grupos humanos entitatividade e valencia
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Grupos humanos, entitatividade e valência
Marcos Emanoel Pereira, Aruanã Fontes, João Modesto e Natália Canário
Resumo
O conceito de entitatividade se refere à percepção do grupo como uma entidade e não como um
conjunto de indivíduos. O presente artigo relata os resultados de um estudo, conduzido em um
ambiente online, com o objetivo de avaliar as relações entre a valência (avaliação do grau de
positividade e negatividade) e as dimensões entitativas da homogeneidade percebida,
agenciamento individual e grupal, duração e organização dos grupos em relação a doze acepções
distintas de grupo. Os resultados evidenciam o efeito moderador da valência na avaliação das
distintas dimensões entitativas, sugerem que os grupos não podem ser percebidos como entes
genéricos e que a depender da acepção considerada as relações entre as diversas dimensões
entitativas podem assumir valores diferenciados.
Abstract
The concept of entitativity refers to the perception of the group as an entity and not as a group of
individuals. This article depicts the results of a study, conducted in an online environment; the
purpose was to evaluate the relation between valence (evaluation of the level of positivity and
negativity) and entitative dimensions of perceived homogeneity, individual and group agency,
duration and organization of the groups regarding twelve distinct conceptions of group. Results
evinced the moderating effect of valence in the evaluation of the distinct entitative dimensions,
suggesting that groups cannot be perceived as generic entities, and that, depending on the
conception adopted, relations between all entitative dimensions can assume differentiated values
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Uma forte controvérsia marcou os primeiros anos de desenvolvimento da psicologia
social e, consequentemente, o estudo dos grupos humanos. Trata-se de um debate, ainda não
inteiramente superado, que se personalizou nos nomes de William McDougall e Floyd Allport, a
respeito dos fundamentos ontológicos e epistêmicos dos comportamentos sociais. Ainda que a
primeira metade do século passado tenha contabilizado algumas contribuições significativas para
o estudo dos grupos, a exemplo da diferenciação estabelecida nos anos 1930 entre os grupos
orientados para a tarefa e os grupos sócio-emocionais, do estudo publicado em 1936 por Muzafer
Sherif, colocando em evidência que mesmo em situações ambíguas observa-se a emergência de
normas grupais e dos estudos de Newcomb no início dos anos 1940, demonstrando que as
atitudes dos estudantes do Benington College eram influenciadas pelos grupos aos quais estavam
afiliados, este período se caracterizou pela ausência de teorias consistentes a respeito dos
processos grupais. Apenas no início dos anos 1950 a situação foi remediada, com o sucesso do
movimento da dinâmica de grupo orientado pela perspectiva de Kurt Lewin (Jones, 1998),
embora, a se considerar a admoestação de Steiner (1974) a respeito das visões limitadas e
restritivas das perspectivas holistas e individualistas, o remédio não tenha sido suficientemente
potente, e o estudo dos processos grupais tenha permanecido em um patamar de
desenvolvimento aquém do desejado.
Definir e caracterizar um grupo humano ainda permanece uma tarefa complexa e
marcada por muitas dificuldades, particularmente pela ausência de uma concepção teórica
relativamente hegemônica. De modo geral, concebe-se que o grupo humano envolve duas ou
mais pessoas que se relacionam para uma finalidade específica, mantêm entre si uma relação de
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interdependência, estabelecem laços afetivos ou laborais, são regidas por estruturas
organizacionais constituídas por papéis, hierarquias de poder e status, interagem regularmente, se
comunicam mutuamente, compartilham uma estrutura comum de referências e consideram esta
relação significativa (Levine e Moreland, 1994, 1998; Lindesmith, Strauss e Denzin, 2006).
Estas características, no entanto, estão longe de obter a acolhida incondicional dos estudiosos e
não se encontram imunes a problemas, suscitando muitas questões, destacando-se, em particular,
a de não ser capaz de permitir diferenciar os grupos de outros entes sociais (Lickel, Hamilton,
Wieczorcowska, Lewis, Sherman e Uhles, 2000) ou de ser insuficiente para capturar a natureza
dos grupos como entes complexos, dinâmicos e adaptativos (McGrath, Arrow e Berdahl, 2000),
donde muitos autores evitarem definir os grupos humanos, abandonando qualquer tentativa de
definição em detrimento da adesão a um postulado que se contenta com a identificação da
dimensão de grupalidade nos diversos eventos sociais e coletivos (Levine e Moreland, 2006).
Se no plano etimológico a palavra grupo origina-se do italiano groppo, termo usado para
designar um conjunto de imagens sacras que compõe um único tema, esta dimensão iconográfica
original foi se ampliando e hoje podem ser identificadas na linguagem cotidiana várias acepções
para o conceito. A simples reflexão sobre o significado de termos como bando, corja, equipe,
galera, gangue, malta, patota, súcia, tropa ou turma é suficiente para identificar que do ponto de
vista axiológico algumas noções possuem uma acepção claramente negativa, enquanto outros
termos são positivamente avaliados. Decerto esta diferenciação, além de oferecer uma boa
indicação da heterogeneidade dos fenômenos recobertos pelo conceito, permite vislumbrar uma
dimensão decisiva que incide sobre o campo dedicado ao estudo dos processos grupais.
Trata-se de um paradoxo fundamental, pois, conforme assinalou Brown (1988), se a
presença de conceitos como os de pensamento grupal, polarização grupal e desindividualização
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sugerem uma forte conotação negativa relativa aos grupos, esta tendência se mostra incompatível
com as esperanças geralmente assumidas de que apenas as atividades grupais e coletivas se
encontram em condições de oferecer os inúmeros benefícios para as atividades que se
desenrolam na vida cotidiana e com o entendimento de que as grandes realizações humanas
dificilmente poderiam ser alcançadas pela mera ação individual.
Este paradoxo, conforme assinala Taylor (1998), reflete em parte duas concepções acerca
do ser humano e das suas relações com os grupos sociais. Uma destas posições assegura que o
ser humano isolado é malévolo pela própria natureza, donde a necessidade de uma organização
social para impor limites aos excessos e controlar os impulsos agressivos e egoístas. Os grupos
sociais seriam necessários para exercer um efeito moderador nesta natureza destrutiva que se
manifestaria livremente se ao indivíduo fosse permitido se conduzir de forma autônoma. Uma
segunda visão acerca das relações entre o ser humano e a sociedade, ao contrário, se assenta no
entendimento de que a vida social é intrinsecamente brutal e disruptiva, sendo-lhe imputada a
responsabilidade de limitar, ou mesmo inibir, as preocupações individuais com a moralidade e
por apartar o indivíduo do caminho da justiça e de uma vida regida pelos princípios da retidão.
Este dilema entre indivíduo e totalidade pode ser interpretado como o resultado de dois
tipos de pressões que se encontram presentes na dinâmica dos grupos humanos. Numa direção,
pode ser identificada uma pressão atuante no sentido de impor aos membros uma certa
homogeneidade, o que facilita a manutenção da coesão e, consequentemente, impõe a expressão
de padrões de comportamento relativamente uniformes entre os membros do grupo, pois os
signos de pertença devem ser facilmente identificados por afiliados ao grupo e por aqueles que a
ele não pertencem. Em contrapartida, a pressão do grupo sobre o indivíduo não pode ser muito
acentuada, pois isto poderia levá-lo a perder o seu senso de individualidade, identidade pessoal e
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mesmo a sua liberdade individual, dado o reconhecimento de que a uniformidade total dos
membros do grupo gera a estagnação e leva muitos membros a se rebelarem no sentido de
procurar uma certa liberdade de pensamento e de ação. O conceito de pensamento grupal, por
exemplo, reflete bem esta tendência, ao sugerir que muitas vezes o pensamento dos indivíduos se
torna tão envolvido com as metas e os objetivos grupais que tendem a se sobrepor e inibir a
adoção de estratégias de ação mais realistas, tornando-se facilmente preso por uma certa ilusão
de invulnerabilidade (Janis, 1971, citado por Aronson, 2004; Nowak, Vallacher e Miller, 2003).
A dificuldade da psicologia social em lidar com as tensões entre estas duas abordagens
terminou levando ao desenvolvimento de duas tradições na psicologia social, uma psicológica e
outra sociológica (Álvaro e Garrido, 2007), bem como a formulação de uma série de abordagens
integrativas, complementaristas ou interacionistas (de la Hera, 2008; Bunge & Ardila, 2002).
Estas tentativas de integração, entretanto, pouco se desenvolveram e o predomínio de abordagens
como as da cognição social, da identidade social ou da auto-categorização dedicadas ao estudo
de diferentes dimensões dos fenômenos grupais, terminaram por levar a um certo esvaziamento,
ou, pelo menos, a um certo predomínio dos modelos individualistas e uma consequente perda de
interesse pelo estudo dos processos grupais (Steiner, 1974)
Ao tentar identificar os fatores que levaram a este esvaziamento do campo de estudos do
grupo na psicologia social, McGrath, Arrow e Berdahl (2000) reconhecem que uma tendência a
estudar os grupos como entidades genéricas, perfeitamente intercambiáveis entre si e
constituídos por indivíduos também genéricos e incapazes de expressar as suas diferenças
individuais contribuiu de forma significativa para esta situação.
Este artigo procura identificar algumas acepções que a palavra grupo ostenta na língua
portuguesa e avaliar em que medida elas refletem as diferenças na avaliação da dimensão
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positividade-negatividade dos distintos tipos de grupos. Em seu sentido mais amplo, o trabalho
se insere na tradição de trabalho relacionada com o conceito de entitatividade e as suas
repercussões no âmbito do estudo da percepção e explicação dos grupos humanos.
O estudo dos grupos
Levine e Moreland (2006) reconhecem que os grupos sobrevivem porque são capazes de
satisfazer quatro necessidades humanas. Em primeiro lugar, eles são capazes de satisfazer as
necessidades básicas requeridas para a sobrevivência, pois apenas a experiência grupal
proporciona a possibilidade de gerar descendência, obter alimento e abrigo, bem como facilitar a
obtenção de proteção contra intempéries e inimigos. Além disso, os grupos proporcionam as
condições requeridas para que as necessidades psicológicas dos indivíduos sejam satisfeitas,
particularmente por oferecer os requisitos apropriados para o desenvolvimento de relações de
intimidade, por oferecer recursos mais seguros para evitar a solidão e configurar os espaços
apropriados para as demonstrações de influência social e poder. Em terceiro lugar, os grupos
satisfazem as necessidades de informação, pois oferecem as condições requeridas para que os
indivíduos venham a ter uma certa clareza a respeito do ambiente físico e social em que vivem,
bem como fornecem os critérios para a formulação das indispensáveis comparações sociais.
Finalmente, os grupos oferecem as condições para que os indivíduos possam desenvolver
diferentes identidades sociais, habilitando-os a se locomoverem entre os diversos contextos sem
problemas ou dificuldades.
A partir do argumento apresentado por Steiner (1974) de que o impacto de fatores sociais
e políticos mais amplos requer o interregno de uma década para influenciar o desenvolvimento
do campo de estudos dos grupos, tornou-se comum a afirmação de que o interesse pelo estudo
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dos grupos foi especialmente marcante durante a década subsequente à segunda guerra mundial.
Tal explicação se fundamentava no entendimento de que as demandas suscitadas pela atividade
militar favoreceriam o desenvolvimento de pesquisas sobre tópicos como o ambiente grupal e
liderança, as redes de comunicação nos pequenos grupos ou o grau de vinculação entre os
membros de equipes de trabalho. A segunda guerra mundial e, em seguida, a guerra fria seriam,
por assim dizer, os grandes impulsionadores dos estudos sobre os grupos, particularmente de
pesquisas sobre as relações intragrupais, que nesta linha interpretativa sofreriam um refluxo
perceptível com a dissensão gradual das tensões entre as grandes potências militares.
Evidências encontradas na literatura sugerem, ademais, que esta interpretação externalista
parece pouco plausível (para uma discussão dos impactos sociais, culturais, políticos e
econômicos no desenvolvimento de estudos sobre os grupos, ver de la Hera, 2008). Uma série de
estudos deixa claro que o interesse pelo estudo dos grupos se manteve relativamente constante,
não obstante uma certa flutuação no que se refere ao acolhimento de determinadas temáticas e o
relativo abandono de áreas de investigação que predominaram durante os anos 1950 a 1970.
Depois desta época, e em particular com o impulso suscitado pelas teorias da identidade social e
da auto-categorização, bem como pela abordagem da cognição social, observou-se um certo
deslocamento no foco de interesse dos estudiosos e uma grande popularização dos estudos sobre
as relações intergrupais. Isto não significou, entretanto, o abandono do tema, mas sim a
substituição de antigos interesses por um novo conjunto de tópicos e temas de investigação e,
ademais, a migração de boa parte destes estudos para domínios de investigação conexos, a
exemplo da psicologia organizacional (Levine e Moreland, 1998).
A partir do final dos anos 1990, algumas formulações previamente desenvolvidas por
Campbell (1958), em particular, aquelas relacionadas com o conceito de entitatividade, oferecem
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um novo horizonte para o estudo dos processos grupais. O conceito de entitatividade se refere à
operação mental que impele a percepção de um agregado de indivíduos como membros de uma
totalidade, ou seja, como parte de uma entidade distinta e irredutível aos seus componentes
individuais. Inspirando-se nos princípios da psicologia da gestalt, Campbell sugeriu que os
indivíduos eram percebidos como uma entidade quando eles se apresentavam de uma forma
organizada ou eram regidos por um destino comum.
Outros fatores, identificados posteriormente na literatura, oferecem evidências a respeito
da importância da percepção do grupo como uma unidade coerente e inclui o estudo de tópicos
como o tamanho do grupo, o grau de proximidade espacial dos membros, a intensidade da
interação entre os membros, a importância da identidade social e as metas comuns percebidas
(Brewer e Harasty, 1996; Dasgupta, Banaji e Abelson, 1999).
Lickel, Hamilton, Wierczorkowska, Lewis, Sherman e Uhles (2000) desenvolveram em
detalhes a noção de entitatividade, distinguindo quatro modalidades de grupos, que se
diferenciavam em relação ao grau de entitatividade. O tipo de grupo com o maior grau de
entitatividade é o grupo de intimidade, no qual a família representa o valor mais alto, pois possui
um alto grau de interação entre os membros, é um grupo pequeno, de longa duração e possui
baixa permeabilidade. Os grupos orientados para a tarefa possuem um grau de entitatividade um
pouco menor, ainda que possam vir a serem caracterizados como grupos com um alto nível de
interação, pequenos, de duração moderada e com algum grau de permeabilidade. O terceiro tipo
de grupo, as categorias sociais, possui uma entitatividade baixa, tende a ser de grande porte,
duração moderada e baixa permeabilidade. Os grupos com vínculos menos rígidos, tais como os
transitórios, possuem o menor grau de entitatividade, baixos níveis de interação entre os
membros, uma vida curta e um grau bastante alto de permeabilidade.
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Objetivos
O presente estudo representa uma tentativa de explorar o impacto de algumas dimensões
entitativas no julgamento da valência de alguns tipos de grupos sociais. Uma das dimensões
exploradas é a da homogeneidade percebida, um fenômeno que há longo tempo vem despertando
o interesse dos psicólogos sociais. Reconhece-se que uma das principais características das
relações intra e intergrupais é a diferença na percepção de homogeneidade dos membros do
grupo do endo e do exogrupo (Judd e Park, 1988; Ostron e Sedikides, 1992). Presume-se que a
homogeneidade percebida sofre o impacto dos mecanismos da assimilação perceptual e do
contraste (Allport, 1962), que não apenas contribuem para um certo exagero na percepção de
similitude entre os membros de um mesmo grupo, como também contribuem para fazer com que
as diferenças entre os membros de grupos distintos seja mais perceptíveis do que elas são na
realidade. Qual a relação possível entre a percepção de homogeneidade intragrupal e o
julgamento da valência de um grupo? As pressões no sentido de impor um certo padrão de
uniformidade na aparência física, nos valores e nas crenças estabelecem algum vínculo
associativo com a formulação de juízos valorativos sobre os agrupamentos sociais?
A segunda dimensão considerada no presente artigo se refere ao foco dos agenciamentos
da ação humana. Os vários modelos de estágios de desenvolvimento grupal e coletivo sugerem
um script relativamente comum no qual indivíduos, com pouca coisa em comum, aproximam-se
em determinado momento e sem qualquer orientação ou desígnio explícito, agem em uníssono.
Muitas vezes esta ação é desencadeada por um evento precipitador de importância menor e, uma
vez finalizada a ação, os indivíduos retornam aos seus afazeres cotidianos sem que venham a
manter interações posteriores entre si (Worchel, 2005). O incessante debate entre individualistas
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e holistas sugere que os grupos podem refletir tanto os interesses da totalidade, quanto o que se
supõe ser o interesse dos indivíduos (Mullen, 1991). O predomínio de um destes dois focos pode
levar o grupo ao desaparecimento, seja por anomia, quando o interesse da totalidade se sobrepõe
inteiramente ao molecular, seja por migração grupal, quando as vontades individuais e as
idiossincrasias pessoais superam amplamente o interesse grupal. Seria possível identificar
alguma relação entre a positividade ou negatividade no julgamento dos grupos e o predomínio de
interesses individuais ou grupais?
Uma terceira dimensão explorada no presente estudo se relaciona com a questão da
duração dos grupos. Alguns grupos, uma renca ou uma curriola, por exemplo, presumivelmente
possuem uma duração breve, enquanto outros, a exemplo das equipes de trabalho, podem
persistir e sobreviver anos a fio. A dimensão temporal tem desempenhado um importante papel
na classificação dos grupos humanos. Freud (1976/1921), por exemplo, diferencia os grupos
mais fugazes, cujos fundamentos são encontrados numa ação irracional, excitada e emocional,
em contraposição aos grupos mais duradouros e organizados, que se orientam por uma ação mais
racional e refletida. Em que medida a valência do grupo está associada com a perspectiva
temporal?
A quarta e última dimensão explorada no presente artigo se refere ao grau de organização
dos grupos. Nem todos os grupos são igualmente organizados, pois eles diferem quanto ao grau
de formalismo nas relações entre os indivíduos, na divisão social do trabalho e nos sistemas de
normas, vigilância e aplicação de sanções aos desviantes (Hoog, 1999). Estas diferenças no grau
de organização entre os grupos naturalmente suscitam questões relativas ao julgamento da
valência dos grupos. Seriam os grupos relativamente bem organizados percebidos de forma mais
positiva que os grupos caracterizados por um grau mais rudimentar de organização?
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Para fins de operacionalização, partimos de uma premissa básica: no que concerne à
valência no julgamento dos grupos, estes se distribuirão ao longo de um contínuo, com algumas
acepções sendo avaliadas de forma positiva e outras de forma mais negativa. A partir desta
premissa postulamos um conjunto de hipóteses cujos enunciados podem ser assim expressos: i)
no que se refere ao grau de homogeneidade, espera-se que os grupos mais positivos sejam
percebidos como menos homogêneos que os grupos negativamente avaliados; ii) em relação ao
tipo de agenciamento, espera-se que os grupos que privilegiam a dimensão grupal sejam mais
valorizados que os grupos que privilegiam a dimensão individual; iii) em relação à perspectiva
temporal, espera-se que os grupos mais duradouros sejam avaliados de forma mais positiva do
que os percebidos como mais fugazes; e iv) quanto ao grau de organização, espera-se que os
grupos percebidos como mais organizados sejam julgados de uma forma mais positiva do que os
grupos percebidos como desorganizados.
Método
A pesquisa empírica desenvolvida para testar as hipóteses acima enunciadas foi
concebida para ser realizada em um ambiente de coleta on-line de dados. A arquitetura
computacional do sistema EFS Survey proporciona ao pesquisador a possibilidade de desenhar a
pesquisa de uma forma impossível de ser concebida nas pesquisas de levantamentos conduzidas
apenas com os recursos tradicionais. Nas subseções subsequentes serão descritos, com um certo
grau de detalhamento, o ambiente, o instrumento e os procedimentos, bem como serão
apresentadas as características demográficas dos participantes do estudo.
O ambiente de investigação
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O ambiente do EFS Survey, adotada na versão 6.0, embora possa ser definido com um
sistema para elaboração, implementação e coleta on-line de dados para pesquisas de
levantamentos (survey), traz em seu bojo um conjunto de recursos que permite concebê-lo com
um sistema mais abrangente, com capacidade inclusive de permitir o delineamento de
experimentos psicológicos com um certo grau de complexidade. A existência de estruturas de
programação envolvendo o uso de filtros e de clausulas condicionais, bem como a possibilidade
de aleatorização de perguntas e da ordem de itens de resposta, aliado ao recurso da rotação
aleatória, proporciona ao pesquisador um repertório de facilidades para a condução de
investigações dificilmente acessíveis por métodos tradicionais (EFS Survey, 2009).
Procedimentos e instrumentos
O questionário foi estruturado mediante a utilização de alguns tipos de questões
disponíveis no EFS Survey. Mediante consultas a especialistas foram identificados vários termos
que se referiam ou estavam associados ao conceito de grupo. Algumas destas acepções foram
descartadas por representarem regionalismos ou por não estarem dicionarizadas, de forma que
restaram doze termos, mais ou menos conhecidos. Uma vez que o grau de conhecimento a
respeito destes termos é diferenciado, na questão inicial apresentada ao participante se solicitava
que este indicasse, mediante o registro no espaço apropriado, quais dentre os doze termos
conhecia. A figura 1 reproduz a tela, com as doze acepções consideradas no presente artigo.
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Figura 1: Tela do sistema EFS Survey apresentando as doze acepções de grupos
Mediante o uso de filtros de programação internos ao sistema EFS Survey, apenas os itens
selecionados foram subsequentemente apresentados aos participantes. Como a ênfase do estudo
recaiu sobre a comparação entre as diversas acepções, foi adotado, nas respostas subsequentes, o
tipo de questão definido no sistema EFS Survey como matrizes simples. A figura 2 reproduz a
tela na qual se solicita a avaliação de positividade/negatividade para um hipotético participante
que tenha assinalado na questão anterior conhecer apenas os termos equipe, turma, bando e
gangue.
Figura 2: reprodução parcial da tela, com a questão no formato de matrizes simples, sobre o grau de negatividade-positividade dos grupos
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Participantes
Uma das características mais marcantes da pesquisa conduzida mediante o apelo a
recursos on-line de coleta de dados se refere a uma maior liberdade concedida ao participante no
sentido de participar ou não do estudo ou de decidir quando abandonar a investigação. Isto
reflete diretamente em um número substancial de casos perdidos (missings), que pode afetar a
fidedignidade dos dados obtidos. O sistema EFS Survey dispõe de um console de controle que
oferece ao pesquisador um conjunto significativo de informações relativas à participação na
pesquisa.
A análise destes dados indica que entre os dias 31/08/2008 e 19/10/2009 um total de 1168
participantes acessaram ao endereço web da pesquisa. Deste total, 632 concordaram e
efetivamente acessaram as instruções iniciais da pesquisa, 347 foram até a última etapa, o que
representa 29,7% da quantidade total de participantes e 54,9% da quantidade de participantes que
efetivamente iniciaram a participação no estudo.
Tabela 1: Características demográficas
Característica Demográfica N % válida
Gênero
Masculino 110 33,5 Feminino 234 66,5Faixa etária (anos) 14-20 108 31,4 21-30 160 46,5 Acima de 30 76 22,1
Escolaridade Ensino Fundamental 5 1,6 Ensino Médio 34 8,6 Ensino Superior 323 62,5
Total 389 100,0
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As características demográficas destes participantes estão apresentadas na tabela 1, que reflete
uma maior predominância de participantes do sexo feminino, uma forte alocação de participantes
na faixa etária dos 14 aos 30 anos e, sobretudo, uma baixíssima representatividade de
participantes com nível de escolaridade básico.
Análise e discussão dos resultados
Antes de prosseguir com os resultados relativos aos testes das hipóteses anteriormente
enunciadas, é importante identificar o grau de conhecimento dos participantes a respeito de cada
uma das acepções de grupo consideradas na pesquisa bem como identificar se os dados obtidos
foram compatíveis com a premissa do estudo previamente enunciada.
Nem todas as acepções foram homogeneamente representadas. Termos como turma
(N=453), equipe (N=446), galera (N=433), bando (N=417) gangue (n=408), tropa (N=396) e
corja (N=311) se mostraram bem mais conhecidos do que acepções como renca (N=278), patota
(N=242), malta (N=86) curriola (N=77) ou súcia (N=33).
A premissa central de análise do presente trabalho se relaciona com o grau de
positividade ou negatividade dos distintos tipos de grupos. Mediante a utilização do teste t para
uma única amostra e adotando o valor 4 como critério, uma vez que ele se refere à alternativa de
resposta nem positivo, nem negativo, foi possível identificar que apenas o termo malta foi
avaliado de forma neutra (t (56) =0.96, p = .924).
Os resultados relativos aos demais itens foram estatisticamente significativos, sendo cinco
acepções avaliadas positivamente (equipe, turma, galera, patota e tropa) e seis negativamente
(renca, bando, curriola, súcia, gangue e corja).
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Figura 3: Intervalos de confiança de 95% relativos às doze acepções
Em resumo, e de forma compatível com o apresentado na figura 1 e postulado na
premissa que fundamenta o presente estudo, observa-se um contínuo na avaliação da valência
das distintas acepções sobre os grupos. Ademais, embora possam ser detectadas algumas
variações concernentes aos intervalos de confiança, particularmente no caso da acepção turma, as
amplitudes dos intervalos se mostraram relativamente homogêneas.
Por motivos de parcimônia, para as hipóteses que se seguem foram consideradas apenas
as sete acepções mais conhecidas (turma, equipe, galera, bando, gangue, tropa e corja),
adotando-se como critério de inclusão o fato destas acepções terem sido declaradas como
conhecidas por mais de 60% dos participantes.
A hipótese i postula uma relação inversamente proporcional entre o grau de positividade
e a homogeneidade. A figura 4 representa as linhas de regressão das relações entre o grau de
positividade e a atribuição de homogeneidade para cada acepção e evidencia que no caso dos
termos galera (r=-,125, p<.05) e equipe (r=-,087, p<.05) a hipótese não foi corroborada,
enquanto as acepções bando (r=,111, p<.05), corja (r=,176, p<.05) e gangue (r=,200, p<.001) a
confirmaram. As associações para as variáveis tropa e turma não foram estatisticamente
significativas.
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Figura 4: Linhas de regressão entre positividade e a dimensão homogeneidade-heterogeneidade para os sete diferentes tipos de grupos
Em linhas gerais, os resultados evidenciam uma relação relativamente complexa entre a
valência e a homogeneidade grupal. De acordo com Levine e Moreland (1998), estudos com
grupos naturais mostram que em geral as pessoas se sentem melhor em grupos menores e mais
homogêneos, nos quais as relações informais entre os indivíduos desempenham um papel
decisivo e que todos dedicam a atenção a um foco comum de interesse. Os dados aqui
apresentados ajudam a esclarecer a natureza desta relação, pois evidenciam o papel moderador
desempenhado pelo tipo de grupo, uma vez que os termos de acepção mais negativa, a exemplo
de bando, corja e gangue, são vistos como mais negativos nas circunstâncias em que os membros
são mais heterogêneos, enquanto as acepções mais valorizadas são tratadas como mais positivas
na medida em que os membros são semelhantes entre si.
A segunda hipótese, relativa ao tipo agenciamento, postulava uma associação positiva entre os
agenciamentos grupais coletivos e a avaliação positiva do grupo. Conforme observado na figura
5, as linhas de regressão são compatíveis com a direção postulada na hipótese, embora não
tenham sido detectadas diferenças significativas estatísticas no caso das acepções corja, gangue e
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turma. Nos demais casos, bando (r =,181, p<.001), equipe ( r =,235, p<.001), galera (r =,130,
p<.05) e tropa (r =,234, p<.001), os valores dos coeficientes indicam que independente da
natureza da avaliação, se positiva ou negativa, os grupos tendem a ser melhor avaliados na
medida em que os membros dos grupos são vistos como orientados a atenderem mais aos
interesses coletivos que individuais.
Figura 5: Linhas de regressão entre positividade e a dimensão interesse individual ou grupal para os sete diferentes tipos de grupos
Ainda que sejam percebidos como entes incorpóreos, a percepção do grupo enquanto entidade
autônoma é valorizada, particularmente no caso dos grupos de valência positiva. Merece
particular atenção os resultados relativos aos termos equipe, galera e turma, uma vez que a
valência permanece alta de forma independente do tipo de agenciamento.
A terceira hipótese alude às relações entre a valência e a dimensão temporal, postulando-se uma
avaliação mais positiva dos grupos duradouros quando comparados com os grupos percebidos
como mais fugazes. Do ponto de vista estatístico, foram identificadas associações positivas nas
variáveis equipe (r=,240, p<.001), turma (r=,186, p<.001), bando (r=,287, p<.001), galera
(r=,294, p<.001), e tropa (r=0,202, p<.001). A análise das direções das linhas de regressão
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encontradas na figura 6 sugere que exceto nos casos da corja e da gangue, cujos resultados não
foram significativos, quanto mais duradouro o grupo, mais ele tende a ser positivamente
avaliado.
Figura 6: Linhas de regressão entre positividade e a dimensão duração para os sete diferentes tipos de grupos
A quarta hipótese se relaciona com organização do grupo, sustentando-se no
entendimento de que a valência se relaciona de forma direta com o grau de organização grupal.
Conforme se observa nas linhas de regressão apresentadas na figura 7, a hipótese se confirmou
para acepções positivamente avaliadas equipe (r=0,320, p<,001), galera (r=0,195, p<,001), tropa
(r= 0,192; p<,001) e turma (r=,133, p=<,05), assim como para a acepção negativa bando
(r=0,165, p<0,05), enquanto não foi possível identificar qualquer associação entre o grau de
organização e a valência nos casos das acepções corja e gangue.
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Figura 7: Linhas de regressão entre positividade e a dimensão organização grupal para os sete diferentes tipos de grupos
Este resultado indica, pelo menos nos caso das acepções com a valência positiva, que os grupos
mais organizados tendem a ser percebidos de forma mais positiva do que os grupos no qual o
grau de organização é percebido como mais rudimentar, ao mesmo tempo em que permite supor
que no caso dos grupos negativos, a valência independe do grau de organização.
Conclusões
O que até aqui apresentamos sugere quão implausível é se referir de maneira abstrata e
monolítica ao conceito de grupo, já que as diferentes acepções foram avaliadas de forma
heterogênea. Ao adotarmos o critério valência para a diferenciação entre os grupos, fica explícita
a pluralidade semântica associada ao conceito de grupos, o que evidencia a necessidade de
repensar os estudos tradicionais que se limitam a entender os grupos humanos como uma
entidade homogênea e indiferenciada.
O presente estudo oferece suporte ao conceito de entitatividade ao evidenciar que as pessoas
realizaram julgamentos sobre os grupos de forma independente da avaliação dos seus
21
componentes individuais, o que sugere a possibilidade de que um grupo seja percebido como
entidade e não apenas como um conjunto de indivíduos com características próprias.
As dimensões consideradas - homogeneidade percebida, agenciamento individual ou grupal,
organização e duração - mostraram-se relevantes para explicitar que a percepção dos grupos
varia quanto ao grau de entitatividade e indicam um conjunto sistemático de associações entre
variáveis como a duração, o grau de organização, o tipo de agenciamento e o nível de
organização e a percepção de positividade ou negatividade dos grupos. Estes resultados, no
entanto, demandam a condução de novos estudos, nos quais as hipóteses aqui corroboradas
possam ser submetidas à prova segundo perspectivas metodológicas distintas. Da mesma forma,
é importante assinalar outra importante limitação deste estudo, dada a pouca representatividade
de pessoas com nível de escolaridade fundamental e média, o que demanda estudos adicionais no
sentido de ampliar a validade ecológica dos resultados aqui relatadoa. Por se tratar de um estudo
restrito a participantes brasileiros, vale ressaltar que é desaconselhável a generalização das
evidências aqui obtidas para outros contextos geográficos, linguísticos e culturais, o que impõe a
necessidade de conduzir novas pesquisas em contextos diferentes que o nosso, usando termos e
acepções que mantenham uma relativa equivalência com os encontrados no português falado e
escrito no Brasil e adotados no presente estudo.
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