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GRUPO DE TRABALHO 2
INSTITUIÇÕES, ELITES E DEMOCRACIA.
A DEMOCRACIA SUL-AMERICANA EM
PERSPECTIVA COMPARADA:
OS CASOS DO BRASIL, DA BOLÍVIA E DA
VENEZUELA.
Vladimyr Lombardo Jorge
Paulo M. d’Avila Filho
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A DEMOCRACIA SUL-AMERICANA EM PERSPECTIVA COMPARADA:
OS CASOS DO BRASIL, DA BOLÍVIA E DA VENEZUELA.1
Vladimyr Lombardo Jorge
Paulo M. d’Avila Filho
Resumo.
Após uma breve discussão sobre alguns aspectos conceituais controversos que dizem respeito ao
binômio democracia e representação política, os autores analisam as mudanças constitucionais
ocorridas na Bolívia, no Brasil e na Venezuela com o intuito de discutir os modelos democráticos
adotados por esses três países sul-americanos. Os autores observam que a Constituição brasileira de
1988 manteve a democracia representativa e que, desde então, os projetos de reforma política visam
fortalecê-la. Já a Venezuela e a Bolívia introduziram um modelo de democracia semidireta ou
participativa, embora ainda haja incertezas quanto à sobrevivência desse novo modelo nesses
países.
Introdução.
No final do século passado, muitos povos latino-americanos (re)adquiriram o direito de
escolher seu(s) representante(s). Mas, a realização periódica de eleições livres e honestas não basta
para tornar um país democrático. Não há, contudo, consenso sobre o que, além da realização
periódica de eleições, é necessário. Uns consideram essenciais o respeito aos direitos individuais e a
existência de algumas instituições formais tidas como fundamentais; outros priorizam a existência
daqueles institutos que estimulam a cidadania ativa ou que possibilitam aos cidadãos obterem maior
controle sobre seus representantes. Embora essas coisas não sejam necessariamente incompatíveis,
os defensores de um modelo tendem a ver o outro como obstáculo ao que defendem.
Com o intuito de discutir a democracia na América Latina, submetemos neste artigo as
experiências democráticas boliviana, brasileira e venezuelana a uma análise comparativa. Em 1999,
a Venezuela abandonou formalmente a democracia representativa, tendo-a substituído por um
inédito modelo de democracia semidireta. Pretendemos demonstrar, contudo, que Chávez tem
utilizado os referendos para consolidar e ampliar seu poder, fazendo aumentar ainda mais a
desconfiança que os partidários da concepção liberal de democracia têm com relação à democracia
semidireta. Essa tendência centralizadora do governo Chávez cria, ainda, muita controvérsia em
torno do regime e estimula a pergunta: para onde caminha a Venezuela?
1 Este paper é produto de parte das atividades, debates e discussões sobre os dilemas da democracia e da representação
política desenvolvidas no âmbito do Grupo de Estudos de Assimetrias Políticas e Democracia, sediado no Programa de
Pós-Graduação em Ciências Sociais do Departamento de Sociologia e Política da PUC-Rio, coordenado pelo professor
Paulo d’Avila Filho, do qual participam alunos de graduação, mestrado e doutorado e professores como Vladimyr
Lombardo Jorge.
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Os bolivianos também têm valorizado a democracia semidireta. Ao definirem a democracia
boliviana como “participativa, representativa y comunitária”, os constituintes daquele país não
apenas introduziram vários institutos da democracia direta, mas também quiseram fortalecer
politicamente os povos indígenas. Nos últimos anos, um desses institutos, o referendo, tem sido
utilizado como meio para solucionar os conflitos internos, reformar o sistema político do país e
arma política pelo governo e pela oposição para tentar impor derrotas ao seu adversário. Mas apesar
de suas vitórias, Morales não conseguiu, até este momento, ampliar seus poderes tal como Chávez.
Já o Brasil trilhou um caminho inverso ao percorrido pela Venezuela e Bolívia nos últimos
anos. Após a restituição da democracia representativa no país em meados dos anos 1980, os
políticos brasileiros impuseram obstáculos que dificultam o uso daqueles poucos institutos
constitucionais que permitem ao cidadão brasileiro ter uma participação política ativa. Apesar de
haver propostas visando intensificar a participação direta dos brasileiros, estas não se inserem entre
os projetos de reforma política debatidos entre os principais partidos. Pois, os políticos brasileiros,
mas não apenas eles, partem da premissa de que é necessário fortalecer a democracia representativa
e que, para isso, é necessário que se mantenha reduzida a participação dos cidadãos e ociosos os
institutos da democracia semidireta. Há, ainda, outros dois aspectos que distinguem o Brasil da
Venezuela e da Bolívia. O primeiro é a ausência de mudanças institucionais realizadas por meio de
referendos visando fortalecer ainda mais o Executivo brasileiro em detrimento dos demais poderes.
O segundo é o uso do referendo pelo governo ou pela oposição como meio para impor uma derrota
política a seus adversários.
Para discutimos o tema proposto, este artigo foi dividido em quatro seções. O objetivo da
primeira seção é discutir alguns aspectos conceituais controversos que dizem respeito ao binômio
democracia e representação política. Na segunda seção, além de comentar a democratização do
Estado liberal, comentaremos os avanços e recuos da democracia representativa nos séculos XIX e
XX. Em seguida, discutiremos brevemente os limites da democracia representativa que têm
estimulado o debate sobre o modelo mais apropriado para superar tais limitações. Na quarta e
última seção, discutimos a nova experiência democrática latino-americana, submetendo a uma
análise comparativa os experimentos venezuelano e brasileiro.
I. Dilemas da democracia
Democracia é um tema polêmico. Não apenas porque existem diferentes compreensões do que
seja a democracia, mas, também, em função da grande diversidade de experiências consideradas
democráticas espalhadas pelo mundo.
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De um ponto de vista conceitual, os termos propostos pela palavra democracia, composta
pela disjuntiva “demos” (povo, população) e “cracia” do grego Krátos ou Krateos (autoridade,
poder), sugerem uma difícil composição que enseja delicados problemas de interpretação e
definição, envolvendo significativas controvérsias sobre quais seriam os valores e os procedimentos
democráticos desejáveis.
Passando de um plano normativo à experiência, a democracia representativa nos últimos
duzentos anos se expandiu significativamente. Os processos de democratização, contudo,
conduziram os países a formatos de democracia que variaram em função das expectativas geradas
pela mudança do regime, os problemas que buscavam resolver em cada caso e as vicissitudes
impostas pelo contexto e os atores envolvidos. Em alguns países, ao final do processo, surgiu um
sentimento, individual ou coletivo, de frustração, evidenciado pelas pesquisas de opinião pública.
Isso levou a emergência, dentro e fora das universidades, de um debate acerca da qualidade da
democracia e seus procedimentos.
Como sugere Guillermo O`Donnell, “a palavra democracia, desde tempos imemoriais,
recebeu fortes (mas diferentes) conotações morais [...]. Isto estende à teoria da democracia,
inclusive a de conotação empírica, aos complicados mas inevitáveis problemas da filosofia política
e da teoria moral” (O`Donnell, 1999). Toda filosofia envolve uma dimensão valorativa ou ético-
normativa, que atribui determinados significados a processos sócio-históricos e produz certos
efeitos na dinâmica social. Nesse sentido, as categorias formuladas pelo pensamento político
traduzem uma compreensão específica da realidade, que pode permitir aos agentes sociais organizar
racional e praticamente sua experiência, fornecendo-lhes um repertório de significados comuns.
A legitimidade do representante que condicionalmente é taxada como produto exclusivo das
eleições, é o principal ponto de apoio e defesa dos tradicionais modelos de representação política
partidária. A tentativa de investigar o quanto o mecanismo eleitoral pode, de fato, tornar mais
representativas as instituições da democracia, é visto em geral com suspeição. Chama a atenção, na
leitura dos mais recentes trabalhos sobre a democracia e a representação política, como é frequente
recorrer a certas classificações como aporias democráticas ou entropias, ou os famosos indicadores
de que há algum engano entre prática e teoria: abstração, irrealizável, impossível, indesejável e
inviável. A frequente queixa do distanciamento entre representantes e representados, bem como a
multiplicação de experiências políticas participativas são sintomas dessas questões.
Os diferentes contornos assumidos pela representação política suscitam uma revisão teórica
acerca do conceito de representação, que está no cerne da tensão contida no ideal de democracia.
Tensão esta entre uma imaginação política enlevada pela propulsão de uma cidadania ativa que, ao
aproximar representantes e representados, retoma a perspectiva clássica da democracia como
soberania popular; e o caráter aristocrático da idéia de representação, marcada por um princípio de
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distinção, conforme apresentado por Bernard Manin (1995). A perspectiva é sugerir uma
desnaturalização dos conceitos e dicotomias usualmente encontrados e problematizar a discussão.
É comum nos distrairmos ao usarmos conceitos como democracia e representação política
como sinônimos. Ao fazermos isto estamos esquecendo toda uma história social dos conceitos.
Democracia sugere um universo muito mais amplo de possibilidades de entendimento do exercício
da política, que envolve tanto uma referência clássica e seus significados, como a relação entre
razão e justiça, quanto sua formulação moderna calcada na compreensão de razão e política do
individualismo moderno.
Democracia e representação política são temas polissêmicos. Desta forma, Hanna Pitkin
(1972) nos fornece valiosa contribuição ao delicado encontro entre democracia e representação
política. Pitkin empreendeu um breve histórico etimológico da palavra representação, e reconhece a
significativa polissemia da palavra representação em língua inglesa. A autora realiza um esforço de
sistematização para indicar que a representação pode ser institucionalizada de diferentes maneiras
que competem entre si, e acrescenta que muito da popularidade contemporânea adquirida pelo
termo se deve à sua ligação à idéia de democracia, bem como às idéias de liberdade e justiça.
Entretanto, através de grande parte da história de ambos, tanto o conceito quanto a prática da
representação pouco tiveram a ver com democracia e liberdade. E que o conceito de representação,
especialmente de seres humanos representando outros seres humanos é essencialmente moderno.
Manin (1995), por sua vez, relembra que democracia não é, portanto, a mesma coisa que
governo representativo, assim como Pitkin nos teria alertado para outra recorrente confusão:
representação não significa necessariamente governo representativo. O governo representativo é
uma fórmula moderna de organização política que não encerra o universo de possibilidade da idéia
de representação política. Deriva daí a percepção de que a democracia de partidos não encerra o
universo de possibilidades do exercício da representação. Menos ainda, representação eleitoral
significa apenas as exigências formais de eleições periódicas e diz pouco sobre o que seria uma
representação democrática, como sugere Nádia Urbinati (2006), que dependeria da qualidade da
interação entre representantes e representados, ampliando o leque de possibilidades do exercício da
democracia.
As recentes exigências por maior participação no processo decisório vêm produzindo novas
experiências de incrementos democráticos que transbordam os conhecidos mecanismos político
partidários de representação de interesses. Podemos confrontar ao menos três matrizes teórico-
interpretativas que se apresentam ao debate do horizonte teórico democrático: o chamado novo
republicanismo e a democracia liberal representativa e sua face pluralista.
De acordo com ponto de vista liberal, o processo político se constitui, na melhor das
hipóteses, em um campo aberto à disputa por posições que assegurem a capacidade de dispor de
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poder, através de postos na estrutura do Estado. Esta competição está centrada nas mesmas
estruturas do jogo de mercado. A partir de um conjunto de regras pré-estabelecidas, os concorrentes
irão disputar a preferência do eleitorado, que é livre para expressar sua opinião e sua vontade. A
separação entre sociedade civil e Estado ou entre mundo privado e universo público é marcante: no
primeiro, formam-se as preferências; no segundo, constituem-se os mandantes dessa preferência
que, todavia, devem respeitar, em nome do Estado, o domínio protegido dos direitos civis
anteriormente acordados.
No modelo pluralista, apresentado por Robert Dahl (1997), o ponto forte do argumento é
que se os processos políticos são geridos pelas lideranças (Schumpeter, 1984) e, se é verdade, como
sugere Michels (1983), que a tendência das organizações que compõem os instrumentos de disputa
é sua oligarquização, então, ao menos, que se estabeleça um sistema que permita maior competição
regrada, não predatória, entre o maior número possível de lideranças. Isto seria um sistema
poliárquico. As vantagens da poliarquia derivam da competição aberta entre grupos e organizações,
que em sua disputa mobilizam massas, que teriam, então, maior participação na decisão pública, na
medida em que as lideranças precisam satisfazer as suas bases de apoio.
Na leitura do novo republicanismo, o processo de formação da opinião e da vontade
pressupõe a política como uma atividade normativa não constrangida pelo direito subjetivo e
individual. No que diz respeito à abrangência de suas deliberações, o universo de possibilidades
estará dado por intermédio dos resultados do arranjo interativo e da intersubjetividade do diálogo no
mundo público. A política abrange o mundo dos valores mais do que apenas de preferências,
alcança várias esferas da vida, opera com a persuasão e não com o poder. O sentido é constituir a
boa justiça como resultado mesmo do consenso interativo. Neste caso, a ênfase é nos direitos
políticos de participação, nas liberdades positivas e não nas negativas. A esfera privada fica, assim,
submetida à ótica da deliberação coletiva. Não há garantias ou proteção contra coerções externas
coletivamente produzidas no espaço público, mas, sim, à participação que afirma a
autodeterminação dos sujeitos dentro de uma comunidade de homens livres e iguais. Os limites do
direito serão definidos pela vontade política prevalecente e não por alguma determinação pré-
política.
Um conjunto de autores, no entanto, procura apresentar uma alternativa aos limites contidos
nestas proposições. São alternativas que procuram transitar por aspectos contidos nos três universos
propositivos. A questão é como estabelecer canais em que se possam processar relações de
cooperação público-privada, sem ferir as chamadas liberdades negativas e a soberania do Estado de
Direito, levando-se em consideração a intangível necessidade de interlocução com os grupos
organizados de representação de interesses. Essas formulações, embora possuam aspectos em
comum, se apresentam sob diversas roupagens ou modelos que poderíamos chamar de:
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neocorporativo (Hirst, 1992), de democracia participativa (Bobbio, 1986), associativa (Cohen,
1995), deliberativa (Habermas, 1997), dialógica (Giddens, 1996) ou a recente “representação
complexa” de Pierre Rosanvallon (2000), ampliando os horizontes de uma perspectiva democrática
pós-sufrágio.
O debate recente sobre os caminhos, limites e possibilidades da democracia navega entre os
partidários da chamada democracia participativa, da qual os mecanismos semidiretos de decisão
pública costumam se alimentar, e os defensores da chamada democracia representativa partidária,
assentada na idéia de autonomia política da representação. O debate possui dois eixos: o problema
do déficit de representatividade do sistema político democrático e o surgimento de novos
incrementos democráticos. Lavalle (2006) observa de forma arguta a fronteira entre dois campos
que se debruçam, cada um a seu modo, sobre o problema da democracia e da representação em um
processo que prima antes pela distância entre seus approaches do que por sua proximidade. A
perspectiva de Lavalle aproxima esses dois campos, dois conjuntos de literatura. Afinal de contas
um dos grandes problemas da dita representação política é como adensar a relação entre
representante e representado, ou seja, o problema da participação na vida política por parte dos
representados. De outro lado, um dos problemas enfrentados pela literatura da chamada democracia
participativa é o tema da representação política nos experimentos participativos e suas vicissitudes.
Investigar as tensões possíveis entre a perspectiva clássica de ideal democrático calcado na
soberania popular e a fórmula moderna da democracia representativa exige alguns cuidados que
devem ser observados. Em primeiro lugar, deixar-se de lado os discursos de crise iminente,
apoiados em retratos de fatos recentes que apontariam à ruína do sistema representativo. A
perspectiva de convivência tensa entre democracia e representação política não pode ser analisada
como um fato novo, que emerge em nossos dias. A relação conflituosa entre ambos os conceitos é
apontada de várias formas por autores recentes, mas suas origens remontam ao próprio processo
histórico onde foi estabelecido o modelo de governo representativo. Desnaturalizar tanto a
democracia quanto a representação política passa justamente pela percepção de que sua relação
sempre foi tensa e de disputa, e que o consenso, apesar de muito desejado em algumas vertentes,
não é quem dá o tom final ao processo.
As formulações apresentadas acima sugerem a multiplicidade de proposições de
incrementos democráticos pós-sufrágio. Os modelos, no entanto, são apresentados como
complementares e não mais como alternativas em um jogo de soma zero. Não se trata de pares de
opostos. O processo democrático é constituído historicamente por tensões, contradições e fricções,
acreditamos que se trata não de um arranjo necessariamente harmônico de complementaridade, mas
uma coextensividade frequentemente marcada pela contradita. Contradita entre os valores de
soberania popular e autonomia representativa, por exemplo. A nosso ver, a contradição não é um
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problema, mas o próprio “motor” do processo incessante da experiência democrática, marcada ao
mesmo tempo pela sensação de insuficiência (quanto às exigências por soberania) e desconfiança
quanto ao exercício do poder político e da representação.
O ponto central permanece. A história da democracia e seus formatos no tempo e no espaço
são um processo, indica um movimento. Movimento marcado pelas noções de insuficiência e
desconfiança (d’Avila e Farias, 2009). Sejam os mecanismos representativos, sejam os artefatos
participativos de democracia semidireta, como serão investigados nas seções seguintes, ambos
estarão marcados pela angústia da insuficiência e pelo motor da desconfiança. Tensão que
impulsiona o processo democrático. Há sempre algum sentimento de perda nas escolhas
processuais. Mas diferentes países e contextos, em função de um conjunto de variáveis, fazem suas
escolhas, indicando as tendências das apostas e seus dilemas e/ou paradoxos.
II. Autoritarismo e democracia na América Latina no século XX
Foi durante a segunda onda democrática (1943-1958) que o Brasil e a Venezuela se
democratizaram. A experiência democrática brasileira começou em 1945, mas foi marcada por
crises políticas. Terminou em 1964, quando um golpe militar deu início a uma longa fase
autoritária. Já o período democrático venezuelano começou em 1958, após um pacto firmado pelos
três maiores partidos políticos (AD, Copei e UDR) na cidade de Punto Fijo. Nas duas décadas
seguintes, Venezuela e Colômbia foram as únicas democracias sul-americanas.
Já a Bolívia tem uma história política bastante conturbada. Entre 1946 e 1982, esse país
sofreu 14 atentados institucionais (Santos, 2002, p. 321) e, ao longo de todo esse período, só teve
regimes não-democráticos.
A terceira e atual onda democrática na América Latina começou no Equador, em 1979.
Porém, durante essa fase, as instituições políticas democráticas entraram em crise em muitos países
da região. As evidências disso são a enorme desconfiança dos latino-americanos com relação às
suas instituições políticas,2 o desaparecimento ou o enfraquecimento de partidos políticos
tradicionais e alguns itens das reformas políticas que quase todos os países sul-americanos
promoveram entre 1984 e 2007.
Para muitos latino-americanos, a redemocratização de seus respectivos países não se resumia
apenas ao fim do regime autoritário, mas significava também desenvolvimento econômico,
2 É esperado que, em uma democracia liberal, os cidadãos desconfiem dos seus representantes e das instituições
políticas. Mas não ao ponto de, como fizeram os argentinos no início deste século, dizerem “Que se vayan todos”. Sobre
a desconfiança, ver Power e Jamison, 2005. A respeito dos partidos políticos e das reformas políticas, ver. Melo, 2006 e
Anastasia, Melo e Santos, 2004.
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redistribuição de renda, igualdade social e redução das assimetrias entre as regiões.3 À medida que
os governos eleitos democraticamente não apenas demonstraram ser incapazes de responder
satisfatoriamente a essas demandas, mas também adotavam políticas econômicas que as agravavam
ainda mais, as instituições democráticas liberais entravam em crise, o que levou ao aumento da
instabilidade política em vários países da América Latina.4
Venezuela e Bolívia são casos emblemáticos. Durante quase quatro décadas (1958-1992) a
Venezuela foi considerada uma democracia estável. Mas, desde o governo de Andrés Pérez (AD),
este país voltou a ingressar em um período de instabilidade política e de ameaça à democracia
liberal.5 Se, nos anos 1990, a Venezuela continuou sendo uma democracia, seu regime deixou de
ser estável, pois, desde o acordo de Ponto Fijo, os 13 atentados institucionais que esse país sofreu,
todos ocorreram entre 1992 e 2004. (Jorge, 2009) A Bolívia, por sua vez, continuou a ser um país
politicamente instável mesmo após ter se democratizado em 1982. Os presidentes bolivianos eleitos
democraticamente enfrentaram crises econômicas, queda de popularidade, greves, perda de apoio
político e manifestações de rua. Por causa das manifestações de rua, três presidentes tiveram que
renunciar: Siles Zuazo (MNR), Sánchez de Lozada (MNR) e Carlos Mesa (sem partido).
No Brasil, as crises políticas ou econômicas enfrentadas pelo país não ameaçaram à
sobrevivência do regime. Nenhuma das cinco eleições presidenciais foi contestada pela oposição;
nenhum dos parcos protestos de rua ameaçou desestabilizar o governo. Com exceção do
impeachment sofrido pelo ex-presidente Fernando Collor (PRN), nenhum evento de instabilidade
política ocorreu no Brasil nos anos 1990. (OPSA, 2008, p. 27) Desde os anos 1980, portanto, o
Brasil vive a sua mais longa e estável experiência democrática.
III. As limitações da democracia representativa e suas consequências
A realização periódica de eleições livres e limpas é um requisito necessário para haver
democracia, mas insuficiente para permitir identificar um país democrático.6 Não há, ainda, um
consenso sobre os critérios democráticos. Apesar de muitos analistas não incluírem questões
3 Se os anos 1980 foram muito ruins para a Bolívia, os anos 1990 foram melhores para este país. De acordo com
Marcelo Coutinho, este país “cresceu a maior parte do tempo acima de 4%, caindo o PIB apenas em 1999, mas voltando
a recuperar-se logo nos anos seguintes, ainda que com menos intensidade.” (Coutinho, 2006b, p. 797) Já com relação à
Venezuela, Coutinho afirma que o crescimento desse país no período 1980-2003 foi um dos mais instáveis na região
dos Andes. O crescimento de 18%, em 2004, segundo Coutinho “[...] foi, em grande medida, decorrente de uma forte
recuperação da crise de 2002 e 2003, anos em que o país decresceu a taxas de 9%, o pior desempenho andino,
comparado apenas à crise peruana no final da década de 1980, quando também a Venezuela passou por maus
momentos.” (idem, p. 799) 4 Sobre o Índice de Estabilidade Política (IEP) do OPSA/Iuperj, ver Coutinho, s/d, p. 3. A respeito dos episódios que
caracterizam uma situação de instabilidade política na região, ver OPSA/Iuperj, 2007, p. 17. Sobre as causas dessa
instabilidade, ver Power e Jamison, 2005; Vigevani e Oliveira, 2005; Coutinho, 2006a e 2006b. 5 Avaliação idêntica é encontrada em Lima e Coutinho, 2007, p. 14-15. 6 Veja, por exemplo, Mainwaring, Brinks e Pérez-Liñan, 2001, p. 648-650.
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econômicas e sociais entre seus critérios, a parcela mais pobre da população tende a esperar
políticas públicas de combate à carestia, à pobreza e à desigualdade social. Alguns setores do
empresariado, por sua vez, desejam que o novo regime combata a inflação, faça reformas políticas
visando obter governabilidade e promova uma abertura econômica para integrar o país ao mercado
internacional. Mas, os cidadãos tendem a esperar dos governos democráticos muito mais do que
eles podem lhes oferecer.
As democracias têm limitações e, à medida que estas expectativas não se realizam ou não se
concretizam completamente, tendem a gerar frustrações em diversos grupos. Elas não são
necessariamente mais eficientes administrativa e economicamente, mais liberais economicamente e
mais ordeiras, consensuais, estáveis ou governáveis do que os regimes autoritários que substituem.
(Schmitter e Karl, 1993, p. 49-50). Podemos acrescentar ainda: as democracias não promovem,
necessariamente, justiça social.
A incapacidade dos governos democráticos atenderem as expectativas de seus cidadãos
tende a gerar frustrações que podem se refletir na percepção que estes têm de suas instituições
políticas. Timothy J. Power e Giselle D. Jamison (2005) sugerem que a desconfiança política
cresceu na América Latina devido às frustrações geradas pelas crises e as políticas econômicas
adotadas pelos governos democráticos e a percepção de que a corrupção aumentou após a
redemocratização do país e de que os políticos promoviam reformas em seu próprio benefício.
Alguns analistas atribuem às políticas econômicas neoliberais introduzidas por vários governos
democráticos latino-americanos, uma situação que a Cepal chamou de vulnerabilidade social.
(Vigevani e Oliveira, 2005)
As limitações da democracia representativa na área social e as frustrações com relação ao
desempenho de suas instituições na América Latina, em alguns casos, desestruturaram o sistema
partidário e estimulou a valorização de um modelo político que estimula a participação direta dos
cidadãos.
IV. Sistemas políticos e as novas experiências democráticas na América Latina
4.1. Sistemas políticos e reformas políticas
Um dos efeitos da desestruturação do sistema partidário, segundo Anastasia e seus
companheiros, é o pluripartidarismo. No final dos anos 1990, os sistemas partidários da Bolívia e da
Venezuela perderam a capacidade de restringir o sistema partidário e, por isso, esses países
passaram a ostentar um número efetivo de partidos idêntico ao brasileiro (N ≥ 4). Em consequencia
11
disso, a volatilidade eleitoral média nesses países passou a ser bastante elevada (V= 36,9).
(Anastásia et alii, 2004, pp. 19, 20 e 21)
Foi nesse contexto que as elites políticas sul-americanas realizaram várias mudanças
institucionais que ora visavam fortalecer a accountability e a representatividade, ora produzir
governabilidade. Dentre as mudanças institucionais promovidas pelos políticos desses países, uma
das que consideramos importante para a nossa análise é a exclusão do monopólio partidário da
representação da Constituição boliviana. Diante do desgaste do sistema partidário, a Bolívia passou
a permitir que grupos de cidadãos ou movimentos sociais pudessem lançar candidatos sem que para
isso fosse necessária a formação de uma agremiação partidária, algo que, até então, somente a
Venezuela permitia. (Anastasia et alii, 2004, pp. 29, 31 e 34)
Outra mudança relevante foi a introdução do sistema eleitoral misto. Em 1989 e em 1996,
Venezuela e Bolívia respectivamente adotaram esse sistema eleitoral para “[...] responder às críticas
quanto ao excessivo poder dos líderes partidários e tornar os deputados responsivos aos eleitores.”
(Anastásia et alii, 2004, p. 44) Até 2003, contudo, nenhuma dessas mudanças produziu o efeito
desejado pelos reformadores. (idem)
Em nenhum momento até aqui, os reformadores brasileiros cogitaram em acabar com o
monopólio partidário da representação. Quanto à introdução do sistema eleitoral misto, embora já
tenham discutido muito, não há nenhum indício até o momento de que vão aprová-la.
Nos anos 1990, os presidentes bolivianos e venezuelanos não estavam entre os mais fortes
da América do Sul. Faltavam-lhes instrumentos que davam a outros Chefes de Estado maior
capacidade de definir a agenda política. (Anastásia et alii, 2004, pp. 63 e 67) Já na era Chávez, a
Venezuela perdeu alguns dos seus mecanismos de accoutability horizontal e de representatividade.
Isso denota um esforço do Executivo venezuelano no sentido de torná-lo menos propenso ao
controle do Legislativo. Este perdeu sua segunda Casa (Senado) e o poder de iniciar o processo de
impeachment do presidente. (Anastasia et alii, 2004, pp. 65 e 66) Houve, contudo, um
fortalecimento da accoutability vertical já que “[...] qualquer mandato [...] pode ser revogado após
ter cumprido metade de seu período e mediante um certo número de assinaturas, vale dizer, que a
Constituição venezuelana de fato retira essa prerrogativa do Congresso e a transfere à população.”
(Anastasia et alii, 2004, p. 65) Mas, será que esse é um mecanismo eficiente de accoutability?
Outra evidência do fortalecimento do Executivo na América do Sul por meio de
instrumentos constitucionais é a possibilidade da reeleição imediata do presidente da República.
Brasil (1997), Venezuela (1999) e, mais recentemente, a Bolívia (2009) passaram a permiti-la,
sendo que, desde 2009, o presidente venezuelano pode se reeleger indefinidamente. Embora
Anastásia e seus companheiros afirmem que a reeleição estimula a operação do mecanismo de
accoutability vertical, O’Donnell diz que os analistas são céticos quanto a isso. (O’Donnell, 1998,
12
pp. 28-29) O fato de o presidente ter conduzido o processo e se beneficiado dele, também pode ser
um problema. Tais mudanças podem ser vista pelos cidadãos como algo que é feito para favorecer
exclusivamente os políticos, o que acarreta o aumento da desconfiança nos políticos e, o que talvez
seja muito pior, nas instituições. (Power e Jamison, 2005, pp. 80 e 81)
Outra evidência do fortalecimento dos executivos é o poder dado pela atual constituição
venezuelana (arts. 71 e 236) e boliviana (art. 411) ao presidente de convocar um referendo.
Também nesse aspecto, Bolívia e Venezuela se diferenciam do Brasil. O artigo 49 da Constituição
brasileira estabelece que a convocação de referendo é uma prerrogativa exclusiva do Legislativo
Além das reformas mencionadas, outro efeito da desestruturação do sistema partidário foi a
eleição de Chávez e de Morales (Anastasia et alii, 2004, p. 27-28), dando início a um novo formato
de democracia.
4.2. Democracia semidireta na América Latina
Na América Latina, as limitações da democracia representativa na esfera social têm
estimulado seus críticos à esquerda a proporem a democracia semidireta ou participativa. Isso não
significa que necessariamente que estejam apregoando a eliminação completa da representação
política: a democracia representativa em nível nacional pode coexistir com a democracia
participativa a nível local ou os institutos da democracia semidireta podem substituir apenas parte
do processo de representação e deliberação (Santos e Avritzer, 2005, p. 75-76; Benevides, 2003, p.
86-87).
Veremos nesta seção que as atuais constituições boliviana e venezuelana combinam
representação com participação e que oposição e situação têm utilizado o referendo como
instrumento de luta política e/ou para introduzir políticas de orientação nacionalista.
4.2.1. Venezuela: democracia participativa ou democracia delegativa?
Após tomar posse, Chávez convocou os venezuelanos para decidirem, por meio de um
Referéndum Consultivo, se aprovavam ou não a proposta do Executivo de convocar uma
Assembléia Nacional Constituinte para, por intermédio desta, refundar o Estado venezuelano. Eles
não só autorizaram a convocação da Constituinte, como também lhe concedeu o poder de dissolver
as Assembléias Legislativas, o Congresso, os governadores e a Suprema Corte de Justiça.
(Anastasia, Melo e Santos, 2004, p. 152) Após ser aprovado pela Constituinte, o texto da nova
Constituição foi submetido a um referendo popular. Por meio desse mecanismo, a atual
13
Constituição venezuelana foi aprovada por 71,8% dos votos válidos dos 44,4% dos eleitores que
compareceram aos locais de votação.7
A Constituição venezuelana de 1999 define a Venezuela como uma “democracia
participativa y protagónica”.8 Mas, de acordo com o seu artigo 5º, esse país não abole a
representação, mas amplia o poder de controle dos cidadãos sobre seus representantes no Executivo
e no Legislativo.
Segundo Carlos Ranulfo Melo, as principais modificações introduzidas por Chávez no
sistema eleitoral venezuelano foram: a dissolução do Senado, a redução do número de membros do
Congresso Nacional, a elevação da duração do mandato presidencial de cinco para seis anos, a
introdução da reeleição e a instituição da revogabilidade de todos os cargos eleitos. Diante dessas
mudanças, Melo conclui que “o sucesso de Chávez na condução de seu projeto político implicou
um regime marcado por um grau de concentração de poderes ainda maior do que o anterior.” (Melo,
2006, p. 53)
Chávez ampliou ainda mais seu poder em 2006. Como a oposição recusou-se a participar da
eleição para o Legislativo, desde 2006 os partidários de Chávez controlam a Asamblea Nacional.
Enquanto os que se opunham a Chávez ficavam sem cadeiras na Asamblea, o MVR preencheu
69%. Em 2007, vários partidos, incluindo o MVR, se uniram e formaram o PSUV. Em janeiro de
2009, esse novo partido possuía 84% das cadeiras do Legislativo.
Desde que a nova Constituição foi promulgada, ocorreram três importantes referendos
nacionais na Venezuela e sete estados realizaram um de abrangência municipal. O propósito do
primeiro referendo nacional era consultar os venezuelanos a respeito da permanência ou não de
Chávez na Presidência da República. Este referendo partiu de uma iniciativa da oposição, que
esperava vê-lo fora do poder. Mas, esta foi derrotada já que 59% dos eleitores optaram por mantê-lo
no cargo.9
Em 2007, foi realizado o segundo referendo nacional na Venezuela. Por meio deste novo
referendo, o presidente Chávez queria que os cidadãos venezuelanos aprovassem as emendas
constitucionais propostas pelo Executivo e pela Asamblea Nacional. Desta vez, Chávez sofreu uma
importante derrota, já que a maioria dos venezuelanos rejeitou as alterações propostas. Dividido em
dois blocos de artigos, 50,7% dos votantes rejeitaram os artigos alocados no primeiro bloco e 51,1%
recusaram os do segundo bloco.
7 Os dados estão disponíveis no site do Consejo Nacional Electoral (CNE): http://www.cne.gov.ve/estadisticas.php. 8 Há na constituição venezuelana 14 artigos relacionados ao tema “democracia participativa y protagónica”. Os artigos
em questão são estes: 62, 63, 67, 68, 70, 71, 72, 73, 74, 184, 341, 343, 347 e 348.
(http://www.constitucion.ve/constitucion_temas_es/view/mostrar_tema.pag?id_tema=6) 9 O resultado do referendo encontra-se neste endereço: www.cne.gov.ve/referendum_presidencial2004/.
14
Em 2007, foram realizados também referendos revocatórios para que os cidadãos de 10
municípios de sete estados decidissem pela revogação ou não do mandato dos alcaides (prefeitos)
eleitos em outubro de 2004. Com exceção dos alcaides de Pedro Gual (Miranda) e de San Rafael de
Onoto (Portuguesa), todos os demais tiveram seus mandatos revogados.
O terceiro e último referendo nacional realizado, ocorreu em 2009. Chávez foi vitorioso
novamente. Dentre os votos válidos, 54,8% autorizaram a mudança constitucional que permitiu que
qualquer cidadão ou cidadã no exercício de um cargo eletivo, possa concorrer à reeleição ao mesmo
cargo, pelo tempo estabelecido constitucionalmente.
Desde 1999, portanto, a Venezuela tem vivenciado uma inédita experiência democrática,
que tem proporcionado aos venezuelanos a oportunidade de serem protagonistas e não meros
expectadores. Em parte, os últimos referendos realizados na Venezuela são efeitos da atual
Constituição. Comparando-a com a anterior, verifica-se que a palavra “referendo” aparece 28 vezes
na de 1999 e uma única vez na de 1961 (art. 246). Isso revela o quanto ampliou a participação dos
cidadãos venezuelanos no processo político de seu país. Contudo, as mudanças institucionais
promovidas através desse instrumento levaram a uma crescente concentração de poder nas mãos do
chefe do Executivo. Na avaliação de Anastásia e seus companheiros, essa concentração de poderes
conduziu a Venezuela a um cenário de “extrema polarização política” e, mais do que simplesmente
derrotar seus adversários, Chávez tem se empenhado em eliminar toda e qualquer oposição a seu
governo. (Anastasia, Melo e Santos, 2004, p. 155)
4.2.2. Bolívia: inclusão e participação política
Tal como a Venezuela, a Bolívia realizou recentemente vários referendos importantes. O
primeiro ocorreu em julho de 2004, durante o governo de Carlos Mesa. Foi solicitado que os
cidadãos bolivianos se manifestassem a respeito da política energética adotada em seu país. Tendo,
segundo Wladmir Coelho, a vitória do “sim” obrigado o governo Mesa a elaborar uma nova
legislação para o petróleo e o gás boliviano (Coelho, 2008) Todavia, a nova lei de hidrocarbonetos
(Lei n.º 3058) só foi sancionada após a renuncia de Mesa, dando inicio ao processo de
nacionalização e estatização do setor de petróleo e gás da Bolívia.
O segundo referendo importante ocorreu em julho de 2006, já, portanto, sob o governo do
MAS. O referendo nacional foi marcado para que os bolivianos se manifestassem sobre a questão
das autonomias departamentais. Apesar de o presidente Morales ter se empenhado para que os
bolivianos votassem “não”, a maioria optou pelo “sim”. A diferença de apenas 15,2% mostrou o
quanto a questão da autonomia divide os bolivianos. Além disso, a análise do resultado do
15
referendo por departamento revela haver uma divisão geográfica, pois o “sim” venceu nos quatro
que formam a região conhecida como “Meia Lua”.10
O terceiro referendo importante foi convocado pelo governo do MAS quando este se achava
diante de uma crise política causada pelo processo constituinte. A Lei de Referéndum Revocatorio
de Mandato Popular, de maio de 2008, convocou os bolivianos para que estes se manifestassem
sobre a revogação ou continuidade do mandato do presidente e do vice-presidente, Evo Morales e
Álvaro García Linera, e dos prefectos (governadores). Morales obteve uma vitória parcial. Ele foi
ratificado no cargo com 67,4% dos votos válidos, um percentual superior ao obtido em 2005,11 os
prefectos governistas dos departamentos de Oruro e de Potosí também foram mantidos no cargo12 e
os prefectos oposicionistas de La Paz e de Cochabamba tiveram seus mandatos revogados. Embora
esses resultados tenham sido favoráveis a Morales, foram confirmados no cargo os prefectos de
oposição de quatro departamentos da “Meia Lua” (Beni, Pando, Santa Cruz e Tarija). Esses
resultados caracterizaram uma derrota política para Morales nestes quatro departamentos.
Tal como na Venezuela, na Bolívia, a convocação de referendos não é uma estratégia
política utilizada apenas pelo governo para se fortalecer politicamente. A oposição também a
emprega com esse objetivo e, consequentemente, enfraquecer Morales. Entre a apresentação do
projeto de lei sobre a revogação ou continuidade dos mandatos e a realização do referendo, os
departamentos da “Meia Lua” decidiram realizar um referendo em seus respectivos territórios, entre
o dia 4 de maio e 22 de junho de 2008, para que a população local decidisse a respeito dos seus
estatutos autonómicos”. A maioria dos votantes dos departamentos de Santa Cruz (85,6%), Beni
(82,4%), Pando (85,8%) e Tarija (78,8%) aprovaram a autonomia. Os percentuais de votos
favoráveis à autonomia foram, em todos os quatros departamentos, maiores do que aqueles de julho
de 2006.
A última consulta popular ocorrida na Bolívia foi o referendo constitucional realizado em 25
de janeiro de 2009. Morales empenhou-se para que a maioria dos bolivianos comparecesse e
votasse majoritariamente na opção “sim”, tendo obtido sucesso desta vez. A nova Constituição
boliviana foi aprovada por 61,43% dos eleitores daquele país. Mais uma vez também, o resultado de
um referendo põe em evidência a divisão geográfica do país. Dentre os nove departamentos
10 Ver Fonte: http://www.cne.org.bo/sirenacomp06/wfrmdepnalref.aspx.
11 Em números absolutos: 2.103.872 votos a favor e 1.017.037 (33%) contra.
(http://www1.folha.uol.com.br/folha/mundo/ult94u437760.shtml). 12 O prefecto governista de Oruro, Alberto Aguilar, teve que aguardar uma decisão oficial para saber se mantém no
cargo ou não, pois, apesar de ter obtido 50,85% dos votos, a preservação do seu mandato dependia da fórmula utilizada
pela CNE para interpretar o resultado: embora a lei convocatória do referendo estabelecesse porcentagens entre 38% e
48% para revogar os mandatos, uma interpretação posterior da CNE definia que a remoção ocorre se os votos pelo
“não” forem superiores a 50% do total dos votos válidos. Já Clayton Cunha Filho diz que: “O governador de Oruro,
Alberto Aguilar, do MAS, teria seu mandato revogado pelas regras originais do revogatório, mas pela resolução da
CNE foi mantido no cargo. O fato chegou a causar certa polêmica inicialmente, mas logo foi aceito como ratificado
pelo conjunto das forças políticas do país.” (Cunha, 2008: 9) Para esclarecer esta questão, ver nota 32.
16
bolivianos, o “sim” venceu em cinco, enquanto o “não” foi a opção da maioria dos votantes da
“Meia Lua”.
A nova Constituição define a Bolívia como Estado Unitario Social de Derecho Plurinacional
Comunitário e, em seu artigo 11, estabelece que a forma de governo é a democracia “participativa,
representativa y comunitária”. O artigo 11 define também os institutos por meio dos quais ocorrerá
a participação direta dos cidadãos: assembléia, cabildos, consulta prévia, iniciativa legislativa
cidadã, referendo e revogabilidade. Os constituintes bolivianos quiseram, por meio desses institutos
da nova Carta, garantir a participação dos bolivianos no processo político e dar maior poder político
aos povos indígenas. E, tal como a Constituição venezuelana de 1999, estabelece que, por iniciativa
popular, a revogação do mandato do representante poderá ser solicitada após ter transcorrido pelo
menos metade do mandato deste. A comparação entre a Constituição de 1967 e a atual mostra que,
enquanto a palavra “referendo” não aparece uma única vez no texto da primeira, na de 1999 ele
aparece 21 vezes. Isso é um indício de que a Constituição da Bolívia de 2009 também ampliou a
participação dos cidadãos no processo político daquele país.
Desde 2004, os políticos bolivianos têm realizado referendos com três finalidades. Primeira,
com o intuito de resolver as crises políticas internas; segundo, para que o governo imponha uma
derrota à oposição ou vice-versa; terceiro, para reformar as instituições políticas do país. Mas, até
este momento, Morales não conseguiu acumular tantos poderes por meio de referendos quanto o
presidente venezuelano.
4.2.3. Brasil: menos participação, mais representação
Embora os brasileiros tenham podido enviar sugestões e participar de audiências públicas
nas subcomissões temáticas do Congresso Constituinte (1987-1988), os legisladores de “esquerda”
tiveram que vencer as resistências impostas pela “direita” para que esse dispositivo que
possibilitava a participação popular fosse introduzido no Regimento. (Lima, s/d, p. 11-13) Após a
aprovação do texto da Constituição pelo Congresso Constituinte, este não foi submetido a um
referendo, diferente, portanto, do que ocorreu na Espanha (1978), na Venezuela (1999) e na Bolívia
(2009).
A Carta de 1988 combinou a democracia representativa com a democracia direta. O uso dos
institutos explicitados no artigo 14, contudo, só foram regulamentados pela Lei 9.709 aprovada pelo
Congresso Nacional em 1998. A demora em regulamentar tais institutos demonstra o enorme
desinteresse em regular esses dispositivos constitucionais.
Os constituintes de 1988, tal como os de 1946, optaram por privilegiar a democracia
representativa, em detrimento da semidireta. Em 1946, fizeram isso, excluindo do texto
17
constitucional os mecanismos de participação popular.13 Se, em 1988, não puderam eliminá-los
completamente da nova Carta, dificultaram demasiadamente seu uso. (Porto, 2000, p. 246 e Fleury,
2006, p. 97) Comparando com as normas constitucionais de outros países (Suíça e Itália, por
exemplo), as exigências do artigo 61 da Constituição de 1988 prejudicam muito a produção
legislativa por meio da iniciativa popular no Brasil.
O primeiro parágrafo do artigo 12 da Lei 9.709/98 repete as exigências do texto
constitucional. Já o artigo 14 da Lei 9.709/98 afirma que o encaminhamento que deve ser dado a um
projeto de lei proveniente da iniciativa popular deve ser idêntico ao dado àqueles que têm origem no
Poder Executivo ou no Poder Legislativo. Mas, há quem discorde desse encaminhamento. No
entendimento de Clovis de Souto Goulart é “[...] inadmissível [...] que o projeto de lei de tal origem
deva ter o mesmo tratamento que normalmente é dado aos projetos oriundos de instituições e
autoridades constitucionalmente mencionadas e, nesta condição, ser passível de desaprovação e
arquivamento pelo Congresso Nacional.” (Goulart, 1995, p. 108-109) Tais dificuldades explicam,
em parte, porque, até 2009, somente três leis oriundas da iniciativa popular foram criadas: Lei n.º
8.930/94, Lei n.º 9.840/99 e Lei n.º 11.124/2005.
De acordo com o artigo 49 da Constituição de 1988, é prerrogativa exclusiva do Congresso
Nacional “autorizar referendo e convocar plebiscito”. Já a Lei 9.709/98 restringe ainda mais, já que
esta define como prerrogativa exclusiva do Congresso Nacional a convocação de referendos e
plebiscitos.14 A substituição do verbo “autorizar” pelo verbo “convocar” é substancial porque veta a
possibilidade de que o povo solicite a realização de plebiscitos e referendos (Fleury, 2006, p. 97)
Transcorridos um pouco mais de 20 anos desde a promulgação da Constituição, foram
realizados somente um plebiscito e um referendo no Brasil. O plebiscito de 1993, convocado por
exigência do artigo 2.º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, solicitava aos
brasileiros que se manifestassem sobre o sistema político e o regime político.15 Já o referendo de
2005, perguntou aos brasileiros se a comercialização de armas de fogo e munições deveria ser
proibida em todo território nacional.
13 A Constituição de 1946 previa a realização de plebiscito somente para o caso da incorporação, subdivisão ou
desmembramento de estados para anexação a outros ou formarem novos estados O fato da Constituição de 1946 prevê a
realização de plebiscito somente para os casos supra, fez com que alguns, segundo Fleury, afirmassem que o plebiscito
de 1963 carecia de respaldo jurídico. (Fleury, 2006, p. 95) A realização do referendo (ou plebiscito) de 1963 foi,
portanto, uma necessidade política surgida em decorrência da grave crise política iniciada com a renúncia do presidente
Jânio Quadros e, em seguida, a aprovação do artigo 25 da Emenda Constitucional n.º 4, de 2 de setembro de 1961, que
introduziu o parlamentarismo no Brasil. 14 Diz o artigo 3º da Lei 9.708/98: “Nas questões de relevância nacional, de competência do Poder Legislativo ou do
Poder Executivo, e no caso do § 3o do art. 18 da Constituição Federal, o plebiscito e o referendo são convocados
mediante decreto legislativo, por proposta de um terço, no mínimo, dos membros que compõem qualquer das Casas do
Congresso Nacional, de conformidade com esta Lei.”. 15 O artigo 2º dos ADCT estabelecia que o plebiscito fosse realizado no dia 7 de setembro de 1993, mas, com a
promulgação da Emenda Constitucional n.º 2, de 25 de agosto de 1992, a consulta foi antecipada. Até 1993, Brasil,
apenas um plebiscito tinha sido realizado no Brasil. O plebiscito de 6 de janeiro de 1963 levou os cidadãos brasileiros a
se manifestarem a respeito da mudança do sistema político: de parlamentarismo para presidencialismo.
18
Ao contrário de outras democracias liberais, a Constituição brasileira não exige, por
exemplo, que os cidadãos se manifestem diretamente a respeito de mudanças constitucionais e
tratados internacionais. Isso explica parcialmente o pouco uso de referendo e plebiscito. Já as atuais
constituições boliviana e venezuelana exigem um referendo em ambos os casos.16
Apesar de haver muita resistência à participação direta dos cidadãos brasileiros, há, no
Congresso Nacional, propostas que ampliam ainda mais a participação e o controle popular: o
Projeto de Lei n.º 4.718/2004, da Comissão de Legislação Participativa; PEC n.º 80, do senador
Antônio Carlos Valadares (PSB); PEC n.º 82, do senador Jefferson Peres (PDT); PEC n.º 73, do
senador Eduardo Suplicy (PT). (Fleury, 2006, p. 96)
Diferente do que tem ocorrido na Venezuela nos últimos 10 anos, no Brasil, os cidadãos têm
participado muito pouco das decisões políticas, inclusive das mudanças institucionais. E, a despeito
de algumas iniciativas no sentido de ampliar a participação política dos brasileiros, tanto a
Constituição de 1988 quanto as propostas discutidas no âmbito da reforma política visam fortalecer
a democracia representativa. Outra diferença também, é que a Constituição brasileira impede que
tanto o governo quanto a oposição utilizem o referendo ou o plebiscito com o intuito de impor
derrotas políticas a seus adversários e/ou ampliar seus poderes.
Conclusão
Desde os anos 1950, a Venezuela tem trilhado um caminho inverso ao percorrido pelos seus
vizinhos. Mas, no final dos anos 1980, as instituições políticas venezuelanas se deterioravam. A
ascensão de Chávez ao poder e a Constituição de 1999 foram o desfecho desse processo. Com a
nova Carta, o país passou a se chamar oficialmente República Bolivariana da Venezuela e a
democracia liberal, que resistiu durante 42 anos, deu lugar à “democracia participativa y
protagónica”. Se, por um lado, devido à nova Constituição, houve uma inédita participação direta
dos cidadãos no processo de decisão política, as mudanças políticas recentes visaram fortalecer o
Poder Executivo venezuelano. Os traços característicos da democracia bolivariana, de acordo com
Anastásia e seus companheiros, são o exacerbado “majoritarismo”, o que significa a inexistência de
“freios à vontade da maioria”, e o “plebiscitarismo” em oposição ao controle parlamentar.
(Anastasia, Melo e Santos, 2004, p. 153) Uma democracia, mas com características iliberais.
Estaria a Venezuela, por intermédio dos institutos da democracia direta, tornando-se uma
democracia delegativa ou caminhando rumo a uma ditadura?17
As avaliações dos analistas a
respeito da Venezuela são controversas. (Fausto, 2009, p. 16; Bresser Pereira, 2005; Pérez-Liñán
16 Ver os artigos 257, 259. 260 e 411 da Constituição boliviana e os artigos 73, 341 e 344 da Constituição venezuelana. 17 Sobre o conceito de “democracia delegativa”, ver O’Donnell, 1991.
19
apud Pereira, 2007, p. 4; Amorim Neto, 2002 apud Melo, s/d, p. 1) A divergência entre os analistas
é uma evidência de que ainda é cedo para termos uma conclusão sobre o atual processo político
venezuelano.
A Bolívia tem uma longa história de instabilidade política e, mais de 20 anos após tornar-se
um país democrático, não conseguiu ainda forjar um sistema político estável. A ascensão de
Morales ao poder deu início uma nova fase e, desde então, governo e oposição passaram a utilizar o
referendo como arma política para tentar se fortalecer impondo derrotas ao adversário. Mas,
diferente de Chávez, Morales não tem conseguido, por meio de referendo, acumular tantos poderes
quanto o presidente venezuelano. O uso dos referendos para resolver as crises políticas internas,
contudo, é anterior à chegada de Morales à Presidência da República. Vimos que, em 2004, o
presidente Mesa fez uso desse instrumento com esse propósito.
A nova Constituição, aprovada por meio de um referendo, não apenas inaugurou um novo
modelo de democracia que estimula a participação dos cidadãos no processo político, como também
deu mais poder político aos povos indígenas. No futuro, poderemos avaliar se a nova Carta levou
também a Bolívia a ter um arranjo institucional capaz de produzir mais estabilidade política.
Os políticos brasileiros, por sua vez, privilegiaram sempre a democracia representativa e
promoveram parcialmente a descentralização política. Por causa disso, os cidadãos brasileiros
tiveram uma participação muito menos ativa do que os venezuelanos e bolivianos. Apesar disso, o
Brasil vive, desde os anos 1980, a sua mais longa e estável experiência democrática. Desde que se
democratizou, nenhuma das crises políticas ou econômicas enfrentadas pelo País representou uma
ameaça à sobrevivência do regime e o resultado de nenhuma das cinco eleições presidenciais foi
contestado. Os que perderam reconheceram imediatamente a derrota e, se não se tornaram
integrantes do novo governo, passaram a atuar como oposição no Legislativo, como é esperado (e
desejado) em um regime democrático.
Apesar de o saldo ser positivo, a desconfiança política, no Brasil, é demasiadamente
elevada. Por isso, discute-se o que fazer para reverter essa situação; o que fazer para tornar a res
publica mais acessível ao homem comum; como minimizar o mau uso dos recursos públicos e
dificultar a apropriação desses recursos por indivíduos ou grupos privados, como permitir que os
cidadãos comuns exerçam um controle mais efetivo sobre os seus representantes. Mudanças
institucionais têm sido propostas com o intuito de fortalecer a representatividade das instituições e o
controle sobre seus membros, fortalecendo as tradições democrática, republicana e liberal.
Paralelamente, transitam no Congresso Nacional propostas de mudança da legislação em vigor
visando aumentar a participação política dos cidadãos e o controle destes sobre seus representantes
no Legislativo e no Executivo.
20
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Lista de partidos políticos
a) Bolívia: MAS – Movimiento al Socialismo, MNR – Movimiento Nacionalista Revolucionário,
PDS – Partido Democrata Social e PRIN - Partido Revolucionario de la Izquierda Nacionalista.
b) Brasil: PDT – Partido Democrático Trabalhista e PSB – Partido Socialista Brasileiro e PT –
Partido dos Trabalhadores.
c) Peru: APRA - Alianza Popular Revolucionaria Americana.
d) Venezuela: AD - Acción Democrática, Copei - Comité de Organización Política Electoral
Independiente, MVR - Movimiento V República, PSUV - Partido Socialista Unido de Venezuela e
URD - Unión Republicana Democrática.