guia incompleto de imunologia

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Guia incompleto de Imunobiologia (imunologia como se o organismo importasse)Nelson M. Vaz e Ana Maria C.de Faria

Belo Horizonte, 1993

Nos cursos introdutrios Imunologia que oriento no ICB da UFMG enfatizo assuntos que me parecem negligenciados e, ao mesmo tempo, ser da maior importncia. Os estudantes no dispem de bibliografia em portugus para tais discusses. Com este texto, tento preencher parcialmente esta lacuna. Como texto introdutrio Imunologia, ele serve tambm a no-especialistas procura de uma viso pouco ortodoxa. Por outro lado, abordo assuntos muito mais vastos que a Imunologia, e sei que a mera tentativa de abord-los parece implicar alguma presuno da minha parte, como se eu tivesse algum talento especial para tratar destes problemas. No me sinto assim. Durante os ltimos anos, falei exaustivamente destas opinies s pessoas mais prximas. Exceto por alguns estudantes, duvido que algum concorde inteiramente comigo. Mas quase todos os imunologistas que conheo concordam em que h algo seriamente equivocado em levar as coisas como usualmente fazemos na Imunologia. No suponho ter solues para os vastos problemas sobre os quais me sinto forado a falar. Sinto que estamos todos em um tempo de crise e falo de problemas que so nossos, no apenas meus. O que apresentamos aqui muito incompleto para ser usado como livro-texto. No tratamos de mtodos imunolgicos, de aspectos bioqumicos, histolgicos ou farmacolgicos ou de Imunologia clnica. Abordamos apenas tangencialmente campos de grande interesse atual, como a biologia celular e gentica molecular. No procuramos sequer ser atualizados; na Imunologia moderna, esta qualidade seria perdida antes mesmo da redao ser completada. Eis aqui uma compreenso pessoal da Imunologia como um todo e de suas relaes com a Biologia e a Medicina. Talvez nada resuma melhor a motivao deste trabalho que os versos de Ana Maria Caetano de Faria: "responde depressa: a pergunta pr tua resposta ainda essa?" In Levianas (peras completas) Ana Maria Caetano de Faria e Levi Carneiro Belo Horizonte,1985 Agradecimentos Agradeo muito particularmente, a Humberto Maturana, por existir da maneira que existe. A Francisco Varela e Antonio Coutinho, agradeo pelo muito que aprendi - primeiro com um, depois com o outro. Ana Maria C. de Faria, cmplice e co-autora, afastou-se para um doutorado no estrangeiro durante a redao, mas suas idias e seus textos esto mesclados atravs do livro. H pessoas muito queridas sem as quais eu no teria iniciado esta tarefa: Cristina Magro, Jorge Mpodozis, Geraldo Florsheim, Hj Ross, John Stewart. Agradeo a Tomaz Mota-Santos e Enio C.Vieira a acolhida no ICB, e a Clio Garcia, Evando Mirra, Ricardo Fenati e Paulo Margutti, a acolhida na Fafich. Daisy de Souza Noli reviu, inicialmente, com carinho todo o trabalho. Finalmente, aos amigos e amigas, que nos co-orientamos no Laboratrio de Imunobiologia, e s vrias turmas de estudantes que viveram conosco a criao destes textos, fica um agradecimento comovido. A Cludia Rocha Carvalho agradeo o privilgio de sua convivncia e o exemplo de como harmonizar fora e delicadeza. Durante a redao, nosso laboratrio recebeu bolsas e auxlios do CNPq, da CAPES, da Fapemig e da Fapesp, sem os quais nada seria possvel. Nelson M.Vaz

A minha modesta contribuio neste livro resultou dos quatro anos de vivncia e aprendizagem com o Prof. Nelson Vaz e os colegas do laboratrio de Imunobiologia. Foi um tempo de trabalho e reflexo no s sobre temas de Imunologia que nos parecem de primeira importncia como a tolerncia oral e outros fenmenos imunolgicos naturais como tambm sobre certezas cientficas que nos cercam e nos guiam por caminhos nem sempre iluminados. Talvez nossa grande concluso durante este perodo tenha sido que a Imunologia, como qualquer outra cincia, no resultou de um busca cega ou de um acmulo de descobertas inexorveis. Ao contrrio, ela resultou de uma escolha entre diferentes caminhos e de uma histria que justifica esta escolha. Assim, continuar na mesma direo no significa simplesmente seguir o trajeto natural da cincia, mas reafirmar esta escolha, refaz-la a cada dia. O material usado para o livro inclui alguns textos conjuntos em Imunologia, eventualmente utilizados em aulas ou discusses. O Captulo 2, sobre a origem remota das certezas da Imunologia, a transcrio de uma aula que apresentei no Departamento de Bioqumica em 08/08/88 e as reflexes sobre as origens da Imunologia e a contribuio de Metchnikoff fazem parte de minha tese de mestrado. As figuras que ilustram o livro so obra da competncia e da criatividade do Prof. Nelson Vaz, e os Captulos 12-17 so de sua inteira responsabilidade. Ana Maria Caetano de Faria

1 1. Introduo______________________________ A Imunologia surgiu validada e validando uma nova forma de Medicina, ao final do sculo passado. Surgiu como conseqncia e como parte indispensvel da Teoria dos Germes sobre a origem das doenas e sobre nossos mecanismos de defesa. Transformada na Teoria das Causas Especficas das doenas, como coluna dorsal da Medicina contempornea, esta Teoria insatisfatria por vrios motivos. H um desconhecimento bastante difundido sobre os mecanismos de defesa imunolgica. Alm disso, h uma ignorncia central usualmente omitida da apresentao da Imunologia. Os mecanismos bsicos de operao do sistema imune no so conhecidos, embora conheamos minuciosamente a maioria de seus componentes e sub-componentes. Desde que no entendemos como o sistema opera, no sabemos como intervir previsivelmente na maioria das atividades imunolgicas: as vacinas em uso humano e veterinrio foram todas desenvolvidas empiricamente, milhares de outras falharam no estgio experimental. No sabemos porque umas funcionam, outras no. A Imunologia no pode prometer vacinas sociedade porque no sabe como fabric-las. Os progressos recentemente obtidos sobre mecanismos celulares e moleculares no alteram este panorama. Continuamos a agir empiricamente: um mtodo moderno eficaz no tratamento de algumas doenas auto-imunes - a injeo de altas doses de imunoglobulinas - age por mecanismos totalmente obscuros. A facilitao dos transplantes renais por transfuses de sangue tambm utilizada sem que entendamos como ocorre. No entendemos bem porque as gestantes no rejeitam os fetos e suas placentas, como se fossem transplantes alognicos. Uma parcela das protenas que ingerimos como alimentos penetra a circulao em forma antigenicamente ativa, mas a importncia que isto pode ter na operao global do sistema imune negligenciada. Entendemos pouco ou quase nada sobre a suscetibilidade individual s infeces ou ao desenvolvimento de alergias. Este quadro muito diferente do apresentado nos textos de Imunologia. A deciso de no polemizar estes temas se deve, em parte, relutncia dos biologistas experimentais em discutir "teorias", embora isto seja corriqueiro na Fsica e outras reas da cincia. Mais seriamente, porm, o problema se deve inexistncia de uma Teoria suficientemente ampla e poderosa sobre os seres vivos e a natureza dos fenmenos biolgicos. A Imunologia no dispe desta Teoria porque ela no est presente na Biologia atual. A introduo de uma Teoria que redefina a Imunologia, portanto, passa por uma redefinio dos fenmenos biolgicos em geral. Como veremos, em nossa opinio esta Teoria j est disponvel no trabalho de Humberto Maturana sobre a Biologia do Conhecer . No pretendemos apresentar aqui o trabalho de Maturana e convidamos o leitor a consultar seus textos originais. Frequentemente, estaremos apontando coisas simples e bvias e como ele lembra: "Nada mais difcil de dar valor e respeitar quanto aquilo que nos dizem e to fundamental que, depois de ouvido, nos parece bvio." A metfora defensiva Freqentemente falamos dos seres vivos em termos antropomrficos. Fazemos de conta que o corpo sbio, no sentido em que concebemos a sabedoria. A atividade biolgica, porm, constitui uma forma diferente de "conhecer". Podemos dizer que um embrio sabe crescer para formar uma estrela do mar, um canrio ou um tigre. Dizemos que a trepadeira sabe se enrolar em seu suporte e que o protozorio sabe procurar seu alimento. Mas nossa referncia a este saber, este conhecer biolgico, vaga e nebulosa. Dois pensadores importantes da biologia contempornea se dedicaram a esclarecer esta diferena entre o "conhecimento humano" e este "conhecer" que caracteriza a atividade dos sistemas biolgicos. Era a esta diferena que Gregory Bateson se dirigia ao se referir a problemas mentais . a ela que Maturana se refere na Biologia do Conhecer . Que relevncia tm tais problemas tm para a Imunologia? Quando dizemos que o sistema imune nos defende , identificando e eliminando materiais estranhos em meio aos componentes do corpo, estamos usando, deliberadamente ou no, uma metfora. No existe uma entidade inteligente planejando e desenvolvendo estratgias defensivas contra invasores antignicos no meio do sistema imune. As modificaes que o sistema atravessa surgem como decorrncias inevitveis de sua estrutura celular e molecular. Tais mudanas estruturais ocorrem como se o corpo se defendesse e, usualmente, resultam na eliminao dos materiais estranhos sem causar danos excessivos estrutura

2do organismo. Mas elas no derivam de um planejamento da defesa. A defesa no intencional . O corpo existe sempre de uma maneira determinada por sua estrutura, em congruncia com suas circunstncias, mantendo sua organizao e sua adaptao atravs de uma seqncia particular de mudanas estruturais. Algumas destas mudanas se passam durante a existncia do indivduo, muitas outras se passaram durante a filognese, numa longa e ininterrupta seqncia de acontecimentos desde a origem da vida. Os seres vivos so seres histricos, no sentido de que representam o resultado de uma longa seqncia de modificaes estruturais. Por um lado, o sistema imune parece operar inteligentemente e sua operao constitui uma maneira de "conhecer" o mundo; por outro, aprendemos a decomp-lo em elementos celulares (linfcitos) cada um dos quais desempenha aes muito mais singelas. Por um lado, o sistema parece dotado de uma intencionalidade defensiva, parece capaz de reter a memria de acontecimentos passados; por outro, encontramos os linfcitos e seus produtos moleculares envolvidos em uma dinmica estrutural na qual a variedade dos resultados muito mais limitada. No domnio dos linfcitos tudo se resume a ativaes e inibies celulares. Como podem estas aes celulares resultar em um sistema que age como se fosse inteligente e recordasse o passado? A proposta de um mecanismo Por um lado, temos descries semnticas , baseadas no significado do que ocorre, nas quais o sistema imune parece ter propsitos de defesa; por outro, temos descries estruturais . H um vo entre estas duas formas de descrio. Podemos descrever os fenmenos imunolgicos como aqueles dos quais participam clulas e molculas com uma certa estrutura. H molculas tpicas dos fenmenos imunolgicos: molculas com regies variveis (regies V ) formadas por linfcitos . Diferentemente de todas as demais molculas de protenas formadas pelo organismo, durante a emergncia dos linfcitos (linfopoiese) surgem molculas com trechos onde a seqncia de aminocidos varivel. Isto se deve a processos especiais de rearranjo do genoma que ocorrem exclusivamente na produo dos linfcitos e so proibidos para outras clulas. Por isso os linfcitos so diferentes de todas as demais clulas do organismo, tm o genoma rearranjado. Os linfcitos surgem diferentes uns dos outros, nascem individualizados, cada qual portando como receptores de membrana um determinado tipo de molcula recm-inventada, molculas com regies V . Por um lado, podemos definir os fenmenos imunolgicos como fenmenos nos quais linfcitos (e molculas com regies V ) tm participao essencial; por outro, podemos atribuir planos e propsitos defensivos ao sistema imune. Na primeira opo, que preferimos, o sistema imune um mecanismo tal que, deixado operar, dar origem a todos os fenmenos imunolgicos. Para descrever o sistema imune, necessrio descrever sua organizao, isto , componentes essenciais e relaes essenciais entre estes componentes, sem os quais seria impossvel descrever os fenmenos imunolgicos. So dois domnios de descrio distintos, ambos vlidos, na verdade, complementares, mas que precisamos manter separados para no nos confundirmos. Um o domnio estrutural, onde existem linfcitos e seus produtos moleculares, onde clulas so ativadas, inibidas, destrudas. Tudo o que ocorre neste domnio so modificaes celulares e moleculares. Outro, o domnio onde descrevemos as interaes do organismo em seu ambiente e o vemos mudar de acordo com estas interaes. Usualmente fundimos estes dois domnios em um s e achamos que so as interaes no ambiente que determinam as modicaes da estrutura do sistema. Como veremos, isto no pode se passar assim, pois no existem interaes instrutivas e o organismo muda de acordo com sua prpria estrutura. As divises do texto A primeira parte do texto - O reconhecimento imunolgico especfico - contm um esboo da Imunologia contempornea, comeando pelas origens das certezas que orientam seu trabalho. Buscaremos tais origens no como um inventrio das descobertas que nos trouxeram aqui, mas sim preocupados em desnudar as razes das idias bsicas da Imunologia. Em seguida, em uma srie de captulos curtos, procuramos descrever o cenrio atual em termos gerais. Na segunda parte do livro, O conhecer imunolgico , descrevemos a natureza do contexto biolgico onde se desenrolam os fenmenos imunolgicos. Faremos isto apoiados na Biologia do Conhecer - um conjunto de idias que tm origem no trabalho de Maturana, da Universidade do Chile, sobre a organizao dos seres vivos. Desta redefinio dos seres vivos e de suas atividades cognitivas

3deriva, ento, uma nova interpretao dos fenmenos imunolgicos. neste contexto que abordaremos O emergir da patologia , reavaliamos as crenas bsicas da Imunologia e descreveremos a imunopatologia.

2. Certezas : origens remotas______________________________ 2.1 Uma busca na Histria No pretendemos fazer aqui um inventrio das descobertas da Imunologia como o que normalmente se encontra nos livros: uma histria de como a Imunologia progrediu. Nossa inteno buscar a origem das certezas que temos quando praticamos a Imunologia. Sempre que realizamos uma experincia ou organizamos uma aula sobre um tema de Imunologia, partimos de um conjunto de certezas sobre a natureza dos fenmenos imunolgicos. J sabemos muitas coisas e a partir dessas certezas que fazemos perguntas e organizamos nossas afirmaes. Qual a origem dessas certezas? Em que momento da Histria elas surgiram? Eram estas as nicas certezas possveis? A Imunologia, tal qual ela hoje, representa a nica forma possvel de haver uma Imunologia? A viso que temos hoje sobre o sistema imune era a nica possvel? Ou existem motivos histricos para que a Imunologia seja assim, apesar de existirem alternativas? 2.2 A base de certeza Para comear, os cientistas sabem, sabemos todos que o sistema imune um sistema de defesa. Em segundo lugar, sabemos que o sistema imune forma anticorpos especficos quando estimulados por materiais que so estranhos ao corpo. A formao destes anticorpos constitui as respostas imunes especficas. Sabemos ainda que, num segundo contato com estes materiais estranhos, as respostas imunes sero mais rpidas, mais intensas e duradouras e atribumos isto a uma memria imunolgica. Ou seja, imaginamos que o sistema imune "aprende" e no se esquece. Em terceiro lugar, sabemos que esta memria imunolgica pode ser artificialmente induzida atravs das vacinas. Estas so certezas das quais se parte para trabalhar em Imunologia. Quais so, ento, os objetivos da Imunologia, delineados a partir dessas certezas? Em primeiro lugar, entender o mecanismo de funcionamento das respostas imunes especficas . E entender isto de uma maneira muito especial: como j sabemos que o sistema imune um produtor de respostas imunes, nossa tarefa a de esclarecer como essas respostas ocorrem detalhando ao mximo os elementos bioqumicos envolvidos na sua prooduo. exatamente isto que a Imunologia tem feito at hoje. Qualquer revista de Imunologia recente mostrar uma descrio minuciosa dos genes que formam os anticorpos, da recombinao desses genes, de como so as molculas dos anticorpos, etc. Um segundo objetivo importante nesta viso da Imunologia a produo de novas vacinas e novos mtodos especficos para neutralizar os agentes causadores das doenas. A idia das doenas enquanto entidades produzidas por causas especficas, como veremos, uma das certezas importadas da Bacteriologia e que marca o perodo fundador da Imunologia. Nossa idia procurar no passado o momento em que adquirimos estas certezas e, a partir da, analisar porque elas permanecem to fortes. Apesar de hoje reconhecermos que o sistema imune est envolvido em muitas atividades alm da defesa do corpo; que os anticorpos no so to especficos assim; que eles no so formados apenas contra materiais estranhos mas tambm para componentes do prprio corpo, mesmo em indivduos sadios; apesar da enorme dificuldade em inventar novas vacinas; apesar de tantas contradies, porque, em determinado momento da Histria, ns adquirimos estas certezas e no queremos abandon-las?

Tabela 2.1 A base de certeza e os objetivos da Imunologia ____________________________________________________ A base de certeza : 1. O sistema imune age como um sistema de defesa do corpo. 2. O sistema imune capaz de fazer respostas especficas. 3. O sistema imune dotado de uma "memria" imunolgica. 4. Esta "memria" pode ser criada artificialmente (vacinas). Os objetivos : 1. Esclarecer os mecanismos de reconhecimento imunolgico especfico. 2. Desenvolver novas vacinas e novas formas de terapia imunolgica especfica. _____________________________________________________________ 2.3 Um surgimento peculiar O surgimento da Imunologia foi muito peculiar, muito diferente do de outras disciplinas. A origem da Anatomia e da Fisiologia, por exemplo, remete a estudos gregos antigos sobre os seres vivos. A Gentica, de origem recente, surgiu no estudo de plantas e animais. Nenhuma destas disciplinas se vinculou ao desenvolvimento ou prtica mdica da sua poca. A Imunologia, ao contrrio, surgiu dentro da Medicina. E num momento muito particular, quando as descobertas de uma Bacteriologia emergente conferiam "arte" mdica de curar os instrumentos para uma prtica cientfica. Confundida com a Bacteriologia, a Imunologia surge, por um lado, como validadora desta transformao e, por outro lado, sendo validada por este status de cincia que a Medicina acabava de adquirir. Este surgimento peculiar ir conferir Imunologia suas caractersticas mais marcantes e toda a fora das idias que ela tem hoje. A transformao da Medicina em uma atividade cientfica marcada pelo surgimento de uma nova Teoria mdica, uma teoria com duas caractersticas importantes. A primeira sua eficcia. As teorias mdicas surgidas at ento eram muito pobres em resultados. A Medicina era praticamente incapaz de evitar ou curar as doenas. a partir do surgimento da Imunologia que, pela primeira vez, a Medicina se mostra capaz de intervir no curso de uma doena. A primeira prtica inegavelmente eficaz de interferncia na sade humana se faz atravs de um instrumento imunolgico: as vacinas. Ser muito difcil questionar a validade de idias que nasceram envoltas em poder to monumental. Mas alm de sua eficcia, essa nova teoria mdica tinha uma outra caracterstica importante: ela surgiu de uma forma inusitada na Medicina, no mais como uma mera teoria mas como o resultado de concluses cientficas, apoiada em experincias. As teorias mdicas que a precederam eram derivaes tericas de uma cosmologia, de uma viso de mundo. Atravs dessa viso de mundo se desenvolvia uma viso do que era o corpo sadio e desta viso, por sua vez, se derivava uma viso do que era a doena e do que poderia consistir uma terapia. As teorias mdicas da Grcia antiga, das quais nos fala Hipcrates (460 A.C.), por exemplo, organizavam seus conhecimentos a partir de pressupostos tericos sobre a natureza do universo. Segundo estes pressupostos, a natureza e o cosmos eram perfeitos, ordenados por leis divinas e totalmente hierarquizados. A Razo sendo divina, exterior ao homem, ordenava o cosmos. O corpo, como parte da natureza, era tambm perfeito. Neste contexto, a doena significava um distrbio do equilbrio com o cosmos e derivava de imperfeies do mundo humano, excessos no comer e no beber, no exerccio e no sono. Mas o corpo, deixado em seu estado natural, tenderia para a perfeio, para a cura. Assim, na medicina hipocrtica, de um modo geral, havia pouco sentido em intervir no corpo. A idia moderna de remdio, de medicao, de interveno mdica, no faria o mesmo sentido na Grcia antiga, porque ela significava a interferncia de uma razo menor, mundana num equilbrio fundado por leis superiores, divinas. Deixado em suas condies naturais, o corpo tenderia a voltar ao normal, perfeio. Por isso mesmo, a teraputica hipocrtica era, na maioria dos casos, expectante. Os principais tratamentos que existiam na Grcia e se estenderam, com Galeno, atravs da Idade Mdia incorporados mstica crist, consistiam basicamente em conter os excessos, recomendar o repouso, ar puro e uma alimentao sadia, aliados a uns poucos preparados com efeitos sintomticos, para aliviar a dor, acalmar. Nestes tratamentos no havia a inteno de curar, mas sim de facilitar o restabelecimento de um equilbrio anterior.

Tabela 2.2 Caractersticas do surgimento da Imunologia _____________________________________________________ 1. Associao com a Medicina, no com a Biologia 2. Validada e validando uma nova Teoria mdica: - que tinha uma nova eficcia; - que no se baseava em uma cosmologia (e sim em achados empricos e cientficos) _____________________________________________________ Tal Teoria se prolonga pela Idade Mdia e somente nos sec. XVI a XVIII, surge uma nova viso sobre a prtica mdica. Esta, apesar de j vir no bojo da revoluo cientfica, ainda segue um esquema similar ao da antiga: ela ainda se apoia em uma cosmologia, numa viso de mundo, da qual ela deriva uma viso do corpo; desta viso do corpo, ento, ela extrai uma noo da doena e uma terapia. A viso de mundo, no entanto, muda radicalmene. Ao contrrio da viso grega que imaginava a Razo ordenadora do mundo era exterior e divina, a Razo agora interna e se localiza no homem. Ao homem cabe organizar um universo desencantado atravs de seus prprios instrumentos: a Fsica e, mais particularmente, a Mecnica. Em oposio, ento, ao mundo hierarquizado e harmnico dos gregos, o universo da cincia se assemelha a uma grande mquina cujo mecanismo preciso testar para entender. Por extenso, o corpo deixa de ser a representao terrrena de uma perfeio celeste e passa a ser visto como mquina pensante. Descartes, no Discurso sobre o Mtodo, o primeiro a propor todo um esquema de funcionamento do corpo segundo esta idia. Se o corpo uma mquina, a doena um distrbio mecnico nessa mquina, algo que enguiou. Ao contrrio da viso grega, agora a terapia requer uma interveno para consertar o defeito.A inteno teraputica no mais restaurar um equilbrio perfeito original, mas reparar um distrbio de regulao atravs de um tratamento ainda nico, inespecfico. Como discutiremos adiante, as sangrias constituram durante muito tempo esta terapia inespecfica. Embora esta seja a poca da Revoluo Cientfica, a Medicina ainda descreve o corpo como um todo que funciona e se regula integrado e onde a doena tem, necessariamente, uma carter sistmico. A desintegrao da cosmologia antiga representou a perda de uma viso unificadora do mundo e colocou para a Razo humana uma tarefa monumental: reconstruir um universo coerente, no mais a partir de princpios conhecidos a priori mas atravs de uma busca metdica das leis embutidas no seu funcionamento. A destruio da viso do mundo tambm a destruio da viso do corpo. O homem se encontra, a partir da, entregue aos seus prprios instrumentos para reconstruir uma nova imagem do mundo e, no caso na Medicina, do corpo. Estes instrumentos sero dados pela cincia emergente, pelo mtodo cientfico. Surge a a figura do cientista. Ele exatamente este homem que perdeu a viso do mundo mas sabe que pode ter acesso a uma nova viso atravs das experincias. E que so as experincias? So a aplicao da razo humana ao conhecimento do mundo atravs de um mtodo. Ao contrrio do filsofo antigo que observa o universo para tentar encontrar nela a materializao de uma lgica divina, de uma ordenao estabelecida a priori por leis matemticas, o cientista recolhe suas observaes como quem recolhe fragmentos de um universo detroado. Sua tarefa recompor estes fragmentos numa nova viso coerente do mundo e, no caso da Medicina, do corpo. A Cincia tem ainda a convico que, no dia em que todos os fragmentos forem montados, todos detalhes conhecidos ser possvel recompor, novamente e para sempre, uma nova viso de mundo, uma nova cosmologia. Assim procede o cientista: por adio. O que ser, ento, a nova Teoria mdica? Uma montagem, um mosaico. Do sucesso teraputico da vacinao anti-varilica, introduzida por Jenner e dos dados laboratoriais de Pasteur, montou-se uma teoria sobre a natureza das doenas: a Teoria dos Germes. Dessa teoria sobre o que so as doenas, partiu-se para sua confirmao experimental: a busca de terapias especficas verdadeiramente eficazes. 2.4 A perda do corpo At esse momento, a Medicina possua um discurso sobre o corpo doente, porque tinha uma viso integrada do corpo so. Mas no momento em que ocorre uma perda da idia de corpo, s lhe resta falar de

doenas. Nossos livros mdicos no mostram nenhuma definio do adoecer, mas trazem uma classificao minuciosa das hepatites, das pneumonias,dos defeitos genticos. interessante perceber no surgimento dessa nova Teoria mdica (sec. XVIII) que a idia de germes como causadores de doenas muito mais antiga. Em 1546, cerca de 300 anos antes, Girolamo Fracastoro publicou um livro sobre o contgio e as doenas contagiosas, dizendo que as doenas poderiam ser causadas por partculas invisveis que passavam de uma pessoa a outra. Muitos outros estudiosos depois, estudando doenas humanas, de animais e de plantas, argumentavam claramente sobre a idia de contgio. Mas isto nunca chegou a constituir uma Teoria mdica. Porque apenas no sec. XVIII e XIX esta idia foi considerada e elevada ao status de uma Teoria to poderosa? Vrios fatores colaboraram para o surgimento da Teoria dos Germes, da Bacteriologia e da idia moderna de doenas . O primeiro fator importante foi a Revoluo Cientfica, que transformou a Medicina em uma Cincia. O segundo, foi a introduo da vacinao anti-varilica, por Jenner, em 1798. A erradicao da varola na Europa foi uma inequvoca demonstrao de eficcia. O terceiro fator foi o que Foucault chama de "o nascimento da clnica", nome dado no s s reformas hospitalares ocorridas nos sec. XVIII e XIX na Europa mas tambm s mudanas na forma da Medicina encarar o paciente, o corpo doente. O quarto, foi a emergncia da Qumica e da indstria qumica na Alemanha, que foram fundamentais e estiveram profundamente envolvidas no surgimento da Imunologia, deixando nela profundas marcas de nascena.

Tabela 2.3 Fatores que favoreceram a Teoria dos Germes _____________________________________ 1. A Revoluo Cientfica. 2. A vacinao anti-varilica 3. O nascimento da clnica. 4. A emergncia da indstria qumica. _____________________________________ 2.5 A Revoluo Cientfica A Revoluo Cientfica foi o amadurecimento da idia de que a interveno na Natureza por meio da Cincia era possvel. Na cosmologia antiga, o homem era um observador passivo, um admirador. O cosmos era dividido em um mundo lunar e um mundo sublunar. O mundo lunar era perfeito e era representado pelo mundo dos planetas, das rbitas circulares e dos movimentos perfeitos. L habitava Deus. O mundo habitado pelo homem era o mundo sublunar e havia entre eles no s uma separao muito clara, mas tambm uma hierarquia. O mundo antigo, ento, era ordenado e fechado. Acabava no horizonte e sera separado por esferas de cristal que evitavam que um mundo tocasse o outro. As leis da Fsica antiga s podiam explicar o mundo sublunar, humano, porque aqui vigoravam algumas lgicas imperfeitas. O mundo lunar s podia ser explicado pela Matemtica que era a forma de pensar de Deus. O movimento dos planetas era entendido atravs da geometria dos crculos porque era a cincia dos movimentos perfeitos. Evidentemente, a arte de observar no nasceu com a Cincia, ela existia no mundo antigo. Mas o critrio de observao era diferente. Atualmente, observamos para entender como o mundo . Os gregos observavam para adequar a observao feita aos princpios divinos, aos dogmas. A observao era uma forma de contemplao. Contemplava-se o mundo na tentativa de enquadrar tais observaes aos princpios j estabelecidos. Isto obviamente gerava uma srie de contradies. Por exemplo: Aristteles afirmava que, de acordo com a lgica do mundo lunar, a rbita dos planetas s poderia ser circular pois o crculo era a figura geomtrica perfeita. Mas, pela observao direta do movimento dos planetas e levando-se ainda em considerao que a Terra era o centro do mundo e que tudo girava em torno dela, o que se via que os planetas no tinham rbitas regulares. Em certos momentos, eles paravam em suas rbitas e descreviam um pequeno crculo no sentido contrrio ao movimento anterior. No tinham, portanto, um movimento circular uniforme como seria adequado ordem lunar. Na teoria de Ptolomeu, essas irregularidades foram acomodadas para constituir os epiciclos. Mas porque haveriam os planetas de se comportar assim? Um outro exemplo notvel desse conflito foi a busca do dcimo planeta, Vulcano, que deveria completar a lista dos corpos girando em volta da Terra, j que 10 um nmero perfeito.

As contradies foram se acumulando e houve um momento em que foi preciso separar a Fsica Ptolomaica, a astronomia, da Matemtica, porque as duas eram inconciliveis. Surgido na poca do Renascimento, o movimento de emancipao das cidades italianas do poder da Igreja, gerou as primeiras experincias questionadoras desse modelo de mundo (Ptolomaico), no qual a Terra era o centro do Universo e o prprio Universo era uma inveno divina intocvel. Um dos primeiros trabalhos importantes neste questionamento surge em 1543, publicado por Nicolao Copernico onde ele mostra que a Terra no o centro do Universo e que os planetas giram ao redor do Sol. Esta mudana na geografia celeste teve consequncias desastrosas para a velha cosmologia. Por um lado ela demonstrava as possibilidades da Fsica e da Razo humana de compreender o mundo a partir da observao. Por outro lado, ela questionava a perfeio do cosmos, seu fechamento e hierarquizao e, por isto mesmo, a existncia de Deus. compreensvel que, por temor Igreja, Copernico tenha feito arranjos para que seus achados s fossem publicados aps a sua morte. Toda uma Revoluo nas idias da Cincia iniciada e conduz a duas mudanas que iro caracterizar a emergncia da Cincia moderna. Primeiro, a unificao dos mundos (o sublunar e o lunar). Diferentemente da hierarquia das disciplinas antigas, a Cincia moderna pretende explicar todos os aspectos do universo, incluindo o movimento dos astros e o corpo humano, atravs da Fsica. A segunda mudana a passagem de uma Razo que externa e, portanto, objetiva, para uma razo que interna, subjetiva. No mundo antigo, a Razo est no mundo, foi colocada l por Deus. No mundo moderno, a razo humana. Ao cientista cabe a tarefa de reexplicar o universo atravs dos seus prprios instrumentos: o mtodo cientfico. E em que consiste o mtodo cientfico? Inventar perguntas que, atravs de experincias, possam ser feitas ao mundo, analisar os resultados dessas experincias e construir, a partir deles, uma teoria coerente. Novas confirmaes experimentais dessa teoria criariam um comportamento cclico de gerao de conhecimentos. Tabela 2. Duas mudanas essenciais para a emergncia do pensamento cientfico ______________________________________________________ 1. A unificao dos mundos: sub-lunar e lunar. 2. A passagem de uma Razo externa (divina) para uma razo interna (humana) ________________________________________________________________ Estas mudanas repercutiram fortemente dentro da Medicina, que at ento, separada da cincia, era simplesmente a arte de curar. Um dos trabalhos fundamentais na modificao das concepes da Medicina surgiu no mesmo ano (1543) em que Copernico publicou suas observaes astronmicas: um atlas de anatomia publicado por Vesalius revendo toda a anatomia grega e mostrando nela vrios equvocos. No havia, at a, nenhum questionamento da anatomia ensinada por Galeno. 2.5.1 Ambroise Parr: a criao dos hospitais Um segundo trabalho digno de nota surgiu em 1570, com Ambroise Parr, o fundador dos hospitais e o criador da cirurgia moderna. A cirurgia, at ento, no fazia parte da Medicina. E fcil compreender esta separao. Se a Medicina era expectante e pouco intervencionista, haviam, no entanto, as guerras, os acidentes, ocasies em que as pessoas se feriam, tinham que amputar membros, tratar feridas. Esse trabalho, porm, no era praticado pelos mdicos; era feito pelos barbeiros da poca. Existia uma profisso chamada "cirurgio barbeiro". A pessoa que cortava a barba era a mesma que, se necessrio, amputava uma perna. As amputaes, sem anestesia, eram dramas terrveis. Feridas infectadas eram tratadas com leo fervente ou outros mtodos igualmente agressivos. Muitos no suportavam esse sofrimento e morriam. Ambroise Parr foi treinada para ser um destes cirurgies. Ele foi o responsvel no s pela introduo de mtodos mais suaves de tratamento das feridas como tambm pela criao de casas especializadas onde se realizavam as cirurgias, os primeiros hospitais. Enfim, foi o primeiro a tentar introduzir a cirurgia dentro da Medicina antiga. interessante notar ainda que na publicao do trabalho de Pasteur, mais de um sculo depois, o ttulo ainda se referia a esta antiga dicotomia: "Sobre a Teoria dos Germes e sua Influncia sobre a Medicina e a Cirurgia", como se Medicina e Cirurgia fossem prticas distintas.

2.5.2 William Harvey: a descoberta do invisvel William Harvey (1578-1676) foi talvez o primeiro grande cientista que a Medicina conheceu. Harvey preocupava-se com a natureza da circulao sangunea. Na fisiologia herdada dos gregos, j se dizia que o corao era "uma bomba"; j se sabia tambmda existncia de artrias e veias. Foram os gregos, por exemplo, que chamaram as artrias por esse nome e por um motivo especial: quando as disseces dos cadveres eram feitas, as veias eram encontradas cheias de sangue, mas as artrias estavam vazias. Eles imaginavam, ento, que as artrias transportavam ar. Em Alexandria, mais tarde, descobriram que as artrias transportavam sangue, descreveram-se as vlvulas cardacas e vlvulas nas veias. No grande tratado de Galeno, porm, constava que o corao bombeava o sangue desordenadamente: o sangue entrava pelas artrias, saa pelas veias, atravessava paredes cardacas. A grande preocupao de Harvey era esclarecer estes pontos obscuros. Ligando a veia cava ou a aorta, ele estabeleceu o sentido da circulao sangunea, observando que o sangue s se acumula do lado por onde ele chega at a ligadura. O sangue entra no corao pelas veias e sai pelas artrias, algo que Harvey estabeleceu por uma experincia, como o primeiro experimentador dentro da Fisiologia. Mais importante que isto, porm, Harvey constatou, em suas disseces, que as artrias vo se bifurcando e se tornando mais finas at desaparecerem nos tecidos, enquanto que as veias, trazendo o sangue dos tecidos, parecem brotar de l, em pequenas veias que confluem para formar veias maiores. Entre as artrias, por onde o sangue entra nos tecidos, e as veias, por onde ele volta ao corao, no existem ligaes visveis. Harvey calculou, ento, a quantidade de sangue bombeada pelo corao e concluiu que uma massa de sangue trs vezes maior que o peso do corpo mobilizada diariamente. Para ele parecia completamente absurdo imaginar que um volume de sangue como este pudesse ser gerado em algum lugar do corpo para entrar pelas veias e em seguida desaparecer nos tecidos. Harvey utilizou, ento, uma concluso, uma inferncia, atravs de dados que obteve experimentalmente: se o sangue entra no corao, tem um movimento com um sentido bem definido e no pode ser criado e consumido todo dia em to grande volume, deve existir algo entre as veias e as artrias, algo que est ali mas invisvel. Harvey passou para a histria como o descobridor dos capilares, denominao que ele deu aos vasos mais finos porque os imaginava finos como cabelos. Mas sua contribuio muito mais importante: ele foi o primeiro a falar no invisvel dentro da Medicina. Fazendo inferncias a partir de observaes experimentais, Harvey foi um dos primeiros a introduzir a prtica cientfica na Medicina. O novo mtodo, ento, permitia aplicar as leis Fsica tambm ao conhecimento do corpo humano. Isto desencadeou uma srie enorme de trabalhos que deram origem Fisiologia como a conhecemos hoje. Se o corpo nada mais que um aglomerado de leis Matemticas e Fsicas, mais fcil imagin-lo como uma mquina. Uma mquina que bombeia sangue e realiza outras atividades prprias s mquinas. interessante notar que os nomes que os fisiologistas passaram a utilizar so tomados por emprstimo Mecnica ("regulao", "energia", etc). Esta tendncia desemboca em Descartes que, sem admitir que faz metforas, descreve o corpo como uma mquina. 2.5.3 Broussais: a inflamao e as sangrias Surgem tambm neste perodo os primeiros modelos de Teorias mdicas que rompem radicalmente com a Medicina grega. Um fisiologista francs, Broussais (1735-1788), cria um modelo exemplar. Segundo Broussais, tal como uma mquina, o corpo tende para o desgaste, a destruio e a morte. A tarefa do mdico, ento, seria a de intervir no curso dos acontecimentos e retardar o desenlace inevitvel, porque o corpo em seu estado natural tende a morrer. No existiria , entre a doena e a sade, uma diferena em natureza, mas apenas em grau. Todas as doenas seriam reguladas por um s princpio, o princpio da excitabilidade. O corpo doente ou est excitado demais, ou de menos. A normalidade seria o grau certo de excitabilidade. A terapia advogada por Broussais, ento, visava recompor o grau correto de excitabilidade: para os pouco excitados, os excitantes; para os excitados demais, as sangrias. As sangrias se tornaram uma forma muito popular de interveno mdica, um mtodo universal de cura, aplicvel a inmeras situaes. Toda doena febril, por exemplo, envolvia um grau exacerbado de excitabilidade e exigia sangrias. Em 1820, por exemplo, a Frana exportava 1 milho de sanguessugas (um verme de vida livre, Hirudo medicinalis ) para serem usados em sangrias. Em 1827, ela importava 30 milhes destes animais. Normalmente, junto com a aparelhagem que o mdico levava para examinar seus pacientes, havia um frasco onde nadavam as sanguessugas .

Embora tenha se comprovado mais tarde que as sangrias possuam algum valor teraputico no caso das doenas febrs, seu uso se tornou universal e indiscriminado. Este uso inespecfico baseava-se na idia de que a doena era tambm uma entidade inespecfica, que afetava todo o corpo. Como era de se esperar, o uso generalizado das sangrias resultou em desastres histricos. Conta-se a histria de um paciente famoso que adoeceu com dor de garganta e muita febre. Um mdico foi chamado para atend-lo e aplicou-lhe uma sangria. Horas depois, como o paciente no melhorasse, outros mdicos foram chamados, e novas sangrias foram feitas. Nenhuma melhora resultou e uma terceira equipe mdica foi convocada, que executou novas sangrias, nas quais o paciente veio a falecer. O nome do paciente era George Washington, ento presidente dos Estados Unidos . A aceitao das sangrias como um mtodo universal de cura representou um desastre para a Medicina. Houve um movimento de retorno Medicina hipocrtica, contemplativa. Apesar destes primeiros contratempos teraputicos, as idias da revoluo cientfica estavam irremediavelmente plantadas dentro da Medicina e a Fisiologia prosseguiu com suas observaes. 2.6 Edward Jenner: a vacina contra a varola O segundo fator favorecedor da emergncia da Teoria dos Germes foi a vacinao anti-varilica introduzida por Edward Jenner (1749-1823) na Inglaterra ao final do sculo XVIII. Jenner no era simplesmente um mdico de provncia, como alguns o retratam. Ele era discpulo e intimamente ligado a um outro mdico, muito famoso na histria da cirurgia: John Hunter. Hunter era um verdadeiro praticante da Medicina experimental, completamente imbuido do esprito cientfico, convencido de que alm de clnico, o mdico deve ser um experimentador. Conta-se que ele dizia a Jenner, a ttulo de conselho: "Porque pensar? Porque no experimentar?". Movido por solicitaes de Hunter, Jenner era, alm de mdico, um naturalista: identificou uma srie de plantas, fazia experincias tais como determinar a temperatura corporal do ourio-caixeiro durante a hibernao e tarefas de igual teor. No por acaso, portanto, que foi Jenner quem observou sistematicamente um fato que j era do domnio pblico em sua regio rural. A varola, nesta poca, era uma ameaa muito grave populao, responsvel por uma em cada sete mortes de crianas inglesas. E mesmo as pessoas que sobreviviam varola ficavam desfiguradas. Os prprios herdeiros do trono britnico morreram, quando crianas, vitimados pela varola. Era, enfim, uma preocupao sanitria de grandes propores. Antes do trabalho de Jenner, praticava-se, como preveno da varola, a variolao, trazida por Lady Montagu de Constantinopla, que consistia na inoculao deliberada de pessoas sadias com o pus de casos brandos de varola. A variolao era praticada por velhas que visitavam as casas em datas combinadas, durante reunies festivas, trazendo uma pequena quantidade de pus de varola em uma casca de noz. Os pacientes, geralmente crianas, eram puncionados com uma grossa e slida agulha molhada em pus, em uma veia do antebrao. A varola, geralmente branda (com cerca de 20 pstulas pelo corpo) surgia em uma ou duas semanas. O procedimento, no entanto, no estava livre de riscos, pois ocasionalmente induzia casos graves ou fatais de varola, sendo, portanto, muito temido . Conta Jenner, em seu trabalho , que uma doena dos cascos de cavalos, conhecida como The Grease, foi passada para vacas leiteiras pelas mos de um ajudante de cavalaria de hbitos pouco higinicos. Nas vacas, a doena se manifestava por pstulas no bere e, durante a ordenha, estas pstulas contaminaram moas da aldeia, causando-lhes pstulas nas mos e nos braos. Era do conhecimento popular que esta forma atpica de varola (cowpox) evitava que as moas adoecessem subseqentemente com a varola (smallpox). Jenner comeou a investigar sistematicamente a base dessas crenas e descobriu um sitiante que havia, deliberadamente, infectado toda a famlia com a cowpox, tornando-a imune varola. Aps vrios anos de observaes, Jenner decidiu executar experincias. Conseguiu o pus da cowpox e inoculou, por via cutnea, uma criana de 8 anos de idades, induzindo nela uma nica pstula bem formada. Seis meses depois, Jenner inoculou a mesma criana com o pus de uma caso grave de varola - um experimento inconcebvel aos nossos olhos. A criana no adoeceu e Jenner repetiu o procedimento em numerosos pacientes, at submeter os seus resultados Royal Society. Por incrvel que parea, o trabalho no teve muita repercusso na Inglaterra. Mas repercutiu fortemente na Europa e se difundiu rapidamente pelo mundo. Os soldados de Napoleo foram vacinados com esse mtodo. Em levas de imigrantes europeus que se dirigiam para a Amrica, crianas eram vacinadas em srie, para transportar o pus em forma infectante de um continente a outro. O mtodo introduzido por Jenner conseguiu, pela primeira vez, erradicar uma doena importante. importante notar que tal mtodo no deriva de nenhuma viso global de universo ou mesmo do corpo. Na

verdade, ele implantado muito antes de se saber o que eram as doenas, o que era a varola e muito antes do aparecimento da Imunologia. O sucesso da vacinao, generalizado como um mtodo seguro e eficaz de proteo, ser importantssimo depois para Pasteur na criao de uma teoria geral sobre a imunidade e sobre as vacinas. 2.7 O nascimento da clnica Nos termos de Foucault, o nascimento da clnica foi uma modificao radical da prtica mdica. A Medicina at ento usava uma classificao das doenas que era totalmente sintomtica. Estas se dividiam entre febres, apoplexias ou denominaes igualmente vagas. Como as classificaes se baseavam em descries criteriosas do curso da doena, um diagnstico completamente preciso implicava em um desenrolar completo da doena, ou seja, na morte do paciente. Nos sculos XVIII e XIX, surgem mtodos mais adequados de exame fsico dos pacientes, como o estetoscpio, procedimentos mais sistemticos de coleta de histrias clnicas (anamnese), formas mais adequadas de se chegar aos sintomas das pessoas e de decidir quais os sinais associados a esses sintomas dentro do corpo. Paralelamente a isto, a anatomia patolgica evolua, permitindo que se fizesse uma superposio de dados da autpsia aos sinais e sintomas colhidos anteriormente na clnica. Antes disso, a Medicina se confrontava com um corpo doente a ser decifrado. As doenas no existiam enquanto entidades distintas. A partir deste momento, "os sinais" e "os sintomas" passam a ser correlacionados com diferentes doenas. Pode-se, por exemplo, correlacionar uma queixa de cansao de um paciente com uma taquicardia e depois, com os dados da autpsia, constatar a presena de um corao aumentado de volume. possvel da concluir que existem "doenas" definidas, localizadas em rgos. A doena comea a ter uma sede, um local. A classificao das doenas no se faz mais atravs de sua histria, apenas, mas atravs de sua localizao anatmica. O corpo doente, at ento tratado no Hospital Geral, d lugar s doenas especficas tratadas no Hospital das Clnicas. Data desta poca, portanto, duas cises importantes na forma em que o corpo estudado pela Medicina: a diviso do corpo (sadio) em rgos e sistemas e a fragmentao da doena em entidades clnicas especficas. Pasteur, anos depois, ir derivar da a concluso de que, se existem "doenas" especficas, provavelmente as"causas" destas doenas tambm soespecficas.

2.8 Relaes entre a Qumica e a Imunologia O quarto fator favorecedor do aparecimento da Teoria dos Germes no final do sculo XIX, particularmente importante para o surgimento da Imunologia, foi a criao da indstria qumica alem, por volta de 1870. A Qumica passou por uma revoluo similar sofrida pela Fsica e pela Medicina. Diferentemente do que se possa imaginar, a Qumica no uma continuao da Alquimia. A Alquimia se desenvolveu de preocupaes completamente diferentes, objetivos msticos pouco relacionados com o entendimento da natureza da matria. Ela tambm no uma sofisticao da farmacologia primitiva, como a utilizada na preparao dos "compostos galnicos" que eram utilizados para mitigar a dor. Mesmo na produo dos "compostos galnicos", no havia uma preocupao em identificar com preciso seus componentes, quais eram as substncias ativas, etc. A nica preocupao era a eficcia teraputica, determinada empiricamente. A Qumica moderna nasce da moderna idia de cincia: j que possvel entender o mundo atravs da Fsica, deve ser possvel entender tambm a matria e suas propriedades, purificar as substncias at seu estado ltimo de pureza e entender suas regras de associao a outras substncias. 2.8.1 Lavoisier: respirao e combusto Uma das pessoas mais importantes nesta transformao foi Lavoisier (1743-1794), que introduziu na Qumica os mtodos quantitativos de medida e foi o primeiro elaborador da teoria da combusto. Nesta poca j se identificavam diversos gases e Lavoisier props uma teoria sobre o aparecimento do calor e da energia: a teoria da combusto. Ele props que a gerao do calor dependia da combusto, que era a combinao de um material a ser queimado com o ar. Este era um conceito muito importante sobre as transformaes qumicas da matria, exaltado no dito "na natureza nada se cria, nada

se perde: tudo se transforma." A combusto era um exemplo dessas transformaes para Lavoisier, onde a matria podia se tornar energia e vice-versa. Lavoisier se empenhou em demonstrar que a combusto um princpio geral aplicvel no s s coisas inanimadas, como tambm aos seres vivos. A respirao, segundo ele, nada mais era que uma combusto controlada. Para tal demonstrao, ele colocou dentro de frascos fechados um candelabro e um camundongo. No primeiro frasco, a chama das velas consumiu todo o ar existente no frasco e elas se apagaram. No frasco com o camundongo, similarmente, o animal consome todo o ar que l existe e morre. Lavoisier via nos dois frascos exemplos do mesmo processo de combusto: ambos consomem oxignio, produzem gs carbnico e calor. Esta experincia, aparentemente ingnua, foi muito importante porque, junto com a idia dos fisiologistas de que possvel entender o corpo de acordo com as leis da Mecnica, tambm possvel entender o corpo atravs das leis da Qumica. O corpo poderia ser visto como um aglomerado de fenmenos mecnicos e qumicos cujo esclarecimento nos permitiria saber o que o corpo e como ele funciona. Quase na mesma poca, estudos sobre a digesto, indicando que um suco secretado pelo estmago transforma quimicamente os alimentos, reforam esta idia. Pouco depois, a sntese da uria inaugura a qumica orgnica. Pela primeira vez surge a possibilidade de criar no laboratrio compostos que, aparentemente, s eram fabricados pelos seres vivos. 2.9 O trabalho de Louis Pasteur No final do sec. XIX, os trabalhos de Pasteur inauguraram a idia de que as doenas so causadas por microorganismos e que elas podem ser evitadas por vacinas ou soros especficos. O prprio Pasteur deu a estes achados e idias o corpo e o ttulo de uma Teoria - a Teoria dos Germes. Por estranho que parea, o criador e os grandes consolidadores da nova Teoria mdica no eram bilogos, nem mdicos; no eram pessoas que estavam lidando nem com seres humanos, nem com plantas e animais. Eram qumicos. Pasteur era um qumico e seus primeiros trabalhos eram exatamente com a qumica, isolando ismeros ticos. Em um trabalho de 1857, isolando cristais de tartarato e paratartarato, que desviam o plano da luz polarizada, respectivamente, para a direita e para a esquerda, ele percebe que quando uma soluo contendo os dois compostos fermentada por um dado fungo, apenas um dos compostos consumido, deixando o outro em soluo pura. Pasteur havia criado, com essa experincia, uma forma de isolamento qumico de um composto atravs da bacteriologia. Por outro lado, ele havia conseguido enriquecer a cultura do microorganismo, criando, portanto, um meio seletivo de crescimento para um dado microorganismo. A partir da, ele se interessa pela fermentao e pelas tcnicas de isolamento de micrbios, pelo estudo das bactrias e pelas doenas que elas so capazes de produzir. A trajetria de Pasteur confirma duas idias que sero incorporadas sua teoria: a primeira, que possvel entender o processos biolgicos sem falar da biologia do corpo, que no existe nenhuma especificidade biolgica no corpo; o corpo tambm fsico, qumico. A segunda, que a Medicina deve se ocupar essencialmente das doenas, que so entidades "concretas" e no com o corpo, uma entidade "abstrata". Pasteur realiza a maior parte de seus trabalhos dentro da Bacteriologia, que ele ajuda a criar e, no final do sculo XIX, estudando a clera aviria, descobre o princpio da atenuao microbiana, que torna possvel a preparao de vacinas. Conta-se que uma cultura envelhecida de bactrias, deixada sobre a bancada durante um perodo de frias, foi usada para inocular galinhas e no foi capaz de induzir a clera aviria. No entanto, as mesmas aves inoculadas subseqentemente com uma cultura virulenta sobreviveram infeco, mostrando que a primeira inoculao as havia protegido. O princpio descoberto por Jenner, com a varola, h um sculo atrs, poderia ser reproduzido no laboratrio com outras doenas. Anos depois, Pasteur explorava essa possibilidade na preveno da hidrofobia, injetando em um menino mordido por um co raivoso um extrato de medulas de coelhos infectados secas ao sol. Este sucesso teraputico lhe trouxe o reconhecimento pblico, a criao do Instituto Pasteur em Paris e a aceitao de suas idias universalmente. Apesar de combatido por eles, Pasteur concretizou a esperana dos Fisiologistas em fundar a primeira teoria mdica extrada de dados experimentais . A Teoria dos Germes nada mais que a extenso destas observaes para uma generalizao que orientaria a prtica mdica a partir de ento. A idia central seria a de que as doenas so no apenas entidades patolgicas especficas mas tambm tm causas especficas. A Imunologia seria a cincia do combate especfico a estas causas. Em 1878, ele publicou seu principal trabalho, a "Teoria dos Germes e suas Repercusses em Medicina e Cirurgia". Como conseqncia direta destas idias, Lister, na Inglaterra, e vrios outros cirurgies na Europa comeam a usar mtodos

de assepssia (a pulverizao de cido fnico) para a realizao de intervenes cirrgicas. Tais prticas tambm tiveram um efeito sensacional: as infeces e mortes ps-cirrgicas e ps-parto praticamente desapareceriam simplesmente pelas precaues dos cirurgies de lavar as mos e desinfectar os ambientes. 2.10 O desenvolvimento da sorologia Como vimos, a Teoria dos Germes oposta s demais teorias mdicas que a antecederam em dois aspectos fundamentais. As teorias anteriores se apoiavam em uma cosmologia, da qual derivavam uma viso de corpo. A Teoria dos Germes no possui nenhuma viso do corpo: surge de fragmentos empricos (Jenner) e de experincias laboratoriais (Pasteur) montados em um arcabouo terico. Por outro lado, a Teoria dos Germes se apoia em uma eficcia que as demais teorias no possuam e ser a teoria que sobreviver at nossos dias. Por incrvel que parea, ns ainda pensamos como Pasteur. verdade que, aos poucos, reconheceu-se que nem todas as doenas so causadas por germes. Mas a idia da especificidade etiolgica ficou: se a causa no bacteriana nem virtica, pode ser um gene defeituoso, a falta de um hormnio, um anticorpo em excesso. Baseados nos experimentos de Pasteur, von Behring e Kitasato encontram no soro de animais imunizados contra a difteria e o ttano substncias neutralizantes especficas que eles denominam anticorpos . As pesquisas imunolgicas, muito naturalmente, se voltaram todas para a caracterizao bioqumica dessas substncias neutralizantes que pareciam ser a chave da proteo contra as doenas. Von Behring e Kitasato mostraram que a proteo contra a difteria e o ttano poderia ser transferida passivamente de um animal imune para um normal pela transferncia do soro contendo os anticorpos. Estava criada a soroterapia que comeou a salvar da morte crianas com difteria. A nfase no estudo dos anticorpos e o desenvolvimento de tcnicas capazes de induzir a formao de quantidades elevadas de anticorpos em animais de laboratrio desenvolveu a estratgia imunolgica no sentido da inveno de mtodos de medida dos anticorpos no soro. Surgiram tcnicas de precipitao e de aglutinao. Quase na mesma poca, descobriu-se a ao ltica (desintegradora) do complemento. Em 1894, Pfeifer descobriu que vibries colricos injetados no peritneo de cobaias so desintegrados (bacterilise). Bordet, em 1895, mostrou que esta ao dependia de fatores tambm presentes no soro de animais normais que, de alguma forma, "complementam" a ao dos anticorpos especficos presentes no soro de animais imunizados. Gruber e Durham, em 1896, chamam a ateno para o fato de que, antes de se desintegrarem, as bactrias so aglutinadas pelos anticorpos, formando grumos facilmente visveis. No mesmo ano, Widal tem a idia de utilizar esta manifestao visvel da atividade imunolgica (a aglutinao) para fazer o diagnstico da febre tifide. Estava criado, tambm nesta poca, o sorodiagnstico especfico.

2.11 O trabalho de Paul Ehrlich Talvez a figura mais impressionante desta poca da fundao da Imunologia, tenha sido Paul Ehrlich. Qumico por formao, Ehrlich comeou a trabalhar na poca em que se implantou a indstria qumica alem, foi o responsvel pelo isolamento da morfina e pela sntese dos primeiros corantes. Um dos primos de Ehrlich era presidente de uma destas indstrias qumicas. No incio de sua carreira, Ehrlich trabalhou com os corantes recm-inventados para desenvolver mtodos de colorao de clulas sanguneas. Devemos a ele as denominaes: eosinfilo, basfilo e neutrfilo, dados s variedades de leuccitos polimorfonucleares do sangue. A questo que orientava Ehrlich na poca era saber qual o mecanismo que torna um dado corante especfico para um determinado tipo celular e no outro. Sua hiptese se baseava na existncia de receptores para os corantes nas clulas. A partir do trabalho com os corantes e sua especificidade de ao, Ehrlich interessou-se pela especificidade dos fenmenos imunolgicos. Trabalhou algum tempo com a padronizao da toxina diftrica, que muito instvel e criou o mtodo que usado at hoje, utilizando uma antitoxina padro ao invs de uma toxina padro. Para contornar a instabilidade da toxina diftrica, ele trabalhou com toxinas vegetais que so muito estveis, como a ricina e a abrina. Com esta extenso de seu trabalho, ele demonstrou que os fenmenos imunolgicos no se restringem a reaes anti-microbianas. Utilizando camundongos imunes ricina, ele esclareceu os mecanismos de imunizao ativa e passiva e demonstrou a transmisso de anticorpos da me para os filhos pelo leite. Posteriormente, baseado em sua teoria sobre os receptores especficos, Ehrlich inventou a terapia mais eficaz j conhecida, a quimioterapia.

A idia de Ehrlich era: como aliar a especificidade dos corantes (tambm encontrada nos anticorpos) a uma ao txica de maneira que seja possvel fabricar uma substncia capaz de se combinar especificamente a um dado micrbio e destru-lo, sem danificar nenhuma outra estrutura no corpo. Esta substncia seria, nas palavras de Ehrlich, uma "bala mgica" . No por acaso que o primeiro quimioterpico inventado por Ehrlich um corante: o vermelho Trypan, que mata o Trypanosoma da doena do sono. O Prontosyl vermelho, o Salvarsan, o Neo-Salvarsan, os primeiros medicamentos ensaiados contra o treponema da sfilis eram todos derivados de corantes. 2.12 Marcas de nascena A Imunologia nasceu imbricada nesse complexo processo de transformao da Cincia e da Medicina. interessante notar que as grandes criaes da Imunologia, seus grandes sucessos teraputicos, so, na sua maioria, desse perodo fundador: a vacinao, a soroterapia, o sorodiagnstico e, por fim, a quimioterapia surgiram na Imunologia muitas dcadas antes de se cogitar, por exemplo, em que clulas eram produzidos os anticorpos. A descoberta dos linfcitos como produtores de anticorpos s ocorrer em 1950-60. Desta maneira, tanto os sucessos mais bombsticos da Imunologia, assim como seu arcabouo terico se estabeleceram muito antes de existir qualquer idia sobre o sistema imune ou das clulas que o constituem. No s seus sucessos experimentais, mas tambm os princpios centrais que formam o arcabouo terico da Imunologia atual so deste perodo: a idia de um sistema de defesa do corpo contra infeces, dos anticorpos enquanto armas especficas produzidas no encontro com microorganismos e outros "corpos estranhos" (o horror autotoxicus de Paul Ehrlich), a noo da capacidade imunolgica em guardar uma memria desses encontros (o mecanismo de ao das vacinas). So estas as certezas que,ainda hoje, utilizamos na montagem de experincias imunolgicas e encadeamos em um programa didtico de ensino. Se, por um lado espantoso o pouco esforo de pesquisa direcionado no entendimento do sistema imune enquanto um sistema biolgico, sua relao com outros sistemas ou fenmenos do corpo (como o sistema nervoso, a digesto, etc); por outro lado, conpreensvel o comprometimento da Imunologia com sua tradio. Seus dois objetivos primordiais derivam desta tradio: em primeiro lugar, entender a operao do sistema imune pela montagem dos componentes bioqumicos e genticos envolvidos nesta operao. O nvel de detalhamento hoje disponvel com relao aos receptores, citocinas, genes de imunoglobulinas aliado iganorncia quase completa sobre os aspectos sistmicos da atividade imunolgica uma prova desta convico. Em segundo, desenvolver novas vacinas e novos mtodos especficos de terapia e diagnstico. Como veremos, esta tem sido uma tarefa muito complexa e nem sempre bem sucedida.

1 3. Certezas: origens recentes_____________________________ 3.1 A Imunologia moderna nasceu em 1960 Vimos que a Imunologia surgiu como uma revoluo na arte de prevenir e curar doenas, validando e validada por uma nova viso da Medicina e da natureza das doenas. Depois de um intenso florescimento no incio do sculo, as descobertas imunolgicas importantes, tanto do ponto de vista aplicado, como do ponto de vista bsico, se interromperam. Um novo perodo de crescimento surgiu por volta de 1960 e se mantm at o presente, a julgar pelo nmero de prmios Nobel concedidos a imunologistas, indicados pelas setas na Figura 3.1 .

1902 1905 1908 1913 1920 1930

-

von Behring Koch Ehrlich & Metchnikoff Richet & Portier Bordet Landsteiner 1920 1940

1965 1977 1980 1984 1987 1990

-

Burnet & Medawar Yallow Snell, Dausset & Benacerraf Jerne, Kohler & Milstein Tonegawa Murray & Thomas 1980 2000

1900

1960

Figura 3.1: Prmios Nobel concedidos a imunologistas desde o perodo de sua fundao, Houve um ressurgimento do interesse em Imunologia nos ltimos 25 anos. Em uma dzia de imunologistas laureados com o prmio de 1960 para c, cinco foram premiados pelo desenvolvimento de mtodos importantes: Yallow, radio-imunensaio; Kohler e Milstein, anticorpos monoclonais; Murray e Thomas, tcnicas de imuno-supresso para transplantes. Dos restantes, trs foram responsveis por progressos bsicos na compreenso do MHC e sua importncia na transplantao de tecidos (Snell e Dausset) e na reatividade imunolgica (Benacerraf). Outros trs foram criadores de conceitos tericos fundamentais: Burnet e Medawar (seleo clonal, tolerncia, doenas autoimunes) e Jerne (Teorias seletivas, degenerao da especificidade, a rede idiotpica) e, finalmente, Tonegawa elucidou os processos de rearranjo gnico que criam as regies variveis de imunoglobulinas e receptores de linfcitos T (ou TCRs). O aumento exponencial do nmero de pginas do Journal of Immunology desde1960 (Figura 3.2 ), foi devido a progressos bioqumicos e, mais recentemente, biologia celular e gentica molecular. Ampliou-se muito o conhecimento sobre componentes e subcomponentes do sistema imune e sobre maneiras de abordar a atividade imunolgica especfica. Considerando todo este novo conhecimento, seria razovel esperar-se o desenvolvimento de novos mtodos de preveno e tratamento de doenas, novas vacinas e novas formas de interveno imunolgica. Na realidade, h alguns exemplos notveis de coisas assim, como a recente tentativa de tratar uma imunodeficincia congnita humana por engenharia gentica ou o desenvolvimento da vacina para a hepatite-B, que tambm dependeu de mtodos sofisticados de biologia molecular. Mas o grande progresso esperado no ocorreu. Como ilustrado na Figura 3.2 , no h relao alguma entre o progresso do conhecimento imunolgico, avaliado pelo volume de publicaes, e a introduo de novas vacinas. O avano no conhecimento bioqumico e sobre a biologia celular de linfcitos necessrio e desejvel. Mas h um descompasso entre a abundncia de dados sobre os componentes do sistema imune e a escassez de idias que esclaream a sua operao global. H um descompasso entre a grande sofisticao metodolgica e as idias elementares, quase todas metafricas, que orientam a pesquisa em Imunologia. A Imunologia tem duas tendncias herdadas de seu perodo fundador: uma (bio)qumica, hoje representada pela gentica molecular e pela biologia celular de linfcitos; outra, tecnolgica, dependente da primeira, empenhada na inveno de novas vacinas e representada principalmente pela Imunoparasitologia. Desapareceram da Imunologia as teorias de cunho biolgico, como as idias de Metchnikoff, o nico bilogo envolvido em seu perodo fundador.

210 8 6 4 2 0 1920 1940 1960 3144 1320 1980 2000 8879

6026

anos de introduo de novas vacinas

Figura 3.2: Nmero de pginas Association Immunologists, a mais of fundao. A Imunologia contempornea publicao das Teorias seletivas de Jerne entre o volume de publicaes e o setas abaixo da Figura.

do Journal of Immunology, rgo da American antiga associao de imunologistas desde sua nasceu por volta de 1960, pouco aps a (1955) e Burnet (1957). No h relao nmero de vacinas inventadas, indicadas pelas

3.2 As idias de Metchnikoff Metchnikoff passou para a Histria como o defensor de uma "teoria celular" da imunidade, na qual a inflamao e a fagocitose so elementos centrais. Sua proposta, no entanto, era muito mais ampla. Ele defendia uma ligao da atividade imunolgica com atividades biolgicas bsicas, como a nutrio e procurava elucidar sua origem filogentica. Nos seus primeiros anos de pesquisa, Metchnikoff, preocupado com uma possvel ligao filogentica entre todas as espcies animais, sugeriu que todas elas possuam uma maquinaria digestiva comum onde poderiam ser encontradas as marcas da evoluo. Nos animais sem cavidade central (celoma), organizados como uma massa celular parenquimatosa, como as medusas, a digesto se resumia ao de clulas fagocitrias amebides derivadas do mesoderma. J nos animais que possuam um tubo digestivo, a digesto ocorria por meio de um processo mais especializado no interior desta cavidade abdominal. No entanto, nestes animais, ainda existiam as clulas fagocitrias, sendo capazes de endocitar partculas slidas e diger-las. Estas clulas, no mais necessrias digesto de nutrientes, poderiam se dedicar tarefa de englobar e destruir os microorganismos que penetram o corpo. Acreditava Metchnikoff ser este mecanismo biolgico, a fagocitose, a base para a explicao do fenmeno da imunidade, ou seja, da capacidade adquirida pelos organismos vivos de, sob certas circunstncias, destruir os microorganismos que o invadissem. Haveria, ento, um elo filogentico entre a fagocitose e a nutrio. As clulas fagocitrias tm origem, juntamente com as demais clulas do sangue, no mesoderma. As clulas mesodrmicas so usualmente vistas como habitantes da profundeza do corpo, separadas do ambiente pelo ectoderma (que d origem pele e ao sistema nervoso) e das cavidades internas do corpo pelo endoderma (que d origem ao tubo digestivo). Metchnikoff, no entanto, salientava que o mesoderma se origina do endoderma, criando, assim, um elo ontogentico (embriolgico) entre as clulas fagocitrias e o intestino. Em 1883, ano da descoberta da fagocitose, era publicado o estudo de Metchnikoff sobre a metamorfose dos Equinodermas e Batrquios, "Investigaes sobre a Digesto Intracelular", demonstrando o papel de fagcitos, por exemplo, na destruio da cauda dos girinos. Ele tentou estabelecer a fagocitose como um mecanismo geral para a explicao de fenmenos biolgicos relevantes como a metamorfose em certos animais, a degenerao senil dos tecidos e a imunidade. Era o incio da famosa Teoria da Inflamao e da Imunidade Celular em oposio qual a Escola Alem (de Buchner, von Behring, Ehrlich e Koch) iria construir uma Teoria Humoral da imunidade propondo serem as antitoxinas presentes no soro as responsveis pela imunidade, no os fagcitos. O debate entre a Teoria da Imunidade Celular e a Teoria da Imunidade Humoral passou para a histria como uma querela entre pesquisadores na qual o futuro acabou por dar razo a ambas. A prova

3desta conciliao foi o Prmio Nobel concedido simultaneamente a Metchnikoff e Ehrlich em 1908. Mas as comemoraes oficiais, s vezes, encobrem grandes esquecimentos. A verdade que a tentativa de Metchnikoff de ligar o fenmeno da imunidade a outros fenmenos biolgicos foi abandonada pelas pesquisas que o sucederam e os trabalhos relacionando a digesto e as mucosas a uma interpretao bsica dos eventos imunolgicos praticamente desapareceram. Os trabalhos que, apesar disto, apareceram, foram tratados com indiferena e silncio. Um exemplo marcante desta indiferena foi o que aconteceu com o fenmeno hoje conhecido como "tolerncia oral".

3.3 A negligncia sobre a tolerncia oral Em 1829, Dakin j descrevia que ndios norte-americanos tinham por hbito darem de beber s crianas uma infuso da planta poison ivy, do gnero Rhus, para evitar uma dermatite alrgica por contatos futuros com esta planta sensibilisante. Este relato precedeu os trabalhos de Pasteur e a prpria emergncia da Imunologia por cerca de 50 anos. Era um relato ligando a nutrio e as mucosas a fenmenos mais tarde reconhecidos como imunolgicos. Em 1909, em plena era do desenvolvimento da Imunologia, Besredka publicou um estudo sobre a anafilaxia mostrando que a reao anafiltica a protenas do leite no ocorria em animais previamente alimentados com estas protenas. Em 1911, Wells e colaboradores mostraram o mesmo fenmeno ocorrendo com protenas vegetais e do ovo.anticorpos especficos

no-tolerante

no tolerante

gua dias

antgeno dias tolerante tolerante

antgeno

antgeno

Figura 3.3: A "tolerncia oral". Animais jovens ou que ingerem uma adultos dada protena podem desenvolver refratariedade formao de anticorpos e de uma linfcitos T especficos se subseqentemente imunizados com a mesma protena por via parenteral (por ex., intraperitoneal com adjuvantes). A tolerncia pode ser transferida adotivamente para animais normais pela transferncia de linfcitos T. Tambm trabalhando com a alergia, Chase confirmaria Dakin, em 1946, ao observar que a administrao oral de dinitroclorobenzeno ou cloreto de picrila,duas substncias altamente sensibilisantes, a cobaias evitava a dermatite de contato que tais compostos causavam quando subseqentemente pintados na pele dos animais. Pode-se imaginar que estes trabalhos foram publicaes esparsas, carentes de uma sistematizao, o que explicaria sua passagem efmera pela Imunologia e porque eles no ocupam uma posio de destaque nos livros-texto. Mas, no. Besredka, professor do Instituto Pasteur e discpulo de Metchnikoff, publicou, em 1927, uma extensa monografia sobre o assunto, onde tentou reunir as evidncias experimentais que o precederam e estabelecer a noo de uma imunidade local presente no intestino e da possibilidade de imunizao atravs da via oral. Em 1957, Sabin inventou a vacina oral contra a poliomielite, mas isto tambm no levou a um aumento do interesse sobre as reaes imunolgicas iniciadas no tubo digestivo. Foi somente em 1959, quando Heremans descobriu nveis elevados de IgA no leite e em outras secrees, que se iniciaram investigaes mais freqentes sobre o papel das mucosas nos eventos imunolgicos.

4O estudo das mucosas dentro da Imunologia comea, portanto, na dcada de 60. Mas se inicia como um tpico completamente segregado do estudo do sistema imune "principal", representado pelos rgos linfides como o bao, os linfonodos e pela medula ssea. Os anticorpos presentes no plasma receberam praticamente a totalidade da ateno. Prova disto o fato do estudo das mucosas, ainda hoje, ocupar uma parte marginal dos livros de Imunologia e, principalmente, o fato de ter sido criado para este tipo de imunidade um sistema imune parte, o chamado sistema imune secretor . Uma pergunta nos parece, ao mesmo tempo, bvia e fundamental: porque eventos biolgicos to cotidianos como a alimentao foram, e so ainda, considerados com tanta relutncia na Imunologia? Porque as relaes evidentes apontadas por Metchnikoff foram esquecidas? Porque repetidamente descoberta, a tolerncia oral foi negligenciada a ponto de ocupar uma posio subalterna ou mesmo omitida em livros-texto de Imunologia? Porque foi necessria a criao de um sistema imune separado (o sistema imune secretor ) para estudar a imunologia das mucosas? Em nossa opinio, a resposta para estas perguntas nos remete histria da Imunologia. 3.4. Uma ndole mais qumica que biolgica Como vimos, a Imunologia surgiu como parte do projeto de criao de uma Medicina cientfica, um projeto que substitua um discurso sobre o corpo (sobre o doente ) por uma teoria sobre as doenas - a Teoria dos Germes, de Pasteur, mais tarde expandida como a Teoria das Causas Especficas das Doenas . Filha deste processo, a Imunologia surge como responsvel pela imagem pblica desta medicina e a pesquisa imunolgica, a partir da, ser profundamente marcada por esta origem. Por um lado, a Imunologia se desenvolveu no sentido da descoberta de novas vacinas e novos sucessos teraputicos que continuassem validando a nova Teoria mdica, ainda que estas descobertas permanecessem to empricas e destitudas de uma base terica quanto a primeira vacina inventada por Jenner contra a varola no sec. XVIII. Por outro lado, a pesquisa Imunolgica se encaminhou tambm no sentido (bio)qumico, molecular. A grande maioria das investigaes ps-Pasteur representa uma tentativa de responder pergunta crucial: "Qual o princpio qumico do soro era responsvel pelo fenmeno da imunidade?" A caracterizao minuciosa dos anticorpos e o uso de antisoros especficos para o diagnstico de algumas doenas precedeu em dcadas as indagaes sobre os mecanismos celulares de formao dos anticorpos. S em 1930, foi sugerido que seriam os linfcitos as clulas responsveis pela produo das "antitoxinas" e somente nas dcadas de 60-70, os plasmcitos foram caracterizados como as clulas que produzem os anticorpos encontrados no plasma, na linfa e nas secrees. Essa face bioqumica nada mais era que um aspecto complementar de uma necessidade tecnolgica, perfeitamente compreensvel, de criar meios especficos de preveno e tratamento das doenas que a Teoria dos Germes acreditava enfim compreender. As preocupaes bioqumicas s no apagaram definitivamente o interesse nos aspectos fisiolgicos do fenmeno da imunidade porque descobertas muito curiosas foram feitas quase mesma poca, logo ao iniciar-se o sculo XX. Por exemplo, Landsteiner descobriu na circulao de pessoas normais anticorpos capazes de aglutinar as hemcias de outras pessoas e isto o conduziu caracterizao dos grupos sanguneos ABO e possibilitaram as primeiras transfuses de sangue. Isto, aparentemente, contradizia a idia de que os anticorpos so formados apenas contra micrbios invasores. Alguns anos antes, preocupado com a instabilidade da toxina diftrica, Erlich havia decidido usar toxinas vegetais (ricina, abrina), que so muito mais estveis, para entender os mecanismos da imunizao ativa e passiva. Nestas experincias, tornouse evidente que protenas vegetais tambm eram capazes de induzir a imunidade. Foram descobertos que os fenmenos alrgicos como o choque anafiltico e a sensibilidade anafiltica de ces a extratos de anmonas marinhas podia ser transferida a ces normais pela transfuso de anticorpos mostrando que tais fenmenos tinham uma base imunolgica. Estava claro, portanto, que a reatividade imunolgica era um fenmeno geral, mais amplo que a reatividade a microorganismos invasores. A resistncia a infeces parecia derivar de mecanismos gerais de reconhecimento de materiais estranhos. Foram estas descobertas, de carter bsico, que deram origem s primeiras Teorias realmente fecundas sobre a atividade imunolgica. A primeira, formulada por Ehrlich em 1900 (Teoria das cadeias laterais ), apontava a impossibilidade do organismo fazer respostas imunes contra seus prprios constituintes, uma caracterstica que ele denominou horror autotoxicus . Injetando hemcias de cabras em outras cabras ele descobriu que freqentemente apareciam anticorpos especficos, mas, em

5nenhuma ocasio, a injeo de cabras com suas prprias hemcias resultava no aparecimento de autoanticorpos. Quase na mesma poca, Landsteiner havia descoberto os grupos sanguneos humanos e os anticorpos naturais (isohemaglutininas) que os caracterizam. Isto reforou as idias de Ehrlich, pois pessoas normais possuem (naturalmente) na circulao anticorpos (isohemaglutininas) que reagem com hemcias de outros grupos sanguneos, mas no reagem com suas prprias hemcias. Estavam postos os elementos que preservariam interesses biolgicos dentro da Imunologia moderna, salvando-a de um destino puramente bioqumico e tecnolgico. Mas o interesse sobre a natureza qumica dos antgenos e anticorpos continuou intenso. Logo comprovou-se que o organismo se imuniza a pequenos radicais qumicos sintticos (haptenos) introduzidos artificialmente em protenas. O trabalho com os haptenos, principalmente os desenvolvidos por Landsteiner e seus colaboradores, demonstrou que os anticorpos eram capazes de discriminar entre radicais qumicos (haptenos) muito similares (Figura 3.4 ).

exemplo de radical utilizado como hapteno protena NO2 NO2 (TNP,trinitrofenil) NO2

protena + hapteno

anticorpos anti-protena anticorpos anti-hapteno

conjugado

Figura 3.4: O trabalho com haptenos demonstrou que anticorpos, quando utilizados como reagentes de laboratrio, so dotados de uma capacidade extremamente delicada de diferenciar entre substncias qumicas muito parecidas. Isto consolidou a crena na grande especificidade dos fenmenos imunolgicos. Isto cristalizou a idia de que cada organismo capaz de formar uma variedade praticamente ilimitada de anticorpos altamente especficos para pequenas regies de estrutura definida, presentes nos antgenos naturais (determinantes antignicos, ou epitopos). Parecia que o corpo, alm de reagir especificamente a uma variedade ilimitada de substncias estranhas, era tambm capaz de ignorar uma variedade imensa de auto-constituintes. A combinao destas duas propriedades, o horror autotoxicus e uma versatilidade extrema, formaram a coluna dorsal da Imunologia no incio do sculo. Esta problemtica sobrevive basicamente inalterada at o presente na viso da maioria dos imunologistas. Nos anos 50 e 60, criaram-se as idias que puseram msculos neste esqueleto conceitual. 3.5 A idia de seleo Em 1897, Paul Ehrlich props a Teoria das Cadeias Laterais sobre a formao dos anticorpos. Ehrlich popularizou a noo de receptores especficos , to importante na cincia moderna. Para ele, uma clula lidaria com a multiplicidade de "nutrientes" necessrios ao seu metabolismo atravs de "cadeias laterais" que se ligariam a estes nutrientes como receptores especficos. Na Teoria das Cadeias Laterais, Ehrlich props que a formao de anticorpos (antitoxinas) dependia de interaes das toxinas com estas cadeias laterais da superfcie celular. Em resposta ao contato repetido com uma toxina, as clulas elevariam a produo do tipo especfico de cadeias laterais capazes de ser ligar mesma e o excesso das mesmas seria liberado das clulas para o sangue passando a constituir os anticorpos especficos circulantes. Estas idias ficaram esquecidas por um longo perodo at que, em 1955, Niels Jerne, uma das figuras mais importantes da Imunologia contempornea, sugeriu que os anticorpos formados em resposta a um antgeno devem ser, de alguma forma, "selecionados" entre os anticorpos "naturalmente" presentes no organismo. Os anticorpos naturais , aqueles cuja presena no resulta de uma exposio prvia ao

6antgeno ao qual reagem, haviam sido caracterizados, por exemplo, no trabalho de Landsteiner com os grupos sanguneos humanos. Isto, de certa forma, fez reviver o conceito de Ehrlich de que todos os possveis antgenos, ao entrarem no organismo, j encontram anticorpos especficos pr-formados e "selecionariam" estes anticorpos ao reagirem com eles. Jerne props que o antgeno conduziria o anticorpo para clulas especializadas capazes de produzir muitas rplicas do anticorpo. Atento aos ento recentes desenvolvimentos da Bioqumica sobre a sntese de protenas, ele sugeriu que os anticorpos poderiam influenciar a sntese de um RNA especfico ou mesmo modificar a estrutura de um RNA pr-existente, que se tornaria um "molde" para a produo dos anticorpos especficos. Estas idias, porm, s adquiririam a forma que possuem hoje por volta de 1960, apoiadas nas idias de Burnet, que deu uma base celular mais aceitvel para as idias de Jerne. Tabela 3.1 Principais Teorias seletivas da Imunologia at o presente _______________________________________________ Teoria publicao autor _______________________________________________ Cadeias laterais 1897 Paul Ehrlich Seleo natural 1955 Niels Jerne Seleo clonal 1957 MacFarlane Burnet Rede idiotpica 1974 Niels Jerne ________________________________________________

3.6 A discriminao self-nonself Por volta de l950, em um livro sobre a produo dos anticorpos, Burnet havia grifado a noo do horror autotoxicus de Ehrlich, dizendo ser evidente que o sistema imune capaz de discriminar entre o que lhe prprio ("self") e o que lhe estranho ("nonself"). Esta capacidade de discriminar entre o eu e o resto no pode ser herdada, desde que a composio do organismo no est determinada at o momento da constituio do zigoto, pela fuso dos gametas. O sistema imune da criatura em formao no pode, por antecipao, desarmar a reatividade a si mesmo, pois no sabe o que "si mesmo" (o self) vir a ser, a que estruturas deve ignorar. A discriminao self-nonself, portanto, deve ser um fenmeno somtico, isto , deve acontecer de novo durante a vida de cada organismo. Burnet sugeriu que este processo, que ele considerava central no estabelecimento da reatividade imunolgica, deveria ocorrer durante a vida embrionria ou no perodo perinatal, desde que se tratava de um fenmeno essencial integridade do organismo (a defesa contra invasores externos) e mantida no decorrer de toda a vida da criatura. Anos antes, na Inglaterra, Owen havia mostrado que gmeos fraternos bovinos, cujo sangue se mistura durante a gestao, so, na realidade, quimeras , isto , quando adultos, possuem clulas sanguneas de ambos os indivduos. Com base neste achado, Burnet sugeriu que a introduo de clulas de um outro organismo no embrio, durante a fase em que o autoreconhecimento imunolgico se processasse, resultaria no reconhecimento destas clulas estranhas (nonself) como prprias (self). Na vida adulta, este organismo seria incapaz de reconhecer as clulas deste doador especfico como estranhas e aceitaria sem rejeitar transplantes de tecidos desse mesmo doador. As experincias de Burnet para comprovar sua hiptese falharam, mas Brent e Medawar, na Inglaterra, e Hasek, na Tchecoslovquia, fizeram experincias bem sucedidas com camundongos (Figura 3.5 ) e galinhas respectivamente. Na linguagem criada por Medawar, camundongos neonatos se tornam tolerantes a transplantes de pele de outra raa (transplantes alognicos) se so injetados, logo ao nascer, com uma mistura de clulas de bao, fgado e rim dos doadores. Sabemos hoje que apenas as clulas do bao, os linfcitos, precisariam ser injetadas. Medawar mostrou tambm que, em animais tolerantes adultos que mantm um transplante sem rejeit-lo, uma transfuso de linfcitos de animais que j rejeitaram um transplante igual ou mesmo de linfcitos de animais normais restaura a competncia imunolgica causando a rejeio do transplante em poucos dias. Paralelamente a estes estudos, tambm na Inglaterra, Gowans demonstrava, com uma srie de experincias onde ele drenava, por vrios dias, a linfa do conduto torcico de ratos, que os linfcitos recirculantes so clulas essenciais para a reatividade imunolgica. Animais tornados deficientes em linfcitos pela drenagem crnica de linfa (de linfcitos), tornavam-se imunologicamente incompetentes:

7formavam mal anticorpos e rejeitavam mal transplantes. A competncia imunolgica podia ser restaurada por uma reinfuso de linfcitos de doadores compatveis normais.

neonatos raa A

transplante de pele

rejeita

raa B suspenso celular bao raa B tolera

Figura 3.5: A experincia Brent-Medawar em seus aspectos essenciais. A transfuso clulas alognicas (de outra raa) para camundongos neonatos os torna de capazes de receber, quando adultos, transplantes de pele desta mesma raa, sem rejeio. Nesta mesma poca, os bioqumicos estavam decifrando os aspectos essenciais do mecanismo de sntese de protenas. J se reconhecia, pelo trabalho de Michael Heidelberger, que anticorpos so protenas e devem ser formados com base neste mesmo mecanismo. A especificidade de um dado anticorpo depende de sua forma molecular e esta, por sua vez, depende da seqncia particular de aminocidos presente nas cadeias polipeptdicas que compem a molcula do anticorpo. A seqncia de aminocidos, por sua vez, depende da seqncia de nucleotdeos presente no RNA-mensageiro correspondente, e, finalmente, da seqncia correspondente de nucleotdeos no DNA nuclear, isto , da natureza dos genes que codificam aquele anticorpo em particular. Enfim, os genes necessrios sntese de um dado anticorpo precisam existir no organismo antes da chegada do antgeno. O papel do antgeno deve se resumir a "selecionar", entre uma grande variedade de anticorpos j disponveis ao organismo, aqueles anticorpos que lhe so especficos e, de alguma forma, estimular sua formao em quantidades mais elevadas. O antgeno no "causa" a formao de anticorpos novos. Ele "destrava" a formao de maiores quantidades de anticorpos que j eram produzidos pelo organismo. Ehrlich, em 1897, afinal, estava certo. A idia de Burnet, hoje amplamente comprovada, foi a de que os linfcitos, ao contrrio das demais clulas do corpo, so geneticamente distintos uns dos outros, isto , constituem clones celulares. Cada clone linfocitrio expressaria na membrana celular um nico tipo de anticorpo. A seleo dos anticorpos adequados a cada antgeno seria, portanto, feita atravs da seleo dos clones de linfcitos reativos com aquele antgeno em particular (Figura 3.6 ). A Teoria de Seleo Clonal de Burnet estava ligada sua preocupao central na Imunologia: a discriminao self-nonself. A Teoria propunha, ao mesmo tempo, um mecanismo para a imunizao especfica (um aumento numrico dos linfcitos dos clones reativos) e um mecanismo para a tolerncia imunolgica aos auto-componentes. Esta tolerncia ocorreria atravs de uma diminuio, por destruio ou inibio permanente dos clones correspondentes denominados por Burnet de clones proibidos . Burnet postulou que doenas de agresso imunolgica aos tecidos pelos linfcitos e seus produtos, as doenas autoimunes , ocorreriam quando esta proibio fosse violada. Realmente, nos anos subseqentes, confirmou-se a participao de mecanismos imunolgicos na gnese de vrias doenas humanas e muitos modelos experimentais de auto-agresso imunolgica foram criados nos laboratrios. Burnet props uma origem somtica para a variabilidade gentica necessria para criar um grande nmero de clones linfocitrios. Esta idia no tinha pontos de apoio no conhecimento gentico da poca. Na realidade, este problema s foi resolvido no final da dcada de 80, principalmente pelos trabalhos de Tonegawa e seus colaboradores sobre rearranjos e juno de segmentos gnicos.

8morte antgeno

ativao

diviso expanso clonal

Figura 3.6: A Teoria de Seleo Clonal de Burnet, em seus aspectos essenciais. Clones de linfcitos gerados ao acaso reagiriam, em uma fase, com primeira autocomponentes e seriam eliminados. Os sobreviventes passariam a constituir clones o sistema imune e, caso encontrassem o antgeno correspondente, se expandiriam e produziriam anticorpos. Na dcada de 60, surgiram tambm os achados de Miller, assim como Burnet, um australiano, sobre o timo. Misterioso at o presente, o timo mostrava ento a sua importncia na gnese da reatividade imunolgica, desde que a sua remoo no perodo perinatal, e s ento, implicava em deficincias imunolgicas severas. A intensa linfopoiese observada no timo de animais jovens era, portanto, importante na gnese da competncia imunolgica. O timo revelava ainda um aspecto curioso: a grande maioria dos linfcitos produzidos em seu interior so destrudos sem sair do timo. Para Burnet, estes achados permitiram uma interpretao original, conveniente e apoiada at o presente. O timo seria o rgo gerador da competncia imunolgica a partir de precursores importados desde a medula ssea. No seu interior seriam gerados mutantes (somticos) em grande nmero (a gerao da diversidade necessria). Por serem gerados ao acaso, os mutantes incluiriam muitos clones auto-reativos ("proibidos") que, ao serem inativados (a explicao da destruio de linfcitos no interior do timo), tornariam o sistema imune do animal tolerante aos componentes do organismo (Figura 3.7 ). Caracterizou-se tambm nesta poca a existncia de dois tipos distintos de linfcitos: um tipo que, como sugeria Burnet, se originava do timo (linfcitos T ) e um segundo tipo denominado linfcitos B . Descobriu-se que, em aves, os linfcitos B se originam em um rgo linfide especial, associado cloaca, denominado bursa de Fabricius. A remoo cirrgica da bursa no perodo perinatal ou a inibio de seu desenvolvimento pela injeo de testosterona em ovos embrionados, resulta em aves incapazes de formar anticorpos. Isto levou, por algum tempo, suposio de que existiriam dois compartimentos distintos no sistema imune (um T e um B) cada um dispondo de um rgo central ( respectivamente, timo e bursa). Durante alguns anos, procurou-se, sem sucesso, um rgo linfide em mamferos que desempenhasse funes anlogas s desempenhadas pela bursa. A interpretao deste problema mais aceita atualmente bem distinta. A produo de linfcitos B em mamferos ocorre, na maioria das espcies estudadas, na prpria medula ssea (embora em outras, haja uma linfopoiese B intensa no intestino delgado). A existncia da bursa em aves poderia ser devida a outros fatores como, por exemplo, a necessidade de ter ossos leves, para permitir o voo e, portanto, ocos, vazios de medula ssea.

9no timo do neonato morte timo regridiria no adulto

gerao da diversidade clonal (por mutaes somticas) & eliminao dos clones auto-reativos adulto com linfcitos reativos apenas a materiais non-self

Figura 3.7: Segundo Burnet, a gerao da competncia imunolgica e da tolerncia aos auto-componentes ocorreria no interior do timo. Criadas nos anos 60, tais idias ainda formam a coluna dorsal do pensamento imunolgico mais tradicional. As experincias de Claman e c