grande entrevista com celina pereira, cantora cabo-verdiana
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Entrevista com Celina Pereira, cantora cabo-verdiana Por Claudio VazTRANSCRIPT
Entrevista com Celina Pereira, cantora cabo-verdiana
Por Claudio Vaz
“Sei que tenho uma grande responsabilidade em relação a cultura do
meu país”
O ambiente parecia em festa tendo em conta o volume da música que ecoava pelas
paredes do oitavo andar do edifício número dois da rua Duque de Palmela. Não restavam
mais dúvidas, aquele era mesmo o sítio marcado para a entrevista: a Associação Cabo-
verdiana de Lisboa. O restaurante, localizado dentro associação estava vazio, mesmo
assim, a música continuava. Mapas e quadros com temas cabo-verdianos decoravam as
paredes das duas alas existentes na associação: de um lado a administração, e do outro,
o restaurante. A pessoa a ser entrevistada não estava, um SMS confirma a dedução:
“estou aí em quinze minutos”. Os membros da associação chegavam aos poucos e as
conversas nasciam todo a todo o momento. De súbito, a porta do elevador abre-se e
revela a personagem desta entrevista. Celina Pereira entra calmamente no restaurante e
os seus olhos verdes procuram imediatamente os olhos do entrevistador. A delicadeza
dos movimentos era acompanhada pelo baloiçar da vestido vermelho que vestia; um
turbante, da mesma cor, rodeava o cabelo de uma face jovial, adornada com um batom
de tom encarnado. Feitas as iniciais apresentações, o sítio escolhido para entrevista foi o
da sala de reuniões da associação. A partir de agora fica para trás o som agitado do
restaurante, e dá-se lugar para melodia e a história de uma voz.
Como surgiu a música na sua vida?
Penso que surgiu geneticamente. Nasci numa família de músicos. O meu avô
paterno era padre e teve formação de músico. Tocava bandolim e ensinou música a todos
os meus tios e tias. Do lado materno, todos os meus tios também tocavam, e alguns eram
também compositores. Todos faziam música.
E o seu o primeiro contacto com os palcos?
A primeira vez que subi a um palco tinha cinco anos de idade, e foi na festa da
escola da minha irmã. A primeira vez que cantei num coral tinha oito anos e foi numa
igreja. Cresci numa igreja protestante, onde penso que tive uma boa escola para a
evolução de todas as minhas aptidões. Ter começado a cantar numa igreja, para cem,
duzentas pessoas, foi a melhor academia de canto que tive. Cresci a cantar por prazer,
para a adoração, para o louvor. Gosto de cantar para louvar os poetas, para louvar a
palavra, o bom texto. Tenho este grau de exigência.
Cantar a cultura cabo-verdiana foi uma forma de
voltar às suas origens?
Claro. E não só! Foi também uma tomada de
consciência. Quando me analiso como ser, dou conta
que sou uma ex-colonizada a quem o ex-colonizador
não ensinou nada sobre si própria. Nunca ninguém me
ensinou nada sobre a minha cultura. Descobri o
batuque, por exemplo, na época da independência em
1975, quando regressei a Cabo Verde. Foi aí que me
dei conta de que tinha que descobrir a minha
identidade como mestiça. Descobrir estes ritmos,
estas formas musicais, faz parte da descoberta de
mim própria e da minha cultura pessoal.
Tem medo que a cultura e a língua crioula
desapareçam ?
Não é que tenha medo, mas tenho este receio
que é algo fundamentado. Qualquer cultura baseada
numa tradição oral tende a perde-se com o tempo. E
nós sabemos disso. Quando tomei consciência da
minha maioridade, percebi que já não se ouvia
canções que tinha na minha memória de criança,
como por exemplo, músicas que a minha mãe
cantava. Coisas que não se ouviam na rádio, nem se
viam escritas em lugar algum. Sobretudo formas
musicais que, por estarem baseadas numa tradição
oral, com certeza se perderiam.
Deparou-se com alguma situação deste género?
Presenciei na comunidade de New Bedford (A
mais antiga colónia cabo-verdiana dos EUA) que os
cabo-verdianos se manifestavam culturalmente com coisas que já não se faziam em Cabo
Verde. Havia concursos de Mazurcas (uma dança originária da região polaca da Mazúria)
de Contradanças (género instrumental introduzida pelos franceses), de Lundum (batuques
herdado de escravos trazidos de Angola) e Cantigas dos reis. Percebi que, de facto, era
preciso fazer qualquer coisa. Sempre tive em mente que não queria cantar por cantar,
então decidi gravar estas formas musicais, as formas musicais que minha mãe cantava e
que já não sabia o que eram. Queria que elas ficassem registadas.
Como é ter esta responsabilidade perante o seu país?
Sei que tenho uma grande responsabilidade em relação a cultura do meu país, da
verdade da cultura do meu país às gerações mais novas. Para as quais temos que criar
um mundo onde a globalização não nos engula. As crianças cabo-verdianas, de qualquer
parte do mundo, têm que saber quais são as formas musicais, as expressões da origem
dos seus pais, portanto, da sua própria origem. E se de alguma maneira tenho contribuído
para isso, quero continuar, é uma convicção que tenho.
“A Morna tem no seu conteúdo um espelho da vida de cada cabo-
verdiano”
A maneira como canta a Morna cabo-verdiana lembra o Blues e o Jazz... Concorda?
Estou a crer que é também uma questão genética. Os blues são um cântico de
lamento, de mágoa. São cânticos muito negros, muito africanos, uma herança directa
para os EUA. É a minha alma negra que me faz cantar como canto. Não foi nada
estudado, não é intencional. É a carga das palavras que canto que me leva cantar como
eu canto. Não é pretensão minha, mas penso que é a minha alma africana.
Já se aventurou a gravar algum destes estilos musicais?
Gostava muito, mas não é fácil. Sempre sonhei nos meus voos de loucura, gravar
com um quarteto de Jazz. Há uma leitura nos termos harmónicos, sobretudo no piano que
tem muito haver com o acompanhamento de algumas mornas. Mas estas coisas as
editoras não apostam muito. Fica para o lado onírico. As coisas quando têm de acontecer,
acontecem naturalmente.
Qual o significado da Morna para o povo cabo-verdiano?
A morna é onde a essência e a alma do cabo-verdiano se expressa toda. As mornas
mais antigas são mornas satíricas, comparadas com medievais canções de escárnio e de
mal dizer portuguesas São brincalhonas no seu conteúdo, mas tem na sua essência o
quotidiano. Com o conhecimento de Eugénio Tavares, a Morna toma uma expressão
daquilo que considero como clássica. A Morna tem um significado para os cabo-verdianos
no mesmo sentido e significado que o fado tem para os portugueses. Qualquer português
espalhado pelo mundo vai estar escutando fado em casa. O que os cabo-verdianos
estarão escutando, em New Bedford ou em Boston, serão as mornas
Mas qual foi o contributo de Eugénio Tavares para a morna?
Eugénio Tavares está ao lado de Camões em termos líricos. Ele trouxe para a Morna
esta componente do amor, da sacralização do amor. Mas também trouxe uma
componente muito presente na vida cabo-verdiana, que é a emigração. O primeiro jornal
criado fora de Cabo Verde, criado na diáspora, foi um jornal criado por Eugénio Tavares.
Ele trouxe esta vivência da emigração, a vivência da partida. Esta vivência vê-se muito
em Cabo Verde porque vivemos em ilhas e as pessoas partem e chegam todos os dias,
mas a emigração é muito mais forte.
E hoje em dia? Quem são os grandes compositores de Mornas para si?
Temos o Manuel Novas, um dos maiores compositores vivos, aliás, que é o
compositor com o maior numero de composições feitas. B.Leza foi também um grande
compositor depois de Eugénio Tavares. B.Leza. Foi um dos primeiros compositores que
nos confrontou com esta lusofonia que se fala tanto hoje. Uma das mornas que ele canta
chama-se “Beijo de Sodade” composta originalmente em crioulo e em português. A Morna
tem no seu conteúdo um espelho da vida de cada cabo-verdiano, e as pessoas retractam-
se com alguns compositores.
“Sempre trabalhei na área da comunicação.”
Antes de se destacar no cenário da música internacional passou pela rádio, foi
professora, hospedeira de terra e, no ar da actualidade, cantora e contadora de
estórias. Como foi este processo?
Para mim é um processo muito natural. Acho engraçado quando as pessoas
perguntam “faz tantas coisas ao mesmo tempo”... Faço tantas coisas? Não, faço uma
única coisa: comunicar. Tudo aquilo que fiz até hoje passa por algo a que se chama
comunicação. Dar aulas é comunicar, cantar é comunicar. Trabalhar num balcão a
atender passageiros e dizer que tem que pagar não sei quanto por um bilhete é
comunicar, fazer rádio é comunicar... contar historia é comunicar. Sempre trabalhei na
área da comunicação.
Como comunicadora tem algum ídolo que influencia ou influenciou sua carreira?
Sempre convivi com grandes comunicadores; os pastores das igrejas protestantes
por onde passei. Mas há um homem na televisão que para mim é como um ícone, o Larry
King (apresentador norte-americano de talkshows). Há um outro homem que não posso
deixar de falar, o Baltazar Lopes da Silva, que foi meu professor. Cada vez que ouço um
discurso com palavras difíceis, lembro-me daquilo que Baltazar Lopes da Silva nos dizia:
“para dizermos as coisas que queremos não é preciso que o nosso pensamento se
embrulhe em palavras que as outras pessoas não conheçam...” Aí está a inteligência do
comunicador.
Gostava de voltar a falar do seu mais recente trabalho. Quando começou a contar a
estórias para as crianças?
Nunca tinha passado na minha cabeça contar estórias para crianças. Quando fiz
este disco foi imediato, e fui apresentar o trabalho nos EUA. Devo dizer que aproveitei
muito das minhas facilidades de viagens na TAP para apresentar os meus trabalhos, pois
quase sempre foram trabalhos independentes e gravados do meu bolso. Fui aos EUA
apresentar este trabalho e neste mesmo ano, em 1990, os professores de educação
bilingue de lá, convidaram-me para contar historias. Comecei em 1990, em escolas em
liceus em jardins de infância. E a partir dai não parei mais.
Contadas em crioulo?
Sim. Nos EUA porque me pediam para contar em crioulo. Mas costumo contar nas
línguas que sei. Recentemente contei em Italiano. Tento aperfeiçoar a minha forma de
comunicar porque é um grau de exigência que tenho. Como uma boa virginiana que sou,
ou faço muito bem feito ou não quero fazer.
É um trabalho voltado também para a língua portuguesa?
Sim, a base do trabalho deste trabalho é o português, o CD está todo falado em
português e algumas coisas em crioulo. A intenção deste trabalho é valorizar as minhas
duas línguas, em termos orais e em termos escritos. E o crioulo tem sido muito pouco
escrito. Ultimamente um pouco mais.
“Penso que a Lusofonia é mais vivenciada entre os artistas”
Existe algum trabalho que gostava de fazer ou já realizou no âmbito da Lusofonia?
Há no nordeste de Moçambique uma comunidade onde, geneticamente, há uma
maior tendência para uma grande parte das crianças nascerem cegas. E há ali um grupo
de artistas e de pessoas ligadas a Igreja que resolveu começar um programa especial
com músicas a favor desta comunidade. Fiquei a pensar que é uma boa forma de também
ser útil a esta comunidade. Transmiti ao embaixador de Moçambique aqui em Portugal
que gostava de ajudar, de visitar esta comunidade, de levar meu áudio livro, de contar as
histórias. As pessoas que possuem este tipo de deficiência precisam aperfeiçoar outras
como a audição etc. Sinto que este tipo de trabalho pode ajudar.
A lusofonia é uma causa paralela ao trabalho que realiza em prol da língua crioula?
Tem de ser. Tenho como pertença duas línguas de comunicação que são as minhas
duas pátrias. Costumo dizer que sou um bocadinho mais rica que Fernando Pessoa que
dizia “a minha pátria é a minha língua”... As minhas pátrias são as minhas línguas. Uma
delas é a língua oficial de Cabo Verde, que é o português. A outra é o crioulo, uma língua
latina, baseada no português arcaico, portanto, o crioulo é filho do português, apesar de
ser hoje uma língua independente. Este espaço tem sido mais sido badalado pelos
políticos, mas não tem sido tão vivenciado e nem criadas as condições para que esta
chamada lusofonia seja mais real.
Já viveu algo marcante neste âmbito?
Quando fui apresentar um livro em português no Luxemburgo. Na plateia, gente
falante de vários países, para mim foi a prova que este é o caminho. Havia angolanos,
cabo-verdiano, brasileiros, portugueses... é realmente um elo de ligação que não
podemos descuidar.
Acredita que quando existir um espaço de trocas culturais poderemos falar de uma
lusofonia cidadã, de uma verdadeira união de povos?
Ela já é uma união de povos. Esta preciosíssima língua que falamos, com temperos
diferentes, é o maior elo de ligação e a maior prova que realmente algo existe. Só penso
que a Lusofonia é mais vivenciada entre os artistas. Sei que é uma das pretensões da
própria Comunidade dos Países de língua Portuguesa (CPLP), como organização política
é, de um dia encontrar a fórmula certa para esse objectivo, mas não sei como.
Pessoalmente, penso que em termos universais é muito comandada pelo Brasil. Agora
gostava muito que esta troca, esta circulação entre os artistas fosse mais real. Mas
sabemos que ainda não é.
Perfil
Maria Celina da Silva Pereira é natural da ilha Boavista, Cabo Verde. Com seis anos
de idade mudou-se para a ilha de São Vicente acompanhando os seus pais. Com a
formação concluída no Liceu Gil Eanes em 1959, lançou-se na carreira jornalística na
Rádio Barlavento, também na ilha de São Vicente, realizando programas como o “Voz da
Solidariedade”. Ao mesmo tempo, leccionava na escola Roberto Duarte Silva, na ilha de
Santo Antão. Em 1970 emigra para Portugal onde frequenta o curso de magistério
primário na Escola Superior de Educação Viseu. Entretanto, realiza outro curso, desta
vez de Aviação Comercial na TAP AIR PORTUGAL (TAP), onde foi hospedeira de terra
de 1970 até o ano de 1986. Em 1976 lança o seu primeiro trabalho discográfico, em
Portugal, intitulado “Boa Vista Nha Terra". Volta para as ondas da rádio em 1986 com
programa “Voz Di Mar” da extinta Rádio Telefonia de Lisboa e lá permanece até 1990, até
produzir a obra “Estórias, Estórias... no Arquipélago das Maravilhas” e iniciar o seu novo
desafio: o de contadora de estórias, em liceus e escolas de Boston e Massachussets
(EUA), ofício este que perdura até hoje. Em 1999 passa a fazer parte dos quadros da
Rádio Renascença com o programa “Renascença em África”, entrevistando
personalidades como o ex-presidente de Cabo Verde, Luís Cabral; o antigo Presidente da
República, Mário Soares, o embaixador angolano em Costa do Marfim, Carlos Belli Bello,
o ex-primeiro ministro de Timor, Mari Alkatiri, entre outros. Com diversos trabalhos na
área da música e participações especiais em congressos em Portugal e no exterior, o
reconhecimento pela nação portuguesa e cabo-verdiana não tardaram a chegar. É
galardoada com inúmeras premiações; em Março de 2003, recebe a Medalha de Mérito
com o grau Comendadora das mãos do então Presidente da República Portuguesa, Jorge
Sampaio e, em Junho de 2005, é lhe entregue a medalha de mérito cultural da Ordem do
Vulcão pelo actual presidente cabo-verdiano, Pedro Pires.
Cláudio Vaz – Jornalismo Escrito
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