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GUERNICA FERNANDO ARRABAL

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  • GUERNICA

    FERNANDO ARRABAL

  • TEATRO DO ABSURDO

    O Teatro do Absurdo, apesar de no constituir uma escola ou movimento literrio, pois, segundo Martim Esslin, a sua essncia est na livre explorao da prpria viso individual de cada um de seus autores, tem de comum a todos sua repulsa ao teatro psicolgico ou narrativo e sua recusa a uma conformao com as velhas receitas de pea bem feita. Cada autor dsse Teatro do Absurdo segue seu prprio caminho e procura estabelecer uma nova conveno dramtica. Um nmero crescente de jovens, estimulados pelo sucesso da obra de Beckett, Ionesco, Genet ou Adamov, desenvolvem seu idioma pessoal na busca dessa nova conveno. Um dles Arrabal, cujo texto Guernica, publicamos neste nmero.

    Fernando Arrabal nasceu em Melilla (antigo Marrocos espanhol) em 1932. Completou seus estudos de direito em Madri, mas vive na Frana desde 1954 e escreve em francs. O mundo de Arrabal tira o seu absurdo no do desespro filosfico que tenta descobrir os segredos do ser, mas do fato de que seus personagens vem a situao humana com uma simplicidade infantil. Como as crianas que so s vzes cruis porque no conseguiram entender a existncia de uma lei moral, como as crianas les sofrem com a crueldade do mundo num sofrimento desprovido de sentido.

    Sua primeira pea Pique-Nique em Campanha j mostra claramente sse caminho. Esta pea foi escrita aos vinte anos e diretamente sob a influncia das notcias da guerra na Coria. As seguintes foram: Oraisons, drame mystique, Les Deux Bourreaux, Fando et Lis, La Cimetre des Voitures, Ochestration Thtrale e LArchitecte et LEmpereur dAssyrie.

    MARTIN ESSLIN

    A preocupao de Arrabal com o problema da divindade a relao entre amor e crueldade, seu questionamento de todos os padres ticos do ponto de vista de um inocente que estaria vido por aceit-los se pudesse apenas compreend-los uma reminiscncia da atitude dos personagens de Beckett em Esperando Godot. Arrabal, que insiste em dizer que sua obra a expresso de seus dramas e emoes pessoais, confessa sua profunda admirao por Beckett. Traduziu tambm algumas peas de Adamov para o espanhol, mas acha que no foi influenciado por ste.

    Personagens:

    FANCHOU um velho basco

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  • LIRA uma velha basca

    Tambm tomam parte na ao:UMA MULHER acompanhada de sua filha de 10 anosUM JORNALISTAUM ESCRITORUM OFICIAL

    Durante dez segundos, ouve-se o rudo de botas das tropas marchando. Depois o bombardeio, barulho de avies, exploso de bombas. A cortina se abre no momento em que cessa o bombardeio. Interior de uma casa destruda: paredes em runas, destroos, pedras. FANCHOU est ao lado de uma mesa, com ar desesperado.

    FANCHOU Meu tesouro, meu coelhinho (Mexe num monte de escombros sem encontrar nada). Meu coelhinho, onde que voc est? (Continua a procurar).

    VOZ DE LIRA, lamentosa Querido.

    FANCHOU Voc acabou de fazer pipi?

    LIRA, s a voz No posso mais sair. Estou prsa. Desabou tudo.

    FANCHOU sobe com dificuldade na mesa a fim de ver LIRA. Fica na ponta dos ps. Consegue v-la fica satisfeito.

    FANCHOU Olha para mim. (Tenta ficar na ponta os ps).

    LIRA Voc est a?

    FANCHOU V se mexendo devagar, meu tesouro. (Rudo de desmoronamento).

    LIRA, gemendo como criana Ai... ai...

    FANCHOU Voc se machucou? (Pausa. FANCHOU fica ansioso)

    LIRA, lamentando-se Machuquei... Tdas as pedras caram em cima de mim.

    FANCHOU Tente se levantar.

    LIRA No vale a pena, no vou conseguir sair.

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  • FANCHOU Faa um esfro.

    LIRA Diz que voc ainda me ama.FANCHOU Claro que sim, voc sabe muito bem. (Pausa) Voc vai ver...

    Quando voc sair da vamos fazer uma poro de bandalheiras.

    LIRA isso. (Satisfeita) Voc sempre o mesmo.

    Rudo de avies. As bombas comeam a cair durante alguns segundos. Cessa o bombardeio.

    FANCHOU Caram mais pedras em cima de voc?

    LIRA No. E em voc, meu tesouro?

    FANCHOU Tambm no. Faa um esfro para sair da.

    LIRA No posso. (Pausa) Olhe se les derrubaram a rvore.

    FANCHOU desce com dificuldade da mesa. Dirige-se para a esquerda e vai afastando um monte de escombros. Aparece parte da janela. FANCHOU olha por ela. Ar de contentamento. Volta. Torna a subir.

    FANCHOU No derrubaram, no. Ela continua de p. (Pausa)

    LIRA, lamenta-se Que que eu vou fazer?

    FANCHOU Tente se levantar devagar, bem devagarinho.

    LIRA No posso.

    FANCHOU Faa um esfro.

    LIRA Vou tentar.

    FANCHOU, lentamente Mas, v devagar... assim bem devagar.

    Ouve-se rudo de coisa caindo. Gemido choroso de Lira.

    FANCHOU Voc se machucou? (Silncio) Que que aconteceu? Diga qualquer coisa. Voc se machucou (Nvo gemido) Voc se machucou de verdade?

    LIRA Machuquei. (Lamentando-se como criana) Caram pedras em cima do meu brao, t saindo sangue.

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  • FANCHOU Est saindo sangue?

    LIRA Est.

    FANCHOU Muito?

    LIRA , muito.

    FANCHOU um arranho ou uma ferida?

    LIRA Um arranho, mas com muito sangue.

    FANCHOU Vou buscar o algodo.

    le procura nos escombros, mas caem cada vez mais coisas. Pra de procurar e sobe outra vez na mesa.

    FANCHOU No chore mais. Pe um pouco de cuspe no brao e depois amarra o leno.

    Gemido de LIRA. Entram o JORNALISTA E ESCRITOR. O JORNALISTA tem um bloco de nota, o ESCRITOR, curioso, faz uma volta em trno de FANCHOU e o examina atentamente. De repente, pra no meio da cena.

    ESCRITOR, ao jornalista Pode acrescentar que estou preparando um romance, talvez, at um livro sbre a guerra civil espanhola. (Com segurana) ste povo herico e to paradoxal, no qual se reflete o esprito dos poemas de Lorca, dos quadros de Goya e dos filmes de Buuel, nos prova, nesta guerra atroz, sua coragem, sua capacidade de sofrimento e...

    O ESCRITOR E O JORNALISTA saem pela esquerda. A voz do ESCRITOR se perde na distncia.

    FANCHOU Voc est se sentindo aliviada?

    LIRA Um pouco. (Pausa. Chorosa) Mas no muito.

    FANCHOU Quer que eu te conte uma histria, para voc se sentir melhor.

    LIRA Voc no sabe contar.

    FANCHOU Voc quer que eu conte aquela da mulher que estava no banheiro e ficou prsa debaixo dos escombros? (Pausa) No gosta dessa?

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  • LIRA Estou sentindo muita dor.

    FANCHOU Vai passar, voc vai ver. Vou imitar um palhao para voc rir.

    FANCHOU dana desajeitadamente e faz todo tipo de caretas. Depois estoura de rir.

    FANCHOU Gostou?

    LIRA Eu no posso te ver.

    Rudo de avies. Bombardeio. Durante sse tempo uma mulher e sua filha pequena atravessam a cena da direita para a esquerda, com ar irritado e impotente. (Ver quadro de Picasso). Cessa o bombardeio.

    FANCHOU No aconteceu nada com voc, meu coelhinho? (Pausa longa)

    LIRA Querido, estou muito mal. Vou morrer.

    FANCHOU Voc vai morrer? (Pausa) Vai morrer de verdade? Quer que eu previna a famlia?

    LIRA, aborrecida Que famlia?

    FANCHOU No assim que se diz?

    LIRA Voc no tem memria mesmo. J no se lembra que no tenho mais famlia?

    FANCHOU Ih, mesmo! (Pausa) E o Zelito?

    LIRA Onde que voc tem a cabea? Esqueceu que le foi fuzilado em Burgos?

    FANCHOU Voc no pode dizer que a culpa foi minha. Eu bem te disse que no queria menino. Um dia vem a guerra e les morrem. Se tivesse sido menina, agora, a casa estava arrumada.

    LIRA isso, sempre reclamando. A culpa tambm no minha.

    FANCHOU Meu coelhinho, no fique zangada. Eu no queria te

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  • aborrecer.

    LIRA Voc nunca tem pena de mim.FANCHOU Tenho sim. Se voc quiser, quando voc sair da eu te fao

    outro, s para mostrar que no sou rancoroso.

    LIRA Voc no pode mais.

    FANCHOU assim, no ? Agora diz que no sou mais homem.

    LIRA No isso, mas voc no pode mais...

    FANCHOU No posso mais? Voc a nica que diz isso. J no se lembra mais de sbado?

    LIRA Que sbado?

    FANCHOU Que sbado voc queria que fsse? Vai me dizer agora que esqueceu.

    LIRA J comea a se gabar.

    FANCHOU No estou me gabando. a pura verdade, mas voc no quer reconhecer. (Pausa).

    LIRA Vai ver outra vez se les derrubaram a rvore.

    FANCHOU desce da mesa e vai at a janela. Por trs dela aparece um oficial. Os dois se olham srios, durante um bom momento. FANCHOU abaixa a cabea, temeroso. O OFICIAL ri sem alegria, enquanto brinca com um par de algemas. FANCHOU, de cabea baixa, fecha a janela. Volta com ar assustado e torna a subir na mesa.

    LIRA E ento? (Pausa) Ento? Ainda est em p?

    FANCHOU No sei.

    LIRA Como que no sabe?

    FANCHOU No pude ver.

    LIRA, queixosa isso, estou aqui sem poder sair, peo a voc para olhar se les derrubaram a rvore e nem isso voc quer fazer.

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  • FANCHOU Eu no pude.

    LIRA, queixosa Est bem, como quiser.FANCHOU desce da mesa. Aproxima-se, temeroso, da janela. Abre com

    ansiedade. Olha para fora. Volta e torna a subir na mesa. Fica na ponta dos ps, com ar contente.

    FANCHOU Ela ainda est de p.

    LIRA, orgulhosa Bem que eu disse. (Uma pausa, depois, com grande tristeza) Mas me ajude um pouco. No me deixe szinha.

    FANCHOU Que que voc quer que eu faa?

    LIRA, queixosa Voc no d um jeito? Como voc mudou. Bem se v que no me ama mais.

    FANCHOU Amo sim, meu coelhinho. Tente se levantar, estica o brao, vou tentar segurar voc.

    FANCHOU se estica o mais que pode, tentando passar o brao por cima dos escombros. Enquanto est tentando segurar a mo de Lira, o OFICIAL entra pela direita e fica olhando para le, que est de costas.

    FANCHOU Faa um esfro. Estica um pouco mais que eu seguro. Um pouco mais. Assim, assim...

    FANCHOU est na ponta dos ps. O Oficial o empurra para trs, derrubando-o. O OFICIAL sai imediatamente pela direita. Fanchou se levanta com dificuldade. Olha direita, o OFICIAL aparece na janela, ri sem alegria, brincando com as algemas. FANCHOU olha aterrorizado para a janela. No momento em que seus olhares se cruzam, o OFICIAL pra de rir e de brincar com as algemas. Os dois se olham sriamente. FANCHOU abaixa a cabea. O OFICIAL recomea a rir e a brincar com as algemas. Finalmente, desaparece. FANCHOU levanta a cabea, e olha em direo da janela. Ar de alvio.

    LIRA Ai... ai... Porque voc me largou.

    FANCHOU Eu escorreguei. Voc se machucou, meu coelhinho?

    LIRA Caram mais pedras em cima de mim. Ai...

    FANCHOU Me desculpe.

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  • LIRA No posso contar com voc.

    FANCHOU Pode sim. Vou te fazer uma surprsa: um presente.FANCHOU tira do bolso um barbante e uma bola da borracha azul, que le

    enche com a bca e amarra com o barbante. Depois pega uma pedra e amarra na outra extremidade do barbante.

    FANCHOU, todo contente Pega essa pedra que eu vou jogar. (Joga a pedra por cima da parede) Segurou?

    LIRA Segurei.

    FANCHOU Agora puxa o barbante.

    LIRA puxa o barbante e a bola fica em cima dela.

    FANCHOU Olhe para cima. Est vendo?

    Barulho de avies. Bombardeio. Zoada ensurdecedora. Durante sse tempo, passam da direita para a esquerda a mulher e a filha. Empurram um carrinho de mo onde est uma caixa na qual se pode ler dinamite. Ar irritado e impotente. Cessa o bombardeio.

    FANCHOU Meu coelhinho! (Pausa. Inquieto) Meu coelhinho!

    A bola sobe e desce.

    FANCHOU No te aconteceu nada? (A bola sobe e desce) Diga qualquer coisa. (Longo silncio) Voc no quer me dizer nada? Est zangada comigo? A culpa no minha. (Pausa) Se dependesse s de mim... (Pausa) No fui eu que destru as casas. (Satisfeito) les no conseguiram derrubar a rvore. (De repente) Voc est zangada para sempre? (Silncio) assim que voc me ama. Est bem, faa o que quiser. (Olha resoluto para o outro lado, com ar indiferente. Cruza os braos) Voc me ouviu? Faa o que quiser, para mim tanto faz. (Pausa) Depois no venha dizer que sou eu que comeo e que tenho mau gnio. Desta vez est bem claro: eu no fiz nada, voc que no quer falar comigo. Senti quando voc comeou dizendo que no pude, no sbado, e agora voc se recusa a falar comigo. (Pausa) Voc no quer nem mexer com a bola? (FANCHOU se vira para olhar. A bola sobe e desce lentamente). Ah, madame no pode falar! Madame est cansada, madame se digna apenas a mexer com a bola. Deixa estar que voc vai ver. (Pausa). Mas diga alguma coisa, diga o que quiser, mesmo que seja maldade, mas diga alguma coisa. (Longo silncio) Est bem.

    FANCHOU fica de nvo zangado. Olha para o outro lado, de braos

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  • cruzados. direita, entram novamente o escritor e o jornalista, sempre com o bloco de notas. FANCHOU, assustado, se esconde debaixo da mesa. O escritor o v e o examina, impedindo-o de se mexer.

    ESCRITOR, ao Jornalista Como ste povo complexo e doloroso. Diga isso: no, diga que a complexidade dste povo doloroso floresce de uma maneira espontnea nesta guerra fratricida e cruel. (Ar satisfeito) No est mal, no ? (Hesita) No, no, suprima essa frase. Muito enftica. preciso encontrar algo definitivo e mais sbrio. (Reflete) Vou encontrar, vou encontrar. (FANCHOU continua debaixo da mesa, assustado. O ESCRITOR e o JORNALISTA saem esquerda. Ouve-se a voz do ESCRITOR que se perde distncia) Que romance vou fazer de tudo isso! Que romance! Ou quem sabe uma pea de teatro e at um filme. E que filme!...

    LIRA Com quem que voc estava falando?

    FANCHOU Ah, madame encontrou a lngua. No est mais muda. Pois bem, saiba que agora sou eu que no quero mais falar.

    LIRA, queixosa Querido, estou muito mal... me sentindo muito mal. Voc no tem pena de mim!

    FANCHOU Que que est acontecendo: voc est doente?

    LIRA No v que estou tda coberta de pedras e que no posso mais me mexer?

    FANCHOU J no me lembrava.

    LIRA Voc nunca se lembra de mim.

    FANCHOU mesmo. Vou dar um n na ponta do leno.

    LIRA Que que vai acontecer com voc sem mim? Voc no tem cabea.

    FANCHOU, com raiva, fanfarro Voc sempre diz isso. Pois bem, vou me casar com outra. Eu ainda provoco paixes. Se voc visse como a padeira me olha tdas as manhs quando vou buscar o po.

    LIRA isso. Agora, voc me engana com a primeira lambisgia que aparece. Eu bem sabia que no podia confiar em voc.

    FANCHOU ela que me olha. Eu a ignoro.

    LIRA Isso o que voc diz. Eu s queria ver.

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  • FANCHOU Eu no fiz nada, te juro.

    LIRA Juras de bbado. Voc tambm jurou que ia me levar numa viagem de lua-de-mel.

    FANCHOU No esqueci. Logo que a guerra acabar, a gente parte. Vou te levar a Paris.

    LIRA isso, Paris. O senhor quer se divertir.

    FANCHOU V como voc : nunca concorda comigo.

    LIRA, queixosa Ai... as pedras continuam a cair em cima de mim.

    FANCHOU Machucou muito? (Lira geme) Ah, essa histria de guerra muito chato!

    LIRA Faz alguma coisa por mim.

    FANCHOU Que que voc quer?

    LIRA Chama um mdico.

    FANCHOU Foram todos levados embora.

    LIRA Diga de uma vez que voc no quer fazer nada por mim.

    FANCHOU Mas voc no percebe que estamos em guerra?

    LIRA Ns no fizemos mal a ningum.

    FANCHOU Isso no conta. Depois voc diz que sou eu quem no se lembra de nada. Voc j esqueceu como so as coisas?

    LIRA Podia fazer uma exceo para ns, que somos velhos.

    FANCHOU Que que est pensando? A guerra um negcio srio. Bem se v que voc no tem instruo.

    LIRA isso, agora comea a falar mal de mim. Diga logo que no me ama.

    FANCHOU, terno Meu coelhinho, eu no quis te aborrecer.

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  • LIRA Voc no quis me aborrecer, mas aborreceu. Como voc mudou! Antes, voc era cheio de cuidados comigo.

    FANCHOU E agora tambm. LIRA E sse negcio de instruo. Voc acha que no tenho amor

    prprio?

    FANCHOU Mas eu falei s por falar.

    LIRA Ento, retira o que voc disse.

    FANCHOU Retiro.

    LIRA De corao.

    FANCHOU , juro.

    LIRA Sbre o que?

    FANCHOU Como sempre.

    LIRA Est bem. Mas no vai recomear. (Pausa)

    FANCHOU Voc no pode se levantar um pouco para tentar sair?

    LIRA Quando eu mexo, as pedras comeam a cair.

    FANCHOU preciso fazer alguma coisa.

    Barulho de avies. Bombardeio. Durante ste tempo, a me e a filha passam da direita para a esquerda, carregando fuzis de caa. A bola de Lira arrebenta. Cessa o bombardeio.

    LIRA, queixosa les arrebentaram minha bola.

    FANCHOU Estpidos! Atiram de qualquer maneira, sem fazer pontaria.

    LIRA les fizeram de propsito.

    FANCHOU No, que les atiram sem fazer pontaria, sem prestar ateno.

    LIRA So estpidos mesmo! Primeiro, derrubam nossa casa e, agora,

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  • ainda por cima arrebentam minha bola.

    FANCHOU les so impossveis.LIRA Vai ver se les acertaram a rvore.

    FANCHOU desce da mesa e vai at a janela. Por ora, aparece o OFICIAL. FANCHOU olha para le. O OFICIAL olha sriamente para FANCHOU e ste, assustado, abaixa a cabea. Riso sem alegria do OFICIAL, que brinca com as algemas. O OFICIAL desaparece. FANCHOU levanta a cabea e no v ningum. Enfia, cautelosamente, a cabea pela janela. Olha a rvore. Ar satisfeito. Risos direita, por trs dle. le se vira e aparece a cabea do OFICIAL, que logo desaparece. FANCHOU, assustado, no sabe o que fazer. Riso esquerda, FANCHOU se vira, aparece a cabea do OFICIAL e desaparece. FANCHOU, assustado, no sabe o que fazer. Risos direita, depois esquerda, depois direita, depois esquerda, depois direita. FANCHOU, aterrorizado, no mexe mais. O OFICIAL entra direita, com ar srio e observador. Parece estar muito preocupado com FANCHOU, no pra de examin-lo, ao mesmo tempo em que tira do bolso um sanduche embrulhado em papel de jornal e comea a morder o po. Coloca-se perto de FANCHOU, que se afasta dle. O OFICIAL torna a se aproximar FANCHOU tenta, tmidamente, se afastar. O OFICIAL continua colado a le at encurral-lo num canto. FANCHOU no pode mais se mexer. Tem os olhos fitos no cho. O OFICIAL impede sua passagem abrindo os cotovelos, e continua a mastigar o sanduche. Longo silncio.

    LIRA Que que voc est fazendo? (Fanchou, impossibilitado de se mexer, no responde) isso, agora voc me deixa szinha. (O OFICIAL, impassvel, morde o sanduche sem se afastar de FANCHOU. Lira, terna) Vem, meu coelhinho. (O OFICIAL pra de comer e faz uma careta, como se fsse rir, mas sem rudo, mostra os dentes. FANCHOU, envergonhado abaixa ainda mais a cabea. O OFICIAL pra de rir e recomea a comer) Voc est zangado? (Pausa) Est contente? (O OFICIAL pra de comer e faz uma careta como se fsse rir sem rudo. Mostra todos os dentes, FANCHOU, envergonhado abaixa ainda mais a cabea. O OFICIAL pra de rir e recomea a comer.) Eu sei que voc ainda faz sucesso com as mulheres... especialmente com a padeira. (Mesmo jgo do OFICIAL, que, finalmente, embrulha o que resta do sanduche. Limpa cuidadosamente a bca com a manga do palet de FANCHOU. Esfrega as botas com as pontos do casaco de FANCHOU, depois se vira e sai de cena pela direita, com ar marcial. FANCHOU ri, alegre. Bota a lngua para le. Imediatamente se controla, com ar assustado, e olha para todos os lados. Certifica-se que ningum o v, bota a lngua para fora e, com a mo diante do nariz, mexe os dedos. Ri, feliz, e sobe novamente na mesa.)

    FANCHOU Meu coelhinho, a rvore ainda est em p.

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  • LIRA E precisou todo sse tempo para ver?

    FANCHOU que eu gosto de fazer as coisas bem feitas.

    LIRA Ser que voc no foi ver a padeira?

    FANCHOU Quem que voc pensa que eu sou? Em plena guerra, voc acha que eu vou atrs de aventuras?

    Bombardeio, avies, bombas. Durante ste tempo, passam da direita para a esquerda a mulher e a filha, empurrando um carrinho de criana cheio de cartuchos at em cima. Cessa o bombardeio. Silncio longo.

    FANCHOU Lira! (Longo silncio)

    LIRA Que ?

    FANCHOU Porque voc nunca teve amantes?

    LIRA Amantes? (Risinho breve)

    FANCHOU , amantes. (le ri e se cala)

    LIRA Eu? (Risinho breve)

    FANCHOU Claro, voc.

    LIRA Nunca pensei nisso.

    FANCHOU Voc nunca pensa em mim. Eu podia fazer inveja aos outros. (Pausa) Voc devia ter tido ao menos um. (Reflete) Um coronel.

    LIRA isso, um coronel. assim que voc me ama.

    FANCHOU Voc no acompanha a moda.

    LIRA E ainda por cima me insulta.

    FANCHOU No, meu coelhinho, no. (Pausa. Teimoso) Mas tdas as mulheres elegantes tm amantes. (Pausa) Voc nunca quis me ajudar: quando eu tiro tua roupa para os amigos te acariciarem, voc sempre faz cada feia.

    LIRA Porque me resfrio.

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  • FANCHOU Voc sempre encontra uma desculpa.

    LIRA Voc, sim, que s pensa em voc, um egosta.

    FANCHOU Mas eu fao por voc. (Ri satisfeito: Uma boa idia) Mais tarde voc podia escrever suas memrias.

    LIRA Ai... as pedras esto caindo outra vez em cima de mim. (Geme) No posso mais mexer os ps.

    FANCHOU Faa um esfro.

    LIRA, queixosa les esto enterrados.

    FANCHOU As coisas esto se complicando.

    LIRA s isso que voc achou para dizer. Voc nunca se preocupa comigo.

    FANCHOU No, eu estou muito preocupado. (De repente) Quer que eu chore?

    LIRA J sei que voc que voc quer me pregar uma pea.

    FANCHOU No no. Se eu quiser, posso chorar de verdade.

    LIRA Eu te conheo. Para voc tanto faz que eu morra.

    FANCHOU Voc que est dizendo. Quando voc morrer eu... (reflete) vou dormir trs vzes seguidas com voc.

    LIRA Est se gabando outra vez.

    FANCHOU Voc j esqueceu?

    LIRA, interrompendo, chateada J sei, j sei... aqule famoso sbado quando...

    FANCHOU, aborrecido Depois voc vai dizer que sou eu que no sou gentil com voc.

    Nvo desmoronamento.

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  • LIRA Ai... ai... (ela se lamenta cada vez mais) Vou morrer mesmo.

    FANCHOU Voc quer que eu chame um padre?LIRA Que padre?

    FANCHOU No assim que se diz?

    LIRA Voc no tem memria mesmo: esqueceu que ns no acreditamos mais?

    FANCHOU, assustado Quem? Ns?

    LIRA Mas foi voc quem decidiu. No se lembra mais?

    FANCHOU, que no se lembra Ah!

    LIRA Voc disse que, assim, ns seramos... (Pausa, com nfase) mais evoludos.

    FANCHOU, surprso Evoludos? Ns?

    LIRA Claro.

    FANCHOU Estamos em maus lenis: agora, voc vai morrer e vai para o inferno.

    LIRA Pra sempre?

    FANCHOU Claro que pra sempre. E os suplcios! Voc vai passar por cada uma! le sabe fazer as coisas direito.

    LIRA le, quem?

    FANCHOU Ora, Deus.

    LIRA, risinho breve Deus?

    FANCHOU . Deus. (Riso breve, os dois riem tmidamente, em cro. Bombardeio. Rudo de avies e bombas que explodem. Durante sse tempo passam da direita para a esquerda a me e a filha carregando um saco cheio de munies variadas. Cessa o bombardeio.

    LIRA Ai... ai...

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  • FANCHOU Que foi que aconteceu?

    LIRA No vou poder sair daqui nunca mais.FANCHOU No perca as esperanas.

    LIRA As pedras esto me cobrindo at a cintura.

    FANCHOU No se preocupe. Voc vai ver, vou descobrir um modo de te soltar.

    LIRA No tem jeito.

    FANCHOU A culpa tua: essa mania que voc tem de ler no banheiro. Voc fica horas e horas a. O que te aconteceu no me espanta nem um pouco.

    LIRA Tudo que acontece sempre por minha culpa.

    FANCHOU Tambm no precisa ficar assim, eu no quis te aborrecer.

    (Silncio)

    LIRA Por que les demoliram a casa?

    FANCHOU preciso repetir sempre a mesma coisa. (Separando as slabas) les esto experimentando bombas explosivas e incendirias. Depois voc diz que sou eu que no tenho cabea.

    LIRA E les no podiam experimentar em outro lugar?

    FANCHOU Voc vai dizer outra vez que eu debocho de voc, mas voc est vendo que no tem um pouco de instruo. Por que? Por que? Porque que voc queria que fsse, se no para ver se elas funcionam?

    LIRA E depois?

    FANCHOU E depois? E depois? Voc est se fazendo de boba. Se a bomba mata muita gente, ela boa e les fabricam mais, e se ela no mata ningum, porque no presta e les no fabricam mais.

    LIRA Ah!

    FANCHOU preciso te explicar tudo.

    LIRA, zangada No sei porque que voc fala assim. Eu sei muito bem

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  • que no estudei tanto quanto voc.

    FANCHOU, cheio de orgulho Eu sei de tudo, no ? Podia-se at pensar que eu freqentei as Faculdades (Uma pausa. Contente. Uma boa idia.) Eu podia passar por professor, no?

    LIRA, aborrecida e ctica Claro.

    FANCHOU Voc acha mesmo?

    LIRA, aborrecida, ctica Mas claro.

    FANCHOU Assim voc seria a mulher de um professor. Na rua, as pessoas iam dizer quando a gente passasse: olha os professres. (Pausa) Podamos nos fazer de importantes: ter carto de visita e assistir a conferncias. S me falta o guarda-chuva. Alis, voc tambm tem muita instruo: com tudo o que l no banheiro!

    LIRA Vai recomear?

    FANCHOU Voc no concorda comigo?

    LIRA Ns? Professres?...

    FANCHOU Voc nunca concorda com minha idia. Foi sempre assim. Se voc recomear, est bem, vou-me embora para sempre. (Irritado) No quero que voc viva com um homem que s diz bobagens. Adeus!

    FANCHOU se abaixa e faz barulho na mesa para dar a impresso de que est indo embora.

    LIRA Meu querido! No me deixe szinha. (Lira geme, FANCHOU no se mexe, contnua agachado) Querido, volta! (Silncio longo, FANCHOU continua imvel) Era s brincadeira. (Pausa) Voc sabe muito bem que eu te admiro muito. (Longa pausa) Voc seria um professor formidvel. (Pausa) Quando a gente ouve voc falar chega a pensar que voc capito e at mesmo antiqurio. (Pausa longa. FANCHOU fica orgulhoso) Querido! (Pausa) Voc me deixa szinha? (Pausa) Volta! (Pausa longa) Ai... Ai... (Chora) As pedras esto caindo outra vez.

    FANCHOU, erguendo-se ansioso Que que est acontecendo, meu anjo? Voc se machucou?

    LIRA Vou ficar completamente coberta. E ste o momento que voc

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  • escolhe para ir embora. Voc no tem corao.

    FANCHOU Mas foi voc que comeou.LIRA Era s brincadeira.

    FANCHOU Jura que voc no faz mais.

    LIRA Juro.

    FANCHOU Sbre o que?

    LIRA Como sempre.

    FANCHOU Est bem. Espero que voc no recomece.

    Bombardeio, rudo de bombas e avies. Durante sse tempo a me e a filha passam empurrando um carrinho cheio de fuzis velhos, O bombardeio cessa.

    LIRA Ai... ai... No posso mais mexer os braos.

    FANCHOU No se preocupe. Vou soltar voc.

    LIRA Mas j estou coberta de pedras at o pescoo.

    FANCHOU No se preocupe. Voc vai ver, vou dar um jeito.

    LIRA Vou morrer.

    FANCHOU Voc quer que eu chame o tabelio para o testamento?

    LIRA Que testamento?

    FANCHOU No assim que se diz?

    LIRA Voc vai recomear?FANCHOU, prosa Voc devia fazer testamento. Eu podia mostrar aos

    vizinhos.

    LIRA Voc s quer contar prosa.

    FANCHOU Mas por voc que eu fao isso. Tdas as grandes damas fazem testamento. Voc devia fazer o seu e preparar suas ltimas palavras.

    LIRA Que ltimas palavras?

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  • FANCHOU As que a gente pronuncia antes de morrer. Quer que eu te d algumas idias? Voc podia falar de... (Pensa e, depois precipitadamente) da vida, da humanidade...

    LIRA, cortando Pra, voc s diz besteira.

    FANCHOU Voc acha que isso besteira? Voc muito frvola.

    LIRA, queixosa J recomea a me injuriar?

    FANCHOU No, meu coelhinho.

    LIRA No posso mais me mexer. Mas quando que essa guerra vai acabar?

    FANCHOU isso, madame queria que a guerra acabasse quando bem lhe aprouvesse.

    LIRA, choramingando Ser que les no podem parar com isso?

    FANCHOU Claro que no. O general disse que no pra enquanto no tiver ocupado tudo.

    LIRA Tudo?

    FANCHOU Claro, tudo.

    LIRA le est exagerando!

    FANCHOU Os generais no fazem as coisas pela metade: tudo ou nada.

    LIRA E o povo?

    FANCHOU O povo no sabe fazer guerra. E, depois, o general muito ajudado.

    LIRA Mas assim no vale.

    FANCHOU E voc acha que o general est ligando?

    LIRA No posso mais me mexer. Se carem mais pedras vou ficar completamente coberta.

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  • FANCHOU Que chateao. No se preocupe. Voc vai ver, os bombardeiros vo parar.

    LIRA Para sempre?

    FANCHOU Pra sempre.

    LIRA Como que voc sabe?

    FANCHOU, irritado Voc duvida da minha palavra?

    LIRA No. (Ctica) Como que voc quer que eu duvide? (Estouram trs bombas. Rudo terrvel. Lira chora). Querido, estou completamente coberta. Vem me soltar!

    FANCHOU Meu coelhinho, j vou. Voc vai ver, vou te soltar.

    FANCHOU se aproxima e sobe nas runas com dificuldade. Choro de Lira.

    LIRA Dessa vez vou morrer de verdade.

    FANCHOU No perca a coragem. J estou indo.

    FANCHOU continua avanando com dificuldade sbre as runas. Chega no lugar onde est Lira.

    FANCHOU Meu coelhinho, estou aqui. Me d a mo.

    LIRA No v que estou completamente coberta de pedras.

    FANCHOU J vou te soltar. Espere que vou te tirar da.

    Longo bombardeio. Caem mais pedras. Fanchou fica tambm coberto pelos escombros. Assim que termina ste longo bombardeio a Mulher passa da direita para a esquerda. A Filha j no a acompanha. No ombro, ela leva um pequeno caixo. Ar irritado e impotente. (Ver quadro de Picasso). A MULHER desaparece esquerda. No fundo, as paredes derrubadas deixam ver a rvore da liberdade. O bombardeio terminou. Em cena s restam runas. Longo silncio. No local exato onde estavam FANCHOU e LIRA aparecem duas bolas coloridas, de borracha, que sobem ao cu. Entra o OFICIAL, que atira nas bolas, sem conseguir atingi-las. As bolas desaparecem no alto. O OFICIAL continua a atirar. Do alto, ouvem-se os risos felizes de FANCHOU e LIRA. O OFICIAL, assustado, olha para todos os lados e sai precipitadamente, pela direita. Entra o ESCRITOR sobe na mesa. Examina o local onde se achavam FANCHOU e LIRA.

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  • Ar satisfeito, desce da mesa e sai pela esquerda, quase correndo, cheio de alegria.

    O ESCRITOR Vou fazer de tudo isso um romance sensacional. Um romance magnfico! Que romance!

    Sua voz se perde ao longe. Um tempo. Bem perto, barulho de botas de soldados em marcha. Ao fundo, bem baixinho, um grupo de homens canta Gernikako arbola. O grupo se torna cada vez mais numeroso e as vozes cada vez mais fortes. Agora, uma multido que canta, at cobrir o rudo das botas completamente, enquanto a cortina se fecha.

    PANO

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    GUERNICAFERNANDO ARRABAL