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Download Grand Tour: uma contribuição à historia do viajar por ... · PDF fileA viagem por prazer, não como um ato isolado por um ou outro viajan- ... uma passagem totalmente inviável

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  • RESUMO

    O trabalho aborda o Grand Tour en-

    quanto fenmeno social, pontuando as-

    pectos tcnicos e culturais desses pionei-

    ros fluxos de viagens do sculo 18 por

    puro prazer, matrizes dos fluxos de tu-

    rismo de lazer e cultural do nosso tem-

    po atual. A pesquisa apia-se nos dirios

    de viagem Itlia de trs notveis grand

    tourists o novelista britnico Thobias

    Smollet, o poeta alemo Johann W. von

    Goethe e o especialista ingls em anti-

    gidades Richard Payne Knight. Com

    base em seus relatos, olhamos para as

    condies de realizao do Grand Tour

    observando rotas e destinos, meios de

    transporte, guias e acomodaes. Entre

    as questes permeando o universo cul-

    tural do grand tourist, destacamos o gos-

    to pela arte e a arquitetura dos antigos,

    o culto runa e a atrao de valores es-

    tticos sublimes, em meio s quais po-

    demos distinguir a emergncia de uma

    visualidade dessa experincia de viagem

    dita clssica.

    Palavras-chave: Grand Tour; antigida-

    des; runas.

    ABSTRACT

    This work deals with the Grand Tour as

    a social phenomenon and points out

    technical and cultural aspects of these

    18th century pioneering travels for plea-

    sure from which derives the leisure and

    cultural travels of our present time. The

    research bases upon the writings of three

    outstanding grand tourists to Italy

    the British novelist Thobias Smollet, the

    German poet Johann W. von Goethe and

    the English expert in antiquities Richard

    Payne Knight. Based on information

    provided by their travel accounts, we

    look at the conditions under which the

    Grand Tour used to be taken in aspects

    such as routes and destinations, means

    of transportation, guides and lodging.

    The taste for art and architecture of an-

    tiques, the cult of ruins and the attrac-

    tion of sublime aesthetic values are em-

    phasized as those aspects underlying the

    cultural universe of the grand tourist.

    The emergence of a visuality derived

    from the so-called classic travel might

    also be observed.Keywords: Grand Tour; antiquities; ruins.

    Grand Tour: uma contribuio historia do viajar por prazer

    e por amor culturaValria Salgueiro

    Universidade Federal Fluminense

    Revista Brasileira de Histria. So Paulo, v. 22, n 44, pp. 289-310 2002

  • De certo, estou aprendendo a viajar com essa viagem

    (...)

    Viagem Itlia, Johann W. von Goethe

    INTRODUO

    Viagens fazem parte de nosso mundo interligado e complexo, inclusiveviagens por puro prazer em que se procura viver algo em tudo diferente darotina de cada dia viagens de frias, de descanso, de finais de semana pro-longados, em fuga da cidade ou, pelo menos, da cidade onde se vive e traba-lha. Viagens de prazer, porm, sem o objetivo de reunies e contatos profis-sionais, esto intimamente ligadas justamente a esse mundo ao qual buscamse opor: o mundo do trabalho. De fato, viagens em busca de deleite e emo-o, visando ao aprimoramento pessoal e fundadas em categorias de aprecia-o esttica comearam a acontecer em escala crescente exatamente quandoo centro irradiador do desenvolvimento capitalista a Europa acelerouseu curso de desenvolvimento baseado na indstria e na racionalizao dotrabalho, ao qual estiveram sempre ligados os conceitos de tempo livre e decio, em oposio ao tempo do trabalho.

    Este trabalho procura resgatar algumas das principais facetas de um fe-nmeno social tpico da cultura europia do sculo 18 o Grand Tour, ex-presso pela qual vieram a ser denominadas as viagens aristocrticas pelo con-tinente europeu, anteriores gradativa substituio do tempo orgnico pelaregulao do tempo e sua diviso em tempo de trabalho e tempo de lazer nomundo moderno sob o capitalismo. Nele so pontuados aspectos intimamen-te ligados a esses pioneiros fluxos de viagens por prazer, os quais constituemmatrizes remotas dos fluxos de turismo de lazer e cultural do nosso tempoatual.

    O texto baseia-se nos dirios de viagem Itlia de trs notveis grandtourists do sculo 18 o novelista britnico Thobias Smollet1, o poeta ale-mo Johann W. von Goethe2 e o especialista ingls em antigidades e tericoem esttica Richard Payne Knight3 , todos eles tendo viajado at Roma de-claradamente em busca de edificao pessoal e do estudo da cultura dos anti-gos. Com observao de seus relatos procuramos olhar para as principais mo-tivaes das viagens de Grand Tour, destacando aspectos relevantes da nadafcil empreitada de viajar na Europa continental do sculo 18, quando se ti-nha de vencer grandes distncias por reas acidentadas no lombo de mulas,numa poca que ainda desconhecia a navegao martima a vapor e o tremde ferro. Entre os aspectos abordados no trabalho, destacam-se o gosto pela

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    Valria Salgueiro

    Revista Brasileira de Histria, vol. 22, n 44

  • arte e arquitetura dos antigos, o culto runa e a valores estticos sublimesna contemplao da paisagem que acompanhavam o Grand Tour ou GrandVoyage, ou Grosse Reise , a partir dos quais podemos distinguir a emergnciade uma visualidade dessa experincia de viagem dita clssica4, distinta da-quela engendrada pelo olhar romntico do sculo 19 e da que vem se confi-gurando pelo olhar contemporneo, cheio de tecnologias.

    O GRAND TOURIST

    Um novo tipo de viajante surge no sculo 18 em conexo com as trans-formaes econmicas e culturais na Europa do Iluminismo e da RevoluoIndustrial. Trata-se aqui no do viajante de expedies de guerras e conquis-tas, no do missionrio ou do peregrino, e nem do estudioso ou cientista na-tural, ou do diplomata em misso oficial, mas sim do grand tourist, conformeera chamado o viajante amante da cultura dos antigos e de seus monumen-tos, com um gosto exacerbado por runas que beirava a obsesso e uma incli-nao inusitada para contemplar paisagens com seu olhar armado no enqua-dramento de amplas vistas panormicas, compostas segundo um idiomapermeado por valores estticos sublimes. Um viajante dispondo acima de tu-do de recursos e tempo nas primeiras viagens registradas pela historiografiada prtica social de viajar por puro prazer e por amor cultura.

    A viagem por prazer, no como um ato isolado por um ou outro viajan-te mais excntrico e curioso, mas sim como um fenmeno social, configuran-do fluxos com origens e, sobretudo, destinos especficos, na verdade comeoua assumir seus contornos j ao final do sculo 17, tornando-se mais e maisfreqente, porm, aps o Tratado de Paz de Utrecht, em 17155. Tanto quanto possvel traar, por muitos sculos lugares na Europa vinham atraindo via-jantes, mas foi no sculo 18 que um tour continental veio de fato tornar-separte essencial da educao de todo ingls de posse, e isso prosseguiu por to-do o sculo, sendo interrompido apenas durante a Guerra dos Sete Anos (1756-1763), finda a qual os Grand Tours foram retomados em escala ainda maior.

    Viagens sempre atraem mais viagens e a ampla convico de que umgrande nmero de pessoas estava viajando contribua para ampliar a percep-o da importncia social do Grand Tour 6, despertando o interesse de novosturistas. Conforme observou Adam Smith, o costume tornava-se cada vezmais freqente entre as famlias ricas, que mandavam seus filhos viajar parapases estrangeiros ainda jovens, para aprender uma ou duas lnguas, edifi-car-se e distrair-se7. Ao final do sculo 17, o turismo era essencialmente pra-ticado por filhos da aristocracia e da chamada gentry (pequena nobreza). Mas,aos poucos, essa clientela foi se ampliando, de modo que, ao final do sculo

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    Grand Tour: uma contribuio historia do viajar por prazer e por amor cultura

    Dezembro de 2002

  • 18, o Grand Tour estava j firmemente estabelecido para os filhos da classemdia urbana melhor situada, formada por burgueses prsperos e emergen-tes do setor de servios que a indstria indiretamente engendrava8.

    Nomes importantes realizaram um Grand Tour como, por exemplo, Jo-seph Addison, Joachin Winckelmann, Johann W. Goethe, Horace Walpole eThomas Gray, dentre tantos outros intelectuais, filsofos, artistas, viajantescuja provenincia era primordialmente a Inglaterra, a Frana e a Alemanha,seguidas por outras nacionalidades, em menor escala. O fenmeno do GrandTour foi, contudo, acima de tudo ingls, e isto se explica pelas circunstnciasvividas por aquela nao poca: a Inglaterra havia triunfado na ndia e naAmrica do Norte, e era a nao que estava liderando o mundo no comrcioe nos mtodos industriais e agrcolas de produo. Grupos nacionais, diretaou indiretamente se beneficiavam da gerao de riqueza no prprio pas e portodo o mundo sob seu controle, o que fazia aumentar, mais do que em qual-quer momento anterior, o dinheiro para gastar com o prazer.

    ROTAS E DESTINOS

    A idia de prazer no perodo que observamos envolvia ganhar novos ho-rizontes fsicos e culturais, ao menos entre os mais afortunados. medidaque findava o sculo 18, porm, o turismo ia se tornando cada vez menos umaprtica exclusiva dos ricos, crescendo gradativamente o nmero de turistasmenos afluentes viajando pelo Continente. Alguns faziam uma viagem maiscurta e menos custosa, e nem todos iam at a Itlia, optando por viajar atParis e os Pases Baixos, por exemplo. O verdadeiro Grand Tour, porm, en-volvia essencialmente, alm de uma viagem a Paris, um circuito pelas princi-pais cidades italianas Roma, Veneza, Florena e Npoles, nessa ordem deimportncia.

    Se considerarmos as dificuldades envolvidas na viagem devido s prec-rias condies de superao da distncia entre os lugares, chegar at Romano sculo 18 era uma faanha absolutamente corajosa. Para os que partiamda Inglaterra, o cruzamento do Canal da Mancha constitua parte realmentecrtica da viagem. Ventos, ondas altas e cais precrios tornavam o embarque eo desembarque uma aventura aterrorizante, aco