guia da noite lx #14
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Nesta edição: Festival Silêncio, Street Art, A história dos Festivais de Verão, Arnaldo Antunes, Rui Murka, Crónica de José Luís Peixoto, etc.TRANSCRIPT
Guia da Noite Lx magazine 1
Holofotes
Arnaldo, poeta, msico, artista grfico, j fez cinema,
jornalismo, tem inmeros livros publicados diga-me
quem ?
Nunca me cobrei uma especializao. Talvez por uma
questo de temperamento, sempre transitei com muita
naturalidade entre diferentes linguagens. Mas sou antes
de tudo um artista da palavra, que algo que est presen-
te em tudo o que fao, nas canes, na poesia para ser lida
em livro ou noutros suportes, nos trabalhos visuais, em v-
deo como se a palavra fosse uma espcie de porto seguro
de onde me aventuro em direo a outras linguagens.
O seu Curriculum Vitae quite something. hiperativo?
No sei dizer, acho que sou muito curioso em relao s
linguagens, expresso acabo por fazer muitas coisas
diferentes e s vezes fico um pouco sobrecarregado de
compromissos, tanto por conta da minha prpria ansiedade
Arnaldo Antunes
Poucos dias antes da sua chegada a Lisboa para um espetculo no Festival Silncio, o Guia da Noite falou com o artista brasileiro, mais conhecido entre ns como voz e compositor dos Tits e dos Tribalistas.
Texto Myriam Zaluar
Fotografia Fernando Laszlo
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Holofotes
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criativa como tambm pelos convites e
requisies que me chegam e que acabam
por me seduzir.
Comeou muito cedo a escrever e a com-
por. Mais de 30 anos depois, no receia
que o filo se esgote?
No tenho muito esse medo. Natural-
mente, existem revezamentos de perodos
mais frteis e de outros de retrao criati-
va. Geralmente quando publico um livro,
lano um disco ou encerro algum trabalho
segue-se um perodo mais contemplativo,
de menos produtividade e mais absoro
para depois aos poucos ir voltando a fazer
poemas, canes. So fases, fluxos que se
vo equilibrando e que recebo com uma
certa serenidade, sem muita afobao, sem
essa questo do ai, vai esgotar-se
A coisa est l, s falta ser descoberta.
Parece ser habitado por uma imensa
alegria. No entanto, um artista tem
sempre uma dimenso trgica. Qual o
papel da dor no processo criativo?
Nunca associei o processo criativo a algo
doloroso ou sofrido. Existem, claro, expres-
ses, canes tristes e poemas que falam
do sofrimento, da tristeza, mas o fazer
artstico, para mim, sempre associado
a uma coisa solar, de alegria. Na verdade,
muitas vezes uma coisa curativa. Sempre
vi a criao como algo que, mesmo ao tra-
tar de algo triste, energizante, alimenta-
dora dos impulsos da vida. No tenho essa
perspetiva da dor de criar. Existe a criao
acerca da dor, sobre as dores do mundo,
mas o ato criativo sempre um alvio.
O rock tambm poesia?
Sim, acho que as duas coisas se intersec-
cionam, principalmente no meu trabalho.
Claro que a palavra na cano est muito
mais sujeita a outros afetos, diviso das
slabas na cadncia rtmica, s intonaes
meldicas, filtragem da voz que interpre-
ta. Tudo isso interfere muito mais na pala-
vra do que quando esta se encontra inscrita
num poema dentro de um livro. Claro que
no livro tambm existem aspectos grficos
principalmente na minha poesia que so
muito importantes. Mas as duas linguagens
a cano e a poesia trabalham com a pa-
lavra e, como algumas das minhas exign-
cias criativas pessoais so comuns s duas
atividades, elas cruzam-se. Muitas vezes,
poemas que fiz para serem publicados em
livro acabaram por ser musicados e foram
gravados por mim ou por outras pessoas.
Apesar de serem linguagens diferentes, de
certa forma uma alimenta-se da outra.
Diz que a msica mais misteriosa que
a palavra. Pode desenvolver?
A palavra, por tratar de contedos, por se
referir a contedos, acaba por ter uma coisa
mental, uma coisa racional mais fcil de
entender. E a msica um mistrio porque
no se sabe de onde vem, como se voc es-
tivesse psicografando alguma coisa, alguma
manifestao muito muito inconsciente.
Sendo tambm um msico, quando par-
ticipa em eventos de spoken word sente
algum tipo de pudor perante a exposio
do texto sem a roupagem da msica?
Quando participo numa performance,
acabo por incorporar elementos musicais
mas sem resultar necessariamente em can-
o. So inflexes ou so acompanhamen-
tos musicais, uma fala entoada, ou uma
forma berrada ou sussurrada, formas de
expresso vocal que no resultam necessa-
riamente em cano. Ento, h uma curio-
sidade de explorar essas outras formas, s
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vezes inferindo aspectos novos como in-
troduzir vozes simultneas, com samplers
gravados ao vivo ou com efeitos. Enfim, h
todo um repertrio especfico de leitura de
poesia que uso nas performances que resul-
ta de uma forma muito diferente daquilo
que acontece nos espetculos em que
canto, mas que tem tambm a sua musica-
lidade. E, mais do que ter algum pudor ou
problema com isso, sou muito curioso com
as formas de explorar as possibilidades da
palavra tanto na cano como na forma de
berrar, de dizer, de entoar, de ritmar. Esse
universo da palavra reunindo-se msica
muito rico e muito frtil e acaba gerando
muitos formatos diferentes.
Numa sociedade dominada pela ima-
gem, espetculos de spoken word,
poetry slam, etc., surgem pelo menos
em Portugal como um fenmeno
novo. Contudo, declamar poesia uma
atividade antiqussima. O que pensa
sobre esta espcie de reabilitao da
palavra dita?
Na verdade, no Brasil acabo por fazer
mais espetculos de msica. Mas h mui-
tos anos que recebo convites para fazer
performances de poesia em vrios lugares
do mundo. Este tipo de espetculo envolve
a palavra, atuao, diversos objetos ou
elementos cnicos, mas principalmente a
explorao dos recursos vocais. No sei se
acontece hoje mais do que antigamente
porque h uns 20 anos que o venho fazen-
do. Acho que se for uma moda bem-vinda
porque acaba por revitalizar de certa forma
a poesia: toda a leitura bem feita de poesia
esclarecedora e tambm muito sedutora
para um pblico que hoje em dia muito
pequeno, muito minoritrio.
Pode levantar um pouco o vu sobre o
espetculo Dois Violes que ir apre-
sentar no mbito do Festival Silncio?
Trago alguns poemas mais falados e
tambm algumas canes. Vou apresentar-
-me acompanhado por dois msicos Chico
Salem e Beto Aguiar e irei mostrar um
pouco da minha produo musical e potica.
Nos poemas que vou dizer devo usar alguns
efeitos, algumas dessas possibilidades de du-
plicao de vrias vozes simultaneamente
Silncio. Tem uma cano com o mesmo
nome. Fale-nos sobre o Silncio.
Acho que no h um silncio s consigo
pensar no silncio no plural: os silncios.
Existem vrios tipos de silncio. Existe o
silncio a que me refiro na letra da minha
msica O Silncio, que seria o silncio
primordial, anterior palavra, anterior a
tudo e que seria o branco total. Depois,
h o silncio que a ausncia de sentido,
o silncio que o sentido calado, existe
igualmente o silncio que surge entre as
palavras, as pausas, o silncio que temos
como fundo musical para a msica, como
possibilidade de gestar uma msica ou
um discurso falado. Existe ainda o silncio
como omisso, o silncio como contempla-
o e existe o silncio como vazio, como
espao intermedirio entre as coisas e que
faz, possibilita o movimento enfim, so
muitos silncios, eu penso no silncio como
plural. Penso nele como os silncios.
Portugal est num momento parti-
cularmente difcil. J o Brasil parece
estar numa fase mais feliz. A msica e
a poesia podem ajudar a ultrapassar a
adversidade?
Creio que sim, a msica e a poesia so
necessrias para qualquer momento nos
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mais adversos (na economia, na poltica),
ou nos mais felizes, elas so sempre compa-
nheiras do impulso de viver. algo que as
pessoas usam para se nutrir de impulsos,
para resistir, digamos, nos momentos de
adversidade, ou para aproveitar, celebrar
nos momentos de felicidade.
Numa entrevista que est on-line disse
que: a Arte simultaneamente mais
e menos que a poltica. Gostaria que
desenvolvesse um pouco esta ideia.
A arte no pode ser respons-
vel por mudar a realidade social
de uma maneira macro, mas ao
mesmo tempo a msica, a poesia
e as artes em geral transformam
a conscincia e a sensibilidade de
cada pessoa. Isso uma misso
que nenhum poltico, nenhuma
promessa coletiva, nenhuma
proposta de realidade coletiva
consegue atingir to profundamente. A arte
proporciona a transformao individual
atravs da alterao da prpria sensibilidade
fsica, mental, espiritual, do estado de nimo
de cada pessoa. E claro que a pessoa trans-
formada pela arte vai depois transformar
o mundo. Mas isso uma coisa muito mais
indomvel do que a mudana coletiva, das
coisas que a poltica e a economia tratam,