governança e orçamento participativo - reflexões a partir do · principal diferença entre...

96
UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE ADMINISTRAÇÃO NÚCLEO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ADMINISTRAÇÃO GOVERNANÇA E ORÇAMENTO PARTICIPATIVO : REFLEXÕES A PARTIR DO CASO DE PORTO ALEGRE EDIMILSON FRANCISCO DE OLIVEIRA Salvador 2005

Upload: vankien

Post on 10-Nov-2018

215 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Governança e Orçamento Participativo - reflexões a partir do · principal diferença entre governabilidade e governança está na forma como a legitimidade das ações dos governos

UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE ADMINISTRAÇÃO

NÚCLEO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ADMINISTRAÇÃO

GOVERNANÇA E ORÇAMENTO PARTICIPATIVO: REFLEXÕES A PARTIR

DO CASO DE PORTO ALEGRE

EDIMILSON FRANCISCO DE OLIVEIRA

Salvador 2005

Page 2: Governança e Orçamento Participativo - reflexões a partir do · principal diferença entre governabilidade e governança está na forma como a legitimidade das ações dos governos

EDIMILSON FRANCISCO DE OLIVEIRA

GOVERNANÇA E ORÇAMENTO PARTICIPATIVO: REFLEXÕES A PARTIR DO CASO DE PORTO ALEGRE

Dissertação apresentada ao Núcleo de Pós-graduação em Administração, Escola de Administração, Universidade Federal da Bahia, como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre. Orientador: Prof. Dr. José Antônio Gomes de Pinho

Salvador 2005

Page 3: Governança e Orçamento Participativo - reflexões a partir do · principal diferença entre governabilidade e governança está na forma como a legitimidade das ações dos governos

A Maria José Lima, mãe querida. Edgnaldo F. de Oliveira (in memoriam), pai, amigo e mestre na arte da vida. Maria Anísia de O. Lima, avó e grande responsável por algumas de minhas vitórias.

Page 4: Governança e Orçamento Participativo - reflexões a partir do · principal diferença entre governabilidade e governança está na forma como a legitimidade das ações dos governos

AGRADECIMENTOS

A Deus, por tudo. À minha família e namorada, pelo permanente apoio. A José Antônio Gomes de Pinho, por sua paciência, compreensão e orientação, que foram, simplesmente, fundamentais no apoio a essa minha caminhada. Ao CNPq, pelo apoio financeiro, sem o qual este projeto seria inviável. Ao Núcleo de Pós-Graduação em Administração (NPGA), da UFBA, funcionários e professores, pela oportunidade e generosidade com que nos acolheram. Aos amigos do 1,39 pelos ótimos momentos e conhecimentos compartilhados. Aos amigos de república que tanto me apoiaram, especialmente a Airton e Fabiane. A dona Darlene, pela dedicação. Aos amigos novos e antigos, por tudo. Se me esqueci de alguém, desculpas, mas, ainda em tempo, muito obrigado.

Page 5: Governança e Orçamento Participativo - reflexões a partir do · principal diferença entre governabilidade e governança está na forma como a legitimidade das ações dos governos

RESUMO Esta dissertação teve como objetivo principal identificar de que forma o Orçamento Participativo (OP) de Porto Alegre contribui com a governança urbana. Ao ser colocado dessa forma, o objetivo revela de imediato a premissa que orientou o desenvolvimento desse trabalho, que o OP contribui com a governança urbana. Premissa esta apoiada no reconhecimento do OP pelo próprio Banco Mundial. Esse estudo foi realizado a partir da sistematização de dados presentes na literatura sobre o Orçamento Participativo de Porto Alegre, que atribuem a ele resultados sobre a gestão do investimento público. Nessa análise o conceito de governança empregado foi aquele formulado e difundido pelo Banco Mundial, segundo o qual governança é entendida como a forma com que os recursos econômicos e sociais de um país são gerenciados, com vistas a promover o desenvolvimento. No entanto, como alguns autores sugerem que o conceito de governança não passa de uma reformulação do conceito de governabilidade, fez-se necessário traçar um histórico dos dois. A partir desse histórico foi possível empreender uma discussão no sentido de apontar as principais diferenças e semelhanças existentes entre esses conceitos. Esse esforço teórico mostrou que a principal diferença entre governabilidade e governança está na forma como a legitimidade das ações dos governos é entendida. Enquanto no conceito de governabilidade a legitimidade vem da capacidade do governo de representar os interesses de suas próprias instituições. No conceito de governança, parte de sua legitimidade vem do processo, do entendimento de que grupos específicos da população quando participa da elaboração e implantação de uma política pública, ela tem mas chances de ser bem sucedida em seus objetivos. Já a principal semelhança se refere à defesa da participação institucionalizada como meio para se alcançar a estabilidade política. Aliás, essa preocupação está presente nos dois conceitos. As principais conclusões a que se chegou foram: que o OP contribui com a governança ao contribuir com a gestão eficiente e eficaz dos recursos públicos. Ao demandar, para o seu funcionamento adequado, uma postura transparente por parte do governo e ao permitir que o governo obtenha informações sobre as demandas consideradas prioritárias pela população, o OP permite que se reduza o risco de erros na aplicação dos recursos públicos e também que diminua o espaço para práticas lesivas ao fundo público, como clientelismo, desvios de recursos públicos e corrupção. Palavras-chave: orçamento participativo, governabilidade governança, participação institucionalizada.

Page 6: Governança e Orçamento Participativo - reflexões a partir do · principal diferença entre governabilidade e governança está na forma como a legitimidade das ações dos governos

ABSTRACT The main objective of this study is to verify how the Porto Alegre´s Participatory Budgeting contributes to urban governance. How the objetive was showed this way, it discloses the premise which oriented this study: the Participatóry Budgeting effectively contributes to governance. This premise is founded on the recognition of the World Bank towards the Participatory Budgeting. This study was realized through the sistematization of informations present into the literature that discuss the results that the Participatory Budgeting brought to the city of Porto Alegre in Brazil. In this analysis the governance’s concept adopted was the one that was created and published by the World Bank: governance refers to the way the economical and social ressources of a country are managed in order to promote the country’s development. Because some authors suggest that the governance’s concept is just a reformularization of the governability’s concept it was necessary to describe the history of them. This description allowed to demonstrate the main differences and similarities between both concepts.This theorical approach evidenced that the main difference between these concepts refers to the way the legitimacy of the government’s actions is understood. While in the governability concept the legitimacy of the government’s action comes from the capacity of the government to represent the interests of its own institutions, in the governance concept, the main sorch of this legitmacy comes from the understanding that when specific citizen groups participate of the elaboration and implementation of public policies they are supposed to be successful. The main similarity refers to the defense of the institutionalized participation as a mean to reach the political stability presented in both concepts. The main conclusion is that the Participatory Budgeting contributes to the governance as long as it contributes to the efficient management of public ressources. As it demands, for its properly perfomance, a governement transparent position and as it allows the government to obtain informations about the demands the population consider with priority, the Participatory Budgeting make possible to diminish the riks in the application of public ressources and that cheating practices such as political machine, public money embezzlement and corruption are reduced. Key words: participatory budget, governance, governability, institutionalized participation

Page 7: Governança e Orçamento Participativo - reflexões a partir do · principal diferença entre governabilidade e governança está na forma como a legitimidade das ações dos governos

SUMÁRIO LISTA DE QUADROS ......................................................................................................... 09

LISTA DE TABELAS .......................................................................................................... 10

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS........................................................................... 11

INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 12 CAPÍTULO 1 - DE GOVERNABILIDADE À GOVERNANÇA: A METAMORFOSE DE UM CONCEITO ............................................................................................................. 18

1.1 A GOVERNABILIDADE EM SUA ORIGEM: DÉCADAS DE 1960 E 1970 .......... 19 1.2 A GOVERNABILIDADE NA DÉCADA DE 1980..................................................... 22 1.3 ANOS 90: E AGORA, GOVERNABILIDADE OU GOVERNANÇA? .................... 24 1.4 AS MAIS RECENTES CONCEPÇÕES DE GOVERNANÇA................................... 28 1.5 AFINAL, É POSSÍVEL DIFERENCIAR GOVERNABILIDADE DE GOVERNANÇA?............................................................................................................... 31

CAPÍTULO 2 - GOVERNANÇA SEGUNDO O BANCO MUNDIAL............................ 35

2.1 GOVERNANÇA: O CONCEITO................................................................................. 35 2.1.1 Administração Pública ..................................................................................... 38 2.1.2 Accountability .................................................................................................... 40 2.1.3 Quadro Legal .................................................................................................... 43 2.1.4 Informação e Transparência ........................................................................... 45

CAPÍTULO 3 - GOVERNABILIDADE, GOVERNANÇA E ORÇAMENTO PARTICIPATIVO: A PARTICIPAÇÃO INSTITUCIONALIZADA COMO ELEMENTO EM COMUM.................................................................................................. 47

3.1 PARTICIPAÇÃO INSTITUCIONALIZADA E LEGITIMIDADE: ELEMENTOS QUE IGUALAM E DIFERENCIAM OS CONCEITOS DE GOVERNABILIDADE E GOVERNANÇA................................................................................................................ 48 3.2 O BANCO MUNDIAL E O CONCEITO DE GOVERNANÇA: UM OUTRO TIPO DE LEGITIMIDADE, MAS A PARTICIPAÇÃO CONTINUA INSTITUCIONALIZADA ............................................................................................................................................. 53 3.3 ORÇAMENTO PARTICIPATIVO E PARTICIPAÇÃO INSTITUCIONALIZADA. 57

CAPÍTULO 4 - ORÇAMENTO PARTICIPATIVO E GOVERNANÇA EM PORTO ALEGRE ................................................................................................................................ 60

4.1 A DINÂMICA DO ORÇAMENTO PARTICIPATIVO DE PORTO ALEGRE......... 60 4.2 ORÇAMENTO PARTICIPATIVO: CONTRIBUIÇÃO COM GOVERNANÇA DE PORTO ALEGRE............................................................................................................... 62

4.2.1 O Orçamento Participativo e Administração Pública: Eficiência e Eficácia no Gerenciamento dos Recursos Públicos........................................................................64

4.2.1.1 Uma Reforma Diferente................................................................................... 70 4.2.2 Orçamento Participativo e Accoutability.............................................................75 4.2.3 Orçamento Participativo e Informação e Transparência.................................79

Page 8: Governança e Orçamento Participativo - reflexões a partir do · principal diferença entre governabilidade e governança está na forma como a legitimidade das ações dos governos

CAPÍTULO 5 – CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................... 84 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................ 92

ANEXO – REGIMENTO INTERNO DO CONSELHO DO ORÇAMENTO PARTICIPATIVO 2005/2006 ...............................................................................................96

Page 9: Governança e Orçamento Participativo - reflexões a partir do · principal diferença entre governabilidade e governança está na forma como a legitimidade das ações dos governos

LISTA DE QUADROS Quadro 1: Dimensões e principais indicadores do conceito de governança............................38

Quadro 2: Distribuição de freqüências absolutas e relativas, segundo o poder de decisão no

OP, a avaliação sobre a atuação dos representantes no OP e a avaliação sobre a

informação prestada pelos representantes da Administração no OP, na opinião de

Conselheiros ou Delegados eleitos no OP – 2002...................................................80

Page 10: Governança e Orçamento Participativo - reflexões a partir do · principal diferença entre governabilidade e governança está na forma como a legitimidade das ações dos governos

LISTA DE TABELAS

Tabela 1 – Evolução do número de experiências de Orçamentos Participativos no Brasil por

mandatos............................................................................................................... 12

Tabela 2 - Variação absoluta no volume de serviços prestados de coleta de lixo, instalação de

pontos de iluminação pública e asfaltamento e recuperação de vias públicas...... 66

Tabela 3 - Evolução do número de funcionários públicos municipais ativos, 1986-99.......... 67

Tabela 4 - Evolução do número de matriculas por nível de ensino e total nas escolas

municipais, 1985 – 2000........................................................................................ 68

Tabela 5 - Percentual da população por região em relação à população da cidade; rendimento

nominal médio dos chefes de domicílios em salários mínimos, por região e na

cidade; percentual de mães com o primeiro grau incompleto com filhos nascidos

vivos em 1998, por região e na cidade; percentual do total dos investimentos

listados nos Planos de Investimentos entre os anos 1992-2000, por região, em duas

ou mais regiões e em toda a cidade........................................................................ 69

Tabela 6 - Despesa percentual média realizada da administração centralizada por

determinadas funções do governo nos períodos 1984-1988 e 1990-2000............. 71

Tabela 7 - Evolução da Receita do IPTU em Porto Alegre - 1980/92..................................... 74

Tabela 8 - Expansão dos serviços públicos, 1990 – 2000........................................................ 75

Page 11: Governança e Orçamento Participativo - reflexões a partir do · principal diferença entre governabilidade e governança está na forma como a legitimidade das ações dos governos

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

COP Conselho Municipal do Orçamento Participativo

CRC Coordenadora de Relações com a Comunidade

FMI Fundo Monetário Internacional

FNPP Fórum Nacional de Participação Popular

Gaplan Gabinete de Planejamento

IPTU Imposto Predial Territorial Urbano

ISSQN Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza

LDO Lei de Diretrizes

ONG’s Organizações Não-Governamentais

JICA Japanese International Cooperation Agency

OP Orçamento Participativo

PIS Plano de Investimentos e Serviços

PMPA Prefeitura Municipal de Porto Alegre

PT Partido dos Trabalhadores

Page 12: Governança e Orçamento Participativo - reflexões a partir do · principal diferença entre governabilidade e governança está na forma como a legitimidade das ações dos governos

INTRODUÇÃO

A prática do Orçamento Participativo (OP) no Brasil caminha a passos firmes para

completar duas décadas, sem dar qualquer sinal de esmorecimento. Desde a primeira

experiência, implantada em 1989 na cidade de Porto Alegre, os números não param de crescer

(ver tabela 1). Ainda no final daquela gestão (1989-1992), chegava a 12 o número de

municípios que o havia adotado, na gestão seguinte alcançava a marca de 36 experiências. Os

últimos números, da gestão 2001-2004, falam da existência de 194 municípios no Brasil que

colocam em prática esse instrumento de gestão participativa (RIBEIRO E GRAZIA, 2003 e

DEMOCRACIA PARTICIPATIVA, 2004 apud LINHARES, 2005). Chama a atenção, também, o

fato dessas experiências não ficarem restritas a administrações do Partido dos Trabalhadores

(PT), elas são postas em prática por prefeitos dos mais variados partidos políticos (RIBEIRO

e GRAZIA, 2003)1. Isso nos permite acreditar que ele já não se situe mais na categoria de

“modismo” na gestão pública, parece ser uma prática que tende a ser aperfeiçoada e a se

prolongar no tempo.

Tabela 1: Evolução do número de experiências de Orçamentos Participativos no Brasil, por mandatos.

Mandatos

1989-1992

1993-1996

1997-2000

2001-2004

Nº de experiências

12

36

103

194

Fonte: Ribeiro e Grazia (2003) e Democracia Participativa (2004) apud Linhares (2005).

A despeito da longevidade e importância desse fenômeno, chama a atenção o

reduzido número de estudos, disponíveis na literatura sobre tema, que se dedicam a analisar

1 Segundo uma pesquisa realizada pelo Fórum Nacional de Participação Popular (FNPP) e organizada por Ribeiro e Grazia (2003), referente ao mandato 1997-2000, o PT continuava sendo o responsável pela maioria das experiências de OP no Brasil (cerca de 50%). No entanto, a pesquisa constatou, também, que havia administrações de praticamente todos os partidos que constituem o espectro político-partidário nacional, que adotavam o OP. Além do PT, outros partidos (como: PFL, PTB, PPS, PL, PSDB, PV, PSB e PMDB) também colocavam em prática esse instrumento de gestão participativa.

Page 13: Governança e Orçamento Participativo - reflexões a partir do · principal diferença entre governabilidade e governança está na forma como a legitimidade das ações dos governos

os resultados práticos do impacto dessa experiência sobre o desempenho dos governos

municipais que o adota. A maioria absoluta dos trabalhos existentes sobre o OP se preocupa

apenas em avaliar aspectos do processo em si, como: o seu potencial democrático, o perfil do

participante, os motivos que levam o cidadão a tomar parte nele, o caráter pedagógico da

participação no seu interior, entre outros. Ainda são poucas as análises voltadas para medir o

desempenho desse instrumento de gestão participativa. Faltam, principalmente, estudos que

tratem por exemplo de questões como eficiência e eficácia na aplicação dos recursos públicos,

números que reforcem ou desfaçam a crença nas potencialidades desse modelo de gestão

participativa, em especial em relação a sua contribuição, ou não, a eficiência e eficácia dos

governos. Isso não significa que se ignore a importância de se aprofundar o conhecimento

sobre o processo, até porque o aperfeiçoamento da experiência depende disso. No entanto,

entende-se que verificar os resultados práticos também é importante.

Reconhecendo essa necessidade, o objetivo geral desse trabalho é verificar as

contribuições do Orçamento Participativo para a gestão eficiente e eficaz dos recursos

econômicos e socais, com vistas ao desenvolvimento urbano, ou seja, procura-se verificar a

sua contribuição a governança urbana. Para que a busca desse objetivo fique mais clara,

formulou-se aqui uma questão que deve orientar esse trabalho, a saber: de que forma o

Orçamento Participativo contribui com a governança urbana? Ao assumirmos essa como a

questão orientadora, evidenciamos também a premissa que sustenta esse questionamento, o

entendimento de que o Orçamento Participativo contribui com a governança urbana.

Admitir isso logo de início, parece pretensioso, é verdade. No entanto, o reconhecimento do

OP pelo Banco Mundial nos coloca numa situação bastante confortável, já que foi essa

instituição a grande responsável pela formulação pioneira (ou pelo menos reformulação, como

veremos) do conceito de governança ou governance. Além disso, a própria longevidade de

Page 14: Governança e Orçamento Participativo - reflexões a partir do · principal diferença entre governabilidade e governança está na forma como a legitimidade das ações dos governos

algumas experiências já sinaliza que ele contribui, ou pelo menos não obstaculiza, com o

alcance da governança urbana.

Desta forma, têm-se como pressupostos que o Orçamento Participativo contribui

para aumentar a eficiência e a eficácia das ações dos governos, ao reduzir os riscos de erros

dos mesmos, através do levantamento de demandas junto à população e, também, com a

redução da corrupção, por conta da transparência que se exige dos governos, para o

funcionamento adequado desse canal de participação.

O propósito que este estudo tem, de contribuir com o avanço do conhecimento

científico sobre o Orçamento Participativo, já seria suficiente para que ele tivesse a sua

relevância reconhecida. Entretanto, a sua importância é ampliada na medida em que o enfoque

dado aqui se preocupa em identificar de que forma o OP contribui para a eficiência e eficácia

das ações dos governos. Isto é particularmente importante se considerarmos o contexto criado

pela lei de responsabilidade fiscal2, que limita as possibilidades de gestão irresponsável do

fundo público. Condicionando os gastos dos governos as suas respectivas receitas, e evitando

qualquer tipo de desvios que levem ao desequilíbrio das contas públicas. Ou seja, se os

recursos são limitados, cabe aos governos fazer bom uso deles, em especial no atendimento

dos mais pobres, seja lá como se faça isso, ou através da “inversão de prioridades” ou de

“políticas específicas de combate à pobreza”3.

Este trabalho é ao mesmo tempo descritivo e analítico, e aborda o fenômeno

estudado tanto de forma quantitativa quanto qualitativa. Outro aspecto importante é o seu

caráter eminentemente teórico. Além da revisão da literatura que se fez necessária à discussão

(como a revisão histórica dos conceitos de governabilidade e governança, a discussão

pormenorizada sobre o conceito de governança do Banco Mundial, o histórico e a dinâmica 2 A lei de Responsabilidade Fiscal foi sancionada pelo presidente da república em 4 de maio de 2000. 3 “Inversão de prioridades” é um dos principais objetivos do OP, e mais especificamente da plataforma municipalista do PT, e consiste em direcionar o fundo público primeiramente para atender as demandas da população mais pobre. Já as políticas específicas de combate a pobreza são políticas públicas que são desenhadas para os grupos não inseridos economicamente.

Page 15: Governança e Orçamento Participativo - reflexões a partir do · principal diferença entre governabilidade e governança está na forma como a legitimidade das ações dos governos

do OP), os números e as informações que são usados na análise principal, foram extraídos de

outros trabalhos e outras pesquisas, como os trabalhos de Marquetti (2002 e 2003), Dias

(2000), Fedozzi (1997), Faria (2000), CIDADE (2003), e também a partir de documentos

internos do próprio Orçamento Participativo, como no caso do Regimento Interno do

Conselho do Orçamento Participativo (anexo).

O período que será levado em conta nessa análise é aquele desde o surgimento do

Orçamento Participativo até o início de 2005. Eventualmente, números do desempenho do

governo municipal de Porto Alegre de períodos anteriores a 1989, serão usados a título de

comparação, como forma de subsidiar as discussões empreendidas.

São muitos os conceitos que figuram nesse trabalho. No entanto, entende-se que

três deles ocupam lugar de destaque, são os conceitos de Orçamento Participativo,

participação institucionalizada e governança. O primeiro por ser o objeto desse estudo e os

dois últimos por serem os instrumentos de análise, empregados como ferramentas teóricas

para a compreensão do objeto estudado.

A participação institucionalizada é entendida aqui como a participação que se dá

dentro de regras que são estabelecidas, reconhecidas e aceitas pelos participantes. Regras

estas que estabelecem um padrão de comportamento estável, válido e recorrente. Ela não deve

ser confundida com participação formalizada, pelo menos não de forma tão restrita, ou seja,

regida por leis, aprovadas pelo poder legislativo e resguardada pelo poder judiciário.

As definições que se dá ao Orçamento Participativo são quase tantas quanto o

número de autores que estudam o fenômeno. Para evitar um esforço que consideramos estéreo

aos objetivos desse trabalho – a tentativa de se discutir cada uma dessas definições de que se

tem conhecimento, como forma de justificar a adoção daquela “mais apropriada” - optou-se

então, por adotar a mesma definição dada pela Prefeitura Municipal de Porto Alegre (PMPA),

segundo a qual “o Orçamento Participativo (OP) é um processo pelo qual a população decide,

Page 16: Governança e Orçamento Participativo - reflexões a partir do · principal diferença entre governabilidade e governança está na forma como a legitimidade das ações dos governos

de forma direta, a aplicação dos recursos em obras e serviços que serão executados pela

administração municipal” (PMPA, 2004a). Portanto, uma definição que por si só se justifica.

Em relação ao conceito de governança, o cardápio também é bastante variado. No

entanto, a razão que torna dispensável o esforço de uma revisão exaustiva é a opção que se fez

nessa análise pelo conceito do Banco Mundial, o qual é considerado a definição pioneira

desse conceito, ou seja, todos os outros derivam dele. Segundo o Banco Mundial (1992, p.1),

governança deve ser entendida como “a maneira pela qual o poder é exercido na gerência de

recursos econômicos e sociais de um país para o desenvolvimento”, (tradução nossa).

De acordo com o Banco, o conceito de governança é composto de quatro

dimensões principais: administração pública, accountability, quadro legal e informação e

transparência. A análise do Orçamento Participativo será empreendida a partir de um esforço

comparativo que procura relacionar as práticas e resultados oferecidos pelo fenômeno com

três dessas quatro dimensões. Ficará de fora dessa análise a dimensão quadro legal. A

justificativa principal para a sua exclusão é o fato de não caber ao OP funções legislativas

nem judiciárias, como discutir e aprovar leis ou assegurar a sua execução, respectivamente.

Com o objetivo de facilitar a compreensão desse trabalho ele foi estruturado em

cinco capítulos. No primeiro capítulo tratamos de fazer uma revisão histórica dos conceitos de

governabilidade e governança. Começa-se pelo conceito de governabilidade, desde a sua

formulação pioneira com Samuel Huntington, ainda na segunda metade da década de 1960 do

século passado, analisam-se os pequenos ajustes sofridos pelo conceito na década de 1980, até

a sua metamorfose no início da década de 1990, quando, de acordo com Fiori (1995), o Banco

Mundial o redefine, agora como governança.

O segundo capitulo dedica-se exclusivamente à discussão do conceito de

governança do Banco Mundial. Procurou-se empreender uma abordagem detalhada do

Page 17: Governança e Orçamento Participativo - reflexões a partir do · principal diferença entre governabilidade e governança está na forma como a legitimidade das ações dos governos

conceito como forma de oferecer subsídios para as análises empreendidas no terceiro e no

quarto capítulos.

No terceiro capítulo trava-se uma discussão onde se procura demonstrar que as

diferenças entre os conceitos de governabilidade e governança são muito poucas, no entanto

suficientes para tornar a participação política uma aliada e não uma ameaça a governança,

como era considerada ao conceito de governabilidade. Ainda na esteira desse argumento,

procura-se evidenciar porque o Banco Mundial reconhece o Orçamento Participativo – um

canal de participação direta - como uma importante ferramenta para a gestão urbana eficiente.

O quarto capítulo foi dividido em duas partes . Na primeira está o ciclo do

Orçamento Participativo de Porto Alegre, tomado como exemplo para favorecer a

compreensão da dinâmica do Orçamento Participativo. Na segunda parte desse capítulo, todo

o esforço empreendido foi no sentido de analisar os diversos trabalhos e pesquisas que fazem

parte da literatura sobre Orçamento Participativo, procurando encontrar neles evidências da

importância desse instrumento de gestão participativa para governança urbana.

Por último, no capítulo cinco, são tecidas algumas considerações sobre o trabalho,

ao mesmo tempo em que se apresentam as conclusões a que se chegou na análise aqui

empreendida.

Page 18: Governança e Orçamento Participativo - reflexões a partir do · principal diferença entre governabilidade e governança está na forma como a legitimidade das ações dos governos

CAPÍTULO 1 - DE GOVERNABILIDADE À GOVERNANÇA: A METAMORFOSE

DE UM CONCEITO

Este capítulo tem como objetivo principal oferecer subsídios para responder o

questionamento que orienta esse trabalho, qual seja: como o Orçamento Participativo pode

contribuir com a governança urbana? No entanto, para uma discussão mais apropriada sobre o

conceito de governança, faz-se necessário traçar um histórico evolutivo do mesmo. Como

esse conceito, no entendimento de alguns autores, não passa de uma derivação do conceito de

governabilidade, o histórico começa com este último.

Nas ciências sociais a polissemia parece ser um fenômeno relativamente comum,

alguns conceitos recebem tantas definições que as vezes umas simplesmente significam o

oposto de outras. Um desses conceitos é governabilidade que, segundo Fiori (1995), foi sendo

redefinido ao longo de três décadas (1970, 1980 e 1990). Em sua primeira acepção estava

voltado para a questão da “ordem” ou da “estabilidade política”, significando “a capacidade

governamental de atender certas demandas, ou então de suprimi- las de vez” (HIGGOTT apud

FIORI, 1995, n. 43, p.158). Após a sua primeira redefinição passou a tratar de questões

relacionadas à limitação das atividades submetidas ao Estado, do “Estado mínimo”. Por

último, ressurge na década de noventa na agenda do Banco Mundial e de outras instituições,

“agora na forma de uma preocupação mais limitada com o que chamaram de governace ou

good governance” (FIORI, 1995, n. 43, p.159).

Page 19: Governança e Orçamento Participativo - reflexões a partir do · principal diferença entre governabilidade e governança está na forma como a legitimidade das ações dos governos

No entanto, o conceito de governabilidade e/ou governança ocupa um lugar de

destaque na discussão proposta nesse trabalho, para ser tratado de forma tão superficial. Além

disso, novas significações dadas ao conceito de governança parecem querer fazer um

contraponto da concepção conservadora. Concepção essa que teria surgido com Samuel

Huntington nas décadas de 1960 e 1970, sofrido reformulações na década de 1980, até o seu

suposto rebatismo pelo Banco Mundial na década de 1990, agora sob o nome de governança.

Como esta síntese não é suficiente para permitir uma melhor compressão desse processo

evolutivo, vamos ao detalhamento dessa evolução.

1.1 A GOVERNABILIDADE EM SUA ORIGEM: DÉCADAS DE 1960 E 1970

A responsabilidade pela introdução do conceito de governabilidade na ciência

política é atribuída a Samuel Huntington (MARTINS, 1994; DINIZ, 1995; REIS, 1995;

CASTRO SANTOS, 1997; ARAÚJO, 2002;). Ele chamou a atenção para o tema ainda na

segunda metade da década de sessenta do século passado, em seu trabalho Political ordem in

changing societies4. Neste trabalho, como o próprio título sugere, ele analisava a ordem

política de países em processo de mudança, e diagnosticava o “excesso” de participação

associado à ausência de instituições políticas fortes como sendo a causa principal da crise

política vivida por aqueles países (HUNTINGTON, 1975).

No seu entendimento, o surgimento de novos grupos sociais no cenário político,

em conjunção com a ausência de instituições políticas fortes, era particularmente perigoso

para a estabilidade política de tais países. Ao se tornarem politicamente ativos esses grupos

contribuíam com o crescimento das demandas a um nível tal que os governos não tinham

condições de atendê- las. Esse quadro seria potencialmente agravado caso não houvesse

4 Ordem Política nas sociedades em mudança.

Page 20: Governança e Orçamento Participativo - reflexões a partir do · principal diferença entre governabilidade e governança está na forma como a legitimidade das ações dos governos

instituições políticas de inputs consolidadas, atuando na mediação entre esses grupos e o

governo 5. Isso, por sua vez, faria com que o Estado passasse a ser percebido, por parcelas

significativas da sociedade, como sendo ineficiente, trazendo como conseqüência a perda da

legitimidade da autoridade governamental e o conseqüente enfraquecimento das instituições

políticas. Nos países “modernos” esse problema era amenizado pela existência de instituições

políticas de inputs fortes. Elas contribuíam com a absorção de boa parte dessas demandas,

através da negociação, e com isso diminuía as pressões sobre as instituições governamentais

responsáveis pela formulação e implantação de políticas públicas (HUNTINGTON, 1975).

Nessas formulações, a grande preocupação de Huntington não era com o regime

político em si, mas com a ordem política, se esses países gozavam, ou não, de estabilidade

política6. Em suas palavras,

A distinção política mais importante entre os países se refere não a sua forma de governo, mas ao seu grau de governo [...] Os Estados Unidos, a Grã Bretanha e a União Soviética têm formas de governo diferentes, mas, nos três sistemas, o governo governa (HUNTINGTON, 1975, p.13).

Se o “excesso” de participação era a causa principal da instabilidade política

naqueles países, o que ele sugeria como forma de se amenizar esse problema? Huntington

acreditava que a instabilidade política poderia ser amenizada através do reforço das

instituições políticas, do fortalecimento dos governos e da colocação de restrições à

participação política de novos grupos sociais no processo decisório acerca da formulação de

políticas públicas. Assim, a estabilidade política dependia da forma como esses novos grupos

eram assimilados pelo sistema político. A defesa dessas medidas rendeu- lhe, mais tarde, o

título de conservador e antidemocrático (MARTINS, 1994; DINIZ, 1995; MELO, 1995).

5 A principal dessas instituições, no entendimento de Huntington, era o partido político. 5 Desde que esse regime político permitisse uma economia de mercado.

Page 21: Governança e Orçamento Participativo - reflexões a partir do · principal diferença entre governabilidade e governança está na forma como a legitimidade das ações dos governos

Aparentemente não há nenhum exagero nessa categorização, uma vez que o

próprio Huntington assumia que a legitimidade dos governos vem da sua capacidade de

atender o “interesse público” que, segundo ele, seria representado pelo interesse das próprias

instituições governamentais. Isso fica evidente quando ele afirma que,

Pela teoria da lei natural, as ações governamentais são legítimas na medida em que estão de acordo com a “filosofia pública”. Segundo a teoria democrática, derivam sua legitimidade da extensão em que incorporam a vontade do povo. De acordo com o conceito processual, as ações são legítimas quando representam o resultado de um processo de conflito e compromisso dos quais participam todos os grupos interessados. Por outro lado, no entanto, a legitimidade das ações governamentais pode ser procurada na medida em que refletem os interesses das instituições governamentais . Em contraste com a teoria do governo representativo, por esse conceito as instituições governamentais derivam sua legitimidade e autoridade não do grau em que representam os interesses do povo, ou de qualquer outro grupo, mas do grau em que possuem interesses próprios distintos dos de quaisquer outros grupos” (HUNTINGTON, 1975, p.41, grifo nosso).

Mesmo a discussão tendo sido iniciada por Samuel Huntington ainda na segunda

metade da década de 1960, somente a partir do início da década de 1970 é que o tema da

governabilidade começou a ganhar relevância na ciência política. Foi quando ela passou a ser

empregada como instrumento analítico na busca pela compreensão das causas da instabilidade

política em diversos outros grupos de países, inclusive nas democracias consolidadas, ou

países modernos (Huntington: 1975).

Segundo Diniz (1995), esse mesmo autor realizou um outro estudo tendo o

conceito como instrumento de análise, só que dessa vez tratando da crise de governabilidade

nas democracias consolidadas. Analisando a democracia americana, ele constatou que a crise

de autoridade, pela qual aquele país havia passado na década de 1960, teria se dado por conta

do excesso de democracia da década anterior. Onde, a diversificação de demandas e o

alargamento do campo de pressões teriam provocado o aumento da insatisfação em um

Page 22: Governança e Orçamento Participativo - reflexões a partir do · principal diferença entre governabilidade e governança está na forma como a legitimidade das ações dos governos

contingente importante da população, devido à incapacidade do governo de conseguir atender

o alto grau de expectativas dessa mesma população.

Um segundo conjunto de análises sobre a crise de governabilidades nos países

capitalistas centrais foi desenvolvido entre as décadas de 1970 e de 1980 do século passado.

Dessa vez as atenções voltavam-se para a crise enfrentada pela social-democracia européia. O

ponto de partida dessas análises foi um documento elaborado em 1975 por Samuel

Huntington, Michel Crozier e Watanuki para a comissão trilateral, intitulado A crise da

democracia (ACHARD Y FLORES apud IVO, 2002). Os diagnósticos oferecidos por esses

estudos apontavam para o esgotamento da capacidade do Welfare State em atender as

demandas colocadas pela sociedade. Esgotamento esse que se traduzia em crise fiscal,

corrosão da autoridade e na instabilidade política dos governos desses países, as voltas com os

“excessos” de democracia, de governo e de demandas sociais (DINIZ ,1995).

1.2 A GOVERNABILIDADE NA DÉCADA DE 1980

Esses últimos diagnósticos, que procuram relacionar a crise de governabilidade

aos “excessos” de democracia, de governo e de demandas, de alguma forma já deixavam

transparecer os sinais do neoliberalismo sobre o conceito de governabilidade. Segundo Fiori,

foi a nova economia política - fruto do “casamento entre o neoliberalismo econômico de

Hayek e a corrente de pensamento da escola da escolha pública” - que serviu de base para o

que ele chamou de “a grande revolução neoliberal deste fim de século” (FIORI, 1995, n.43,

p.158). O avanço das idéias neoliberais promoveu redefinições no conceito de

governabilidade.

Quando surgiu, como observado anteriormente, a grande preocupação por traz do

conceito de governabilidade era com a ordem política, e governabilidade era entendida como

Page 23: Governança e Orçamento Participativo - reflexões a partir do · principal diferença entre governabilidade e governança está na forma como a legitimidade das ações dos governos

“a capacidade governamental de atender certas demandas, ou então de suprimi- las de vez”

(HIGGOTT apud FIORI, 1995, n. 43, p.158)7. Posteriormente, por influência do

neoliberalismo, essa preocupação migrou para a questão da eficiência do Estado e a sua

agenda passou a ser orientada não mais tão somente pela necessidade de conservar a ordem

política, mas, principalmente, pelo desafio de “limitar vigorosamente o número de atividades

ainda submetidas ao poder do Estado”, ou de forma resumida, para a idéia de “Estado

mínimo” (BUCHANAN apud FIORI, 1995, n. 43, p.159). Isso talvez explique porque grande

parte dos trabalhos produzidos no Brasil entre o final dos anos 1980 e meados dos anos 1990,

que empregavam o conceito de governabilidade como instrumento analítico, tratassem, de

forma direta ou indireta, da questão da crise fiscal e/ ou da reforma do Estado (FAUCHER,

1993, DINIZ, 1995, CASTRO SANTOS, 1997).

Um exemplo do emprego do conceito de governabilidade dentro dessa linha de

significação é aquele formado pelo conjunto de análises que surgiram no debate da ciência

política no Brasil, a partir de meados da década de 1980. Por aqui, inicialmente, ele variou

desde a preocupação com os “excessos de demandas sociais”, que viera à tona com o fim do

regime militar, até as questões relacionadas às reformas do Estado, política, econômica, etc.

(FIORI, 1995, n.º 43, p.161).

As primeiras análises sobre a crise de governabilidade vivida pelo Brasil seguiam

um viés conservador e atribuíam, ent re outros, a elementos como o “excesso” de participação

e de demandas sociais e a interferência do congresso nacional no processo de formulação de

políticas públicas, a responsabilidade pela instabilidade política vivida pelo país

(MELO,1995). Estes mesmos trabalhos prescreviam, como solução para a crise, o

7 Não que a preocupação com a eficiência não estivesse presente na noção huntingtoniana, ela de alguma forma marcava presença, mas era só mais um dentre os muitos fatores considerados necessários a criação das condições favoráveis a governabilidade e ao desenvolvimento.

Page 24: Governança e Orçamento Participativo - reflexões a partir do · principal diferença entre governabilidade e governança está na forma como a legitimidade das ações dos governos

fortalecimento do executivo federal, através do emprego do insulamento burocrático e da

reforma política.

Mas, segundo Diniz (1995), a concepção Huntingtoniana de governabilidade não

é a única, nem pode ser considerada a mais atual. Uma segunda geração de análises,

preocupada com a governabilidade em contextos democráticos, ganhou força a partir do final

da década de 1980. Tomaram a dianteira nessas análises, as agências internacionais de

fomento, em especial o Banco Mundial e Fundo Monetário Internacional – FMI (CASTRO

SANTOS, 1997), com a introdução dos conceitos de governance e good government. Além

delas, um conjunto de outros autores como Evans (1989), Faucher (1993), Malloy (1993), e

Sola (1993), que trataram do problema da crise de governabilidade enfrentada por governos

latino-americanos, também contribuíram com esses estudos.

1.3 ANOS 90: E AGORA, GOVERNABILIDADE OU GOVERNANÇA?

Segundo Fiori (1995, n.º43, p.159), no início da década de 1990 o conceito de

governabilidade sofre uma outra importante reformulação, é quando surge uma versão

“eclética”, da governabilidade que receberia o nome de governace ou good governance. Só

que dessa vez difundida pelo Banco Mundial e por outras instituições multilaterais. Segundo o

autor as mudanças trazidas por essa nova versão, em relação a anterior, são poucas, ela

“aumenta apenas o rigor no detalhamento institucional do que seria um governo pequeno,

bom e, sobretudo, confiável do ponto de vista internacional” (idem, p.159). Nessa nova

acepção, governabilidade (ou será governança?) passou a ser entendida como “sinônimo de

capacidade dos governos de conjugar simultânea e eficientemente as market friendely reforms

com a criação de condições institucionais capazes de estabilizar as expectativas dos decisores

econômicos” (ibid, p.160). Percebe-se, nessa nova definição, uma preferência, segundo

Page 25: Governança e Orçamento Participativo - reflexões a partir do · principal diferença entre governabilidade e governança está na forma como a legitimidade das ações dos governos

Borges (2003) não declarada, pela democracia liberal, que tem como objetivo central a

criação de condições ambientais para o bom funcionamento do mercado, através do

atendimento dos interesses dos agentes econômicos.

A preocupação em assegurar a governabilidade e a democracia ao mesmo tempo

surge no início da década de noventa, quando importantes atores do cenário político

internacional como os EUA, o FMI e, em especial, o Banco Mundial passaram a considerar a

democracia um aliado das condições adequadas ao desenvolvimento do capitalismo

(BORGES, 2003). Essa preocupação com a governabilidade nas democracias coincide com o

processo de consolidação da “terceira onda de democratização”, que avançou pelo Ocidente

entre as décadas de 1970 e início dos anos 1990 do século passado 8.

Da mesma forma que Fiori (FIORI, 1995, n.º43, p.158) chama a atenção o fato de

a defesa da governabilidade, significando “ordem” política, ter sido “contemporânea da

instalação dos regimes militares que se generalizaram nos continentes africano e latino-

americano nos anos 60 e 70 do século passado”. Também merece atenção o fato de o conceito

de governança, ao surgir no início da década de 1990, trazer implícita a preferência pela

democracia liberal, justamente num período contemporâneo a queda do muro de Berlim, que

simbolizou o fim dos regimes socialistas do leste europeu9.

Borges (2003), analisado a política do Banco Mundial para a educação, destaca

que no início dos anos 1990 as linhas de ação do Banco sofreram um importante ponto de

inflexão. Essa mudança teve como característica principal o abandono de políticas de

reformas econômicas e de ajuste estrutural, para se preocupar com a reforma do Estado, com

vista a alcançar a “boa governança” e o fortalecimento da sociedade civil. A partir de então

conceitos como governance e good government passam a integrar a agenda do Banco. 8 Segundo Castro Santos (2001) o termo “terceira onda de democratização” foi cunhado por Samuel Huntington, que teria associado o seu início à Revolução dos Cravos em Portugal, no ano de 1974. 9 Segundo Borges (2003), o relatório, Sub-Saharan Africa: from crisis to sustainable growth que serviu de base para as conclusões que resultaram na definição de governança formulada pelo Banco Mundial data do ano de 1989, justamente o ano da queda do muro de Berlim.

Page 26: Governança e Orçamento Participativo - reflexões a partir do · principal diferença entre governabilidade e governança está na forma como a legitimidade das ações dos governos

Supostamente, o fato gerador dessa mudança de postura do Banco Mundial teria sido o

resultado das políticas de ajustes estruturais, implantadas pela instituição na África Sub-

saariana ao longo da década de 1980, que teriam fracassado em seus objetivos.

Ainda segundo o autor, no relatório Sub-Saharan Africa: from crisis to

sustainable growth, o Banco teria apontado como obstáculo ao desenvolvimento daqueles

países o problema da crise de governança, representada pela fraqueza e falta de legitimidade

daqueles governos. Esse entendimento significou o abandono, por parte da instituição e de

outras agencias internacionais de financiamento, da crença de que o desenvolvimento político

e social e a própria consolidação da democracia viriam como conseqüência do

desenvolvimento econômico, e que, portanto, para resolver todos esses problemas bastaria

financiar esse desenvolvimento (CASTRO SANTOS, 1997).

Embora o Banco tenha se esforçado para fazer crer que essas mudanças em sua

agenda eram orientadas por uma neutralidade técnica, onde ele se apresentava como uma

instituição “apolítica”, o que se observava na prática, e na opção da instituição por políticas

normativas, eram ações orientadas por valores políticos (BORGES, 2003, p.126). Esses

valores surgem aparentemente do reconhecimento da importância dos fatores políticos na

determinação do sucesso de seus programas de financiamentos, e denota a opção do Banco

pelo modelo de democracia vigente nos países desenvolvidos do Ocidente, a democracia

liberal.

No Brasil, o contexto marcado pela retomada de democracia, e pela mudança de

postura assumida por importantes instituições internacionais de fomento, conforme destacado

acima, faz surgir um conjunto de análises representadas, entre outras, pelos trabalhos de

Faucher (1993), Malloy (1993), Diniz (1995), Melo (1995) e Reis (1995), que contrariam os

prognósticos da vertente huntingtoniana, ao questionar os elementos apresentados por ela

como solução para a crise de governabilidade vivida pelo país, até pelo menos o início da

Page 27: Governança e Orçamento Participativo - reflexões a partir do · principal diferença entre governabilidade e governança está na forma como a legitimidade das ações dos governos

década noventa. Esses trabalhos apontam justamente para o emprego abusivo do insulamento

burocrático e a tentativa de despolitização do processo de formulação de políticas públicas,

como a causa principal da crise.

Diniz (1995), por exemplo, analisando a questão do relacionamento entre

executivo e legislativo federal, chegou a defender que a crise pela qual o Brasil passava não

era de governabilidade e sim de governança10. Para sustentar esse argumento ela cita o

número de programas de ajustes econômicos (nove ao todo) e as medidas provisórias editadas

pelo governo federal (mais de mil), entre o início do governo Sarney e os cinco primeiros

meses do governo Fernando Henrique. Isso, no seu entendimento, não seria possível a um

governo que sofresse de paralisia decisória. A causa da crise, aparentemente, não estava na

falta de capacidade do governo de formular políticas públicas, mas na sua incapacidade de

implementá-las. O problema, portanto, não seria de paralisia decisória, mas de “hiperatividade

decisória” do executivo, associada a sua incapacidade de fazer valer as decisões tomadas.

Percebe-se nessa argumentação de Diniz (1995), assim como em outros autores

que, ao contrário de Fiori (1995), eles enxergavam diferenças significativas entre os conceitos

de governabilidade e governança. No entanto, como será visto a seguir, com as novas

definições, que foram sendo atribuídas ao conceito de governança, a fronteira semântica que

tais autores enxergavam parece ter ruído.

Uma crítica ainda mais contundente aos diagnósticos contidos nas análises

conservadoras é aquela feita por Melo (1995), que questiona o argumento do “excesso” de

participação política e da sobrecarga de demandas sobre o governo como sendo as causas

10 Para entender essa diferenciação feita por Diniz (1995) é necessário ver a definição que ela dá aos conceitos de governabilidade e governança. Ela define governabilidade como “condições institucionais e sistêmicas mais gerais sob as quais se dá o exercício de poder em uma dada sociedade, tais como a forma de governo, as características dos sistemas partidário e eleitoral, entre outras”. Já governança ela define como “a capacidade de ação, na implementação de políticas públicas e na consecução de metas coletivas”.

Page 28: Governança e Orçamento Participativo - reflexões a partir do · principal diferença entre governabilidade e governança está na forma como a legitimidade das ações dos governos

principais da crise de governabilidade. Apoiando-se em Wanderlei G. dos Santos11, ele refuta

esses diagnósticos, ao sugerir que, num quadro político e social onde a população se mostra,

(...) Alienada eleitoralmente, refratária à participação em organizações como sindicatos, partidos políticos, associações profissionais, ou comunitárias e indiferente à classe política (...) parece ser mais apropriado falar de reduzidas taxas de demandas - e não o inverso – e débil articulação social (MELO, 1995, p.38-9).

Em anos mais recentes, em função do processo de descentralização política, fruto

da aplicação das reformas neoliberais, onde as responsabilidades, que antes eram atribuídas ao

governo central, são transferidas para os governos locais. Surge, então, uma profusão de

estudos que tratam da questão da governabilidade e governança em nível municipal. Nesses

estudos ganham destaque o emprego dos conceitos de “governança local” ou “governança

urbana”. Segundo Ivo, estes não passam de “genéricos” do conceito de governança, e que,

como este, também foram usados no início da década de 1990, pelas agenciais internacionais

de desenvolvimento, “com vistas a criar um Estado eficiente que contemple a construção do

desenvolvimento auto-sustentável, através de estímulo à inovação e a participação social e

descentralização das políticas” (IVO, 2001, p.61).

1.4 AS MAIS RECENTES CONCEPÇÕES DE GOVERNANÇA

A forma como os conceitos de governabilidade e governança apareceram até aqui

na discussão, provoca certa confusão, que reflete a realidade que cerca esses dois conceitos.

Como se pôde observar, a noção de governança foi difundida pelo Banco Mundial no início

da década de noventa e, de forma paralela, começa-se a falar também em governabilidade

democrática. Se inicialmente eles poderiam ser considerados “como aspectos

11 Aqui o autor se apóia em Santos, Wanderlei G. dos, Razões da Desordem, Rocco, 1993, p.80.

Page 29: Governança e Orçamento Participativo - reflexões a partir do · principal diferença entre governabilidade e governança está na forma como a legitimidade das ações dos governos

complementares” da eficácia estatal, atualmente parece não poder ser entendido dessa forma

(DINIZ, 1995, p.389)12. As abordagens mais recentes de governança tratam de ampliar o seu

significado, fazendo-o avançar sobre as fronteiras semânticas do conceito de governabilidade.

Isso se dá a partir do momento em que essas novas concepções passam a considerar “questões

mais amplas relativas a padrões de coordenação e cooperação entre atores sociais” (MELO,

1995, p.30). Ou seja, as formulações mais recentes do conceito de governança englobam não

só aspectos operacionais das ações governamentais como também aspectos políticos que dão

sustentação a essas ações.

Essa confusão só parece aumentar à medida que vão surgindo novas definições

para o conceito. Uma das mais recentes, originária da América Latina, trata de fazer uma

reapropriação do conceito de governance formulado pelo Banco Mundial, incluindo nele a

dimensão da “justiça social”, como sendo uma responsabilidade do Estado. Segundo Ivo, “a

introdução da dimensão da justiça social no âmbito da noção de governança resultou da

avaliação crítica dos dispositivos originais da governança instituídos pelo Banco Mundial no

contexto dos ajustes de reforma dos Estados” (IVO, 2001, p.197). Essa nova interpretação é

uma espécie de vertente de esquerda da noção de governança, que se opõe a noção difundida

inicialmente pelo Banco. Enquanto esta última tem como orientação a redução do tamanho do

Estado, principalmente através do seu desengajamento em relação a questões sociais, a

primeira tenta atribuir a esse mesmo Estado, o papel de ator principal nas soluções dos

problemas sociais.

Outro elemento não menos importante que marca essas novas concepções de

governança é a perda da importância de aspectos técnicos, de governo, em detrimento da

ascensão da dimensão política (IVO, 2002, p.10). Desta forma, há um deslocamento do lócus

12 Diniz (1995) entedia que governança e governabilidade eram conceitos complementares. No entanto, como foi visto, Fiori (1995) parece não entender dessa forma. Ele vê no conceito de governança do Banco Mundial apenas uma versão reformulada do conceito de governabilidade, na linha Huntingtoniana.

Page 30: Governança e Orçamento Participativo - reflexões a partir do · principal diferença entre governabilidade e governança está na forma como a legitimidade das ações dos governos

de poder, que sai do âmbito do governo para se dá nos espaços de interação entre Estado e

sociedade.

Ainda aqui vale ressaltar que, aparentemente, o que há de novo nessa

interpretação da governança, não é a inclusão da dimensão de justiça social, até porque essa

dimensão também aparece no conceito de governança de algumas instituições internacionais

de fomento, como é o caso da Japanese International Cooperation Agency- JICA

(BANDEIRA, 1999). O que há realmente de novidade nessa interpretação, é a devolução ao

Estado da responsabilidade pela promoção dessa justiça social. Ou seja, é uma tentativa de

reversão da noção original do conceito de governança, uma vez que nele caberia ao Estado

apenas regular o funcionamento da economia e oferecer políticas compensatórias, para

combater os efeitos dos ajustes neoliberais, e a questão social ficaria então subordinada a

filantropia (IVO, 2001, p.2).

É nesse contexto que Frey (2004) fala da existência de pelo menos duas grandes

vertentes analíticas que tratam de governança. Uma seria orientada pela noção difundida pelo

Banco Mundial, nela se inscrevem abordagens que tem como objetivos finais principais o

aumento da eficiência e da eficácia dos governos, usando para isso mecanismos de

participação da sociedade civil. Na outra vertente estão inscritas abordagens que focam o

potencial democrático e emancipatório da sociedade civil, como por exemplo a noção de

governança participativa. Mas, segundo o autor as diferenças significativas entre essas

abordagens parecem subsistir apenas no plano ideológico, já que em termos práticos elas

parecem muito próximas.

Apesar da existência de uma diferença inegável no tocante ao fundo ideológico que norteia ambas as vertentes teóricas e políticas, percebe-se certa confluência destas duas abordagens para a concepção de governança, evidenciando uma tendência a uma aproximação entre os modelos gerencial e democrático-participativo, sem porém chegar a uma dissolução dos antagonismos ideológicos referentes aos objetivos estabelecidos (FREY, 2004, p.4).

Page 31: Governança e Orçamento Participativo - reflexões a partir do · principal diferença entre governabilidade e governança está na forma como a legitimidade das ações dos governos

Em cada uma delas, a necessidade de se levar em conta a “questão da mobilização

dos saberes” tem razões diferentes (BOURDIN, 2001 apud FREY, 2004, p.3). Os que seguem

a vertente do Banco Mundial, olham a participação a partir “da lógica e das necessidades

administrativas e governamentais”. Enquanto que, os adeptos da governança democrática,

vêem na participação a possibilidade da “emancipação social e da redistribuição do poder”

(FREY, 2004, p.4).

1.5 AFINAL, É POSSÍVEL DIFERENCIAR GOVERNABILIDADE DE GOVERNANÇA?

Os conceitos de governabilidade e governança se apresentaram até aqui ora como

elementos complementares da eficácia das instituições governamentais, ora como tendo o

mesmo significado um do outro. Isto parece ser reflexo da própria confusão que se instalou na

difusão do uso do conceito de governabilidade, ainda no início da década de noventa,

associado às múltiplas noções atribuídas ao conceito de governança. Se, por um lado, há um

conjunto de autores como Diniz (1995), Melo (1995) e Araújo (2003) que tentam diferenciá-

los, um outro tanto não faz qualquer esforço nesse sentido, ou até mesmo são vítimas de tal

confusão semântica. Reis (1994), por exemplo, parece se enquadrar nesse último grupo,

quando afirma que,

[...] tal parece ser o caso de governance, cujo equivalente em português mais preciso seria provavelmente governança, mas que aqui no Brasil mais comumente se convencionou tratar pela forma já conhecida de governabilidade [...] (REIS, 1994, p.194).

Diniz (1995, p.401), no entanto, tenta diferenciá- los, sugerindo que

governabilidade deve ser entendida como “as condições institucionais e sistêmicas mais gerais

sob as quais se dá o exercício de poder em uma dada sociedade, tais como a forma de

governo, as características dos sistemas partidário e eleitoral, entre outras”. Já governança ela

Page 32: Governança e Orçamento Participativo - reflexões a partir do · principal diferença entre governabilidade e governança está na forma como a legitimidade das ações dos governos

define como “a capacidade de ação, na implementação de políticas públicas e na consecução

de metas coletivas”.

Melo (1995, p.30), também se esfo rça nesse sentido e sugere que, a

governabilidade trata das “condições do exercício da autoridade política”, enquanto

governança estaria relacionado com o “modo de uso dessa autoridade”. Mas, o próprio autor

admite que “a discussão recente em torno do conceito de governança (governance) ultrapassa

o marco do modus operandi das políticas e engloba questões mais amplas relativas a padrões

de coordenação e cooperação entre atores sociais”( idem, p.30).

Já Fiori, como ficou claro ao longo dessa discussão, acredita que governabilidade

e governança são a mesma coisa, sendo que este último conceito não passa de uma “versão

eclética” do primeiro (FIORI, 1995, n. 43, p.159).

Como se pode observar, não há consenso na ciência política em relação aos dois

conceitos, sobre onde termina um e onde começa o outro. Isso faz com que todas as tentativas

no sentido de traçar suas respectivas fronteiras semânticas não ultrapassem o pragmatismo

didático-analítico. Além disso, o próprio conceito de governabilidade foi empregado com

tantas significações que os múltiplos significados, a ele atribuídos, teriam contribuído para o

seu esvaziamento e, até mesmo, para confundi- lo com o conceito de governança. Se isso não

fosse o bastante, outros fatores como nacionalidade do autor, a ênfase que ele dá a um ou

outro elemento e, até mesmo, suas orientações ideológicas, influenciam no significado do

conceito de governabilidade por ele empregado (ARAÚJO, 2002).

E por falar em orientações ideológicas, a própria multiplicidade de significados

dados ao conceito de governança parece ter a ver com elementos dessa natureza. Frey (2004,

p.4), conforme já assinalado anteriormente, identifica ao menos duas vertentes do conceito de

governança. Na primeira, orientada pela idéia de “good governance” do Banco Mundial, “a

ênfase está na criação de condições de governabilidade e na garantia do funcionamento do

Page 33: Governança e Orçamento Participativo - reflexões a partir do · principal diferença entre governabilidade e governança está na forma como a legitimidade das ações dos governos

livre jogo das forças de mercado”. A segunda vertente, uma abordagem mais emancipatória,

busca “restaurar a legitimidade do sistema político pela criação de novos canais de

participação e parcerias entre o setor público e o setor privado ou iniciativas voluntárias”.

Embora o autor admita a existência de diferenças políticas e ideológicas entre essas vertentes,

ele também consegue perceber “uma certa confluência destas abordagens para a concepção de

governança, evidenciando uma tendência a uma aproximação entre os modelos gerencial e

democrático-participativo” (idem), sem que isso signifique a abdicação dos objetivos

ideológicos de ambas as vertentes.

De forma sintética, percebeu-se até aqui, que há duas vertentes principais do

conceito de governança. Aquela que segue a linha do Banco Mundial que, segundo Fiori

(1995), não passa de um refinamento do conceito de governabilidade ou, em suas palavras, de

uma “versão eclética” deste. E outra que surge de uma reapropriação daquele conceito e

propõe a devolução da responsabilidade pelo social ao Estado. No entanto, como visto

anteriormente, no argumento de Frey (2004), parece que as diferenças estão muito mais no

campo ideológico do que em termos práticos.

Como o objetivo principal desse trabalho é identificar de que forma o Orçamento

Participativo contribui com a governança urbana, a ponto de a experiência de Porto Alegre ter

sido reconhecida pelo Banco Mundial como “como um exemplo bem-sucedido de ação

comum entre governo e sociedade civil” (PMPA, 2004b). Parece bastante razoável analisar as

práticas do OP com base no conceito de governança do próprio Banco. Portanto, para tornar

essa análise viável, o capítulo II tratará de promover uma discussão mais pormenorizada desse

conceito.

Além disso, entende-se que, a decisão de empregar o conceito do Banco Mundial

na análise de uma experiência de gestão participativa, coloca de imediato a necessidade de

aprofundar o debate proposto por Fiori (1995). Ao afirmar que esse conceito de governança

Page 34: Governança e Orçamento Participativo - reflexões a partir do · principal diferença entre governabilidade e governança está na forma como a legitimidade das ações dos governos

não passa de uma versão, com pequenos ajustes, do conceito de governabilidade, o autor cria

uma aparente contradição. Afinal, como foi visto lá no início desse capítulo, Huntington

(1975) via no “excesso” de participação uma ameaça à governabilidade. Então como é

possível, ser o conceito de governança do Banco Mundial, apenas uma versão do conceito de

governabilidade, se o próprio Banco admite que a participação pode ser usada como um meio

para se alcançar a governança? É com objetivo de tentar responder a essa questão e a outras,

que por ventura venham a surgir do seu desdobramento, que se dedica o capítulo III.

Page 35: Governança e Orçamento Participativo - reflexões a partir do · principal diferença entre governabilidade e governança está na forma como a legitimidade das ações dos governos

CAPÍTULO 2 - GOVERNANÇA SEGUNDO O BANCO MUNDIAL

Esse capítulo tem como objetivo principal apresentar o conceito de governança do

Banco Mundial, bem como os seus principais elementos constituintes. Não se pretende aqui

promover nenhuma revisão exaustiva sobre as diferentes concepções dadas por outros autores

ao conceito de governança, por duas razões. Primeiro, porque a discussão travada

anteriormente já possibilitou uma noção, ainda que breve, da multiplicidade de definições que

esse conceito recebe. Segundo, porque apenas a definição dada pelo Banco Mundial será

usada na análise empreendida nesse trabalho, que procura identificar as principais

contribuições oferecidas por uma ferramenta de gestão participativa, o Orçamento

Participativo (OP), para a governança urbana.

2.1 GOVERNANÇA: O CONCEITO

A emergência do tema da governança, a partir do início da década de 1990,

resultou de um processo de inflexão pelo qual passou a agenda do Banco Mundial, o qual

provocou um redirecionamento de suas políticas de financiamento com vistas ao

desenvolvimento econômico13. Contribuiu para esse redirecionamento as falhas constatadas

13 Há autores como Fiori que não conseguem enxergar diferenças significativas entre os conceitos de governança e governabilidade, considerando o primeiro apenas uma versão “eclética” deste último (FIORI, 1995, n. 43, p.159).

Page 36: Governança e Orçamento Participativo - reflexões a partir do · principal diferença entre governabilidade e governança está na forma como a legitimidade das ações dos governos

em programas de ajustes estruturais empreendidos em países da África Sub-Saariana, ao

longo dos anos 1980. Essas falhas foram apresentadas num relatório intitulado “Sub-Saharan

Africa: from crisis to sustainable growth” produzido em 1989. Nesse relatório a crise de governança

era assinalada como o principal obstáculo ao desenvolvimento daquele continente (BORGES,

2003, p.126). Além disso, contribuíram também “as rápidas mudanças políticas que

ocorreram no Leste Europeu, América Latina, África e partes da Ásia” (WORLD BANK,

1992, p.5).

A partir dessas experiências, o Banco constatou que, para que um programa de

ajustes gerasse resultados positivos, não bastava um projeto tecnicamente bem elaborado. Pois

uma variável importante, “a qualidade das ações do governo”, influenciava de forma

significativa nos resultados alcançados por esses programas (WORLD BANK, 1992, p.1,

tradução nossa). Ou seja, além de um projeto com tais características, era necessário assegurar

que os governos cumpririam o papel que deles se esperava, num contexto de um programa de

ajuste econômico de corte neoliberal. Desta forma, caberia aos governos desempenhar um

papel chave na provisão de bens e serviços públicos, considerados essenciais, para assegurar o

funcionamento eficiente dos mercados; e oferecer, também, bens e serviços públicos

essenciais à população, não oferecidos pelos agentes econômicos privados.

Os bens e serviços públicos oferecidos pelo Estado, num contexto desses, são de

três naturezas distintas: a criação e reforço das regras para o funcionamento eficiente dos

mercados (leis que estabeleçam a ordem, assegurem o direito à propriedade, que favoreçam o

investimento produtivo, etc.), reduzindo o “custo de transação”; a criação de mecanismos para

assegurar a competição no mercado; e o “provimento de serviços como saúde, educação e

serviços de infra-estrutura essenciais, particularmente quando esses serviços são direcionados

para os pobres e não são oferecidos pelo setor privado” (WORLD BANK, 1992, p.1, tradução

nossa).

Page 37: Governança e Orçamento Participativo - reflexões a partir do · principal diferença entre governabilidade e governança está na forma como a legitimidade das ações dos governos

No entanto, para atuar como guardião da eficiência dos mercados e oferecer os

bens e serviços públicos considerados essenciais (que não podem, ou não são oferecidos pelos

agentes econômicos privados, seja por falta de interesse, ou por qualquer outra restrição de

caráter intrínseco ao próprio bem ou serviço) os governos precisam arrecadar recursos. Mas o

próprio emprego eficiente desses recursos é considerado, também, de fundamental

importância para gerar as condições favoráveis ao desenvolvimento econômico. Desse modo,

no entendimento do Banco Mundial, a eficiência dos mercados e a eficiência dos governos

são determinantes para o desenvolvimento econômico sustentável. É o gerenciamento dessas

condições que o Banco chama de governança, ou boa governança, a qual ele define como “a

maneira pela qual o poder é exercido na gerência de recursos econômicos e sociais de um país

para o desenvolvimento” (WORLD BANK, 1992, p.1, tradução nossa).

Segundo o Banco Mundial, quando há falha na governança uma série de sintomas

aparecem, como: falta de clareza na separação entre o que é público e privado, e por conta

disso, recursos públicos são usados em benefícios de particulares; ausência de um aparato

legal fortalecido, resultando na formulação e aplicação arbitrária das leis; excesso de regras e

regulação, atrapalhando a eficiência dos agentes econômicos privados e favorecendo o rent-

seeking; desperdício de recursos públicos; e falta de transparência na tomada de decisões

pelos governos.

O Banco identifica quatro principais dimensões da governança, as quais considera

compatível com a sua agenda, são elas: administração do setor público; accountability;

quadro, ou estrutura legal; e informação e transparência. O quadro abaixo resume essas

dimensões, bem como os principais indicadores que integram cada uma delas.

Page 38: Governança e Orçamento Participativo - reflexões a partir do · principal diferença entre governabilidade e governança está na forma como a legitimidade das ações dos governos

Quadro 1: Dimensões e principais indicadores do conceito de governança

Dimensões Indicadores

Capacidade de oferecer bens e serviços públicos com eficiência e eficácia .

Administração pública Existência de mecanismos de planejamento e controle dos gastos públicos

(peça orçamentária).

Existência de um sistema de contabilidade eficiente do governo que

permita o controle dos gastos e o gerenciamento dos recursos financeiros;

Existência de um sistema de auditoria externa que reforce o controle das

despesas e que imponha sanções contra o desperdício e a corrupção;

Existência de mecanismos que permitam a verificação do cumprimento das

recomendações sugeridas como solução dos problemas identificados nas

auditorias

Existência de mecanismos de avaliação de desempenho dos governos.

Accoutability

Existência de mecanismos que permitam aos usuários dos serviços públicos

influenciarem na formulação e implementação das políticas públicas e na

prestação de serviços públicos

Leis conhecidas previamente;

Leis fortes

Existência de mecanismos que assegurem a aplicação das leis

Sistema judiciário confiável e independente

Estrutura legal

A existência de procedimentos para alteração de leis ultrapassadas

Disponibilidade de informações sobre políticas e ações do governo.

Informação e transparência Possibilidade de participação no processo de formulação de políticas

públicas

Fonte: elaboração própria a partir do relatório Governance and Development (WORLD BANK, 1992).

2.1.1 Administração Pública

A dimensão da administração pública refere-se à capacidade do setor público em

gerenciar a economia e oferecer bens e serviços públicos com eficiência e eficácia. Entende-

se que o governo central, através de suas agências, deve ser capaz de gerenciar a economia,

através da criação de um ambiente institucional favorável aos investimentos privados. Dessa

forma, caberia ao Estado a responsabilidade pela criação e reforço das regras para o

Page 39: Governança e Orçamento Participativo - reflexões a partir do · principal diferença entre governabilidade e governança está na forma como a legitimidade das ações dos governos

funcionamento eficiente do mercado e a intervenção para corrigir eventuais falhas do mesmo

(WORLD BANK, 1992).

Além do gerenciamento da economia, cabe também ao Estado o “provimento de

serviços como saúde, educação e serviços de infra-estrutura essenciais, particularmente

quando esses serviços são direcionados para os pobres e não são disponibilizados pelo setor

privado” (WORLD BANK, 1992, p.6). Com a descentralização, boa parte desses serviços

ficou a cargo dos governos locais. Aliás, a própria preocupação com o provimento desses

serviços tem uma relação muito forte com a questão da eficiência dos mercados, como destaca

o Banco, “uma força de trabalho bem educada e uma infra-estrutura adequada são

fundamentais para a qualidade dos investimentos privados” (idem).

Para o Banco Mundial “o Estado deveria administrar menos, mas administrar

melhor” (WORLD BANK, 1992, p. 2). Isso explica todo o esforço direcionado pelo Banco,

ao longo da década de 1980, através dos programas de empréstimos de ajustes, na busca da

melhoria do gerenciamento do setor público, nos países em desenvolvimento. Os esforços

desses programas se concentraram em três áreas principais: melhoria no gerenciamento dos

gastos públicos; melhoria na prestação de serviços públicos; e aumento da eficiência das

empresas estatais, ou privatização das mesmas.

No entendimento do Banco, um melhor gerenciamento dos gastos públicos

depende da adoção de mecanismos eficiente de formulação e gerenciamento do orçamento

público, de geração de receitas, e de controle de gastos e planejamento do investimento. Em

relação a melhorias dos serviços públicos, o foco está na busca da contenção do crescimento

do governo e dos seus custos, através da eficiência e efetividade dos serviços públicos

prestados. Já na melhoria do gerenciamento das empresas estatais, os esforços foram

direcionados para a criação de políticas e instituições que tornassem essas empresas mais

Page 40: Governança e Orçamento Participativo - reflexões a partir do · principal diferença entre governabilidade e governança está na forma como a legitimidade das ações dos governos

eficientes, incluído aí programas de privatizações e o estabelecimento de regras que

redefinissem as relações entre essas empresas e o governo (WORLD BANK, 1991, p. 2).

2.1.2 Accountability

“Accoutability, no seu sentido mais simples, significa responsabilizar o servidor

público por suas ações” (WORLD BANK, 1992 p.13, tradução nossa)14. Em um sentido

amplo, a accountability pública tem entre seus objetivos “assegurar a congruência da política

pública e sua real implementação com o uso eficiente dos recursos públicos” (idem).

O Banco Mundial considera que existem dois níveis de accountability, o nível

macro e o nível micro. Dentro do nível macro situa-se a accountability financeira e a

accountability sobre o desempenho econômico do país. A accountability financeira envolve a

existência de um sistema de contabilidade eficiente do governo, que permita o controle dos

gastos e o gerenciamento dos recursos financeiros; a existência de um sistema de auditoria

externa que reforce o controle das despesas e que imponha sanções contra o desperdício e a

corrupção; e a existência de mecanismos que permitam a verificação do cumprimento das

recomendações sugeridas, como solução dos problemas identificados nas auditorias. Esses são

instrumentos considerados de grande importância para evitar a corrupção e os desvios de

recursos públicos e, portanto, para ampliar a eficiência no uso dos recursos públicos

(WORLD BANK, 1992).

O outro componente importante da accountability no nível macro diz respeito

preocupação com o desempenho econômico do governo em sentido amplo. Nessa perspectiva,

14 A definição de servidor público deve ser entendida de forma ampla. Pois, o Banco Mundial dá a entender que o significado de servidor público não se restringe aos burocratas, engloba também os líderes políticos, se não vejamos: “Political leaders are ultimately responsible to their populations for government actions, and this means that there has to be accountability within government” (WORLD BANK, 1992, P.13).

Page 41: Governança e Orçamento Participativo - reflexões a partir do · principal diferença entre governabilidade e governança está na forma como a legitimidade das ações dos governos

não basta o governo evitar o desvio dos recursos públicos, ele precisa, além disso, certificar-se

de que esses recursos estão sendo usados de forma eficiente. Para tornar essa mensuração

possível, cabe ao governo criar mecanismo para avaliar a sua performance na racionalização

do uso desses recursos (WORLD BANK, 1992 p.19).

A accountability no nível micro está relacionada com a criação de mecanismos

que permitam aos usuários dos serviços públicos assegurarem que receberão os serviços

dentro das expectativas. Nesse nível a accountability é reforçada quando existe competição ou

participação. A competição possibilita que os usuários dos serviços, quando descontentes,

troquem de fornecedor, ou seja, a possibilidade de “exit” (WORLD BANK, 1992 p.22). Já

quando há espaço para a participação, ou “voice”, existem mecanismos que possibilitam que

os usuários “articulem suas preferências e demandas” e influencie tanto na formulação quanto

na implantação de políticas públicas que os afetam e também na qualidade dos serviços que

lhes são oferecidos (idem). Embora o Banco Mundial deixe clara a sua preferência pelas

soluções de mercado, ele também reconhece a importância da participação dos grupos alvos

das políticas públicas, como mecanismo para se alcançar maior eficiência e eficácia dos

governos.

Voice can also be increased through popular participation in the design and implementation of projects. The Bank's experience suggests that participation can be important to project success and sustainability (WORLD BANK, 1992, p. 26).

Ou

The World Bank has learned from its experience that participation is important for the success of projects economically, environmentaly, and socially. The most important lesson has been that participation is a question of efficiency, as well as being desirable in its own right. In one study, the Bank evaluated twenty-five projects five to ten years after completion. Strong beneficiary organizations (an instrument of facilitating partidpation) proved to be a key factor in determining project sustainability (World Bank 1985). Another study of sixty-eight Bank-financed projects found that the economic

Page 42: Governança e Orçamento Participativo - reflexões a partir do · principal diferença entre governabilidade e governança está na forma como a legitimidade das ações dos governos

rate of return was twice as high for projects which had been sensitive to local social and cultural realities (KOTTAK 1985, apud WORLD BANK, 1992, p. 27)

Como se percebe, o Banco reconhece a importância do envolvimento direto da

população alvo nos projetos. E o reconhecimento da importância da participação parece não

ficar restrito a projetos menores, a ações ou políticas de menor porte.

But participation is also valuable for bigger projects. The Bank's experience with environmental issues and adjustment loans indicates that public consultation and information sharing can improve the design and build public support for large-scale investments and policy decisions. This approach is working, for instance, in Mexico's hydroelectric project, India's Upper Krishna River dam project, and Ghana's private investment and sustained development promotion credit (WORLD BANK, 1992, p. 27).

O Banco sugere como exemplos de mecanismos de participação: a instalação de

conselhos paritários, formados por usuários e fornecedores, em número equilibrado, a

instalação de centrais de atendimentos para registrar as reclamações dos usuários dos serviços,

a existência de um ombudsman, e o emprego de mecanismos de consulta para verificar junto

aos usuários, a qualidade dos serviços prestados.

No entanto, o Banco reconhece a limitação da maioria desses mecanismos quando

direcionados para as populações mais pobres e chega a admitir que esses canais de influência

apresentam resultados significativos para os pobres, apenas quando os serviços não possuem

características excludentes. Já que esses canais de reclamação são usados mais pelos mais

ricos. Talvez, seja por isso que o Banco entenda que as ONG´s desempenhem um papel

fundamental, nem tanto na prestação de serviços, mais muito mais na capacidade que esses

organizações têm de alcançar as populações mais pobres. É por conta disso que o Banco

incentiva os governos a usarem esses potencial das ONG´s, tanto para prestar serviços, em

substituição ao Estado, quanto para organizar a participação dessas populações mais pobres

Page 43: Governança e Orçamento Participativo - reflexões a partir do · principal diferença entre governabilidade e governança está na forma como a legitimidade das ações dos governos

no desenho projetos específicos, que elas como alvo, e que são coordenados pelo governo.

Sempre com o objetivo de alcançar a efetividade de tais projetos.

É importante ressaltar que, nessa perspectiva, a accoutability no nível micro,

contribui muito para a accountability no nível macro. Pois, se a preocupação com o uso

eficiente dos recursos públicos não existir nesse nível, certamente o governo central terá

dificuldades de gerenciar a economia, a partir do uso de meios fiscais e monetários. Para

reforçar o argumento da importância da accountability no nível micro para a accountability

macro, o Banco cita o exemplo do que teria ocorrido na Argentina nos anos 1980, onde os

gastos descontrolados dos governos das províncias teriam levando o país a uma grave crise

financeira (WORLD BANK, 1992, p.22).

2.1.3 Quadro Legal

Embora admita que o conceito de estrutura ou quadro legal tenha um significado

mas amplo, o Banco o adota de forma restrita, compreendido por duas dimensões principais:

uma instrumental, constituída pelos elementos formais necessários a existência de um sistema

legal; e outra substantiva que trata dos conteúdos das leis e de conceitos como justiça,

igualdade e liberdade (WORLD BANK, 1992, p.30). Ela diz respeito a alguns elementos

necessários para criar condições favoráveis ao funcionamento eficiente dos mercados, e o

conseqüente desenvolvimento econômico. O aparato legal deve criar as cond ições para que os

atores econômicos desempenhem o seu papel, fazendo uso eficiente dos investimentos

produtivos e gerando desenvolvimento. Precisa não só facilitar as transações entre esses atores

econômicos, mas também evitar as interferências arbitrárias do governo no setor privado da

economia. Nessa abordagem restrita, o Banco se preocupa, principalmente, com a presença de

Page 44: Governança e Orçamento Participativo - reflexões a partir do · principal diferença entre governabilidade e governança está na forma como a legitimidade das ações dos governos

cinco elementos específicos que, no seu entendimento, são considerados críticos para a

existência de uma estrutura legal adequada. São eles:

• A existem de um conjunto de leis previamente conhecidas;

• A existência de leis realmente fortes;

• A existência de mecanismos que assegurem a aplicação das leis;

• A existência de um judiciário confiável e independente para resolver Conflitos;

• A existência de procedimentos conhecidos para a alteração das leis, quando elas não

servem mais a sua finalidade.

Cada um desses elementos desempenha um importante papel na constituição de

um quadro legal básico, mas necessário à criação das condições que favoreçam a eficiência do

mercado e o conseqüente desenvolvimento econômico. O primeiro desses elementos seria a

existência de um conjunto de leis previamente conhecidas. Para isso, é necessário que exista

um conjunto de leis coerentes, difundidas com clareza e de forma efetiva e que a aplicação só

seja feita quando ela for de domínio público.

O segundo elemento, que contribuiu para a construção de uma estrutura legal

favorável a eficiência do governo e dos mercados, é não só a existência, mas a aplicação das

leis existentes. “Não é suficiente que a lei esteja em livros: ela tem que ser aplicada, precisa

ser realmente posta em prática e não apenas formalmente, e mais importante, precisa ser

apropriada” (WORLD BANK, 1992, p.32, tradução nossa).

Outro elemento importante da estrutura legal é a existência de mecanismos que

assegurem a aplicação da lei. Não só para os cidadãos, mas também, o próprio governo deve

estar sujeito às limitações impostas pela lei. É a aplicação consistente da lei que cria um

ambiente de legalidade e legitimidade.

Page 45: Governança e Orçamento Participativo - reflexões a partir do · principal diferença entre governabilidade e governança está na forma como a legitimidade das ações dos governos

De acordo com o Banco Mundial, um sistema judiciário forte, confiável e

independente é importante para assegurar que os contratos privados serão respeitados e para

combater as arbitrariedades do poder executivo. Isso contribui para a redução dos custos de

transação, aumentando a eficiência dos investimentos produtivos. Se o sistema judiciário não

funcionar dessa forma ele perde a capacidade de resolver conflitos e inspirar confiança.

Outro elemento importante é a existência de procedimentos claros para a criação

de uma lei ou a alteração de uma lei já existente. Isto é importante para criar um clima de

estabilidade, evitando a arbitrariedade de governos e a conseqüente desobediência de leis

criadas através de processos arbitrários.

2.1.4 Informação e Transparência

De acordo com o Banco Mundial há pelo menos três razões importantes que

justificam a necessidade da informação e da transparência: redução da corrupção, a redução

do risco de erros dos governos e a eficiência e eficácia dos atores econômicos. A

transparência no processo de formulação de políticas pública pode não eliminar, mas

certamente diminui a corrupção. Elas também contribuem com a redução do risco de erros dos

governos, ao permitir que os grupos afetados pelas políticas se manifestem ou no processo de

formulação ou antes de sua implementação. Por último, quando os processos de formulação

de políticas públicas são transparentes e as informações sobre essas políticas estão disponíveis

a todos os atores econômicos, reduz as incertezas e os riscos e contribui com o aumento da

eficiência e da eficácia dos agentes econômicos privados. Além disso, a redução dos erros do

governo e da corrupção contribui com o aumento da eficiência do próprio governo (WORLD

BANK, 1992, p.40). Ainda segundo o Banco, é essa equação, mercados e governos eficientes,

que formam as condições favoráveis para o desenvolvimento econômico sustentável.

Page 46: Governança e Orçamento Participativo - reflexões a partir do · principal diferença entre governabilidade e governança está na forma como a legitimidade das ações dos governos

Segundo o Banco Mundial (1992), os esforços de combate à corrupção devem se

concentrar na eliminação de condições favoráveis a ela, como a falta de transparecia no

processo de formulação de políticas públicas, em especial as econômicas, e em áreas cruciais

como tributação e compras do governo. Cabe aos governos criarem mecanismos para tornar

as ações nessas áreas as mais transparentes possíveis, tornando as informações de domínio

público e evitando que funcionários públicos se envolvam em rent-seeking, ou ganho com a

venda de informações.

Ainda de acordo com o Banco, a falta de transparência não é prejudicial apenas na

questão do favorecimento à corrupção. Quando um processo de formulação de uma política

pública ocorre de forma isolada daqueles que serão afetados por ela, pode conduzir a erros

que podem custar caro aos cofres públicos. O erro pode ser desde a simples ineficiência da

política, até reações negativas em relação a ela.

A informação é um elemento crucial na determinação da eficiência dos agentes

econômicos privados, “uma economia de mercado competitiva requer que os atores

econômicos tenham acesso a informações relevantes e confiáveis, no momento oportuno”

(WORLD BANK, 1992, p.39). Por ser o governo a fonte principal de informações

econômicas (seja produzido-as diretamente através de suas agências, ou demandado-as a

outros fornecedores) cabe a ele criar as condições para que essas informações sejam de fácil

acesso a maior amplitude possível dos atores econômicos. Para torná- las acessíveis, os

governos precisam criar mecanismos de coleta, tratamento e divulgação das mesmas. Essas

informações estando acessíveis permitem que esses atores econômicos possam usá- las nas

suas decisões, reduzindo as incertezas, ou riscos e, consequentemente, os custos de transação.

São por essas e outras razões que informação e transparência são considerados

elementos importantes da governança e consequentemente do desenvolvimento econômico.

Page 47: Governança e Orçamento Participativo - reflexões a partir do · principal diferença entre governabilidade e governança está na forma como a legitimidade das ações dos governos

CAPÍTULO 3 - GOVERNABILIDADE, GOVERNANÇA E ORÇAMENTO

PARTICIPATIVO: A PARTICIPAÇÃO INSTITUCIONALIZADA COMO

ELEMENTO EM COMUM

Este capítulo tem dois objetivos principais: o primeiro é analisar as diferenças e

semelhanças entre os conceitos de governabilidade e governança, como forma de explicar por

que a participação que era tida como ameaça a governabilidade se torna um instrumento para

se alcançar a governança. O segundo é discutir o tipo de participação que se dá através do

Orçamento Participativo e demonstrar porque ele pode ser considerado um instrumento e não

uma ameaça a governança.

3.1 PARTICIPAÇÃO INSTITUCIONALIZADA E LEGITIMIDADE: ELEMENTOS QUE

IGUALAM E DIFERENCIAM OS CONCEITOS DE GOVERNABILIDADE E

GOVERNANÇA

A princípio, parece bastante problemática a tentativa de relacionar uma prática

como o Orçamento Participativo a um conceito como o de governança. Sai da categoria de

problemático para de uma grande contradição quando se considera que o conceito de

governança foi desenvolvido por uma instituição reconhecidamente conservadora como o

Banco Mundial. E, finalmente, se transforma praticamente numa impossibilidade teórica

Page 48: Governança e Orçamento Participativo - reflexões a partir do · principal diferença entre governabilidade e governança está na forma como a legitimidade das ações dos governos

quando se depara com argumentos como aqueles desenvolvidos por Fiori (1995). Onde ele

busca mostrar que o conceito de governança não passa de uma “versão eclética” do conceito

de governabilidade, e que um difere do outro na forma como “aumenta apenas o rigor no

detalhamento institucional do que seria um governo pequeno, bom e, sobretudo, confiável do

ponto de vista da comunidade internacional” (FIORI, 1995, n. 43, p.159). Não custa relembrar

ainda aqui, que por conta de seus trabalhos que tratavam da questão da governabilidade

Samuel Huntington, foi acusado de ser conservador e antidemocrático por autores como

Martins (1994); Diniz (1995) e Melo (1995).

No entanto, defende-se aqui que essa impossibilidade reside apenas no campo das

aparências. Isso se dá por duas razões: a primeira é que o tipo de participação que Huntington

via como ameaça não corresponde ao mesmo que se dá no Orçamento participativo. A

segunda é que os pequenos ajustes no conceito de governabilidade foram suficientes para

torná- lo (agora metamorfoseado em governança) aplicável à análise de um instrumento de

gestão como o Orçamento Participativo, principalmente no que se refere à questão da

legitimidade das ações governamentais. Para reforçar esse argumento parte-se de duas

premissas que confirmam essa possibilidade: a primeira, que por si só já é suficiente, é o

reconhecimento daquela experiência pelo Banco Mundial (NAVARRO, 2003). A segunda, é

que do final da década de 1960 até os dias de hoje mudanças significativas ocorreram no

cenário político mundial, suficientes para permitir a opção (não declarada) do Banco Mundial

pela democracia liberal. A guerra fria chegou ao fim, ainda no final da década de 1980, o

império soviético se desintegrou e uma verdadeira onda democrática varreu o mundo nesse

intervalo de tempo15. Além disso, ainda no início da década de 1980 a “agenda da

governabilidade” migrou para a questão dos ajustes econômicos de cunho neoliberal, para a

15 Refere-se aqui a “terceira onda de redemocratização” que varreu o mundo, começando em Portugal na revolução dos cravos em 1974 e adentrando a década de 1990 com os países do Leste europeu.

Page 49: Governança e Orçamento Participativo - reflexões a partir do · principal diferença entre governabilidade e governança está na forma como a legitimidade das ações dos governos

necessidade de “limitar vagarosamente o número de atividades ainda submetidas ao poder

regulador do Estado” (BUCHANAN, 1980 apud FIORI, 1995, n.43, p.159).

Huntington, quando desenvolveu o conceito de governabilidade, ainda lá na

segunda metade da década de 1960, o mundo, em especial os países em desenvolvimento,

passava por grandes turbulências políticas16. Por conta disso, a questão central desse seu

conceito era a ordem política. Ele entendia que a grande ameaça a essa ordem vinha da forma

rápida com que os novos grupos sociais eram incorporados no cenário político, sem o

correspondente fortalecimento das instituições políticas (HUNTINGTON, 1975). Ele via

nesse “excesso” de participação política, associada à fraqueza institucional, o caminho mais

curto para aquilo que ele definiu como “sociedade pretoriana”, onde as instituições políticas

são frágeis ou inexistentes e cada grupo social se vira como pode nas disputas políticas.

[...] Numa sociedade pretoriana, no entanto, não só os atores variam como também os métodos usados para o preenchimento de cargos e a determinação das políticas. Cada grupo utiliza os meios que refletem sua natureza peculiar e suas capacidade. Os ricos subornam, os estudantes se amotinam, os operários fazem greve; as massas promovem manifestações e os militares efetuam golpes. Na ausência de procedimentos reconhecidos, todas essas formas de ação direta são encontradas no cenário político (HUNTINGTON, 1975, p.208).

Essa sua preocupação com a ordem política o deixava a vontade para não ter

preferência por um regime de governo. Ele estava preocupado apenas se o governo

governava. Se as decisões políticas tomadas pelo governo eram postas em prática, de forma a

assegurar estabilidade política. A importância que dava a essa questão se reflete ainda na

abertura do seu texto, a ordem política nas sociedades em mudança, onde ele cita três países

os quais considerava ser exemplos de governos fortes.

16 Huntington (1975, p.16), mostra que entre os anos de 1958 e 1965, ocorreram no mundo, nada mais nada menos que 374 conflitos diferentes, entre golpes, pequenos levantes, insurreições de guerrilhas e guerras abertas.

Page 50: Governança e Orçamento Participativo - reflexões a partir do · principal diferença entre governabilidade e governança está na forma como a legitimidade das ações dos governos

A distinção política mais importante entre os países se refere não a sua forma de governo, mas ao seu grau de governo [...] Os Estados Unidos, a Grã-Bretanha e a União Soviética têm formas de governo diferentes, mas, nos três sistemas, o governo governa (HUNTINGTON, 1975; p.13).

Mas, por estar preocupado com a ordem, não significava, necessariamente, que ele

se opunha à participação política, pelo menos, não a todo tipo de participação. A restrição era

a um tipo específico de participação, aquela que se dava na forma de ação direta dos grupos

sociais sobre os governos, sem a intermediação de instituições políticas, ou seja, a

participação não institucionalizada. Mas do que isso, era o que ele definia como “a politização

generalizada das forças e instituições sociais” (HUNTINGTON, 1975, p.206). Ele via como

ameaça à estabilidade política, o rápido crescimento da participação de grupos sociais na vida

política, sem o correspondente crescimento e fortalecimento das instituições políticas17. Essa

preocupação pode ser percebida em sua fala, quando ele analisava o problema da instabilidade

política nas nações “em desenvolvimento”, nos primeiros vinte anos após a segunda guerra

mundial.

Qual foi a causa dessa violência e dessa instabilidade (guerras civis, golpes de Estado, guerrilhas – nos 20 anos após Guerra)? A tese fundamental desse livro é que tudo foi em grande parte produto de rápida mudança social e de rápida mobilização de novos grupos sociais para a política em conjunção com o lento desenvolvimento das instituições políticas (HUNTINGTON, 1975, p.16).

Essas idéias rederam-lhe mais tarde o título de antidemocrático e conservador. No

entanto, se ele percebia na participação direta uma ameaça à ordem política, o mesmo não

acontecia com a participação institucionalizada, que para ele era um símbolo de modernização

política. Tanto que dizia que, “a estabilidade de determinada comunidade política depende da

17 Huntington (1975), classificava como pretorianas, as sociedades com alto nível de participação política e baixo nível de institucionalização. Já aquelas que associavam alta institucionalização, com alto nível de participação política ele classificava de sociedades cívicas.

Page 51: Governança e Orçamento Participativo - reflexões a partir do · principal diferença entre governabilidade e governança está na forma como a legitimidade das ações dos governos

relação entre o nível de participação política e o nível de institucionalização política”.

(HUNTINGTON, 1975, p.92).

Mas, afinal o que significa essa participação institucionalizada? Mais do que isso,

o que Huntington entendia por instituição? Para ele, “as instituições são padrões de

comportamento estáveis, válidos e recorrentes” (HUNTINGTON, 1975, p.24). No seu

entendimento, a principal dessas instituições era o partido político. Ele considerava o partido

o símbolo da política moderna, mesmo reconhecendo que essa não é uma instituição tão

moderna assim. Caberia ao partido político “organizar a participação, congregar os interesses,

servir de veículo entre as forças sociais e o governo” (HUNTINGTON, 1975, p.105). Ao

fazer isso, o partido intermediava os interesses dos diversos grupos sociais, evitando que esses

interesses fossem colocados diretamente ao governo, o que, segundo ele, causaria um

aumento da pressão sobre este último e a conseqüente instabilidade política. Aparentemente, o

tipo de participação política da qual ele fala é o simples ato de votar.

Defender a participação política, inclusive em governos totalitários como era a

União Soviética a sua época, em nome da estabilidade política, exigiu de Huntington uma

enorme capacidade conceitual. Ele precisou trilhar um terreno pantanoso da ciência política, a

noção de “interesse público”, como forma de conceituar as pretensas bases sobre as quais se

assentaria a legitimidade de governos, que tomassem o seu conceito de governabilidade como

guia. Como a preocupação com a ordem política fazia-o fugir de qualquer teoria que, de

alguma forma, cogitasse a participação direta, de imediato ele descartou a noção de

legitimidade baseada nas teorias democrática e processual e definiu uma outra que tinha por

base a noção de “interesse das instituições governamentais”, que pra ele significa “interesse

publico”.

Pela teoria da lei natural, as ações governamentais são legítimas na medida em que estão de acordo com a “filosofia pública”. Segundo a teoria

Page 52: Governança e Orçamento Participativo - reflexões a partir do · principal diferença entre governabilidade e governança está na forma como a legitimidade das ações dos governos

democrática, derivam sua legitimidade da extensão em que incorporam a vontade do povo. De acordo com o conceito processual, as ações são legítimas quando representam o resultado de um processo de conflito e compromisso dos quais participam todos os grupos interessados. Por outro lado, no entanto, a legitimidade das ações governamentais pode ser procurada na medida em que refletem os interesses das instituições governamentais . Em contraste com a teoria do governo representativo, por esse conceito as instituições governamentais derivam sua legitimidade e autoridade não do grau em que representam os interesses do povo, ou de qualquer outro grupo, mas do grau em que possuem interesses próprios distintos dos de quaisquer outros grupos (HUNTINGTON, 1975, p.41, grifo nosso).

Ao propor essa definição de “interesse público”, Huntington tenta escapar de uma

“definição nebulosa” como ele mesmo reconhece (Huntington, 1975, p.37). No entanto, no

afã de se livrar desse terreno pantanoso da ciência política, acaba caindo em outra armadilha

conceitual. Se o “interesse público” é representado pelo interesse das próprias instituições

governamentais, quem determina o interesse dessas instituições? Dessa vez, ele apela pra

virtude dos homens públicos e sugere que,

Os interesses institucionais diferem do interesse dos indivíduos que estão nas instituições. A observação arguta de Keynes de que, ‘a longo prazo todos estaremos mortos’, aplica-se aos indivíduos e não as instituições. Os interesses individuais são necessariamente interesses de curto prazo. Os interesse institucionais, no entanto, prolongam-se através dos tempos; o proponente da instituição tem que pensar no bem-estar da mesma por um tempo indefinido [...] (HUNTINGTON, 1975, p.37-8, grifo nosso).

De forma sintética, Huntington defendia que a razão da desordem, ou da

instabilidade política, estava na politização geral das forças sociais associada a ausência de

instituições políticas fortes. Pois, “uma sociedade com instituições políticas débeis não tem

capacidade para dominar os excessos de desejos pessoais e paroquiais” (HUNTINGON, 1975,

p.36). Para criar e fortalecer essas instituições políticas, o autor propunha que as mesmas

deveriam atuar em defesa do “interesse público”, que, em última instância, era representado

pelos interesses das próprias instituições governamentais. No seu entendimento, “a

capacidade de criar instituições políticas é a capacidade de promover os interesses públicos” .

Page 53: Governança e Orçamento Participativo - reflexões a partir do · principal diferença entre governabilidade e governança está na forma como a legitimidade das ações dos governos

No entanto, para ele, promover o interesse público significava promover os interesses das

instituições. O problema é que a promoção dos interesses dessas instituições, acabava por

depender da “virtude” de homens públicos. Mas, se como ele mesmo lembrou, que uma

sociedade com instituições políticas fracas “não tem capacidade para conter os desejos

pessoais e paróquias” dos ocupantes de cargos públicos, o que então iria garantir essa postura

virtuosa desses homens públicos (idem, p.36-7). Ainda mais se for levando em conta que ele

estava analisando os paises em processo de modernização, nos quais as instituições políticas

eram débeis. Parece que de alguma forma ele acreditava na capacidade dos governos

militares, no “soldado como reformador”, como meio de se restabelecer a ordem

(HUNTINGTON, 1975, p.210).

3.2 O BANCO MUNDIAL E O CONCEITO DE GOVERNANÇA: UM OUTRO TIPO DE

LEGITIMIDADE, MAS A PARTICIPAÇÃO CONTINUA INSTITUCIONALIZADA

O Banco Mundial, aparentemente, percebeu que essa não era a saída. Pois, foi

justamente a fragilidade da legitimidade de governos e a falta de um mínimo de consenso

político, que levou ao fracasso os programas de ajustes econômicos implementados por ele

em países da África Sub-saariana ao longo da década de 1980. Naquela década, o Banco

tentou implementar sem sucesso, programas de ajustes econômicos em diversos países do

continente Africano, no entanto, essas tentativas saíram fracassadas. Foram Apontadas como

causas desses fracassos a fraqueza das instituições políticas e a falta de legitimidade dos

governos. Isso fez com que o Banco passasse a levar em conta, em seus programas de ajustes,

questões como legitimidade e consenso político. Foi, provavelmente, a incorporação desses

elementos, associado às preocupações do Banco com as condições político- institucionais

Page 54: Governança e Orçamento Participativo - reflexões a partir do · principal diferença entre governabilidade e governança está na forma como a legitimidade das ações dos governos

favoráveis ao desenvolvimento econômico, que o levou a redefinir o conceito de

governabilidade no início da década de 1990, definindo-o a partir de então como governança.

O fracasso de grande parte das reformas apoiadas pelos SALs (Empréstimos de Ajuste Estrutural) durante os anos de 1980 foi analisado no relatório Sub-Saharan Africa: from crisis to sustainable growth (1989), que identificou a "crise de governança" como o mais importante fator responsável pelos obstáculos ao desenvolvimento da África. Ao enfatizar a importância da legitimidade e do consenso político para o desenvolvimento sustentável, o relatório culpou a instabilidade política crônica e a fraqueza dos Estados africanos pelo fracasso das reformas apoiadas pelas agências multilaterais (BORGES, 2003, p.126, grifo nosso).

A partir do comentário acima, tecido por Borges (2003) a respeito de um relatório

interno do Banco Mundial, é possível perceber que a instituição mantém a preocupação com a

questão da estabilidade política, mas não fica limitado a ela. Somando essa observação à

estabelecida no capítulo anterior, pode-se concluir que na definição que o Banco dar ao

conceito de governança estão presentes outros elementos como, as condições favoráveis ao

desenvolvimento do mercado e a necessidade de fortalecimento da sociedade civil. Nele, o

foco deixa de ser a estabilidade política, embora ela continue sendo considerada um fator

importante, e passa para as condições favoráveis ao desenvolvimento econômico. Nessa

perspectiva governabilidade deixa de significar ordem política para ser entendida como gestão

eficiente dos recursos econômicos e sociais de um país com vistas ao desenvolvimento.

Parece que o Banco percebeu a fraqueza contida na idéia de interesse público

dependente apenas da virtude dos ocupantes de cargos públicos, ao constatar que as principais

causas da ineficiência do Estado e da falta de legitimidade dos governos estavam no mau uso

do dinheiro público e na corrupção. Em três das quatro dimensões do conceito de governança,

de uma forma ou de outra, essa preocupação aparece18. Se no inicio da década de 1990,

quando formulou o conceito de governança, o Banco Mundial recomendava a participação

18 As dimensões administração pública, accountability e informação e transparência buscam de forma direta, entre outras coisas, racionalizar o uso dos recursos públicos.

Page 55: Governança e Orçamento Participativo - reflexões a partir do · principal diferença entre governabilidade e governança está na forma como a legitimidade das ações dos governos

apenas das populações beneficiárias, em projetos específicos. Parece que de lá para cá alguma

coisa andou mudando. Tanto que em anos mais recentes, de acordo com a Prefeitura

Municipal de Porto Alegre, ele acabou por reconhecer a experiência do Orçamento

Participativo de Porto Alegre (PMPA, 2004b).

Inicialmente a participação defendida pelo Banco, em seu conceito de governança,

não poderia ser classificada como participação política. Isso é fruto da centralidade que ocupa

o mercado naquele conceito. Existência de conselhos paritários de usuários e fornecedores de

serviços públicos, existências de centrais de atendimento para receber a reclamação dos

usuários de um determinado tipo de serviço, aplicação de questionários para identificar as

preferências dos beneficiários de uma determinada política pública, enfim, esses são exemplos

do que o Banco entendia como participação da sociedade no processo de formulação e

implementação de políticas públicas. Entretanto, a partir da segunda metade da década de

1990, parece que essa noção de participação foi ampliada, e o Banco passou a reconhecer

outras experiências como foi o caso do Orçamento Participativo de Porto Alegre19.

Reconhecer o OP, significa admitir que a participação da população nas decisões

sobre a formulação de políticas públicas não tem necessariamente que estar restrito a projetos

específicos e ser tratada de forma despolitizada. Já que uma das características do OP é

permitir que a população influencie também em questões macro como na avaliação da política

tributária, na fiscalização, apreciação da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) da execução

do Plano de Investimento, etc. Essas são apenas algumas das atribuições previstas para uma

das instâncias do OP de Porto Alegre, o COP, no artigo 11º do Regimento Interno do

Conselho de Orçamento Participativo (PMPA, 2005).

19 Segundo Navarro (2003, p.92) o Banco Mundial demonstrou interesse pelo Orçamento Participativo pela primeira vez em 1997, numa conferência intitulada “Descentralização na América Latina: inovações e implicações para as políticas públicas”. Procurou conhecer a experiência e a partir de então passou a divulgá-la em seus documentos internos, a exemplo do que fez no relatório “No Limiar do Século XXI”, publicado no ano 2000.

Page 56: Governança e Orçamento Participativo - reflexões a partir do · principal diferença entre governabilidade e governança está na forma como a legitimidade das ações dos governos

Aparentemente, a legitimidade das ações governamentais no conceito de

governança assenta-se, simultaneamente, sobre duas bases conceituais. Em algumas áreas

como na econômica, permanece como guia a noção de “interesse público” baseado na

“virtude” do servidor público. Enquanto que outras áreas, principalmente aquelas voltadas

para os mais pobres, essa legitimidade seria baseada na teoria processual. E aqui vale lembrar,

é muito mais por pragmatismo - o que estar por trás da defesa dessa participação é apenas a

efetividade da política - do que por interesse de que população realmente participe. É uma

participação que é aceita porque é colocada como condicionante do aumento das

possibilidades de sucesso no processo de formulação e implementação de uma determinada

política pública.

É geralmente aceito que algumas áreas de decisão pública requerem o insulamento das pressões políticas. Nas áreas técnicas de administração macroeconômica, por exemplo, algum insulamento [...] da pressão dos lobbies políticos é desejável [...]. Em outras áreas, no entanto, o interesse público e o interesse privado coincidem a tal ponto [...] que algum nível de deliberação público-privado é não apenas desejável, mas, de fato, crucial para o sucesso (WORLD BANK, 1997, p. 116-117, apud BORGES, 2003, p. 129-30).

No entanto, a participação descrita acima não é ainda do tipo daquela que

acontece no âmbito do OP, a participação lá é politizada. Entretanto o que certamente levou o

Banco a reconhecer aquela experiência, sem ver nela ameaça a estabilidade política foi o fato,

também, da participação que se dá no OP ser institucionalizada, ou seja, a participação no OP

se dá sob regras e, por se dá nessas condições, não representa qualquer ameaça a ordem

política.

Page 57: Governança e Orçamento Participativo - reflexões a partir do · principal diferença entre governabilidade e governança está na forma como a legitimidade das ações dos governos

3.3 ORÇAMENTO PARTICIPATIVO E PARTICIPAÇÃO INSTITUCIONALIZADA

A explicação para o reconhecimento que o Banco Mundial faz do Orçamento

Participativo está em dois fatores: o primeiro é a sua aparente contribuição a eficiência do

Estado no emprego dos recursos públicos, o que será abordado no próximo capítulo. O

segundo está numa característica do próprio Orçamento Participativo, a participação direta,

porém institucionalizada.

Parece não haver dúvidas de que o formato de participação que predomina no OP

tem como característica principal a institucionalização. Não no sentido de que alguns autores

como Fedozzi (1997) e Dias (2000), falam dela. A idéia da aprovação de uma lei na Câmara

de Vereadores do Município que discipline o seu funcionamento. Aliás, isso parece ter mais a

ver com formalização. O significado de instituição do qual se fala aqui é aquele mesmo dado

por Samuel Huntington, e apresentado alguns parágrafos acima, ou seja, aquele que a define

como um padrão de comportamento estável, válido e recorrente20.

Pode-se argumentar que uma das características do OP é a sua dinamicidade,

justamente por não ser formalizado. Não se duvida aqui dessa dinamicidade, da autonomia

que tem o OP para se auto-regular. Mas não parece ser menos verdade que exista no OP um

conjunto de regras que se mostram mais constantes, menos dinâmicas e que dão a ele uma

estrutura básica. São exemplos destas, as regras que tratam de facilitar a operacionalização da

participação, como aquelas que determinam o número de plenárias regionais e temáticas, que

determinam, por exemplo, que só pode participar de uma determinada plenária regional, o

cidadão que resida na respectiva região. Além daquelas que tratam das instâncias de

participação dentro do OP, bem como das responsabilidades de cada uma delas no processo

de co-gestão do fundo público Municipal.

20 Não é intenção fazer aqui qualquer discussão a respeito da importância, ou não, de se ter o Orçamento Participativo regulamentado por uma lei.

Page 58: Governança e Orçamento Participativo - reflexões a partir do · principal diferença entre governabilidade e governança está na forma como a legitimidade das ações dos governos

Mas sem dúvida, de longe as regras mais importantes são aquelas que se referem

ao tratamento das demandas, são elas que determinam os critérios de prioridades dessas

demandas e o número máximo de demandas que devem sair das plenárias temáticas ou

regionais, e serem apresentadas ao governo municipal, para análise de viabilidade técnica e

financeira, e posterior atendimento, ou não. Essas regras são importantes porque elas co-

responsabilizam os participantes no processo decisório sobre os investimentos públicos,

evitam a colocação de demandas num número que o governo não tenha condições técnicas e

financeiras para atender. Além disso, elas buscam promover a distribuição mais eqüitativa dos

escassos recursos públicos.

Sem uma regra que tratasse de limitar, de forma democrática, o número de

demandas que a população poderia reivindicar no OP, este certamente seria inviável e poderia

causar na população participante o sentimento de ineficiência em relação ao poder público

Municipal. Isso por sua vez, poderia desacreditar o OP como uma instância de Participação.

Só para ilustrar a importância dessas regras, deixamos de lado por um instante o

OP de Porto Alegre e tomamos emprestado um fato ocorrido em Aracaju – SE, entre os anos

de 1997 e 1998, na primeira tentativa que se fez de implantar o OP naquela cidade. Segundo a

Ex-Coordenadora de Relações com a Comunidade (CRC), que participou ativamente do

processo:

[...] Era uma experiência inovadora, nunca tinha sido aplicada aqui, e a gente tinha que começar pequeno, e então agente tinha que começar de uma amostragem. Então vamos pegar os bairros que são mais da periferia, que os problemas são inúmeros, pra gente tentar resolver as questões da periferia pra igualar aos outros bairros, em termos de estrutura, que é uma disparidade muito grande. [...] assim, a metodologia da plenária era aberta, qualquer um podia entrar lá no dia, era reunião aberta. Então, cada um dizia o que achava que o bairro estava precisando, o que acarretou um problema muito sério, porque no final ficou uma quantidade imensa de demandas, mais de 3.000 [...] a gente não trabalhou uma metodologia, ficou à vontade, então agente teve uma dificuldade muito grande de

Page 59: Governança e Orçamento Participativo - reflexões a partir do · principal diferença entre governabilidade e governança está na forma como a legitimidade das ações dos governos

realizar essas demandas, porque a amplitude foi imensa e a gente teve muita dificuldade pra trabalhar isso. Já no segundo ano, agente trabalhou a cidade de Aracaju toda, nós fizemos uma reunião em cada bairro de Aracaju (38 ao todo) [...] Trabalhamos com uma metodologia meio diferenciada e resolvemos trabalhar em grupo, em divisão de grupo, e fechar um número de prioridades, escolhemos cinco prioridades para cada bairro. (entrevista realizada em 18/08/2004, com a ex- Coordenadora de Relação com a Comunidade – OP de Aracaju, 1997-98, grifo nosso).

O que se percebe na fala acima da ex-coordenadora é que as regras de

funcionamento do OP são importantes. No caso citado acima, a ausência de regras limitando a

quantidade de demandas que poderiam ser colocadas pela população causou, logo no primeiro

ano, um problema de difícil solução. Embora a experiência tenha se limitado a apenas a

alguns bairros da periferia, a ausência dessas regras permitiu que mais de 3.000 demandas

fossem colocadas pela população, o que significou um tremendo problema para o governo

municipal.

Page 60: Governança e Orçamento Participativo - reflexões a partir do · principal diferença entre governabilidade e governança está na forma como a legitimidade das ações dos governos

CAPÍTULO 4 - ORÇAMENTO PARTICIPATIVO E GOVERNANÇA EM DE PORTO

ALEGRE

Neste capítulo buscou-se fazer uma análise, a luz do conceito de governança do

Banco Mundial, dos resultados atribuídos ao Orçamento Participativo de Porto Alegre a partir

de trabalhos de outros autores como Marquetti (2002 e 2003) Dias (2000), Fedozzi (1997),

entre outros. O objetivo dessa análise foi verificar de que forma o OP contribui com eficiênc ia

e a eficácia do Estado no nível municipal, no caso específico do município de Porto Alegre.

No entanto, antes mesmo de se iniciar essa análise, entendeu-se que a sua

compreensão se daria de forma mais completa se antes fosse apresentado o ciclo do

Orçamento Participativo, na forma como ele é praticado naquela cidade.

4.1 A DINÂMICA DO ORÇAMENTO PARTICIPATIVO DE PORTO ALEGRE

O Orçamento Participativo de Porto Alegre tem início anualmente no mês de

março e segue um ciclo que pode ser representado, de forma simplificada em nove etapas

(PMPA, 2004c). Essas etapas compreendem:

1ª Etapa (março e abril):

• Reuniões preparatórias: reuniões realizadas nas micro-regiões, regiões, temáticas e

entre o fórum de planejamento (instância composta por servidores de diversos

Page 61: Governança e Orçamento Participativo - reflexões a partir do · principal diferença entre governabilidade e governança está na forma como a legitimidade das ações dos governos

órgãos do executivo municipal) e o fórum dos delegados. Nessas reuniões ocorre a

prestação de contas do ano anterior (receita X despesas) pelo executivo municipal;

apresentação do plano de investimento preparado no ano anterior para ser

implantado no ano corrente; apresentação do Regimento Interno do OP com as

alterações debatidas e propostas no período anterior; discussão das chapas para a

eleição de conselheiros; e análise das sugestões e demandas feitas pela internet.

2ª Etapa (abril e maio):

• Assembléias regionais e temáticas: eleição das prioridades regionais e temáticas;

eleição dos conselheiros; definição do número de delegados; e prestação de contas

(receita X despesas), por parte da prefeitura.

3ª Etapa (de maio a julho):

• Assembléias regionais e temáticas: é quando ocorre a eleição dos delegados;

• Fórum dos delegados: é realizada a deliberação sobre as demandas feitas pela

Internet (Fórum de Delegados); os delegados visitam as demandas solicitadas, para

conhecimento (antes da hierarquização); e os delegados fazem a hierarquização

das obras e serviços;

4ª etapa (1ª quinzena de Julho):

• Assembléia municipal para a posse dos novos conselheiros e outras discussões de

caráter geral.

5ª Etapa (de julho a setembro):

• O governo faz a análise técnica e financeira das demandas e elabora a matriz

orçamentária.

6ª Etapa (agosto e setembro):

Page 62: Governança e Orçamento Participativo - reflexões a partir do · principal diferença entre governabilidade e governança está na forma como a legitimidade das ações dos governos

• O Conselho do Orçamento Participativo (COP) discute e vota a Matriz

orçamentária; e inicia as discussões sobre a distribuição dos recursos para as

regiões e temáticas;

7ª Etapa (de outubro a dezembro):

• O governo finaliza a distribuição dos recursos por regiões; realiza o detalhamento

do Plano de Investimentos e Serviços (PIS); e encaminha a proposta do PIS para a

votação nos fóruns de delegados regionais e temáticos, nos quais marcam presença

os diversos órgãos do governo municipal.

8ª Etapa (novembro e dezembro):

• Os Fóruns regionais e temáticos reúnem-se para discutir o Regimento Interno do

Orçamento Participativo - sobre eventuais necessidades de alterações.

9ª Etapa (dezembro e janeiro):

• O Fórum dos delegados reúne-se para Discutir e votar do Regimento Interno do

Orçamento Participativo.

No mês de fevereiro do ano seguinte o OP entra em recesso (PMPA, 2004c).

4.2 ORÇAMENTO PARTICIPATIVO: CONTRIBUIÇÃO COM GOVERNANÇA DE

PORTO ALEGRE.

O conceito de governança do Banco Mundial trata das condições políticas,

econômicas e institucionais favoráveis ao desenvolvimento econômico. Condições essas que

seriam alcançadas através da eficiência do Estado e do mercado, cada um cumprido o seu

papel de acordo com o que reza a cartilha neoliberal. Ao mercado a liberdade para atender as

demandas da sociedade por bens e serviços. Ao Estado o papel de regulação desse mercado,

atuando na correção de suas eventuais falhas, buscando assegurar a livre concorrência entre os

Page 63: Governança e Orçamento Participativo - reflexões a partir do · principal diferença entre governabilidade e governança está na forma como a legitimidade das ações dos governos

agentes econômicos privados. Além de oferecer bens e serviços públicos considerados

essenciais, e que por alguma razão não possam ser oferecidos pelo mercado, principalmente

aos mais pobres (exemplos: saúde, educação, infra-estrutura, segurança, etc).

Embora esse o conceito envolva a idéia de eficiência e eficácia desses dois atores

(Estado e mercado) para o alcance do desenvolvimento, apenas um deles interessa nessa

discussão, o Estado. Procura-se verificar aqui, como o Orçamento Participativo contribui com

a governança urbana, já que o mesmo foi reconhecido pelo Banco Mundial no relatório “No

limiar do século XXI”, publicado em 2000, como um mecanismo institucional formal que

contribui com o desenvolvimento (NAVARRO, 2003, p.92).

Para empreender uma análise aprofundada da relação entre Orçamento

Participativo e o conceito de governança do Banco Mundial, parece mais adequado fazê- la a

partir da comparação entre o que é prescrito por cada uma das dimensões do conceito com as

práticas do OP e os resultados a ele creditados. As dimensões que constituem o conceito de

governança são: Administração pública, accountability, informação e transparência e quadro

legal. Cada uma delas, com exceção da última, será abordada aqui sob a perspectiva do

Orçamento Participativo21. O objetivo é verificar de que forma essa ferramenta de gestão

participativa do orçamento público municipal contribui com cada uma dessas dimensões da

governança.

21 A dimensão “quadro legal” não será considerada nessa análise por razões óbvias. Primeiro porque não é papel do OP legislar, pois já existe a Câmara de Vereadores do Município que tem essa como sua principal função. Segundo porque, como já foi visto na discussão sobre o conceito de governança no capítulo II, a dimensão “quadro legal” é especialmente voltada para os aspectos que favorecem a eficiência do mercado. No entanto, o enfoque aqui é na eficiência do Estado.

Page 64: Governança e Orçamento Participativo - reflexões a partir do · principal diferença entre governabilidade e governança está na forma como a legitimidade das ações dos governos

4.2.1 O Orçamento Participativo e Administração Pública: Eficiência e Eficácia no

Gerenciamento dos Recursos Públicos

A dimensão da administração pública é constituída de três elementos, são eles: a

melhoria do gerenciamento dos gastos públicos, a reforma do serviço público e o melhor

gerenciamento das empresas públicas. O primeiro, a melhora do gerenciamento dos gastos

públicos, depende da adoção de mecanismos eficiente de formulação e gerenciamento do

orçamento público, de geração de receitas, de controle dos gastos e do planejamento do

investimento. O segundo, a reforma do serviço público, objetiva a contenção do crescimento

do governo e de seus custos e a busca por tornar o serviço público mais eficiente e mais

eficaz. O terceiro e último, o melhor gerenciamento das empresas públicas, se refere à criação

de políticas e regras que tornem estas empresas mais eficientes e redefinam as relações delas

com o governo, ou até mesmo a privatização, quando essa se mostrar a melhor alternativa

(WORLD BANK, 1993).

O OP é um instrumento de gestão participativa do Orçamento público que permite

a população participar do planejamento dos investimentos públicos. A população determina as

suas prioridades, em termos de infra-estrutura e serviços prestados pela Prefeitura Municipal,

participa da construção do plano de investimentos e fiscaliza a sua operacionalização. Em um

trabalho onde procurava verificar o “efeito redistributivo” do OP de Porto Alegre, Marqueti

(2002) mostrou que houve melhorias significativas na prestação de serviços públicos

considerados essenciais, pela Prefeitura daquele município a partir de 1989. Esse foi o ano em

que o Partido dos Trabalhadores (PT) assumiu o governo municipal daquela cidade, e em

conjunto com a comunidade deu o ponta-pé inicial na experiência de gestão participativa a

qual chamaram de OP. A tabela 2 abaixo permite visualizar essa evolução. Quando se

compara a soma total de um conjunto de serviços específicos prestados em dois períodos

Page 65: Governança e Orçamento Participativo - reflexões a partir do · principal diferença entre governabilidade e governança está na forma como a legitimidade das ações dos governos

diferentes de quatro anos cada, um imediatamente anterior a implantação do OP (entre 1985 e

1989)22, e outro a partir do inicio da sua operacionalização (entre 1989 e 1992)23, é possível

ver que depois da implantação do OP houve um incremento significativo na prestação desses

serviços. Por exemplo: enquanto na soma dos últimos quatro anos antes da implantação do

OP a prefeitura teria asfaltado ou recuperado 1.047.608 (um milhão, quarenta e sete mil e

seiscentos e oito) km de vias públicas, em igual período após a implantação do OP esse

número foi de 1.150.950 (um milhão, cento e cinqüenta mil e novecentos e cinqüenta) Km,

um aumento de aproximadamente 10% em relação ao período anterior. Outro número

significativo foi o incremento no total de lixo coletado no mesmo período. Enquanto nos

quatro anos anteriores ao OP a soma de lixo coletado foi da ordem de 569.602 (quinhentos e

sessenta e nove mil, seiscentos e dois) toneladas de lixo, em igual período, após a implantação

do OP o volume de coleta subiu para 773.637 (setecentas e setenta e três e seiscentos e trinta e

sete) toneladas de lixo, isso significou um aumento de aproximadamente 36%. No entanto, o

incremento mais significativo ficou por conta dos pontos de luz instalados. Enquanto entre os

anos de 1985 e1989 foram instalados na cidade 3.227 (três mil duzentos e vinte e sete) pontos,

entre os anos de 1989 e 1992 esse número teria alcançado 10.186 (dez mil cento e oitenta e

seis) pontos de luz instalados, um significativo incremento de aproximadamente 216%.

22 Esse período corresponde a o último ano de governo do prefeito João Antônio Dib e os três anos de Governo de Alceu Collares - PDT (PMPA, 2004d). 23 Período correspondente ao mandato do prefeito Olívio Dutra – PT (PMPA, 2005).

Page 66: Governança e Orçamento Participativo - reflexões a partir do · principal diferença entre governabilidade e governança está na forma como a legitimidade das ações dos governos

Tabela 2: Variação absoluta no volume de serviços prestados de coleta de lixo, instalação de pontos de iluminação pública e asfaltamento e recuperação de vias públicas.

Ano Coleta de lixo

domiciliar em vilas (t)

Iluminação pública (pontos instalados)

Asfalto (m2 em conservação e construção)

1985 145.094 714 327.197 1986 126.188 925 177.827 1987 151.062 852 252.130 1988 147.258 736 290.454 Total 569.602 3.227 1.047.608 1989 179.448 435 81.399 1990 186.118 1.371 235.122 1991 224.066 2.537 396.686 1992 184.005 5.843 519.151 Total 773.637 10.186 1.150.950

Fonte: adaptado de (Marquetti, 2003).

Outros dados presentes nas tabelas 3 e 4 abaixo, retirados da mesma pesquisa de

Marquetti, parece reforçar o argumento de que o OP contribuiu com a governança, ao

contribuir com melhoria da prestação de serviços pelo governo municipal. Especialmente

naqueles cons iderados pelo Banco Mundial como essenciais. Segundo dados revelados pela

pesquisa, o reflexo do esforço do governo municipal para melhorar essas áreas pode ser

percebido na relação entre o número de funcionários atuantes nas secretarias dessas duas áreas

(consideradas fim), com o total de funcionários da administração centralizada (tabela 3).

Enquanto no ano de 1986 o número de funcionários lotados na saúde e na educação

representava 41,75% do total da administração centralizada, em 1999 esse percentual já havia

saltado para mais de 60%. Isso sem considerar que o próprio número de funcionários da

administração centralizada também cresceu 51,41%. Em termos absolutos, o número de

funcionários lotados nas funções de educação e saúde sofreu um incremento da ordem de

cerca de 120% no período.

Page 67: Governança e Orçamento Participativo - reflexões a partir do · principal diferença entre governabilidade e governança está na forma como a legitimidade das ações dos governos

Tabela 3: Evolução do número de funcionários públicos municipais ativos, 1986 -1999

Ano Secretaria da Educação e saúde

Outras secretarias

Administração centralizada

Total

1986 3.550 4.954 8.504 16.071 1987 4.034 5.078 9.112 16.861 1988 4.083 5.368 9.451 17.494 1989 4.491 4.802 9.293 16.553 1990 4,975 4.837 9.812 17.892 1991 5.357 4.930 10.287 18.158 1993 6.373 5.036 11.409 19.978 1994 6.824 5.469 12.193 20.739 1995 7.064 5.400 12.464 20.737 1997 7.424 5.221 12.465 20.830 1998 7.412 5.097 12.509 20.906 1999 7.822 5.054 12.876 21.252

Fonte: Marquetti (2002, p.229)

Quando se compara a variação no número de funcionários lotados nas áreas de

saúde e educação, e mais especificamente nessa última, conforme apresentado acima, com o

número de matriculas na rede pública municipal (ver tabela 4), há sinais evidentes de ganho

de eficiência. Pois, enquanto o funcionalismo nas duas áreas variou em 120% no período. O

número de matriculas nas escolas municipais cresceram no mesmo período aproximadamente

292%.

Tabela 4: Evolução do número de matriculas por nível de ensino e total nas escolas municipais, 1985 –

2000

Ano Educação infantil Ensino Fundamental Ensino médio Total 1985 1.248 10.492 1.617 13.357

1987 1.321 13.331 1.485 16.137

1988 1.677 14.838 1.347 17.862

1989 2.659 20.214 1.359 24.232

1991 2.415 24.216 1.330 27.961

1992 3.977 24.855 1.375 30.207

1994 4.978 30.687 1.361 37.026

1995 6.053 31.742 1.366 39.161

1997 5.852 38.988 1.505 46.345

1999 4.987 44.905 1.584 51.476

2000 4.213 46.505 1.583 52.301 Fonte: adaptado de MARQUETTI (2003).

Page 68: Governança e Orçamento Participativo - reflexões a partir do · principal diferença entre governabilidade e governança está na forma como a legitimidade das ações dos governos

Por último, Marquetti (2003) acredita também que o OP gerou o que ele chamou

de “efeito redistributivo” dos recursos públicos. Isso teria se dado graças à prática da chamada

“inversão de prioridades”. Essa prática está ancorada em um conjunto de normas internas do

OP que determinam os critérios de distribuição dos investimentos públicos. Entre esses

critérios estão: “prioridade da micro-região ou comunidade, carência do serviço público ou da

infra-estrutura e população atingida” (PMPA, 2005, p.12). O resultado dessa prática se reflete

nos números da tabela 5, extraídos da pesquisa de Marquetti. Eles mostram que as regiões que

mais receberam investimentos, de forma individual, foram aquelas com os piores indicadores

econômicos e sociais. As quatro regiões com desempenho mais baixo nesses indicadores

(Nordeste, Restinga, Extremo Sul e Lombada do Pinheiro), onde vivem 11,09% da população

do município de Porto Alegre, receberam 9,45% de todos os recursos investidos pela

prefeitura no período de 1992 a 2000. Já as quatro regiões que apresentaram o melhor

desempenho nesses indicadores (Sul, Centro, Noroeste e leste), mesmo sendo habitadas por

44,5% da população do município, receberam apenas 7,77% do total de investimentos feitos

pela prefeitura dentro daquele período24.

24 É importante destacar que nesse cálculo estão apenas 35,32% dos recursos totais investidos pelo Governo Municipal de Porto Alegre. Pois, esses investimentos foram feitos de forma a beneficiar apenas as comunidades de cada uma das regiões de forma individualizada. No entanto, a maior parte dos investimentos realizados naquele período, 64,68%, foram feitos de forma a atender simultaneamente mais de uma região ao mesmo tempo.

Page 69: Governança e Orçamento Participativo - reflexões a partir do · principal diferença entre governabilidade e governança está na forma como a legitimidade das ações dos governos

Tabela 5: Percentual da população por região em relação à população da cidade; rendimento nominal médio dos chefes de domicílios em salários mínimos, por região e na cidade; percentual de mães com o primeiro grau incompleto com filhos nascidos vivos em 1998, por região e na cidade; percentual do total dos investimentos listados nos Planos de Investimentos entre os anos 1992-2000, por região, em duas ou mais regiões e em toda a cidade.

Região % da População b

Nº salários mínimos a

Mães com o 1º grau incompleto

(%) c

% de investimentos por região entre

1992- 2000 Humaitá/Ilhas/ Navegantes 3,75 4,14 52,9 1.56

Noroeste 9,92 7,90 24,0 1.96

Leste 8,59 8,63 51,4 2.93

Lombada do Pinheiro 3,76 3,33 65,9 2.93

Norte 6,89 3,56 48,9 2.96

Nordeste 1,89 2,19 69,2 1.61

Partenon 8,88 3,88 50,0 2.00

Restinga 3,58 2,35 60,4 2.23

Glória 2,91 4,00 53,9 1.63

Cruzeiro 5,05 5,46 61,4 2.29

Cristal 2,34 6,24 52,8 1.58

Centro Sul 7,89 4,84 40,7 3.56

Extremo Sul 1,86 2,95 63,1 2.68

Eixo Baltazar 6,69 4,04 39,9 1.90

Sul 4,89 9,47 41,3 1.38

Centro 21,10 11,4 18,5 1.53

Investimentos em 2 ou mais regiões juntas

- - - 64.68

Porto Alegre 100,00 6,40 45,8 100,00

a) Em 1991. b) Em 1996. c) Em 1998. Fonte: adaptado de Marchetti (2002)

No entanto, talvez os dados mais significativos que Marquetti traz em sua

pesquisa, sejam os números que mostram que, no período após a implantação do OP, há um

deslocamento na matriz de despesas do governo municipal (ver tabela 6), onde se percebe

uma redução no percentual de recursos destinado a atividades meios do governo, ao mesmo

tempo em que se observa um incremento no volume de recursos destinados às atividades

Page 70: Governança e Orçamento Participativo - reflexões a partir do · principal diferença entre governabilidade e governança está na forma como a legitimidade das ações dos governos

fim25. No período 1984-1986 os gastos com a função de administração e planejamento, uma

atividade meio, representaram 25% dos gastos do governo. Num período posterior, após a

implantação do OP, entre os anos de 1990-2000 esse volume cai para 16,6% dos recursos

gastos. Paralelamente, os gastos com funções como educação, cultura, habitação e saúde

passam a sofrer variação positiva. Educação, por exemplo no período 1984-1988 foi

responsável por gastos apenas de 13,2% do total do orçamento municipal, enquanto no

período 1990-2000 esse percentual passou para 19,1%. As despesas com cultura mais que

dobraram em termos percentuais, saindo de 0,6% no primeiro período, para 1,3% no segundo

período seguinte. Habitação e Urbanismo que havia sido responsável por 18,8% dos gastos do

governo municipal entre 1984-88, passou a ser responsável por 19,4% das despesas no

período 1990-2000. por último, saúde e saneamento que respondia com 14% dos gastos no

primeiro período, passou para 18,8% no segundo período26

Tabela 6: Despesa percentual média realizada da administração centralizada por determinadas funções do governo nos períodos 1984-1988 e 1990-2000.

Funções do governo Média percentual 1984-1988 Média Percentual 1990-2000

Administração e planejamento 25,0 16,6

Educação 13,2 19,1

Cultura 0,6 1,3

Habitação e Urbanismo 18,4 19,4

Saúde e saneamento 14,0 18,8

Fonte: adaptado de Marquetti (2003, p.153)

Esses números que mostram o aumento da eficiência e da eficácia do Estado,

redistribuindo os gastos, direcionando um percentual menor dos recursos públicos para

atividades meios e aumentando o percentual com atividades fins como saúde, educação,

25 Nesses números Marquetti não considerou o ano de 1989, devido ao fato de o OP está apenas iniciando naquele ano, não tendo tido tempo de influenciar efetivamente na gestão dos recursos públicos. 26 O autor da pesquisa chama a atenção para o fato de nesses números não está incluída a verba do SUS – Sistema Único de Saúde.

Page 71: Governança e Orçamento Participativo - reflexões a partir do · principal diferença entre governabilidade e governança está na forma como a legitimidade das ações dos governos

saneamento e urbanismo, em consonância com que o Banco Mundial chama de “boa

governança”. (WORLD BANK, 1992). Parece de alguma forma qualificar o OP como um

instrumento para se melhorar a governança urbana.

4.2.1.1 Uma Reforma Diferente

De acordo com o Banco Mundial entre os elementos constituintes da governança

está o controle eficiente das finanças públicas. Os governos precisam dispor de instrumentos

que permitam uma forte accountability financeira. Instrumentos que contribuam para evitar

ou reduzir práticas altamente lesivas a eficiência da aplicação dos recursos públicos, como a

corrupção e o clientelismo político. O principal instrumento de gestão das finanças públicas é

a peça orçamentária. Além desses instrumentos os governos precisam fazer um esforço no

sentido de conter os seus déficits ficais, através da redução do tamanho do Estado, de

privatizações e ações para diminuir o inchaço do Estado (WORLD BANK, 1992).

No entanto, quando o prefeito eleito pelo PT, Olívio Dutra, assumiu a prefeitura

de Porto Alegre, o orçamento municipal não passava de uma “peça de ficção” (CASSEL e

VERLE, 1994 apud DIAS, 2000, p.30). As finanças do município encontravam-se em

situação precária, os problemas iam desde o atraso no pagamento de fornecedores e

empreiteiras, por meses a fio, até o atraso dos salários do funcionalismo público (FARIA,

2002). Não bastasse tudo isso, ainda havia outro fator para completar o cenário caótico: 98%

de toda a receita do município estava comprometida com o pagamento de salários do

funcionalismo público (CASSEL e VERLE,1994 apud DIAS, 2000, p.30).

Para contornar essas dificuldades o prefeito eleito atacou em duas frentes de

reformas, as quais poderiam ser chamadas de reformas “administrativa” e “fiscal”. A reforma

administrativa se deu em dois planos, no plano interno e no externo. No plano interno,

Page 72: Governança e Orçamento Participativo - reflexões a partir do · principal diferença entre governabilidade e governança está na forma como a legitimidade das ações dos governos

figuraram como ações importantes a reestruturação dos sistemas de controle e gerenciamento

das finanças da prefeitura; a criação do Gabinete de Planejamento (GAPLAN) - vinculado

diretamente ao Gabinete do Prefeito - que ficou responsável pela elaboração e execução do

orçamento; e a negociação com servidores e sindicatos para a criação de um plano de reajuste

salarial (FARIA, 2002, p.66) 27. No plano externo figurou a implantação do Orçamento

Participativo. Este último, como se verá adiante, teve um papel decisivo, em termos políticos

na viabilização da reforma fiscal promovida pelo governo municipal (idem, p.67).

Para resolver o grave problema das finanças do Município o prefeito só tinha duas

saídas: cortar despesas ou aumentar a receita, ele optou pela segunda, talvez até mesmo por

razões ideológicas. Para isso aproveitou as oportunidades oferecidas pelo contexto. Com a

promulgação da constituição em 1988 os municípios, em termos de receitas, foram

beneficiados de duas formas: descentralização e maior liberdade tributária. A primeira

significou aumento no percentual dos repasses aos municípios, por parte dos governos

estadual e federal, determinados pela constituição. Ainda no ano de 1989 os repasses do

ICMS destinado ao município pelo governo estadual foi 44,2% maior que o ano anterior e no

ano 2000 esse percentual chegou a 66% em relação ao ano de 1988 (MENEGAT, 1995, apud

DIAS, 2000). A segunda foi representada pela maior liberdade dada aos municípios para

formular suas próprias políticas tributárias. Foi aqui que o governo empreendeu uma das suas

principais ações no sentido de melhorar a sua arrecadação do município. Tratou de fazer a sua

“reforma fiscal” aumentando tributos como Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza

(ISSQN) e Imposto Predial Territorial Urbano (IPTU).

Começou pelo ISSQN, no qual se promoveu um ajuste no sentido de equiparar o

percentual cobrado em Porto Alegre ao percentual praticado nas principais capitais do país.

27 Segundo Faria (2002:67), a antiga Secretaria de Planejamento ficou responsável unicamente pela gestão urbana.

Page 73: Governança e Orçamento Participativo - reflexões a partir do · principal diferença entre governabilidade e governança está na forma como a legitimidade das ações dos governos

No ano 2000, por conta desse ajuste, a variação positiva na contribuição do imposto em

relação ao ano anterior foi de 42,3%.

No entanto, uma das contribuições mais significativas às finanças do município

ficou por conta dos ajustes realizados na cobrança do IPTU com a cobrança progressiva e a

atualização da planta de valores28. Esse ajuste foi feito por meio de dois projetos de lei. O

primeiro, tratando da alíquota progressiva, foi encaminhado para aprovação na câmara de

vereadores ainda no ano de 1989. O segundo, que tratava da atualização da planta de valores,

foi encaminhado no ano seguinte. O resultado dessas alterações na cobrança do IPTU pôde ser

observado já no primeiro ano em que entrou em vigor a segunda parte do ajuste, no ano de

1991 (ver tabela 7), quando a arrecadação do imposto cresceu em aproximadamente 145%.

No ano seguinte houve mais um incremento de 13,92%. Enfim, no ano de 1992, já havia uma

variação positiva na arrecadação do imposto de cerca de 180% em relação ao ano de 1989,

ano em que o prefeito havia assumido (DIAS, 2000).

Tabela 7: Evolução da Receita do IPTU em Porto Alegre - 1980/92

RECEITA DO IPTU ANOS Valor (US$) Variação

1980 29.595.884 — 1981 27.798.438 - 06,07% 1982 33.748.605 + 21,40% 1983 28.232.304 - 16,34% 1984 20.732.614 - 26,56% 1985 18.811.206 - 09,27% 1986 24.141.564 + 28,34% 1987 18.501.301 - 23,36% 1988 13.635.800 - 26,30% 1989 12.489.153 - 08,41% 1990 11.342.506 - 09,18%

Acumulado 80 – 90 - 18.253.378 - 61,67% 1991 27.829.428 +145,35% 1992 31.703.235 + 13,92%

Acumulado 90 -92 + 20.360.729 + 179,51% Acumulado 80 – 92 2.107.351 + 06,76%

Fonte: PMPA, SMF (apud DIAS, 2000, p.34)

28 A planta de valores é o método de cálculo do valor venal do imóvel, a partir do qual se faz o cálculo do imposto.

Page 74: Governança e Orçamento Participativo - reflexões a partir do · principal diferença entre governabilidade e governança está na forma como a legitimidade das ações dos governos

Foi esse incremento nos cofre do governo, oferecido pelo aumento na arrecadação

do IPTU, que possibilitou ao município recuperar a sua capacidade de investimentos e a

atender as demandas levantadas no OP. Isso por sua vez, contribuiu com a consolidação do

próprio OP como instância de participação da população nas decisões sobre as prioridades de

investimentos do governo municipal (DIAS, 2000).

Após o ajuste fiscal, com a melhoria das finanças, o governo municipal passou a

ter recursos para fazer investimentos. Essa retomada da capacidade de investimento pode ser

percebida pelo aumento no volume de serviços prestados entre os anos de 1990 e 2000 (ver

tabela 8), como: a coleta de lixo que cresceu aproximadamente 60% entre os anos 1990 e

2000; a instalação de pontos de luz, que cresceu cerca de 110%; e a pavimentação e

conservação de ruas que cresceu aproximadamente 250% no período.

Tabela 8: Expansão dos serviços públicos, 1990 - 2000

Ano Coleta de lixo domiciliar em vilas (t)

Iluminação pública (pontos instalados)

Asfalto (m2 em conservação e construção)

1990 186.118 1.371 235.122 1991 224.066 2.537 396.686 1992 184.005 5.843 519.151 1993 203.793 2.278 411.177 1994 204.928 2.848 444.758 1995 232.749 2.247 502.565 1996 261.087 2.130 947.816 1997 284.080 1.725 871.809 1998 296.970 2.758 667.557 1999 273.201 1.574 901.058 2000 297.767 2.870 819.555

Fonte: adaptado de (MARQUETTI, 2003:150).

No entanto, a organização das finanças do município não foi um empreendimento

assim tão fácil como parece à primeira vista. Inicialmente, a oposição representou uma

enorme barreira ao projeto de ajuste fiscal proposto pelo executivo municipal. Os vereadores

da oposição recusavam aprovar a proposta de cobrança de alíquotas progressivas do IPTU,

onde o valor do imóvel determinava alíquota na qual ele se enquadrava (quanto maior o valor

Page 75: Governança e Orçamento Participativo - reflexões a partir do · principal diferença entre governabilidade e governança está na forma como a legitimidade das ações dos governos

do imóvel, maior a alíquota a ser paga). Como o governo era minoria na Câmara29, o papel do

Orçamento Participativo foi fundamental. “Sustentado pela pressão popular sobre os

vereadores, o Executivo conseguiu implantar seu projeto de revisão no cálculo do IPTU”

(DIAS, 2000, p.37)30.

Parece que o governo Municipal de Porto Alegre, seguindo outro caminho

diferente, em muitos aspectos, daquele que instituições internacionais de fomento

recomendavam, conseguiu ajustar as suas finanças ao mesmo tempo em que manteve o

quadro de servidores. Fugindo ao que a ortodoxia recomendava, ao invés de começar a ajustar

as finanças do município por planos de demissões, privatizações, o governo municipal tratou

de racionalizar as finanças de outra forma, aumentando a arrecadação (FARIA, 2002, p.67).

Isso é claro não significou irresponsabilidade fiscal, pois o governo procurava só assumir

novos compromissos financeiros quando dispunha de recursos para honrá- los.

4.2.2 Orçamento Participativo e Accoutability

A discussão sobre accountability, como uma das dimensões da governança,

destacou dois aspectos considerados centrais na sua caracterização. O primeiro diz respeito à

responsabilização dos servidores públicos por suas ações, que traz embutida a idéia de

prestação de contas por parte dos mesmos. O outro aspecto se refere à existência de canais

através dos quais os usuários de bens e/ou serviços públicos, afetados pelas políticas ou ações

29 Segundo Dias (2000), a Câmara Municipal de Porto Alegre era formada de 33 vereadores no ano de 1989, dos quais 10 compunham a base do governo. 30 Dias (2000) a relação entre o executivo municipal de Porto Alegre e o legislativo durante os dois primeiros mandatos e parte do terceiro (1989-1998) e constatou um ambiente de forte disputa entre os dois poderes. Disputa essa agravada pela criação do Orçamento Participativo, que segundo a autora teria causado constrangimento ao legislativo Municipal, levando os vereadores a se comportarem de forma pendular ao longo desse período, ora de forma apática, ora reagindo fortemente as ações do executivo municicpal.

Page 76: Governança e Orçamento Participativo - reflexões a partir do · principal diferença entre governabilidade e governança está na forma como a legitimidade das ações dos governos

do governo, possam influenciar no processo de formulação e implantação das políticas

públicas.

A partir dessa caracterização parece razoável aceitar que o Orçamento

Participativo (OP) pode ser considerado, também, um instrumento da accountability pública.

Isso fica mais claro quando se parte da definição de OP dada pela própria Prefeitura

Municipal de Porto Alegre, segundo a qual “O Orçamento Participativo (OP) é um processo

pelo qual a população decide, de forma direta, a aplicação dos recursos em obras e serviços

que serão executados pela administração municipal” (PMPA, 2004a). Nessa definição pelo

menos um dos dois principais elementos que caracterizam a accountability já se faz presente,

o canal de participação, representado pelo próprio OP, que permite a população influenciar no

processo decisório sobre políticas públicas e ações do governo que afetam as suas vidas.

A outra característica pode ser identificada quando se analisa o Regimento Interno

do Conselho do Orçamento Participativo, que trata, entre outras coisas, da estrutura e da

dinâmica de funcionamento do OP. Nele estão impressas as principais regras que regulam o

funcionamento do OP. Pelo menos três artigos (artigos 43º, 47º e 48º) desse documento

buscam, de alguma forma, obrigar o governo municipal e seus funcionários a prestarem

contas de suas ações nas diferentes instâncias do OP e, de forma indireta, a toda a população

do município, já que a participação é aberta a todos31. O artigo 43º, por exemplo, determina

que todos os anos, até o dia 20 de abril, o governo municipal deverá prestar contas nas

assembléias temáticas e regionais, tanto do orçamento realizado no ano anterior, quanto do

Plano de Investimento definido (com a participação da população) no ano anterior para ser

implementado a partir do ano corrente.

31 A única restrição à participação diz respeito ao critério que determina que só podem participar da assembléia de uma determinada região, com poder de voto, aqueles que residem na respectiva região (PMPA, 2005).

Page 77: Governança e Orçamento Participativo - reflexões a partir do · principal diferença entre governabilidade e governança está na forma como a legitimidade das ações dos governos

Artigo 43º - Anualmente até 20 de abril, o Município deverá realizar a prestação de contas do Plano de Investimentos (obras e atividades definidas no exercício anterior), bem como a realização do orçamento do município do ano anterior (Receitas X Despesas) nas (reuniões preparatórias) Regional e Temática (PMPA, 2005, p.10).

Aliás, mesmo reconhecendo a importância de outras instâncias de participação

para accountability, Fedozzi admite que ela (a accountability) “tem seu ponto forte, não nas

instâncias onde a participação comunitária se dá por meio da representação, como o Conselho

e os Fóruns dos Delegados, mas sim nas assembléias Regionais e Temáticas” (FEDOZZI,

1997, p.169).

Outro artigo, o de número 47º, atribui ao funcionário público da prefeitura,

responsável pelo processo licitatório de obras demandas, a obrigatoriedade de informar o

início do procedimento aos Conselheiros(as) da Região ou temática demandante da obra. Este

último, por sua vez, deverá acionar a Comissão de Obras para que esta faça o

acompanhamento do desenvolvimento da obra.

Artigo 47º - Antes do lançamento de uma licitação de uma obra demandada pelo Orçamento Participativo, o respectivo responsável técnico da Prefeitura pela obra deverá fazer contato com os(as) Conselheiros(as) da Região ou Temática demandante para acionar a Comissão de Obras de e realizar a primeira reunião para conhecimento detalhado do projeto e estabelecer a rotina de acompanhamento da obra (PMPA, 2005, p.11).

O artigo de número 48º trata da obrigatoriedade dos servidores públicos prestarem

contas dos seus atos. Caso tome iniciativas dissonantes daquelas previstas pelas regras do OP,

eles devem se dirigir ao Conselho do Orçamento Participativo para justificar a falta cometida,

sob pena de ser denunciado ao prefeito.

Artigo 48º - O órgão que não obedecer as regras do Regimento do Orçamento Participativo, deve ser convocado no COP para apresentar justificativas. Caso não haja o comparecimento deve ser levado ao conhecimento do Prefeito, por escrito e assinado pelos Conselheiros(as). Não

Page 78: Governança e Orçamento Participativo - reflexões a partir do · principal diferença entre governabilidade e governança está na forma como a legitimidade das ações dos governos

se pode permitir que esses venham a prejudicar o processo (PMPA, 2005, p.11).

Mas a accountability dentro do OP não é exclusiva da parte do governo, outras

instâncias do OP são obrigadas a prestar contas de suas ações a instância máxima que são as

assembléias regionais e temáticas. O item “e” do artigo 30º, por exemplo, atribui como uma

das responsabilidades do conselheiro do COP (Conselho de Orçamento Participativo), manter

os Fóruns Regionais e temáticos do OP informados sobre o processo de discussão em curso

no COP, bem como colher sugestões e/ou deliberações por escrito dos delegados desses

fóruns. Já o item c do artigo 38º trata da obrigação dos delegados de manter a população

informada sobre os assuntos tratados no Conselho de Orçamento Participativo.

É verdade que essas determinações não passam de regras internas ao

funcionamento do Orçamento Participativo. Pois, não poderiam ter o seu cumprimento

cobrado na justiça. Mas, certamente é de interesse do Executivo Municipal atender a essas

regras, determinadas em conjunto por ele e pelo OP, já que ele também tem interesse na

continuidade dessa esfera de participação. Ao abrir espaço a participação da população, para

que ela determine as suas prioridades em termos de políticas públicas, o OP acaba por se co-

responsabilizar com o governo, dando legitimidade as suas ações.

Na última pesquisa realizada e publicada pela ONG Cidade sobre o perfil do

público participante do OP, alguns dados chamam a atenção. Eles tratam de questões como a

forma com que participantes chaves do OP (Delegados e Conselheiros) percebem o poder de

decisão deles no OP, como avaliam a sua atuação como representantes no OP e como avaliam

as informações que são prestadas pelos representantes da Administração no OP. A pesquisa

foi realizada durante uma plenária única que ocorreu no ano 2002 e publicada em 2003. A

pesquisa revelou que delegados e conselheiros, em sua maioria, percebem os elementos

constituintes da accountability, por exemplo, 82% dos Conselheiros e aproximadamente 78%

Page 79: Governança e Orçamento Participativo - reflexões a partir do · principal diferença entre governabilidade e governança está na forma como a legitimidade das ações dos governos

dos Delegados acreditam que as pessoas decidem sempre ou na maioria das vezes no OP. Em

relação a parte que lhes cabe no encaminhamento das reivindicações feitas pelas

comunidades, os resultados também se apresentaram de forma positiva. Aproximadamente

80% dos conselheiros e 85% dos delegados dizem respeitar e encaminhar essas demandas. O

terceiro item também importante para a accountability, porque é de grande importância para

uma participação efetiva é a prestação de informações pela Prefeitura. O item que mede as

informações prestadas pela Prefeitura também apresenta um bom desempenho, menor que os

dois primeiros, é verdade. De acordo com aproximadamente 70% dos conselheiros e 69% dos

delegados a Prefeitura presta informações satisfatórias na maioria das vezes.

Quadro 2: Distribuição de freqüências absolutas e relativas, segundo o poder de decisão no OP, a avaliação sobre a atuação dos representantes no OP e a avaliação sobre a informação prestada pelos representantes da Administração no OP, na opinião de Conselheiros ou Delegados eleitos no OP – 2002.

Sempre Maioria Poucas Nenhu

ma

NS NR Total de

entrevistados

Dimensões do

processo

Eleito

Conselheiro

ou Delegado % % % % % % casos %

Conselheiro 32,8 49,2 13,1 - 4,9 - 61 100,0 Pessoas no OP

decidem realmente Delegado 37,4 41,1 18,3 0,8 0,8 - 246 100,0

Conselheiro 45,9 34,4 16,4 - 3,3 - 61 100,0 Representante no OP

respeita e encaminha

reivindicações

Delegado 48,0 36,6 12,6 0,8 2,0 - 246 100,0

Conselheiro 39,3 31,1 19,7 3,3 6,6 - 61 100,0 Prefeitura presta

informações

satisfatórias no OP

Delegado 29,7 39,4 23,2 2,8 4,5 0,4 246 100,0

Fonte: Cidade (2003).

A partir de todas essas constatações, pode-se concluir que não restam dúvidas

sobre a potencial contribuição do Orçamento Participativo para a accountability na

administração do governo Municipal de Porto Alegre.

Page 80: Governança e Orçamento Participativo - reflexões a partir do · principal diferença entre governabilidade e governança está na forma como a legitimidade das ações dos governos

4.2.3 Orçamento Participativo e Informação e Transparência

De acordo com o Banco Mundial, Informação e transparência são dois elementos

importantes para se alcançar a eficiência do Estado e do mercado e o conseqüente

desenvolvimento econômico (WORLD BANK, 1992). Portanto, ela pode ser abordada sob

duas perspectivas, do ponto de vista dos agentes econômicos privados (mercado), ou do ponto

de vista do Estado. Para os agentes econômicos privados, a informação e a transparência são

importantes porque contribuem com a redução dos riscos e das incertezas e,

consequentemente, dos custos de transação, aumentando a eficiência e a eficácia desses

agentes. Na perspectiva do Estado a sua contribuição é principalmente no sentido de reduzir a

corrupção e o risco de erros dos governos.

Dizer que houve eficiência e eficácia num processo significa que “os objetivos

propostos foram atingidos com a menor utilização dos recursos disponíveis” (TENÓRIO,

2004, p.19). Como o papel atribuído ao Estado, dentro da perspectiva da governança para o

desenvolvimento econômico, é o de provedor eficiente e eficaz de bens e serviços públicos,

que por alguma razão os agentes econômicos privados não podem ou não devem oferecer.

Cabe a este Estado fazer bom uso dos recursos que arrecada no aprovisionamento desses bens

e serviços. Para que isso seja possível, ele precisa evitar o desperdício desses recursos,

ocasionado pela corrupção pura e simples, ou por erros no processo de formulação e

implementação de políticas públicas. A corrupção pode ser reduzida com transparência na

gestão dos recursos públicos. Os erros dos governos podem ser amenizados com informações.

É dentro dessa perspectiva que se defende aqui que o Orçamento Participativo é um

mecanismo da governança, pois ele gera informações que subsidiam as decisões de

investimentos do governo e cobra transparência na realização desses investimentos.

Page 81: Governança e Orçamento Participativo - reflexões a partir do · principal diferença entre governabilidade e governança está na forma como a legitimidade das ações dos governos

Quando se analisa a dinâmica de funcionamento do “ciclo do o Orçamento

Participativo” de Porto Alegre, é possível enxergar nele a fonte de dois elementos

fundamentais a governança, a informação e a transparência (PMPA, 2004c). A informação

necessária a redução dos erros do governo é gerada no processo participativo pela população

que participa do OP. Já a transparência é um requisito fundamental demandado pelos

participantes OP, ela é necessária para que esse canal de gestão participativa realmente

funcione.

No processo participativo do OP, as assembléias gerais e temáticas desempenham

um papel fundamental, são elas as principais fontes de informações que alimentam todo o

processo subseqüente do OP. São nessas assembléias que a população coloca as suas

demandas e elegem aquelas que consideram prioritárias (PMPA, 2004c)32. É a partir desse

conjunto de demandas, identificadas nas assembléias gerais, que o Executivo Municipal

prepara o esboço do Plano de Investimentos e o leva para ser complementado, debatido e

aprovado, ou não, nas outras instâncias do OP, como no COP e no Fórum dos Delegados33.

Como visto na síntese do ciclo do OP, o processo de participação não se encerra

nas assembléias regionais e temáticas. Ele prossegue em instâncias importantes como nos

Fóruns de delegados e no COP. Nessas instâncias as demandas são debatidas e aprovadas, ou

não, com base em critérios previamente estabelecidos, presentes nas regras que regulam o

funcionamento do OP. Aliás, regras estas que são definidas e redefinidas pelos próprios

participantes do OP em conjunto com o Governo Municipal.

Além de zelar para que essas demandas sejam atendidas, as outras instâncias do

OP têm uma infinidade de outras atribuições. O artigo 11º do Regimento Interno do COP

32 Nessas assembléias também são eleitos os delegados e conselheiros que irão compor outras duas instâncias importantes do OP, o Conselho de Orçamento Participativo - COP e o Fórum dos delegados (PMPA, 2005). 33 Embora a análise e aprovação do Plano de Investimentos pelo OP sejam consideradas momentos de forte simbolismo desse processo de gestão participativa, não há nenhum mecanismo que obrigue o executivo Municipal a cumprir as decisões sobre investimentos advindas de instâncias do OP.

Page 82: Governança e Orçamento Participativo - reflexões a partir do · principal diferença entre governabilidade e governança está na forma como a legitimidade das ações dos governos

prevê para esse conselho um amplo leque de competências. Essas atribuições vão desde a

apreciação, aprovação, ou não, do Plano de Investimentos, até a apreciação da Lei de

Diretrizes Orçamentárias (LDO); passando pela análise da própria peça orçamentária e até

mesmo de propostas de obtenção de financiamentos de instituições nacionais ou

internacionais para a realização de demandas do Op, conforme pode ser lido no artigo 45º

desse regimento.

Artigo 45º - as obras institucionais, que para a sua implementação exigirem recursos orçamentários próprios, ou financiamento de organismos nacionais ou internacionais, deverão ser apresentadas previamente ao COP para apreciação e/ou votação para acompanhamento quando da sua apresentação e debate com a comunidade mais diretamente interessada (PMPA, 2005, p.11).

No entanto, para que o Orçamento Participativo possa cumprir o seu papel de

forma satisfatória, na gestão participativa dos recursos públicos, os participantes também

precisam ter acesso a uma infinidade de informações que são controladas pelo Governo

Municipal. Portanto, pode-se afirmar o OP contribuí com a transparência. Essa necessidade de

transparência pode ser verificada no item XII do artigo 11º do Regimento Interno do

Conselho de Orçamento Participativo, que trata das competências do COP. Esse item assegura

ao COP a competência para “solicitar as secretarias e órgãos do governo documentos

imprescindíveis à formação de opinião dos(as) conselheiros(as) no que tange

fundamentalmente a questões complexas e técnicas” (PMPA, 2005, p.3).

Outro artigo que se refere à questão da transparência é o artigo 47º, também do

Regimento Interno do COP. Segundo esse artigo, o funcionário da prefeitura responsável pela

licitação e execução da obra, deve informar ao Conselheiro da região que a demandou, para

que este solicite a Comissão de Obras do OP que faça o acompanhamento da execução da

obra. Acompanhamento este que deve começar antes mesmo de sua licitação, com a

apresentação do projeto a Comissão, pelo técnico da prefeitura (PMPA, 2005, p.11).

Page 83: Governança e Orçamento Participativo - reflexões a partir do · principal diferença entre governabilidade e governança está na forma como a legitimidade das ações dos governos

Aparentemente duas conclusões podem ser tiradas dessa discussão. A primeira é

que quando a população participa das decisões sobre o direcionamento dos investimentos do

orçamento público, ela contribui com a redução dos erros dos governos. Estes deixam de

depender apenas da capacidade de seus “burocratas iluminados”, que de dentro de seus

gabinetes define qual deve ser o destino dos investimentos. A outra é que o OP também

contribui para reduzir práticas de corrupção e qualquer tipo de desvio de recursos públicos.

Isso ocorre porque quando o OP realmente funciona, acaba por exigir dos governantes uma

postura de transparência no trato com a coisa pública. Talvez, sejam essas as principais

contribuições que o Orçamento Participativo oferece a governança. Aliás, esse é um

argumento que parece não ser solitário. Marquetti, por exemplo, afirma que, “a transparência

na formação e implantação do orçamento e o sistema de monitoramento da ação do poder

executivo e dos próprios conselheiros são fatores fundamentais para a redução do

clientelismo” (MARQUETTI, 2002, p.226). Já para Fedozzi (1997, p.159) A existência de

regras claras de participação e dos métodos de distribuição dos recursos para investimento

contribui para constranger práticas como o clientelismo.

Page 84: Governança e Orçamento Participativo - reflexões a partir do · principal diferença entre governabilidade e governança está na forma como a legitimidade das ações dos governos

CAPÍTULO 5 – CONSIDERAÇÕES FINAIS

Finda a análise aproveitamos aqui para recobrar a razão de ser desta dissertação,

bem como tecermos algumas considerações sobre os resultados constatados através das

análises nela empreendidas.

O objetivo geral desse trabalho era identificar as possíveis contribuições do

Orçamento Participativo para a Governança urbana¸ a partir da análise da experiência de

Porto Alegre. Objetivo esse guiado pela seguinte questão de partida: de que forma o

Orçamento Participativo contribui com a governança urbana?

Pode-se dizer que as análises empreendidas no capítulo quatro - a partir dos

trabalhos de Marquetti (2002 e 2003), Dias (2000), Fedozzi (1997), Faria (2002), ONG

CIDADE (2003) e das próprias informações fornecidas pela Prefeitura Municipal de Porto

Alegre – forneceram subsídios para se argumentar que as contribuições são significativas. A

partir delas, pode-se concluir que o Orçamento Participativo contribui com a governança ao

possibilitar que os recursos públicos sejam aplicados de forma eficiente e eficaz em áreas

consideradas essenciais, como saúde, educação, infra-estrutura, entre outras; ao funcionar

como uma barreira a práticas clientelistas e lesivas aos cofres públicos como a corrupção e

oferecer legitimidade às ações dos governos, por estas estarem embasadas em demandas da

própria população.

Page 85: Governança e Orçamento Participativo - reflexões a partir do · principal diferença entre governabilidade e governança está na forma como a legitimidade das ações dos governos

Antes mesmo de seguir com esse esforço de síntese, cabe relembrar qual o papel

dos participantes no OP e porque se considera que esse instrumento de gestão participativa

contribui com a governança. No OP é papel da população decidir sobre as prioridades de

investimentos, para os quais devem ser direcionados os recursos públicos. Por conta disso, as

ações do governo municipal de Porto Alegre sofrem forte influência dessa instância de

participação. Logo, os resultados alcançados pelas ações do governo devem ser, de alguma

forma, também atribuídos ao OP.

Na discussão sobre a dimensão administração pública, os números extraídos do

trabalho de Marquetti (2002 e 2003) falam por si só. Serviços como pavimentação e

recuperação de vias, coleta de lixo, e instalação de pontos de luz deram saltos significativos,

quando comparados a períodos iguais, anterior à instalação do OP, cresceram respectivamente

10%, 36% e 216% na comparação entre os períodos tomados como referência.

Outro aspecto importante é representado pelo esforço concentrado das ações do

governo em áreas consideradas essenciais como saúde, educação e infra-estrutura. Nessas

duas primeiras áreas, por exemplo percebe-se um incremento significativo no número de

funcionários entre os anos 1986 e 1999, tanto no sentido relativo, quanto absoluto. Os

funcionários dessas duas funções do governo saíram de um percentual de aproximadamente

42% de todo o pessoal da administração centralizada para um percentual de 60%. O que

demonstra um esforço extra do governo municipal na direção de duas das responsabilidades

consideradas essenciais da administração pública pelo Banco Mundial. Essa mesma

preocupação com áreas essenciais pôde ser percebida a partir da comparação dos números de

recursos investidos nessas atividades nos períodos correspondentes aos anos de 1984-1988 e

1990-2000. Enquanto no primeiro período esse percentual foi de 46,2% do orçamento do

município, no segundo período deu um salto para 58,6%.

Page 86: Governança e Orçamento Participativo - reflexões a partir do · principal diferença entre governabilidade e governança está na forma como a legitimidade das ações dos governos

Na discussão do capítulo II ficou claro que o Banco entendia que um dos papéis

principais do governo era oferecer serviços, de forma eficiente, para os mais pobres, os

números trazidos no quarto capítulo, também, apontam nessa direção. Mostram que houve

uma concentração dos investimentos feitos individualmente por região, nas regiões mais

pobres. Isso pôde ser verificado quando se comparou os investimentos feitos nas quatro

regiões mais pobres, onde vivem 11,09% da população, com os investimentos feitos nas

quatro regiões mais ricas, onde vivem aproximadamente 44,5% da população do município. O

percentual de investimentos recebidos por essas regiões foi da ordem de 9,45% e 7,77%,

respectivamente.

No entanto esses investimentos não teriam sido possíveis sem a reforma fiscal

empreendida pelo governo de Porto Alegre. Iniciada ainda no primeiro ano do mandato

(1989), essa reforma teve como objetivo principal aumentar a arrecadação de tributos como o

ISSQN e o IPTU. Talvez, ela tenha sido a maior contribuição que o OP tenha oferecido para

que o governo municipal organizasse as suas finanças e mostrasse a eficiência e a eficácia que

mostrou na prestação de serviços essenciais a população. Isso porque como, foi exposto no

quarto capítulo, Olívio Dutra quando assumiu encontrou as finanças do município em

condições precárias e não possuía maioria na Câmara para aprovar as reformas necessárias.

Para que isso fosse possível, ele precisou contar com o apoio direto dos participantes do OP,

que foram a aquela casa cobrar dos vereadores a aprovação de tal reforma34. É interessante

notar que nessa reforma fiscal o processo se deu de forma invertida, quando se compara com

as práticas recomendadas pelo Banco Mundial. Ao invés de começar cortando custos,

começou-se a reforma ampliando a arrecadação.

Outras contribuições do OP à governança puderam ser observadas a partir da análise

de sua própria dinâmica. A partir dessa análise, foi possível verificar que o OP contribui com

34 Dias (2000) discute com profundidade o impacto causando pelo OP na relação entre executivo e legislativo municipal.

Page 87: Governança e Orçamento Participativo - reflexões a partir do · principal diferença entre governabilidade e governança está na forma como a legitimidade das ações dos governos

a accountability e com a informação e a transparência no processo de gestão dos recursos

públicos do município. Em termos de accountability, o maior símbolo da sua existência são as

plenárias regionais e temáticas. São nessas plenárias onde a população pode influenciar nas

decisões sobre as políticas públicas que, direta ou indiretamente, lhe interessam, são nelas

também que a prefeitura faz a prestação de contas todos os anos, no início do ciclo do OP.

Tanto do que foi realizado no ano anterior (receitas X despesas), como do que foi planejado

para o ano corrente.

Além da responsabilidade da prefeitura em prestar contas nas diversas instâncias do

OP. Essas mesmas instâncias também têm a responsabilidade de prestar contas à população

sobre as decisões tomadas no âmbito do OP.

O OP também contribui com a governança ao oferecer informações ao governo sobre

as demandas que a população considera mais urgente, evitando dessa forma que decisões

equivocadas sejam tomadas, gerando posterior insatisfação da população. Além disso, o

funcionamento adequado do OP cobra do governo a disponibilidade de informações, para que

os participantes possam tomar as decisões adequadas sobre os investimentos prioritários,

como volume de recursos disponíveis, custo de uma obra ou serviço demandado, etc. Cobra

também transparência do governo, na gestão do fundo público. Os dois elementos juntos

contribuem para reduzir as oportunidades de práticas lesivas aos cofres públicos como a

corrupção e desvios de recursos.

Entretanto, para que o objetivo principal desse trabalho fosse alcançado e a

questão de partida respondida, outros objetivos de menor monta, mais não menos importantes,

precisaram ser alcançados. Entre esses objetivos estavam: identificar a origem e o histórico

evolutivo do conceito de governança; discutir o conceito de governança do Banco Mundial de

forma pormenorizada; identificar as diferenças e semelhanças dos conceitos de

governabilidade e governança; relacionar governança e participação; e por último, entender

Page 88: Governança e Orçamento Participativo - reflexões a partir do · principal diferença entre governabilidade e governança está na forma como a legitimidade das ações dos governos

por que a participação, que era vista como uma ameaça à governabilidade, agora é aceita

como instrumento da governança, se este último conceito é considerado por alguns autores

apenas uma versão do primeiro, apenas com pequenos ajustes?

A discussão promovida no primeiro capítulo desempenhou um papel importante

ao traçar o histórico do conceito de governança e mostrar que ele realmente parece guardar

uma forte relação de proximidade com o conceito de governabilidade. No entanto, ao mesmo

tempo em que trouxe essas contribuições, colocou também uma questão que precisava ser

respondida: como poderia a participação aparecer, no conceito de governança do Banco

Mundial, como positiva para a promoção do desenvolvimento econômico, se ela (a

participação) era vista anteriormente como a causa principal da ingovernabilidade? Mas do

que isso, como o Banco Mundial pôde reconhecer um instrumento de gestão participativa, que

tem por base a participação direta, como o OP, vendo nele um instrumento para a gestão

eficiente da cidade? Um esforço para buscar essas respostas foi empreendido no terceiro

capítulo.

Na discussão empreendida no terceiro capítulo pôde-se perceber que a causa da

instabilidade política, segundo Samuel Huntington, não era exatamente a participação política,

mas sim a participação política não institucionalizada, a participação direta. O problema para

ele estava no rápido crescimento desse tipo de participação, sem o correspondente surgimento

de instituições políticas fortes para filtrar e absorver as demandas dos novos grupos sociais,

evitando que elas fossem colocadas diretamente ao governo. Embora ele não falasse

abertamente como se daria essa participação institucionalizada, supõe-se que tratasse da

participação através do voto, uma vez que via no partido político o símbolo da instituição

política moderna.

Outro aspecto que ficou claro na discussão do terceiro capítulo foi a questão da

legitimidade das ações do governo defendida por Huntington, que segundo ele estaria

Page 89: Governança e Orçamento Participativo - reflexões a partir do · principal diferença entre governabilidade e governança está na forma como a legitimidade das ações dos governos

amparada pela idéia de “interesse público”. Como ele não tinha compromisso com um regime

político específico, muito menos com a democracia, e via na participação direta a causa da

ingovernabilidade, acabou por descartar logo de início qualquer teoria, para a idéia de

“interesse público”, que envolvesse a participação direta de grupos sociais, descartou assim a

explicação dada pelas teorias democrática e processual. Para ele, as ações do governo

poderiam ser consideradas legítimas à medida que representasse os interesses das próprias

instituições governamentais. Talvez o problema dessa formulação de Huntington residisse no

fato de foi ter atribuído expectativas demasiadas em relação as virtudes dos homens públicos.

Afinal, Huntington dava a entender que caberia a eles identificarem os interesses das

instituições das quais faziam parte e buscar satisfazê-los.

Aparentemente, o Banco Mundial percebeu em suas experiências práticas, em

especial na África sub-saariana, que a virtude do homem público, a qual Huntington

condicionava a satisfação do interesse público, não era assim tão comum quanto ele

acreditava ser. Por conta disso, as práticas do Banco passaram por um processo de inflexão.

Preocupado com a efetividade e eficiência das políticas governamentais, o Banco passou a

defender a participação da população alvo na formulação e implantação de projetos

específicos. Principalmente aqueles voltados para os mais pobres. Buscava com isso alcançar

maior efetividade nesses projetos e evitar rejeições futuras.

Os mecanismos de participação sugeridos pelo Banco eram conselhos paritários,

onde deveria haver um número igual de representantes de usuários e dos prestadores de

serviço; Centrais de atendimento; mecanismos de consulta, a existência de um ombudsman,

etc. A participação vista dessa forma só reforça a preferência do Banco pelas soluções de

mercado e evidencia um esforço do Banco no sentido de despolitizar a participação da

sociedade.

Page 90: Governança e Orçamento Participativo - reflexões a partir do · principal diferença entre governabilidade e governança está na forma como a legitimidade das ações dos governos

Posteriormente, já em 1997 o Banco toma contato com a experiência do

Orçamento Participativo de Porto Alegre e o aponta como exemplo de boa gestão dos

recursos públicos (NAVARRO, 2003, p.92). Arrisca-se a dizer aqui, que o pragmatismo desta

instituição permitiu- lhe dar um “salto de qualidade” em relação a questão da participação, já

que ao perceber que ela não causava qualquer risco a instabilidade, não hesitou em elogiar a

prática porto-alegrense.

O Orçamento Participativo não representa qualquer ameaça à ordem política por

pelo menos duas razões. A primeira é que a participação da população no OP se dá dentro de

regras gerais e claras a todos os participantes. Mesmo que possam ser alteradas pelos próprios

participantes, seguindo-se os ritos para tal processo, essas regras dependem, de alguma forma,

da aquiescência do executivo municipal. Se este não concordar, não há qualquer instrumento

legal que o obrigue a cumprir tais regras. São exemplos dessas regras: a participação nas

plenárias regionais restritas aos moradores das respectivas regiões; a existência de um limite

máximo de demandas; critérios claros sobre a eleição das demandas por regiões, etc. A

segunda é que o executivo municipal desempenha um importante papel na coordenação e na

viabilização do processo, “o governo participa fornecendo informações, assessoramento

técnico e infra-estrutura” (PMPA, 2004a). É de se supor que sem a estrutura de suporte

oferecida pelo executivo municipal, tanto em termos financeiros como técnico-

organizacionais, a operacionalização do OP dificilmente seria possível. Por conta disso, se o

OP passar a ser percebido como uma ameaça à ordem política, basta ao executivo municipal

deixar de fornecer o apoio a sua realização que certamente ele deixará de existir.

Pode-se dizer então que o Orçamento Participativo contribui com a governança:

ao possibilitar que os recursos públicos sejam aplicados de forma eficiente em áreas

consideradas essenciais, como saúde, educação, infra-estrutura, etc.; ao funcionar como uma

barreira a práticas clientelistas e lesivas aos cofres públicos como a corrupção; e ao oferecer

Page 91: Governança e Orçamento Participativo - reflexões a partir do · principal diferença entre governabilidade e governança está na forma como a legitimidade das ações dos governos

legitimidade as ações dos governos, por estarem embasadas em demandas da própria

população.

Aparentemente, independente da ideologia que oriente as ações dos governos - pouco

importa se ele busca empregar os recursos públicos na formulação e implementação de

“políticas compensatórias”, ou de “políticas redistributivas” - parece que o que está posto é

que os recursos nunca são suficientes para atender as demandas que a sociedade coloca ao

Estado. Mas, se os recursos são escassos resta ao governo emprega- los de forma eficiente.

Talvez, isso explique uma constatação feita por Frey (2004), ainda no primeiro capítulo,

quando ele dizia que as duas vertentes de governança - aquela de caráter mais distributivo e

emancipatório e a outra vertente mais gerencialista - guardam mais similaridades do que

diferenças, e que as diferenças estão praticamente restritas ao campo ideológico.

O principal desafio que se pôs a essa análise, por conta do seu caráter teórico, foi a

escassez de números que tratassem especificamente dos resultados práticos das experiências

de Orçamentos Participativos no Brasil. A maioria dos trabalhos se concentra na análise do

processo, procurando verificar aspectos como: número de participantes, em que nível se dá a

participação, qual o perfil de quem participa, etc. Além disso, a maioria absoluta dos trabalhos

disponíveis tratam do caso de Porto Alegre, provavelmente por esta ser a experiência pioneira.

Sentiu-se a necessidade de análises mais aprofundada de outras experiências. Fica aqui a

sugestão para trabalhos futuros.

Page 92: Governança e Orçamento Participativo - reflexões a partir do · principal diferença entre governabilidade e governança está na forma como a legitimidade das ações dos governos

Referências Bibliográficas

ARAÚJO, Vinícius de C. A conceituação de governabilidade e governança, da sua relação entre si e com o conjunto da reforma do Estado e do seu aparelho. Brasília, DF: ENAP, 2002.

BANDEIRA, Pedro. Participação, articulação de atores sociais e desenvolvimento Regional. Brasília. DF: IPEA, 1999.

BORGES, André. Governança e política educacional: a agenda recente do Banco Mundial. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 18, n. 52, p. 125-138, jun. 2003.

CASTRO SANTOS, Maria H. de. Governabilidade, Governança e Democracia: criação de capacidade governativa e relações executivo- legislativo no Brasil pós-constituinte. Revista Dados, Rio de Janeiro, v. 40, n. 3, p. 335-377, 1997.

CASTRO SANTOS, Maria H. de. Que Democracia? Uma visão conceitual desde a perspectiva dos países em desenvolvimento. Revista Dados, Rio de Janeiro, v. 44, n. 4, p. 729-771, 2001.

CIDIDADE, Centro de Assessoria e Estudos Urbanos. Quem é o Público do Orçamento Participativo - 2002. Porto Alegre, 2003. 79p.

DIAS, Márcia R. Na encruzilhada da teoria democrática: efeitos do orçamento participativo sobre a Câmara Municipal de Porto Alegre. 2000. 220 f. Tese (Doutorado em Ciência Política) - Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro – IUPERJ, Rio de Janeiro.

DINIZ, Eli. Governabilidade, Democracia e Reforma do Estado: os desafios da construção de uma nova ordem no Brasil dos anos 90. Revista Dados, Rio de Janeiro, v. 38, n. 3, p. 385-415, 1995.

FARIA, Luiz Augusto E. A administração popular em Porto Alegre: uma experiência alternativa de reforma do estado na América Latina. Revista de Economia Contemporânea, Rio de Janeiro, v.6, n. 2, p. 51-83, jul./dez. 2002. Disponível em: http://www.ie.ufrj.br/revista/lng/pt/artigos_publicados.php. Acesso em: 12 de nov. 2005.

FEDOZZI, Luciano. Orçamento participativo: reflexões sobre a experiência de Porto Alegre. Tomo Editorial. Porto Alegre. 1997.

Page 93: Governança e Orçamento Participativo - reflexões a partir do · principal diferença entre governabilidade e governança está na forma como a legitimidade das ações dos governos

FAUCHER, Philippe. Políticas de Ajuste ou Erosão do Estado no Brasil? Revista Dados, Rio de Janeiro, v. 36, n. 3, p. 393-418, 1993.

FIORI, José L. A Governabilidade Democrática na Nova Ordem Econômica. Revista Novos Estudos, São Paulo, n. 43, p.157-172, nov.1995.

FREY, Klaus. Governança Urbana e Participação Pública. In: ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA EM ADMINISTRAÇÃO, 28., 2004, Curitiba. Anais eletrônicos da ANPAD, Maringá: ANPAD, 2004. Disponível em: http://www.anpad.org.br/frame_enanpad2004.html> Acesso em 22 set. 2005.

HUNTINGTON, Samuel P. A ordem política nas sociedades em mudança. São Paulo: EDUSP, 1975.

IVO, Anete B. L. Metamorfose da questão democrática: governabilidade e pobreza. Buenos Ares: Gráficas e Servicios S.R.L., 2001.

IVO, Anete B. L. Governabilidade e governança na América Latina : teses e paradoxos. In: Congreso Internacional del CLAD, 7, 2002, Lisboa, Portugal. Anais eletrônicos Documentos de los Congresos, Caracas: CLAD, 2002. Disponível em http://www.clad.org.ve/docume.html > Acesso: 14 nov. 2005.

LINHARES, Clarice B. A Disseminação dos Orçamentos Participativos: um breve panorama das experiências no Brasil de 1989 a 2004. In: Democracia Participativa. Belo Horizonte, 2005. Disponível em: www.democraciaparticiativa.org> Acesso 15 nov. 2005.

MALLOY, James M. Política econômica e o problema da governabilidade democrática nos Andes Centrais. In: SOLA, Lurdes. Estado, mercado e democracia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993. cap. 4, p. 99-126.

MARTINS, Luciano. Instabilidade política e governabilidade na construção democrática. In: VELLOSO, João Paulo dos R. (Org.) Governabilidade, sistema político e violência urbana. Rio de Janeiro: José Olympio, 1994. cap. 1, p.11-24

MARQUETTI, Adalmir. Democracia, equidade e eficiência: o caso do orçamento participativo em Porto Alegre. In: VERLE, J. e BRUNET, L. (Org.). Construindo um Novo Mundo: avaliação da experiência do Orçamento Participativo em Porto Alegre - Brasil. Porto alegre: GRAFO, 2002. cap. 14, p. 210-232.

Page 94: Governança e Orçamento Participativo - reflexões a partir do · principal diferença entre governabilidade e governança está na forma como a legitimidade das ações dos governos

MARQUETTI, Adalmir. Participação e distribuição: o Orçamento Participativo em Porto Alegre. In: AVRITZER, L. e NAVARRO, Z. (Orgs.). A inovação democrática no Brasil. São Paulo: Cortez, 2003. cap. 4, p.129-156.

MELO, Marcus A.B.C. de. Ingovernabilidade: desagregando o argumento. In: VALLADARES, Lícia. COELHO, Magda P. (Orgs.). Governabilidade e Pobreza no Brasil. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1995. cap. 1, p. 23-48.

NAVARRO, Z. Orçamento Participativo Porto Alegre: um conciso comentário crítico. In: -AVRITZER, L. e NAVARRO, Z. (Orgs.). A inovação democrática no Brasil. São Paulo: Cortez, 2003. cap. 3, p. 89-128.

PREFEITURA MUNICIPAL DE PORTO ALEGRE - PMPA. Regimento interno do conselho do Orçamento Participativo 2005/2006. Porto Alegre, 2005. Disponível em: http://www2.portoalegre.rs.gov.br/op > Acesso 20 out. 2005.

______. Orçamento Participativo: funcionamento geral. Porto Alegre, 2004a. Disponível em: http://www2.portoalegre.rs.gov.br/op/default.php?p_secao=15> Acesso em 20 out. 2005.

______. Histórico do Orçamento Participativo. Porto Alegre, 2004b. Disponível em: http://www2.portoalegre.rs.gov.br/op/default.php?p_secao=1> Acesso em 20 out. 2005.

______. Ciclo do Orçamento Participativo. Porto Alegre, 2004c. Disponível em: http://www2.portoalegre.rs.gov.br/op/default.php?p_secao=16> Acesso em 20 out. 2005.

______. Galeria dos ex-prefeitos. Porto Alegre, 2004d. Disponível em: http://www2.portoalegre.rs.gov.br/infocidade/default.php?p_secao=23> Acesso em 20 out. 2005.

REIS, Fábio W. Governabilidade e instituições políticas. In: VELLOSO, João Paulo dos R. (Org.) Governabilidade, sistema político e violência urbana. Rio de Janeiro: José Olympio, 1994. cap. 10, p. 193-201.

REIS, Fábio W. Governabilidade Instituições e Partidos. Revista Novos Estudos, São Paulo, n. 41, p. 40-59, mar. 1995.

RIBEIRO, Ana Clara T.; GRAZIA, Grazia de. Experiências de Orçamento Participativo

no Brasil: período de 1997 a 2000. Petrópolis. Vozes. 2003. 118 p.

Page 95: Governança e Orçamento Participativo - reflexões a partir do · principal diferença entre governabilidade e governança está na forma como a legitimidade das ações dos governos

SÁNCHEZ, Félix R. ORÇAMENTO PARTICIPATIVO: teoria e prática. São Paulo. Cortez. 2002. 119 p.

TENÓRIO, Fernando G. (Org.). Gestão de ONGs: principais funções gerenciais. 8ª.ed. Rio de Janeiro: FGV. 2004.

WORLD BANK. The Reform of Public Sector Management: Lessons from experience. Woshington D.C. 1991.

WORLD BANK. Governance and Development. Woshington D.C. 1992.

Page 96: Governança e Orçamento Participativo - reflexões a partir do · principal diferença entre governabilidade e governança está na forma como a legitimidade das ações dos governos

ANEXO