gros - foucault - o abuso de obedi+¬ncia

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UFSC – CFH – Depto Filosofia Prof. Selvino Assmann Subsídios de estudo O ABUSO DE OBEDIÊNCIA Frédéric GROS Foucault apresentou a obediência como o conceito político mais essencial. Em face dos grandes traumatismos do séc. XX (os totalitarismos), ele não se pôs a denunciar, com grande reforço lírico, a monstruosidade dos grandes dirigentes. Foucault foi buscar a monstruosidade muito mais do lado dos dirigidos. O verdadeiro enigma não consiste em saber por que motivo formas delirantes de poder puderam aparecer, mas o que as tornou aceitáveis, suportáveis, desejáveis por parte dos governados. Nisso, sem dúvida, Foucault prolonga a tese de La Boétie em seu Discurso sobre a servidão voluntária: o verdadeiro escândalo não é o do poder, do abuso do poder, mas sim o da obediência, do abuso da obediência. De fato, é impossível que um tirano oprima um povo sem um sólido sistema de participações. A loucura do poder dos grandes nos perdoa sempre demais. E isso porque, como pensador político, Foucault se situa ao lado de Alain e de Hannah Arendt. Ao lado de Alain, quando este último, em Mars ou la guerre jugée, mostra a importância esmagadora da resignação como condição ética do soldado durante a longa guerra de 1914, longe do espírito de sacrifício. Ao lado de Hannah Arendt, em Eichman em Jerusalém, que demonstra que o verdadeiro horror do nazismo reside no zelo burocrático incondicional e cego dos administradores muito mais do que na sua perversidade moral absoluta. O verdadeiro problema da filosofia política do século XX não é, pois, o do fundamento do poder, nem o da natureza da soberania, mas sim o da obediência. O que nos faz obedecer? É assim que Foucault, em Vigiar e Punir, enfoca o conceito de docilidade. A docilidade é o que, no corpo, responde ao consentimento esclarecido do espírito: uma maneira de se dobrar interiormente ao que esta presente como uma necessidade que nos corresponde. Há na docilidade, assim como no consentimento, a ideia de um engajamento espontâneo, apaziguado e definitivo num sistema de determinações exteriores. É esta a condição ética do capitalismo: nossas necessidades e nossos desejos devem ser adaptados aos aparelhos de produção, ao seu ritmo, às suas sequelas.

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Gros e Foucault

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UFSC CFH Depto FilosofiaProf. Selvino AssmannSubsdios de estudo

O ABUSO DE OBEDINCIAFrdric GROSFoucault apresentou a obedincia como o conceito poltico mais essencial. Em face dos grandes traumatismos do sc. XX (os totalitarismos), ele no se ps a denunciar, com grande reforo lrico, a monstruosidade dos grandes dirigentes. Foucault foi buscar a monstruosidade muito mais do lado dos dirigidos. O verdadeiro enigma no consiste em saber por que motivo formas delirantes de poder puderam aparecer, mas o que as tornou aceitveis, suportveis, desejveis por parte dos governados. Nisso, sem dvida, Foucault prolonga a tese de La Botie em seu Discurso sobre a servido voluntria: o verdadeiro escndalo no o do poder, do abuso do poder, mas sim o da obedincia, do abuso da obedincia.De fato, impossvel que um tirano oprima um povo sem um slido sistema de participaes. A loucura do poder dos grandes nos perdoa sempre demais. E isso porque, como pensador poltico, Foucault se situa ao lado de Alain e de Hannah Arendt. Ao lado de Alain, quando este ltimo, em Mars ou la guerre juge, mostra a importncia esmagadora da resignao como condio tica do soldado durante a longa guerra de 1914, longe do esprito de sacrifcio. Ao lado de Hannah Arendt, em Eichman em Jerusalm, que demonstra que o verdadeiro horror do nazismo reside no zelo burocrtico incondicional e cego dos administradores muito mais do que na sua perversidade moral absoluta.O verdadeiro problema da filosofia poltica do sculo XX no , pois, o do fundamento do poder, nem o da natureza da soberania, mas sim o da obedincia. O que nos faz obedecer? assim que Foucault, em Vigiar e Punir, enfoca o conceito de docilidade. A docilidade o que, no corpo, responde ao consentimento esclarecido do esprito: uma maneira de se dobrar interiormente ao que esta presente como uma necessidade que nos corresponde. H na docilidade, assim como no consentimento, a ideia de um engajamento espontneo, apaziguado e definitivo num sistema de determinaes exteriores. esta a condio tica do capitalismo: nossas necessidades e nossos desejos devem ser adaptados aos aparelhos de produo, ao seu ritmo, s suas sequelas.Este encontro moderno traz tambm o nome de consumo. No incio dos anos oitenta, num curso sobre as prticas crists de penitncia e de confisso (Le gouvernement des vivants O governo dos vivos), Foucault retoma de um corte histrico sua anlise da obedincia do sujeito ocidental: desta vez, se trata de mostrar como ns obedecemos desde as nossas origens crists aos discursos de verdade. Trata-se, para ser breve, de mostrar que entre o discurso de verdade e a suposta natureza secreta de meu ser, a sntese se d atravs da obedincia ao Outro. Eu jamais obedeo melhor do que quando procuro ser verdadeiramente eu. No fundo, a psicologia um sistema poltico: ela nos leva a aprender a obedecer fico de nossa prpria verdade e constitui um episdio crucial daquilo que Foucault chama a histria poltica da verdade.-----------------------------------GROS, Frderic. Labus dobissance. Em: Libration, 19 e 20 de junho de 2004. Paris, Le feu Foucault, p. IX (Para celebrar 20 anos da morte de Foucault). Trad. portuguesa Selvino Assmann