ,pgina 134.

  • At ento, a pena de morte era proibida. S tinha sido praticada contra um espio alemo, capturado em Cubadurante a Segunda Guerra. A Constituio criada por Che e Fidel, em fevereiro de 1959, fez a pena capital, prticato odiada pelos admiradores de Che, voltar ilha.

    Fidel, porm, s vezes se distanciava, deixando Che sozinho com seu peloto. Em1958, o argentino liderou a tomada da cidade de Santa Clara, o maior obstculo entre osguerrilheiros e Havana. De acordo com a organizao Arquivo Cuba e dezenas dedissidentes cubanos, a invaso foi seguida por uma onda incontrolvel de execues.Policiais da cidade e moradores acusados de colaborar com o governo de FulgencioBatista foram mortos na rua. Che ficou dois dias e meio na cidade e logo seguiu caminhopara Havana. Antes de ir embora, ordenou diversas execues a serem cumpridas por seussubordinados. Matou ou ordenou a execuo de 17 moradores. A deciso de tantasmortes no foi baseada em julgamento nem houve qualquer possibilidade real de defesa.Domingo lvarez Martnez, do servio de inteligncia das foras armadas, cuja sentenade morte foi assinada por Che em 4 de janeiro de 1959, foi morto na frente do filho de 17anos.

    Logo depois, em janeiro de 1959, Che foi nomeado comandante do presdio do Forte deLa Cabaa e chefe dos Tribunais Revolucionrios que aconteciam ali. Eram enviados paraaquele presdio militares, polticos anticomunistas, companheiros rebeldes quedivergiram da cpula da revoluo, cidados que oferecessem resistncia nova ordemrevolucionria e at mesmo parentes de opositores que haviam fugido da ilha. Osnmeros de mortos quando La Cabaa era chefiada por Che variam muito. O ArquivoCuba lista o nome de 104 vtimas. J os cubanos que foram presos ou trabalharam nopresdio falam em at 800 mortes at o fim de 1959. Para o cargo de juiz dos TribunaisRevolucionrios, Che designou Orlando Borrego, um rapaz de 23 anos sem qualquerformao em direito. Jos Vilasuso, que tinha acabado de se formar advogado, virouassistente na preparao das sentenas. bom preparar o estmago antes de ler o queVilasuso, dcadas depois, lembra daquela poca:

    Muitas pessoas se reuniam no escritrio de Che Guevara e participavam de agitadas discusses sobre a Revoluo.No entanto, as falas de Che costumavam ser cheias de ironia ele nunca mostrava nenhuma alterao detemperamento ou dava ateno a opinies diferentes. Ele dava reprimendas em particular e em pblico, chamando aateno de todos: No demorem com esses julgamentos. Isso uma revoluo: provas so secundrias. Temos queagir por convico. Eles so uma gangue de criminosos e assassinos.As execues aconteciam nas primeiras horas da manh. Assim que uma sentena era transmitida, os parentes eamigos caam em prantos horrveis, suplicando piedade para seus filhos, maridos etc. Diversas mulheres tinham queser tiradas de l fora. Aconteciam de segunda a sbado, e em cada dia um a sete prisioneiros eram executados, svezes mais. Casos de pena de morte tinham carta-branca de Fidel, Ral ou Che e eram decididos pelo tribunal oupelo Partido Comunista. Cada membro do esquadro da morte ganhava 15 pesos por execuo. Os oficiais, 20.A Fortaleza de San Carlos de La Cabaa, em Havana, pode ser facilmente visitada por turistas. Construda nosculo 18, ela sedia todas as noites, s 20h30, o caonazo, em que homens vestidos de soldados espanhis simulamum tiro de canho. Antes de Guevara, os ditadores Gerardo Machado e Fulgencio Batista tambm a usaram comopriso.Em frente ao paredo, cheio de buracos de balas, eram abandonados os corpos agonizantes, amarrados em paus,banhados em sangue e imveis em posies indescritveis, com mos convulsivas, expresses tenebrosas de choque,mandbulas fora do lugar, um buraco onde antes havia um olho. Alguns dos corpos, por causa do tiro demisericrdia, tinham o crnio destrudo e o crebro exposto.Testemunhar tal carnificina um trauma que vai me acompanhar a vida toda e minha misso tornar esses fatosconhecidos. Durante aquelas horas as paredes daquele castelo medieval abrigavam ecos dos passos das tropas, orudo dos rifles, as vozes de comando, o ressoar dos tiros, o gemido dos moribundos e os gritos dos oficiais eguardas depois dos tiros de misericrdia. Um silncio macabro que consumia tudo.

  • Assassinos de renome internacional ajudaram Che e Fidel nos expurgos. O americano Herman Marks, condenadopor assalto, roubo e estupro, virou um dos principais atiradores de La Cabaa. Os revolucionrios tambm abrigaramo comunista espanhol Ramn Mercader ele mesmo, o homem que em 1940 matou Len Trtski, no Mxico.

    Nem menores de idade ficaram de fora da pena de morte instituda por Che Guevara.No fim de 1959, um garoto de 12 ou 14 anos chegou ao presdio de La Cabaa sob aacusao de ter tentado defender o pai antes que os revolucionrios o matassem. Diasdepois, o garoto foi levado ao paredo com outros dez prisioneiros. Perto do paredoonde se fuzilava, com as mos na cintura, caminha Che Guevara de um lado para ooutro, escreveu Pierre San Martn, um dos prisioneiros de La Cabaa. Deu a ordem paratrazer antes o garoto e o mandou se ajoelhar diante do paredo. O garoto desobedeceu ordem com uma valentia sem nome e ficou de p. Che, caminhando por trs do garoto,disse: Que garoto valente. E deu um tiro de pistola na nuca do rapaz.

    Outro jovem assassinado ali foi Ariel Lima Lago, que tinha sido colaborador da prpriaguerrilha de Che Guevara. Capturado pelos policiais de Fulgencio Batista em 1958, foitorturado e forado a dizer onde seus companheiros estavam. Para faz-lo falar, ospoliciais levaram priso a me do rapaz, deixaram-na nua e disseram ao rapaz que iamestupr-la caso ele no desse as respostas. Ariel no teve alternativa. Sua me foiliberada, mas ele seguiu preso. Quando a revoluo tomou o poder, Ariel passou da prisode Batista para a priso comunista de La Cabaa. Sua me implorou com o prprio CheGuevara para que no o condenassem morte, sem sucesso.53No caia na roubada de perguntar a um gari em Havana se era mesmo em La Cabaa que Che realizava seusfuzilamentos. Che nunca matou ningum, gritou o funcionrio para um dos autores deste livro em 2010. Logo emseguida, comentou o fato a um guarda, que ficou no encalo do arrependido jornalista.

    claro que se pode questionar essas informaes talvez sejam mesmo s boatos,mentiras e intrigas daqueles cubanos que se viram em desvantagem com o golpe de FidelCastro. Do mesmo modo, h quem considere pura inveno os relatos de mortes etorturas cometidas pelos regimes militares do Brasil ou da Argentina. Acontece que oprprio Che Guevara pregava a necessidade das execues, dava detalhes sobre elas emseu dirio e admitia as mortes em pblico sem o menor pudor. Alm das declaraesacima, h a mais evidente de todas. Anos depois da Revoluo Cubana, j guerrilheirofamoso com a tomada de poder em Cuba, Che rodou o mundo propagandeando ocomunismo. Participou em 1964 da Conferncia das Naes Unidas, em Nova York.Durante o discurso, disse:

    Fuzilamentos? Sim, temos fuzilado. Fuzilamos e seguiremos fazendo isso enquanto for necessrio. Nossa luta umaluta morte.

    Como se v, os paredes e as execues sumrias cometidas por Che Guevara no sonovidade. Ele deixou claro ter diversos argumentos racionais para a violncia, no sofriacom dilemas morais ao matar e at se orgulhava de ter cometido assassinatos demotivao poltica. Essas frases e histrias esto disponveis a qualquer pessoa que seinteresse pela vida do guerrilheiro tanto em vdeos de seus discursos na internet quantonos seus dirios. At mesmo as biografias mais adulatrias deixam passar um pouco desua psicopatia. Por isso no d para entender por que Che Guevara, um homem envolvidoem pelo menos 144 mortes, segundo o maior banco de dados sobre as ditaduras da direitae da esquerda em Cuba, reverenciado justamente por ativistas que fazem protestos

  • politicamente corretos contra a pena de morte, a tortura, a reduo da maioridade penal ea perseguio poltica. O movimento Madres de La Plaza de Mayo, que tenta promover ojulgamento e a condenao de assassinos polticos na Argentina, inclui a ntegra de textosde Che Guevara numa de suas publicaes, d cursos sobre ele e divulga livros sobre asboas intenes do guerrilheiro. O grupo Tortura Nunca Mais, que pede a punio depessoas responsveis por mortes e desaparecimentos durante a ditadura militar do Brasil,deu a Che Guevara, em homenagem pstuma no ano de 1997, a Medalha Chico Mendesde Resistncia. Segundo o grupo, o mrito concedido (sem ironia) a pessoas quelutaram ou lutam pelos direitos humanos. Contradies assim sugerem o seguinte: ouesses ativistas no sabem quem foi Che Guevara, ou no so realmente contrrios aosassassinos e aos torturadores. So contrrios apenas a assassinos e torturadores com quemno concordam.

    Che e os trabalhadoresSeria uma cena um tanto curiosa e divertida se, durante a reunio de algum sindicato

    de trabalhadores na regio do ABC, em So Paulo, um dos participantes pedisse a palavrae fizesse trs audaciosas propostas:

    1. Companheiros! No correto aumentar o salrio de quem trabalha mais. preciso isso sim cortar o salrio daqueles que menos produzem.

    2. essencial continuarmos na fbrica durante as frias mesmo sem ganhar mais por isso.Os nossos dirigentes precisam agir com mais nfase quando nos pedem para fazertrabalho voluntrio nas frias.

    3. O governo, companheiros, precisa castigar aqueles trabalhadores que no cumprem seudever. Aqueles que se mostram mais preguiosos precisam passar por uma reeducaoideolgica.

    So propostas to fora de contexto que os dirigentes sindicais provavelmente nemfariam reprimendas apenas olhariam perplexos para o estranho sujeito. Como poderiaum companheiro ter to pouca noo e vir sede do sindicato defender propostas toestpidas e contrrias aos legtimos interesses dos trabalhadores?, algum pensaria.Claro que aquele homem no seria aplaudido nem ganharia opinies a favor, mesmo quetivesse barba, fumasse charutos, usasse uma boina preta e se chamasse Che Guevara.

    No fim de 1959, Che deixou a direo do presdio do Forte de La Cabaa. Passou aocupar o cargo de presidente do Banco Nacional e, logo depois, o de ministro da Indstriade Cuba. Durante quatro anos, coube a ele repensar todo o sistema monetrio da ilha, asrecompensas aos trabalhadores e o critrio para definir o preo de milhes de produtos.Durante essa experincia administrativa, o guerrilheiro produziu textos impagveis sobreeconomia. Esto l as trs propostas acima. Contrrio ao uso de incentivos materiais aostrabalhadores, para ele herana maldita do capitalismo, Che tentava achar um meio deincentivar os cubanos a trabalhar e desenvolver seu conhecimento profissional. Os modos

  • que sugere para resolver esse problema so o controle, a punio e o castigo. Oimportante destacar o dever social do trabalhador e castig-lo economicamente quandono o cumprir, escreveu ele na Nota sobre o Manual de Economia Poltica da Academiade Cincias da URSS. O no cumprimento da norma significa o no cumprimento de umdever social; a sociedade castiga o infrator com o desconto de uma parte de seusrendimentos. Aqui onde devem se juntar a ao do controle administrativo com ocontrole ideolgico.

    Em diversas passagens, Che atribui educao o papel fundamental de fazer as pessoasse disciplinarem e encararem o trabalho como um sacrifcio, sem se importarem cominteresses individuais. Segundo ele, a sociedade socialista deve exercer a coero dostrabalhadores para implantar a disciplina, mas far isso auxiliada pela educao dasmassas at que a disciplina seja espontnea.54 A disciplina deveria chegar ao ponto defazer os trabalhadores abrirem mo das frias e voltarem fbrica sem ganhar mais porisso. Numa reunio administrativa de outubro de 1964, o governante disse aos seuscompanheiros que necessrio estabelecer uma campanha para o trabalho nas fbricasdurante as frias, instruo que j foi dada aos diretores.

    As regras econmicas estabelecidas por um governo no so brincadeira: determinam opoder dos cidados de pagar suas contas em dia e ter mais ou menos acesso a coisas queconsideram seu bem-estar. Dependendo das decises econmicas do governo, um pai defamlia pode levar os filhos para a primeira viagem de avio ou perder o emprego.Liderar a economia de um pas, portanto, um trabalho que exige responsabilidade.Quem no tem experincia ou conhecimento na rea no deve, por respeito aoshabitantes, aceitar ser ministro ou chefe de instituies financeiras. Che Guevara no teveesse cuidado. Depois de aceitar ser chefe do Banco Central de Cuba que foi ter aulas dematemtica e princpios bsicos de diplomacia e economia.55 No deu certo.

    Nos 15 meses em que foi diretor do Banco Nacional, Che ia trabalhar vestido com seuuniforme militar verde-oliva e revlver na cintura. difcil imaginar um chefe maisarrogante. Ele fazia convidados e subordinados esperarem horas para ser atendidos e osrecebia com a prepotncia dos ps sobre a mesa de trabalho.56 Ignorava as tarefas de seusfuncionrios, reduziu os ganhos de quase todos eles e convocou espies para perseguir aspessoas das quais desconfiava. Uma delas foi o economista Jos Illan, ex-vice ministro deFinanas do governo provisrio de Cuba. Che era um mdico que tinha a presuno desaber tudo, mas no era minimamente preparado para os cargos aos quais foi nomeado,afirma ele. Logo depois de assinar um decreto que desagradou Che, o economista Illan foiameaado de priso e precisou fugir da ilha com a famlia. Assim como ele, mais dametade dos funcionrios abandonou o banco em menos de um ano. No me importa,podem ir, traremos estivadores e canavieiros para fazer aqui o trabalho do campo, disseChe ao subdiretor do banco, Ernesto Betancourt.57

    Na mesma poca, Che foi diretor do Departamento de Indstria do Instituto Nacionalda Reforma Agrria. Teve ali a ideia de diversificar a economia cubana reduzindo a reacultivada de cana-de-acar. A dependncia da economia cubana das exportaes deacar incomodava os cubanos havia dcadas: 80% das exportaes vinham doscanaviais. O resultado da ttica, porm, foi o colapso da indstria de acar sem ocrescimento de outras atividades. A safra de cana costumava ultrapassar 6 milhes de

  • toneladas antes da revoluo em 1963, j tinha diminudo para 3,8 milhes. At ento,Cuba vendia acar com gio para os americanos, ou seja, acima da mdia do preomundial. A medida, que fazia mais dlares chegarem ilha, vinha de um acordo com osEUA para proteger os produtores americanos de acar de beterraba. Levando adiante seuanti-imperialismo, Che preferiu vender mais barato, proibindo o gio e reduzindo ovolume de exportao para os americanos. No deu certo.

    Seus planos de incentivo aos trabalhadores tambm fracassaram. Em 1961 e 1962,simplesmente metade da produo de frutas e verduras apodreceu no p porque no haviatrabalhadores no lugar certo para fazer a colheita. Como consequncia, Che instituiu odocumento que infernizaria a vida dos cubanos a partir de ento: o carn de racionamentopara combater a escassez de alimentos. Menos de dois anos depois da revoluo, jfaltavam na ilha de Cuba arroz, feijo, ovos, leite, todos os tipos de carnes e leo. Foicomo se os projetos econmicos de Cuba tivessem sido traados por algum sem a menornoo de economia.

    53 Arquivo de dados do Cuba Archive, caso 206, Ariel Lima Lago, disponvel emwww.cubaarchive.org/database/victim_case.php?id=306.

    54 Carlos Tablada, pgina 271.

    55 Jorge Castaeda, pgina 222.

    56 Jorge Castaeda, pgina 219.

    57 Jorge Castaeda, pgina 220.

  • Quando algum oferecia Coca-Cola a Che Guevara, ele costumava recusar comveemncia: considerava-se diante da gua negra do imperialismo.58 Durante otempo em que foi ministro da Indstria, Che logo tratou de estatizar a fbrica dabebida instalada em Cuba. Para sua decepo, porm, a Coca-Cola socialista quepassou a ser produzida nas fbricas estatais cubanas ficava muito longe da original.Irritado com o gosto de gua suja do refrigerante estatal, ele resolveu visitar afbrica para perguntar aos administradores por que produziam algo to ruim. A respostafoi bvia e clara: o prprio Che tinha expulsado do pas os chefes da indstria, quelevaram com eles a frmula do refrigerante.59

    GUA NEGRA DO IMPERALISMO

    Muitos anos depois, na Venezuela, o presidente Hugo Chvez foi mais precavido. Noincio de seu governo, diante de greves em todo o pas, Chvez mandou militares fbrica da Coca-Cola. No para invadir a empresa e nacionaliz-la. Mas paraimpedir que a produo do refrigerante fosse interrompida.60 Protestosorganizados por sindicalistas chavistas nos ltimos anos at podem parar a produo devez em quando. Esto autorizados a fazer isso, contanto que no impeam os caminhesde sair do armazm repletos de garrafas cheias.

    58 Jorge Castaeda, pgina 534.

    59 Humberto Fontova, O Verdadeiro Che Guevara, Editora , pgina 217; e Tom Gjelten, pgina 286.

    60 Antonio Pedro Tota, Os Americanos, Contexto, 2009, pgina 9.

  • No s Fidel e Che, mas outros lderes da Amrica Latina tomaram o que chamamos de As Trs Atitudes Infalveispara a Runa Econmica: 1) Estatizar empresas e atrapalhar a vida de agricultores e empresrios locais, dificultando aproduo de bens. 2) Confiscar propriedades, espantando investimentos nacionais e estrangeiros. 3) Com a baixa daarrecadao causada pelos itens 1 e 2, imprimir mais dinheiro para cobrir os gastos crescentes, criando inflao.

    Mas Che no se deu por vencido. Em 1961, chegou ao ponto mximo de poder: tornou-se ministro da Indstria. Completou nesse cargo as atitudes infalveis para provocar aruna econmica de um pas. Suas ordens passaram a influenciar 150 mil funcionrios de287 empresas estatizadas, incluindo toda a indstria aucareira e as companhias eltrica etelefnica. Assumiu o cargo dando ideias e anunciando projetos: determinou uma meta decrescimento de Cuba de 15% ao ano e previu a autossuficincia do pas em alimentos ematrias-primas agrcolas, a produo de 9,4 milhes de toneladas de acar e o aumentodo consumo de alimentos em 12% ao ano. Decidiu ainda importar uma fbrica obsoletada Checoslovquia para produzir geladeiras e cafeteiras e ordenou a produo deferramentas, sapatos e lpis.

    De novo, no deu certo. Com menos dlares provenientes da exportao de acar, opas ficou sem dinheiro para investir na industrializao. Como os grandesempreendedores j tinham ido embora, sido expulsos ou presos pelo regime, no haviapessoal qualificado para tocar as fbricas nem matria-prima para a produo. Mesmo asfbricas que permaneceram abertas deixaram de produzir como antes por falta dematria-prima ou de interesse dos administradores. Che deparou-se com esse problemaao perceber que a fbrica estatizada de refrigerantes no fazia produtos to bons quanto aCoca-Cola (veja quadro na pgina 65). Itens industrializados bsicos, como sabo empedra, detergente, sapatos e pasta de dente viraram raridade.

    J naquela poca os lderes cubanos criaram a ladainha de responsabilizar o embargoimposto pelos Estados Unidos pelo lamaal da economia cubana. Em julho de 1960,depois de ter notcia dos fuzilamentos em La Cabaa e de assistir a refinarias de petrleo,lojas e terras de americanos serem confiscadas sem o pagamento de indenizaes, ogoverno dos Estados Unidos rompeu relaes com Cuba e deixou de fazer as habituaiscompras de acar. Nos meses seguintes, interromperia todos os acordos econmicoscom a ilha. A deciso americana fragilizou ainda mais a j destruda economia cubana,mas no se pode dizer que Che e Fidel Castro no imaginassem que isso aconteceria eque no tenham agido deliberadamente para cortar relaes com os americanos. Cheprovocou o embargo, afirma o escritor cubano-americano Humberto Fontova, autor dabiografia O Verdadeiro Che Guevara.61 Em diversas passagens de seus textos, oguerrilheiro deixou evidente que no esperava manter relaes com o vizinho:

    Os pases socialistas tm o dever moral de pr fim sua cumplicidade tcita com os pases exploradores doOcidente.62

    Ao focar a destruio do imperialismo, h que identificar sua cabea, que outra coisa no seno os Estados Unidosda Amrica do Norte.63

    Toda a nossa ao um grito de guerra contra o imperialismo e um clamor pela unidade dos povos contra o grandeinimigo da espcie humana: os Estados Unidos da Amrica do Norte.64

    Com o passar dos anos, a virulncia e o otimismo dos discursos do ministro das

  • Indstrias deram lugar a explicaes e pedidos de pacincia ao povo cubano. Ficou claropara todos, como o prprio Che disse num discurso na TV cubana, que ele havia traadoum plano absurdo, desligado da realidade, com metas inatingveis e prevendo recursosque no passavam de um sonho.65 A partir de 1963, as divagaes sobre a catstrofe daeconomia se tornaram frequentes. Para um pas com a economia baseada namonocultura, querer 15% de crescimento era simplesmente ridculo, disse. Cometemoso erro fundamental de desprezar a cana-de-acar. Os problemas vinham de longe: j em1961 ele se mostra perdido na crena de que uma pessoa poderia controlar a produo detudo:

    Agora h pouco, vocs me receberam com um aplauso forte e caloroso. No sei se foi como consumidores ousimplesmente como cmplices. Acho que foi mais como cmplices. Cometeram-se erros nas indstrias queresultaram em falhas considerveis no abastecimento da populao. [...] Atualmente h escassez de pasta de dentes. preciso saber por qu. H quatro meses, houve paralisao da produo. Mas ainda havia algum estoque. Noforam adotadas as medidas urgentes que eram necessrias justamente porque o estoque era grande. Mas logo oestoque comeou a baixar, e as matrias-primas no chegaram. At que chegou a matria-prima, um sulfato declcio fora das especificaes.66

    Quem sustentou a ineficiente economia da ilha e ajudou a prolongar o sistema pordcadas foi a Unio Sovitica. O bloco socialista passou a comprar a produo de acar,criando um mercado garantido no longo prazo, e deu um crdito quase infinito para Cubareorganizar suas contas externas e comprar pasta de dente. Com a mesada vinda doleste, os planos de industrializao ficaram para trs. Che, que reclamava da dependnciaeconmica dos Estados Unidos, teve de aturar a dependncia econmica da URSS.Tratava os oficiais soviticos com pavio curto chegou a estender uma pistola a umintrprete sovitico e sugerir que ele se suicidasse67 e insistia em acreditar queresolveria os problemas econmicos discursando aos trabalhadores nas fbricas. Isoladodo governo, passou a viajar cada vez mais e, em 1965, foi para a frica tentar implantaroutra revoluo comunista.

    Se a economia cubana ficou s moscas naquela poca, piorou muito nos anos 90, com ofim do comunismo no Leste Europeu. A produo de acar, antes da revoluo uma dasmais dinmicas do mundo, no conseguia mais competir com a agricultura modernizadados vizinhos. Um detalhado estudo de 1998 mostrou que Cuba foi um dos raros pases daAmrica Latina onde o consumo de alimentos diminuiu em quatro dcadas. Em 1950, deacordo com dados da Organizao das Naes Unidas, Cuba estava em terceiro noranking da Amrica Latina de consumo per capita de calorias. A partir de ento, enquantoo consumo entre os colombianos passou de 2 mil para 2.800 calorias dirias, os cubanospassaram de 2.700 para 2.300 calorias. Tambm caiu o consumo de cereais e verduras porhabitante, e o de carnes teve uma queda assustadora de 33 para 23 quilos por ano. Foiassim em toda a economia. Enquanto novos membros da classe mdia do resto daAmrica Latina financiavam o primeiro carro zero, Cuba foi o nico pas em que onmero de carros por habitantes caiu.68

    Ainda hoje o problema persiste. As calorias de produtos animais caram quase pelametade dos nveis de 1980.69 Se na poca de Che Guevara reclamava-se que Cuba tinha deimportar produtos industrializados, hoje a ilha precisa comprar de fora at mesmoalimentos. Cerca de 80% do que os cubanos comem vem de fora. O grande vilo

  • imperialista, os Estados Unidos, fornece 30% dos alimentos que chegam mesa doscubanos. A despeito do embargo econmico, s em 2009 foram 490 milhes de dlaresem produtos agrcolas exportados por americanos para Cuba.

    Para quem se preocupa com a prosperidade dos cidados, fazendo a opopoliticamente correta de ficar do lado dos pobres, e se importa com o acesso das pessoasa comida e itens bsicos de bem-estar, esses nmeros e essas histrias mostram que preciso se opor radicalmente a Che Guevara, suas ideias e suas aes. Pases vizinhos doCaribe obtiveram avanos nas reas da sade e da educao e tiraram milhes de pessoasda pobreza sem que o governo precisasse manter por tantas dcadas um sistema que barraa diversidade de opinies, impede os cidados de sair do pas e divide famlias.

    claro que no se pode culpar s as trapalhadas do ministro Che Guevara pela tragdiada economia cubana. Em nenhum lugar do mundo, socialismo ou comunismo (segundoFidel Castro, tudo a mesma coisa) levaram a um modelo econmico eficiente,melhoraram as condies de vida da populao ou levaram a um sistema polticodemocrtico. Sempre falham em seus objetivos porque tm, como princpio, acabar comos motores mais bsicos da economia, como a possibilidade de ter um ganho individual eo direito de propriedade. A prosperidade de um pas depende, entre outros fatores, dasegurana de proprietrios, geradores de riqueza e investidores de que no vero o frutode seus esforos ameaados ou confiscados pelo governo. Do contrrio, se sentem suariqueza em perigo, deixam de investir e poupar dentro do pas. Foi o que aconteceu emtodo o continente nos ltimos sculos. A persistncia em violar os direitos depropriedade na Amrica Latina, que em alguns casos dura at hoje, cria condies deinsegurana permanente para a poupana e investimentos e estimula a fuga de capitais embusca do domnio da lei, afirma o economista Jorge Domnguez no livro Ficando paraTrs, uma reunio de artigos que tenta explicar as origens do atraso latino-americano emrelao aos Estados Unidos. Sem segurana de direito de propriedade, rompe-se todo ocaminho que leva pases riqueza: investimentos de longo prazo, lucro e aumento dosnveis de poupana, mais acesso das pessoas ao crdito barato, mais investimentos,aumento da oferta de emprego e do salrio, concorrncia entre as empresas que leva aredues de preos e melhora de servios, aumento do poder de compra dostrabalhadores, fim da pobreza.

    O processo lento, mas traz ganhos duradouros e no tira a liberdade dos cidados.Che Guevara, no entanto, dificilmente adotaria essa regra bsica de prosperidade. Elaimplica reconhecer que pequenos, mdios e grandes empresrios e geradores de riquezano so todos viles pelo contrrio, eles so, em geral, pea importante para tirar ospobres da misria. Che era orgulhoso demais para reconhecer coisas assim e movidono tanto pelo desejo de aliviar as dores dos latino-americanos, mas pelo dio aindivduos e pases enriquecidos. De fato, cumpriu seu objetivo: fez um estrago danadoentre as famlias prsperas de Havana. Mas deu o mesmo rumo para o resto dos cubanos.

    uma pena Che ter deixado Buenos Aires em 1953 para iniciar sua segunda viagempela Amrica (viagem que o levaria a Cuba). Se ficasse mais alguns anos na Argentina, oguerrilheiro teria a chance de ouvir uma clebre srie de palestras sobre princpiosbsicos de economia e liberdade. No fim de 1958, o economista austraco Ludwig vonMises passou por Buenos Aires e fez seis conferncias a centenas de jovens argentinos

  • conferncias que se tornariam um de seus melhores livros. Se desse a sorte de estar porali, Che descobriria, no segundo dia de palestras de Mises, como tentar melhorar o mundosem impor um ideal de felicidade:

    Liberdade significa realmente liberdade para errar. Podemos ser extremamente crticos com relao ao modo comonossos concidados gastam seu dinheiro e vivem sua vida. Podemos considerar o que fazem absolutamenteinsensato e mau. Numa sociedade livre, todos tm, no entanto, as mais diversas maneiras de manifestar suas opiniessobre como seus concidados deveriam mudar seu modo de vida: eles podem escrever livros; escrever artigos; fazerconferncias. Podem at fazer pregaes nas esquinas, se quiserem e faz-se isso, em muitos pases. Mas ningumdeve tentar policiar os outros no intuito de impedi-los de fazer determinadas coisas simplesmente porque no se querque as pessoas tenham a liberdade de faz-las.70

    Pensando bem, na prxima vez que voc se deparar com Che Guevara numa camiseta,na capa de um