gmlimaleal - o silêncio que emoldura o estalo (contos)

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    O silncio

    que emoldurao estalo

    contos de g. m. lima leal

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    O silncioque emoldura

    o estalo

    contos de g. m. lima leal

    2014

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    umrio

    TORNOZELOS LASSOS ............................................................... 6SINFONIA EM VERMELHO................................................... 14

    ENSAIO CRTICO ............................................................................. 20O TETO E O POO .......................................................................... 20UM PONTO ZERO ............................................................................ 38ORNAR OS IDOS ............................................................................... 48HORRIO DE PICO ...................................................................... 62

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    para Fabola, tudo

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    Essa total explicao da vidatudo se perdeu, bateu

    na trave

    Nuno Ramos, Junco

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    TORNOZELOS LASSOS

    Voc disse eu te espero e aqui vou eu.Desculpe ter levado to ao p da letra essamostra de carinho sua, assim, to ingratamente,mas sabe como , eu tinha muitas coisas praresolver, eu sei que voc me entende. J consigo

    at nos ver andando de mos dadas l no centroe parando de sbito porta de alguma igrejado caminho pra voc me dar um beijo de cine-ma. Voc terrvel mesmo, eu no quero dizerque tenho vergonha da gente, mas voc notem vergonha nenhuma nessa cara linda, seu

    pirracento. Dessa vez definitivo, a gente agente de verdade, a Lcia chorou muito, eu jsabia que ela ia, inconformada. Eu te amo, vocsabe o quanto, mas gosto muito da Lcia, eu mepreocupo com ela, sei que voc morre de ci-mes mesmo eu te dizendo que no tem cabi-mento, que s questo de tempo e que o queromesmo estar contigo, sem rivais, no entanto aLcia, voc sabe, no consigo me sentir bemcom o sofrimento dela. Me sinto um hipcritapor dizer isso mas uma coisa que s o tempo

    vai curar, o tempo que agora vai passar, esseque s nosso, e de mais ningum, meu amor.

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    D at um friozinho na barriga isso, fechar umcaptulo da vida e comear outro, no pelo quese foi seno pelo desconhecido que vir, a gentefica imaginando muita coisa, tenho medo mes-mo das minhas expectativas, de elas seremexigentes demais com voc, comigo tambm,mas principalmente com voc. Preciso diz-lo,at mesmo pra depois falar que eu avisei: acho

    que inevitvel no comeo, sabe, nas primeiraspginas que formos escrevendo, uma certacomparao com a minha vida com a Lcia, dezanos no pouca coisa, no um captulo comoaqueles dos romances de folhetim e to poucoum captulo de novela das oito. como se eu

    estivesse s agora no comeo da minha tercei-ra temporada, sendo a primeira minha infn-cia, a segunda a Lcia e s agora voc. T certoque a coisa no foi bem separada assim, a Lciade voc, no consegui evitar, quando eu te vi lno escritrio, acho que no foi no primeiro dia,no comeo nem te notei, estava uma baita deuma correria, mas logo que te vi, logo que tepercebi, meu pensamento fez um hiato. Foicomo se a repartio inteira se evaporasse, oumelhor, parasse, como se algum tivesse aper-

    tado o pause exceto pra voc que se movialento, to desenvolto pelas pilhas de papeis

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    com mil assinaturas e carimbos. Eu me lembroque logo aps ter te notado fiquei extrema-mente encabulado com a possibilidade de terdado pinta pro escritrio inteiro com o queixocado pra voc assim, passando to charmoso eto sereno, mas o pessoal s ia mesmo comear aimplicar depois de um tempo, depois que eu jtinha te levado pro teatro alegando pra Lcia

    alguma reunio at bem tarde e fomos mesmoat bem tarde aquela noite. Foi inevitvel. Noconsigo disfarar to bem como voc, no diaseguinte me lembro de sentir calor em todas asvezes que ias at a impressora e tinhas que pas-sar ao lado da minha mesa, me sentia corado e

    s sentia, no tinha certeza nenhuma do queestava fazendo, s deixei que a fora que nosatraa me arrancasse do que eu cria ser meurumo e me levasse at sua boca. No foi s opovo do escritrio, naquela noite a Lcia nofalou nada, mas no dia seguinte ficou me per-guntando uma srie de detalhes da reunio, osquais eu no consegui inventar e a evitei gros-seiramente, deixando mais do que na pista. Adiferena que fiquei com a Lcia mais tempodo que voc com o povo do escritrio. Me lem-

    bro da intimao que voc me deu uma vez nobanheiro, no exatamente das palavras, mas

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    que voc me disse algo do tipo se voc nosabe o que quer no fique me testando, mas eusabia e eu te puxei pra dentro da cabine, tebeijei, puxei os nossos corpos um contra o outro,sentindo na barriga cada boto da tua camisa,sentindo o suor da tua nuca e estava certo deque amos transar ali mesmo at voc me cha-mar de louco, me empurrar e sair pela porta,

    disfarando com um discreto olhar pra trs, pramim e um sorriso em canto de boca ainda maisdiscreto, mas muito mais do que o suficientecomo uma espcie de sim. Voc ento medisse naquele dia na sada do trabalho e ra-mos os ltimos passando pela recepo que

    no queria me prejudicar, ao meu casamentoou ao ambiente de trabalho e que ia sair daempresa. Eu tentei fracamente no de vonta-de seno de argumento te dissuadir dissodizendo que o que eu sentia por voc era dife-rente e que eu sabia sim o que queria, ficar comvoc, mas que isso, por questes prticas mesmo,no podia acontecer assim, coitada da Lcia.Sei que pena um sentimento horrvel, mas no isso que sinto por ela, eu acho que realmentea amei por muito tempo e ainda a amo, o pro-

    blema s que voc apareceu e a no consigomais atinar pra nada, no consigo ser o homem

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    que ela merece, retribuir a fora que umamulher como a Lcia d. A voc se foi e eufiquei um tempo assim, no meio do caminho,dando para a Lcia as provas da minha inca-pacidade de estar com ela ao mesmo tempo emque sabia que podia no ser por voc o larg-la, que talvez voc nem quisesse mais olhar naminha cara, mas eu simplesmente tinha que

    no era mais possvel, eu j havia terminadotudo, s no o havia dito a ela. Houve um diaem que eu cheguei em casa e briguei feio com aLcia, nem me lembro do porqu, talvez fosseporque estava me irritando isso de ela noterminar logo o que havia entre a gente, que

    absurdo, mas eu sei que acabei batendo a portada frente com fora e indo at o boteco em ques vezes amos encher a cara, eu e voc, algu-mas poucas vezes, mas que foram to intensasque parecem-me at hoje terem sido milhares,dada a quantidade de recordaes, e l eu teencontrei. Voc estava pssimo, desculpe-mefalar assim, mas verdade, uma barba mal feitacompletamente irregular, mais falhas do quepelos e os poucos que havia bem compridos, oolhar mais que perdido, de quem perdeu algu-

    ma coisa ou se perdeu. Desculpa falar issotambm, mas se no fosse esse sofrimento, esse

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    vazio to ntido que eu vi na sua cara aqueledia e a certeza de que era por minha causa, eunem teria conseguido coragem para ir at voce te cumprimentar, encostado no balco, mesentindo o maior canastro do mudo, abusandode voc, praticamente uma criana abandona-da a quem fui entregar um doce envenenado.Eu tenho que admitir que foi em tudo muito

    estranha aquela noite e te juro que nem vi omomento em que te disse que a Lcia j era, melembro de me ouvir falando isso e me assustarno instante exato em que, j depois de umascinco, dez cervejas, voc me beijou ali mesmono balco do bar que sequer era LGBT. Me

    lembro de que a primeira coisa que eu vi quan-do abri os olhos, alm dos seus, foi a cara de diodo garom careca que nos atendia. Coitado,acho que nem era dio, talvez fosse s um tipode vergonha alheia por estarmos ali num mo-mento to ntimo, claramente um reencontro,um espcie de acerto de contas com direito afinal feliz e sendo observados por todos os fre-gueses que em sua maioria eram bem do tiponormativo, quadradinhos, sabe, do tipo que seassusta e at se ofende com um beijo gay apai-

    xonado. Mas como eu te dizia, naquela noitetudo foi muito estranho, e nisso incluo tambm

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    o dia seguinte, que engraado, falo aquelanoite, dia seguinte, nem parece que foi on-tem de noite, hoje de manh, logo antes de euvoltar pra casa e ter uma conversa sobre tudocom a Lcia, at mesmo em respeito a ela ainda que tardio. No brigamos, choramosmuito os dois. No fim das contas eu acho que elavai ficar bem, foi um golpe duro que ela sofreu

    de mim, mas ela uma mulher e tanto, vaisuperar e vai encontrar quem a faa feliz. Eu jencontrei. Hoje de manh eu te disse, ainda nasua casa, que tinha que falar com a Lcia eresolver umas coisas de ordem prtica, saiuassim, natural como a verdade em oposio ao

    que te tinha dito l no bar, e nem percebi qual-quer coisa de estranho no teu rosto quandovoc disse eu te espero. Agora estou aqui, eme salta o fato de que voc no me disse queno ia ser assim, como eu imaginava, mas, meubem, enfim, o importante estarmos juntos, voute colocar sentado, lindo, na poltrona da tuasala, nossa sala agora, e no se preocupe, vou tecolocar um apoio para os tornozelos de quevoc sempre reclama lassos, como voc diz que os coitados no tm onde ficarem escora-

    dos quando estamos no sof. Vou dar jeito nisso,t? Eu j tomei os remdios, esses que voc

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    deixou esparramados pelo cho do banheirointeiro, que horror, e vou sentar bem aconche-gado contigo e colocar um filme do Almodvarpra rodar tenho certeza que voc vai amar APele Que Habito e vamos o assistir juntinhosenquanto eu pego no sono e vou de vez pra bemjuntinho de voc, meu amor. At j.

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    SINFONIA EM VERMELHO*

    [Este pequeno conto foi livremente inspirado namsica "Be Careful With That Axe, Eugene" (PinkFloyd). Recomenda-se profundamente a audiodesta durante a leitura, preferencialmente a versodo 'Umma Gumma Live Album'.]

    ta-ta-TA-ta-T ritmadamente fez o ma-

    chado; estranha mania de fazer as coisas demaneira musical tinha Eugnio. Cantarolava osolo em falsete, a base ao acompanhamento dapercusso metal-madeira: uuuu... dei-xando sumir, no vazio habitado apenas dervores e insetos ignotos da floresta, o eco queia formando um dgrad sonoro atravs doespao sua volta.

    Hoje, ao voltar para casa, sua esposa oestaria esperando com uma torta: comemo-rao de mais um de no sei quantos anos de

    casamento. Amava sua mulher como s elesabia, e como no conseguiria expressar. Porisso desfechava ritmadamente seu machadocontra os troncos das rvores, como se o em-contro da lmina com o sber fosse o encontro,

    *Conto publicado em antologia do prmio UFFde literatura 2013.

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    rudo hipntico dos corpos.Desejava-a como s ele sabia, e como no

    conseguiria expressar. Por isso cantarolava oseu falsete: uuuu... como se fosse o deixarsair involuntrio um gemido, delrio de prazerde sua mulher.

    Retornando de sua abstrao divisou quej havia o necessrio em lenha para que pudes-

    se voltar para casa e cambiar seus pensamentosem atos. Rumou para sua cabana.Amava sua mulher. Desejava-a. Agora.Mesmo com a certeza de que chegaria em

    casa e a encontraria nos braos e nas pernas eem outros lugares do morador solitrio da

    cabana vizinha, fortes braos, muito mais fortesque os seus; beijando aqueles lbios mais car-nudos do que os seus e olhando para aqueleslindos, jovens e msculos espelhos acastanha-dos de forma muito mais intensa do que a queolhava para os seus; sendo possuda, comcerteza, com muito mais vigor do que seria porele.

    Mesmo apesar dessas certezas Eugnioamava-a e desejava-a e intentava cambiarseus pensamentos em atos. Agora.

    Chegou ao umbral da porta da frente, deonde ouviu aquele gemido feminino to conhe-

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    cido, quase igual pequena melodia que, comfalsete, cantarolava: uuuu...

    Seus ps atravessaram o assoalho de ma-deira da sala de estar com passos cuidadosa-mente ritmados: ta-ta-TA-ta-T, de maneira aformar o acompanhamento aos silvos orgsti-cos, harmonia que se ouvia l do quarto, agoraconstruda minimalisticamente: camadas de

    vozes, texturas, peles sobrepostas.Amava-a. Desejava-a. E queria cambiarseus pensamentos em atos.

    Ganhou a sala e o corredor que levava aoquarto, ritmadamente.

    Empunhou seu machado, baqueta, e ficou

    uns segundos deliciando-se com a msica for-mada pelas vozes que vinham do quarto emritmo inequvoco, refros em unssono, duetorecproco.

    Entrou.Amava-a. Desejava-a. Desesperadamen-

    te. Musicalmente. E iria agora cambiar seusatos por seus pensamentos.

    ta-ta-Ta-ta-T: desferiu o primeiro golpecontra o tronco do jovem amante que se encon-trava sobre a esposa.

    ta-ta-Ta-ta-T: e sem entender ao certo oporqu, a orquestrao da melodia que gera-

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    vam se alterou: AAAHHH!!!Ele era apenas o acompanhamento e se a

    melodia muda, a percusso tambm devemudar. ta-ta-ta-T: era quatro por quatro.AAAHHH!!!, AAAHHH!!! continuaram.

    E ele ousou encaixar tambm sua melodia,arriscou um assovio pra achar o tom e, posto,cantarolou o falsete: uuuu...

    O resultado esttico era divino e tanto quecomeou a enxergar as cores vivamente, emprincipal o vermelho, que insistia em sobrepu-jar ah, a arrogncia, a soberba vermelha todo o resto do seu campo de viso.

    ta-ta-ta-T: AAAHHH!!! em vermelho,

    e cor-de-rosa e os cabelos loiros de sua mulhere os cabelos loiros do amante ritmadamentesendo lanados ao ar que era vermelho assimcomo o machado que batia na madeira empercusso sobre o cantarolar uuuu quepairava sobre o todo do quarto e da cabana eda torta e dos meses e milnios de lenha cor-tada por suas mos no to fortes quanto a dojovem amante com olhos saltados e dentro efora das rbitas e dentro e fora de sua mulhertorta e vermelha sobre a cama de madeira de

    lenha que percutia os corpos dos amantesagora quase to rijos quanto o seu que era de

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    madeira e carne boa para percusso vermelhae em uma melodia ousada de mos e de ps ede barrigas e costas abertas quatro por quatro ecostelas agora visveis mais brancas que as suasao ritmo do machado ta-ta-ta-T em quatropor quatro e em valsas e em compassos que noconseguia mais acompanhar com os gritosvermelhos de AAAHHH estagnados no ar

    estagnado e amante no to amante quantoaquele que desfere o machado e percebe que amelodia parou.

    No... No!!! - gritou Eugene emdesespero: no percebem que a sinfonia nopode parar!!??

    E desferiu, inutilmente, tentando arrancarmais alguns ainda que poucos suspiros de m-sica, mais golpes contra os corpos sobre a camase que ainda se chamavam corpos o amon-toado informe de carne e sangue e entranhasque ali quedava.

    Amava-a. Desejava-a. E queria novamen-te cambiar seus atos por seus pensamentos.

    Chorou.A msica havia acabado, e nada que lhe

    dissessem poderia ser pior.

    Tentou cantarolar e fazer o acompanha-mento contra as paredes de madeira da cabana,

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    mas no era a mesma coisa. Sua mulher e ovizinho solitrio haviam desempenhado umpapel extraordinrio, eram intrnsecos estilstica que alara vo sobre Eugnio, co-autores da pea, dignos de qualquer prmioartstico que o homem possa conceber.

    Passou alguns minutos sentado no cho,introspecto, desolado com a saudade que sabia,

    no poderia nunca mais ser satisfeita, damsica, das vozes alteradas e do tom predomi-nantemente vermelho voando em vriasdirees e formas pelo ar.

    Ouviu um motor de carro.Como pudera se esquecer: seu filho havia

    ficado de visit-los nesta data comemorativaqualquer e traria consigo sua noiva.Amava-os. Desejava-os. Como realmente

    no conseguiria expressar e queria agora cam-biar seus atos por seus pensamentos.

    Levantou-se, empunhou o machado e saiuandando ritmadamente atravs do assoalho demadeira cujos vincos prenunciavam o ritmo noarrastar da cabea do machado enquantorespirava preparando o tom e abria um sorrisode sincera felicidade, pois sabia que ali, do lado

    de fora da cabana, dentro do carro, esperandopor ele, havia mais msica.

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    ENSAIO CRTICO

    Voc sabe, a gente precisa mesmo de umdestino. No digo um destino como se diz imu-tvel, mas como se diz direo, rumo mesmo,sabe como ? Se eu no tivesse assumido issopra minha vida ou seria outra coisa ou ento

    nem estaria aqui, vivo. No, no; no querodizer que teria me matado ou morrido de fato,s que no estaria vivo de verdade, esse tipo decoisa que seria estar vivo de verdade, com umacoisa qualquer na cabea, pra uns so filhos,pra outros selos ou ainda animais de estimao,

    essa gente que adota trinta e vive sozinho somente em relao a pessoas, porque os ani-mais de fato so uma tima companhia, eusempre achei a maioria deles muito mais in-teressante, muito mais instigante at que muitagente, mas no isso que quero dizer, no vejomal em se doar, a sua vida, pra outrem, s queeu no concordo com essa aleatoriedade totalna abertura de cada manh, nem um pensa-mento, uma vontade que tenha nascido nomnimo no dia anterior, o que no meu caso a

    literatura. , pode parecer estranho algumcomo eu dizendo isso, na verdade no de todo

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    estranho apenas por mim, ou mesmo minima-mente estranho para mim, mas que no meucaso o vnculo com coisas que dizem que noexistem, assim, dizem: sujeito indeterminado,como uma fofoca, rdio-peo, eu ouo por aumas coisas dessas sabe? Eu sei que isso tam-bm no ajuda muito a precisar o que querodizer, mas acho que posso chamar de literatura,

    no exatamente assim, sentar a bunda numacadeira abraado com um livro qualquer atque a mesma bunda sue, criando aquela pizzano cofrinho porque acho muito engraado aimagem que fazem da leitura como algo tofacilmente agradvel, digo, fisicamente, ana-

    tomicamente, pensando na ergonomia de se lerum livro, seja impresso ou num desses aparelhosque leem ebooks, a coisa de verdade maisembaixo, um desconforto em qualquer posioem que se esteja exceto quando conseguimosficar mesmo do lado de dentro do livro, da,nesse caso, a dor nas costas, ou nos braos ou nopescoo s vem depois que voltamos do sonho., acho que isso chega mais perto, sonho. Lite-ratura algo muito amplo, no que sonho no oseja, mas outro amplo, traz implicaes imagi-

    nativas de quem sabe louvar um cnone qual-quer, fazer metforas de admirao e pagao-

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    de-pau extremamente vulgares entre amigoscomo eu daria para o Fernando Pessoa, foda-sea Ofelinha, no acredito nesse tipo de rev-rncia, acredito no sonho ou melhor ainda, nainveno. A inveno foi o que assumi praminha vida e no me desligo dessa coisa de artede modo algum apesar de dizer que no exa-tamente a literatura a minha vida, tampouco o

    a pintura, o cinema, a msica, o teatro, adana, a arquitetura, mais alguma coisa queentrelaa isso tudo, mais um fio que quase nose pega, uma dedicao prpria imaginaohumana, as vanguardas at que so respeit-veis, no esteticamente, mas porque pelo menos

    se preocupavam em chutar o pau da barraca,chut-los consecutivamente enquanto unsalmofadinhas ficavam praguejando e juntandoas amarras da cabana que queriam erigir praproteg-los de intempries, pra evitar que oprprio tempo passasse e agisse sobre as suasvidas quando fossem no mais que registros,esses canalhinhas afetados, a coisa tem quecontinuar girando, sabe? Sem a ousadia ohomem j teria sido extinto em suicdios co-letivos e sempre tardios, e o que assumi pra mim

    foi simplesmente a minha parte. O meu tijolona parede porque brigo voc estar aqui, to

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    linda, com essa intensidade toda no rosto, meolhando como fosse me engolir, mas eu sei queno vai, sei que se pudesse trocaria essemomento de exploso de vida por outromomento qualquer, qualquer coisa que nofosse estranha, que no fosse nica, que nofosse esse momento mpar, maravilha fatal denossas vidas. Talvez eu te perdoe por isso, com

    certeza vou perdoar, voc fez a sua parte, vai tertido parte em minha contribuio por umahumanidade menos baixa, menos menormesmo, sabe o que quero dizer? Menor nosentido que se usa em literatura. Claro quevoc sabe, impossvel que estando no, deixa

    eu ver, quinto, sexto semestre de Letras, no iriasaber do que estou falando e talvez at por isso que esteja desse jeito, nervosa, consigo sentirseu cheiro de medo e um perfume raro, mesmoem fices, pelo menos esse, assim, d quase prasentir o cheiro da urina, do se mijar que aindanem aconteceu. A realidade muito maispotente que a fico, mas em certo ponto indivisvel a fronteira entre essas duas, porexemplo, agora e diga-me voc o que achadisso. No, no diga nada, no vamos nos

    estender em apresentaes, vamos comearlogo, mas no se preocupe, destino mesmo a

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    fora de vontade, e eu te prometo, o meudestino nesse exato momento aquele intentouniversal, a luta contra o esquecimento, contraa areia do tempo que soterra tudo menos umacoisa e outra que se mantm apenas com umaponta acima da superfcie, um iceberg dodeserto, a luta que mesmo corporal contra oefmero, e eu te prometo, me ajoelho se voc

    quiser, me creia e tenha calma: no seremosbreves.

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    O TETO E O POO

    Abriu os olhos e no soube se ficara cegoou se estava em um lugar absolutamente escu-ro. Estava cado de bruos, o rosto virado para olado esquerdo, enfiado at o nariz em uma lamagrossa e mal cheirosa. Ergueu-se lentamente,

    como no acreditasse que j despertara. Tateouo cho em volta de si e era tudo igual, a mesmalama de onde em poucos lugares se erigia umailhota de solo mido, um tipo de terra que lheera estranho. No conseguia pensar direito, maslhe parecia mesmo uma mistura com urina,

    fezes e alguma coisa que cheirava carnia, umasco que s no o tomou de todo pela letargiaque provocava a dor na cabea. Passou a mopela nuca e sentiu um inchao com um corte. Oque diabos estava acontecendo?

    Com a dificuldade da viso que lhe falta-va ergueu-se e tentou caminhar, ao que logoparou ao dar com a cara na terra crua. Aindasem uma noo espacial organizada, decidiuacompanhar essa parede a pescar informaesde onde exatamente se encontrava. Era de fato

    um solo estranho, um tipo de argila, s quemenos compactada, como se fosse possvel se

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    enfiar terra adentro. Percebeu que o muro faziauma curva, e ainda sem ter certeza, pensou quepoderia estar em uma sala circular.

    Arriscando-se a medir o dimetro, encos-tou as costas na parede e com cuidado deu umpasso firme a frente. Estendeu a mo, mas noencontrou nada. A sensao de estar em p empleno escuro e sem qualquer apoio provocou-

    lhe vertigem ao que retornou o passo que haviadado e escorou-se novamente. Sentiu a gua doestranho barro lhe passar atravs da malha desua camiseta e tocar a pele.

    No gelado que passou s suas costas, o pei-to se inflou de sbito e por uns segundos, agora

    sim conseguindo assimilar melhor o que sepassava ou crendo-o , foi como se o ar quepuxara no tivesse passado pelos pulmesseno inflado inutilmente a caixa torcica.Pensou que fosse sufocar, mas domou o nimo eimps de uma vez dois passos largos em frente.No segundo passo a ponta de seu p tocoualguma coisa que ao estender a mo descobriuser outra parede.

    Decidiu ento medir o espao e, com asmos, abriu um pequeno buraco na terra, pela

    altura dos olhos e, apoiando-se com as costascomeou, rente a parede, a contorn-la. Foi

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    dando passos sem cruzar os ps e com as moscontinuamente tateando ao nvel da cintura.No havia nada em que pudesse tropear, nadaalm da terra mida e da lama consistente. Nodcimo segundo passo pode sentir com a pontados dedos o sulco que havia deixado com asunhas. Novamente o ar faltou-lhe e dessa vezno pode controlar-se, tombou no cho imundo

    espirrando o lquido nojento para os lados.No cho, o rosto virado para cima, tentavaao mesmo tempo ligar racionalmente os lti-mos acontecimentos que o teriam levado at alie ligar os pulmes ao ar que aspirava quaseinutilmente. Aps um tempo a respirao

    normalizou. Ergueu-se para minimizar o conta-to com a gua podre e se apoiou com as costas.Como tinha chegado at ali? Quem fariaconsigo uma coisa dessas, jog-lo no fundo dealgo que parecia um poo. No fazia ideia dadistncia que o podia estar separando dasuperfcie, mas j no duvidava tratar-se de umpoo, um poo sem gua, somente essa misturaftida da que no conseguiria precisar oscomponentes.

    Encontrou uma pequena parte do recinto

    na qual no havia poas e agachou-se, acoco-rado, como se nessa posio pensasse melhor.

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    Mais que medo propriamente o que o passavaera estranheza, o fantstico da situao em quese encontrava. Buscou em sua cabea as mem-rias mais prximas, as ltimas que poderiamdenunciar alguma coisa, mas s o que lembra-va, s o que vinha-lhe a cabea eram imagensdesfocadas de um bar com seus amigos. Isso. Eraexatamente isso a ltima coisa que fizera antes

    de vir parar ali. Lembra embriagar-se conver-sando com a sua galera como fazia regular-mente, no bar que freqentava regularmente,mas no se lembrava de voltar pra casa, dequalquer cena fora do bar.

    Enquanto ainda estava perdido em sua

    abstrao uma luz acendeu-se logo acima eiluminou, ainda que parcamente, o local ondeestava. Virou-se para cima, assustado e espe-ranoso ao ver a lmpada acesa fixada numbocal improvisado com arames em um teto deestreitas e precrias tbuas de madeira. Eracomo o teto de uma residncia pobre e estava acerca de quatro metros de altura, clareando auniforme e mida parede que no ofereciachances escalada e que agora desvelara-sede uma terra avermelhada. No era possvel

    enxergar detalhes pela mnima potncia dalmpada, quase como se esta flutuasse, presa

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    em seu teto pobre, sobre o nada. Mas a escassaluz deixava ao menos entrever as paredes. Erade fato como o fundo de um poo, circular ecom dimetro algo prximo de trs metros.

    Apesar de a luz desesper-lo por mostrar aquase impossibilidade da escalada e o localfechado, como recobrasse a capacidade daviso, alguma calma sobreveio. Tambm por

    que assim, luz, tudo lhe parecia um poucomais palpvel: algum o havia seqestradoquando estava ainda bbado, quem sabe nocaminho de volta pra casa, deixando-o desa-cordado com uma pancada na cabea e jo-gando-o em um buraco no cho, no necessa-

    riamente um poo, que seria mais profundo,mas caracteristicamente um cativeiro. O quetinha que pensar agora era se quem lhe fez issoiria aparecer pra conversar consigo ou nem quefosse para espanc-lo, tentar quem sabe extor-qui-lo, o que certamente no teria proveito,pois no trazia nada alm de suas roupas e acarteira que ainda estava em seu bolso traseiro,agora estava encharcada com aquela guaindistinta. Aquela lama.

    A lmpada era incandescente e se sua luz

    amarela no iluminava com clareza as paredes,muito menos fazia ao solo. Ainda no era pos-

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    svel ver ao certo a cor do lquido que o envol-via, nica companhia, na priso de subsolo.

    Ainda que adivinhando que no conse-guiria, tentou empreender uma subida, cravan-do as unhas nervosamente contra a terra e seimpulsionando para cima. De fato conseguiuelevar-se do cho, ao passo que conseguiuenfiar, primeiro os dedos, depois as mos quase

    inteiras, havia firmeza o suficiente para que seprojetasse, ao peso de seu corpo, para cima,apesar da quantidade de terra que sentiaentrar por sob as unhas quase como a arranca-las de seus dedos.

    As duas mo enterradas e as pontas dos ps

    igualmente, tentou lanar-se mais um poucopara cima e quando fixou o p em uma novaaltura e foi levar a mo a cima, o escuro com-pleto voltou. Inesperadamente a luz se apagarae como o preto absoluto se chocasse novamentecontra os olhos, a vertigem o tomou. Ele caiubatendo as costas e a cabea contra o cho, oque lhe redeu mais um corte no crnio e maisfalta de ar.

    Havia estado perto do teto de madeira queno devia ser difcil de quebrar. O que devia

    fazer era tentar novamente. Em algummomento, no tinha dvida, conseguiria. O teto

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    e a luz lhe deram um novo nimo bem como adescoberta de possibilidade de escalada. Osangue comeou a bombear mais forte e sentiaem seus ouvidos as artrias pulsando com aadrenalina que devia ser suficiente para tir-lodali. Levantou-se, ainda que dolorido daqueda, cabea ainda sangrando, e ps-senovamente a subir. Tentou utilizar os buracos

    que havia deixado da primeira tentativa, masestes cederam com seu peso, o que o fez abrirnovo caminho um pouco ao lado do anterior.Novamente conseguiu elevar-se do cho, e aoprojetar a mo pra cima deu com dedos namadeira do teto que imediatamente apareceu-

    lhe com a luz da lmpada altura de seus olhos.O inesperado o fez cair novamente e ao encon-trar o cho a luz se apagou.

    Pareceu-lhe que a lmpada estava maisbaixa que anteriormente. Dessa vez a cerca dedois metros e meio de altura, ao alcance de umbom pulo. Certamente na primeira vez em quetentara subir havia ficado impressionado e cal-culara errado a real altura.

    Posicionou-se ao centro do ambiente ecomeou a pular estendendo as mos para

    cima, deixando-as cair quando baixava aocho para tomar impulso e ento levantava-as

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    novamente durante o salto. No quinto ou sexto,algo mais estranho aconteceu. Abaixou-separa tomar o impulso e, antes sequer de sair docho, sentiu um objeto firme altura que seriados seus ombros bloquear-lhe o pulo com umapancada na cabea que o ps ao cho.

    O terceiro ferimento doeu-lhe mais que osanteriores, uma pancada com um objeto duro.

    O local da batida inchou logo em seguida, maisainda depois de ele sentar-se, vagarosamente,e de passar a mos no ar em volta, agitadamen-te, a verificar se tinha companhia.

    No fazia sentido. No havia porta ouabertura sequer no local, apenas o teto de

    madeira. O teto. De fato a sensao foi a de queteria sido o teto que lhe batera, mas no seriapossvel. Ainda agachado estendeu uma dasmos para cima enquanto se equilibrava nocho com a outra e procurou checar se eramesmo o teto que estava ali, mas no havianada.

    Ergueu-se e estendeu para cima os braosno completo escuro e pulou novamente. Nada.Havia de ser escalando que ele fugiria dali.Ps-se novamente as mos e os ps fincados na

    parede e forou-se para cima, uma vez, outravez, e outra vez, e outra vez. Tinha a impresso

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    que o teto estava sempre logo adiante, mas quefugia-lhe e, de repente, a luz acendeu-se nova-mente quase ao alcance das mos, olhou parabaixo e no conseguiu vislumbrar o cho ondeesperava. Deveria ter subido, no mximo, trsmetros, o que consolidava a primeira posiodo teto quando se mostrou pela primeira vez,mas o cho aps olhar atenciosamente para

    baixo pareceu-lhe estar a quase cinco, seismetros de distncia. O horror da possvel quedadaquela altura quase o imobilizou, mas respi-rou fundo e dessa vez o ar no lhe faltou: preci-sava de apenas mais uma braada para chegarao teto.

    Alou a mo ao ar e, nesse exato momento,a luz se apagou. Grudou-se parede como aonico destroo de um naufrgio em mar abertoe ali ficou, parado um pouco, esperando, quemsabe, que a luz novamente fosse ligada. Masquem a estava ligando e desligando? Certa-mente estava se divertindo com o seu sofrimen-to, mas pensar isso naquele momento, ele sabia,no iria ajudar em nada. Tinha que manter aconstncia de propsito e chegar at o topopara ento, quem sabe, sair daquele lugar de

    pesadelo.Elevou-se uma vez e mais outra. E elevou-

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    se ainda outra novamente. Realmente j ultra-passara a altura anterior do teto. No havia oque fazer seno continuar subindo. E nada dechegar at aquelas madeiras estreitas com almpada improvisada ao centro. Decidiu queseria feito com calma, subiria devagar pra noperder de tudo o controle de sua conscinciaque j lhe comeava a insinuar hipteses fabu-

    losas e aterradoras.Estava subindo indefinidamente no escuroagarrado parede glida quando, em umpiscar de luz, um nico ligar e desligar de umaluz intensa, deu de cara, logo acima, com umteto de terra, curvo e vermelho no vermelho

    como barro, vermelho vivo. A viso, o modocomo brotou do escuro, foi como se a lmpadaestivesse, dessa vez, de baixo de si, no cho emque acordara e do que j distava mais que oitometros. Com essa impresso no houve jeito eseu p que estava em trnsito justamente nomomento do flash, fraquejou e ele despencou,sendo alado no escuro indistinguvel.

    No entanto a sua queda no foi dessescerca de oito metros que j havia escaladoseno de pouco mais do que sua prpria altura.

    Estava novamente no cho, ainda sem entendercomo o cho subira ou como perdera to

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    completamente a noo de tempo e espaopara se deixar enganar desse jeito.

    A lmpada, ento, apareceu em sua formamais surreal at o momento: a cerca de dezmetros de altura.

    Ele preferiu no perguntar-se como erapossvel tudo isso que lhe estava acontecendo,o cho e o teto estavam nitidamente pregando-

    lhe uma pea, a prpria terra que um dia jquem sabe no distante iria o devorar pareciafazer com ele algo como um bochecho dentrode sua boca ftida. No h o que fazer, no h,exceto continuar a escalar, pensou e em segui-da, sob a distante e fraca luz incandescente

    comeou a empreender novamente a subida.Dessa vez a luz ficava l, idiotamenteolhando para ele enquanto subia algo comotrinta centmetros por vez agarrado, quasedentro da parede. Em alguns pontos a terra erato macia que tinha que enfiar at o antebrao,apoiando-se com o cotovelo, as unhas haviamse perdido terra adentro. J vislumbrava a luz eo teto e dessa vez eles no lhe escapariam,sentia.

    Conseguiu chegar, j podia encostar a mo

    na madeira e comeou a soc-la. Aps se dese-quilibrar algumas vezes e quase cair, conseguiu

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    partir uma das tbuas e decidiu que se projeta-ria pelo vo, de forma a subir nesse forro, quesequer sabia se iria agentar seu peso. No ha-via claridade passando atravs dele. Aumen-tou o vo no forro com mais alguns socos eprojetou-se com dificuldade, mas com sucesso,por dentro do vo, tendo em um momentoficado dependurado pelas duas mos na tbua

    vizinha que havia quebrado, sobre a altura deescurido de que se livrara.Ao chegar parte de cima do teto, a viso

    que se apresentou a ele o trouxe pnico. Acimado forro o poo era exatamente o mesmo, asparedes que se deixavam adivinhar vagamente

    pela luz da lmpada que recm ultrapassara eque se infiltrava pelo vo por que havia chegoat ali. Nisso, a luz que estava abaixo de si apa-gou, fazendo com que ele sentasse encostado,completamente exausto contra a parede nova-mente na completa escurido. Sentiu latejar aausncia das unhas e de pelo menos dois dedosque quebrara com os socos. A dor aumentou atum ponto em que se tornou inexplicavelmenteinsuportvel. Com um grito horrendo de exte-riorizao do incompreensvel, desmaiou.

    Ao acordar, ainda no escuro, com espantosentiu as mos como novas, as unhas nos luga-

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    res, os dedos intactos, porm nada foi mais forte,mais definitivo do que a gua de um barroimundo que comeou a infiltrar-se pela cala,como se estivesse sentado novamente no fundodo poo, naquela terra imunda ao invs desobre tbuas de madeira. Isso teria por certo lhetirado completamente a sanidade se antes noa tivesse roubado o olhar para cima e vislum-

    brar, na quase completa escurido, aqueleponto de luz a uma distncia imensurvel, dir-se-ia estrela se no fossem minimamentevisveis os traos das tbuas que sustentavamuma lmpada incandescente improvisada numbocal de arame l em cima.

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    UM PONTO ZERO

    J so cento e vinte e sete dias longe decasa. como se o simples dormir uma noite aolar rejuvenescesse os dias decorridos longe de-le, mas no isso que sinto agora. O que sintoso os cento e vinte e sete dias a mais que tenho

    desde que sa de casa. O banco do motoristadeve ser minha morada, mesa, cama, o retrovi-sor a memria, focada no trecho que recentedeixei para trs; o pra-brisa, minha janela,minha sacada, vista para o mundo: em certosdias impossvel divisar os insetos esmagados,

    os seus restos de restos das flores e folhas cadasde alguma sombra de descanso ao longo daestrada torna-se impossvel s vezes distin-guir mesmo seus contornos em oposio a tudoque se abre e passa pelo carro a pelo menoscem quilmetros por hora do outro lado dovidro. Essa coisa do movimento relativo mes-mo um fato, mesmo acreditvel muito maisque tantas outras coisas fsicas, a velocidade dapassagem, o ficar pra trs, o seguir em frente,mesmo a mais discreta ultrapassagem mera

    questo de ponto de vista. Ficou pra trs onegcio que fechei, nuns dias que ficaram pra

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    trs, l depois de nove estados de asfalto ir-regular nos melhores dias e trancos, beiras depenhascos, um corpo delicado, distrado arre-messado contra o pra-choque, o choque e suaida embora pelo retrovisor nos piores deles.Consola-me o saber estar to certo, estar torente a esse pit stop, essa pausa na estrada queno cessa que o dar uma passada l em casa.

    Dito assim, l em casa, parece sempre ao lado,sempre ao alcance de um estender de mo, deuma espreguiada, mesma distncia que ocmbio, rpida alterao de pressa, impressode uma pescada entre o deitar-se e o levantar e o banco to pegado s minhas costas quem o

    faz, deita e levanta, apenas ele. Dar uma pas-sada l em casa. Creio mais um pouco e estoude volta. Dar uma passada, to estranho: Casa.Referir-me a onde ela fica como l em casa uma opo: escolho dizer assim, deixar gravadoassim mesmo sabendo que seria muito mais aminha casa esse meu carro, casco de tartarugaou mesmo exoesqueleto de cigarra seria acerto ponto acertado dizer casa desse carro.Mas prefiro no. Prefiro saber meus olhos inde-pendentes das lentes, da armao dos culos

    ainda que no me caiba o livrar-se deles miopia. Assumo que a estrada converge, todas

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    as rotas escarpadas ou planaltos por que passo,mesmo as vias litorneas, tudo radial, conver-ge sempre em algum momento pro lugar quepoderia ser tambm ambulante, mas que pre-firo fixar, o centro, l naquela casa onde elafica. Assim eu sei que tanto l na ponta de tudoo que ficou pra trs como logo a frente estsempre o seu sorriso, ainda que sem dentes a

    mostra, s uma repuxada na bochecha esquer-da, que quase se confunde com a poeira ou comas gotas escorrendo pelo vidro da janela; a luzcontra a silhueta dos cabelos comportados queat na sombra se adivinham negros, se adivinhaa pele marcada de sol e at as rugas que se for-

    mam ao redor dos olhos quando o vidro da ja-nela denuncia, quando pelas frestas verticaisentre as madeiras passa o ronco do motor 1.0que se achega ansioso frente do porto. Maisalgumas horas, s algumas. Quem sabe menos.Difcil medir o tempo enquanto tudo estigual. Quantos metros se passaram desde queadentrei a plantao de eucaliptos? Ela diz que absurdo isso que fazem, de cobrir umas dis-tncias gigantescas com uma mesma coisaindivisvel, incontrastvel o percurso inteiro

    sem ouvir suas queixas, sem beijar seu queixo,suas bochechas que se curvam to singelas no

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    sorriso sempre tmido. Quando passo beira-mar como ver seus dentes. Sem ela no hrelgio, hodmetro, velocmetro, s umas coisas o trabalho, as paisagens plidas, s o tempoem seu devir inspido. Ainda bem que agora,passados esses cento e vinte e sete dias quepoderiam ser metade de um ou vinte anos,quase posso vislumbrar o muro que era branco

    e se tomou de terra, arremessada pelo ventomais banal e posta como pelos de uma barbarala, uma cara onde se v a sua sombra, talvezcomo olhar-me no retrovisor toda manh quese sucede a qualquer noite que no tenha sidol em casa, o que no fao. Eu sei, eu sei, ela me

    disse que devia sempre faz-la, a barba, bemcomo disse que o muro precisava de uma lim-peza. O muro eu vou limpar quando chegar e abarba, eu juro, fao assim que por os ps por l.Lavar o carro, com certeza esfregar o vidro attirar as noventa e trs espcies de insetos es-magados que o limpador j no vinga comba-ter. Depois de muitos dias, quando vo se empi-lhando os cadveres assim, nas horas de sonochego a confundi-los com aves, morcegos,animais atravessando a pista, nuvens estranhs-

    simas de encontro a um cu bizarro, manchadocomo a vista quando se anuncia o choro, refra-

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    trio e informe como uma lgrima rasa. Meurosto, quando o vejo acidentalmente posto emalgum metal, no azulejo branco dos banheirosde postos de gasolina, dele salta o negro a to-mar conta das maxilas, dos lbios, parece quevai devorar os olhos e o nariz, fechar suas en-tradas a fora de um entupimento capilar, equase os vejo brotar, os pelos, das retinas vidra-

    das em si mesmas, desacreditadas de quaisquersemelhanas entre o que esto vendo e o queso, entre esse fantasma, vulto solitrio, furn-culo da estrada imensa e aquilo que refletem asdela quando os corpos horizontalmente parale-los, se encontrando apenas na largura toda de

    peles e cheiros, protegidos contra o brilho dasestrelas e dos postes l no quarto, l em casa.Paro o carro. O muro sujo, o porto baixo e acasa de madeira por detrs me do um desenhoteu. (Silncio. Ele fica no carro observando, umriso um tanto retardado pelo rosto. Vira-se apegar alguma coisa no banco de trs, uma bol-sa. Abre-a, donde tira um aparelho de barba.Ao lado do carro, passando a calada, no muroh uma torneira beira da qual se ajoelha ecom as mos em concha, corta o fluxo dgua

    que sai atirando-a ao rosto, at que a barbatoda tenha absorvido bem o lquido que facili-

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    tar o corte. Com o rosto molhado e um poucoda camisa tambm, o aparelho de barbear em-punhado, se aprochega ao carro, utiliza o vidroda janela do motorista para comear a desfazera sombra que o toma no sem antes um estan-que sobressalto talvez ao encontrar-se no espe-lho. Terminada a barba, abre a porta, ergue seubanco, sua cama e da parte traseira retira uma

    toalha que utiliza calmamente, como se fosse aparte mais importante de todo o processo.)voc no deve esfregar a toalha, e sim apert-la contra o rosto, assim no ficam esses pelinhosdela presos na sua cara, ela dizia to carinho-samente, digo, desse jeito que no desfeito em

    graas, mas com pudor e dignidade. Ah, deixe-a ver-me assim, com uns dez anos a menos, comodizia, roar a pele recm-barbeada pelos pelosralos das costas, dos antebraos, das coxas. Faltaagora dar um jeito nesse muro, e jogar umagua no carro, limpar o pra-brisa e depoisapenas quedar-me mole a matar a saudade, aabastecer-me desse todo necessrio a maisno-sei-quantos dias de ausncia que se segui-ro. No, no quero nem pensar nisso ainda.Essa noite nossa. Quantas noites nossas nesses

    anos? Que porcentagem? No. No caberiadesse modo o cheiro do caf sendo a primeira

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    sensao do dia, seguida do calor de tua pre-sena, na cozinha, mas que da cama j se sente.Por que no mais desses dias em que mesmo osmnimos detalhes eram, apesar de sempre osmesmos, sempre novos? Por que no mais destesinstantes de big bang e menos desses uniformes,inequvocos, sem surpresas? (E a rua inteiracontinuava em silncio, grilos e segundos e

    silncio. A noite era desfeita nas proximidadesda casa por um par de postes quase que sim-tricos casa, de forma que ela era o ponto maisescuro entre ambos. O carro estacionado, osvizinhos no so imediatos, h terrenos baldiosmurados em ambos os lados da casa. A casa em

    frente no h. Eis a moldura ao homem de meiaidade, roupa um tanto puda, que encaixava achave no cadeado do porto e entrava, desapa-recendo no escuro pela lateral da gramada dacasa entre o muro e a parede de madeira onde o mato e as ervas daninhas mais que seinsinuavam. Em seguida v-se o mesmo homemressurgir pelo exato ponto em que desapare-cera portando uma vassoura, um balde e umamangueira. Passa ento, sem pressa, novamentepela varanda at o porto. Atravessa-o de

    volta ao carro onde pega uma caixa de saboem p. Despeja um pouco no balde e fixa a

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    mangueira torneira prxima do muro. Encheo balde, mexe-o um pouco com a vassoura ecomea a esfregar o muro. A espuma por pri-meiro mal aparece, apenas uma gosma ver-melha da terra incrustada ali, mas aps al-gumas enrgicas esfregadas desabrocha comoalgodo doce, cor-de-rosa. Acumula-se aos psdo homem que no evita que seus sapatos

    sejam molhados com o ensopado de terra esabo que desce. Toma a mangueira, e enx-gua-o muito calmamente. Aps repetido maisum ciclo do servio a parede de tijolos contra arua uma coisa nova, como uma lauda lisa apsborrado todo e qualquer resto de carvo que se

    assentava. Acorre ao carro com o mesmo proce-dimento. Primeiro gua, depois sabo, depoisgua novamente. Est molhado. Retira do ban-co traseiro do carro o que parece uma pequenatrouxa de roupas, uma muda, quem sabe, e umatoalha, na outra mo empunha a mangueira e acaixa de sabo sob o brao. Cruza novamente oporto e prostrando-se perto ao muro, dentrodo quintal, despe-se e se lava com a mangueirae punhados de sabo em p. Ningum na noiteacompanha o homem que se lava a cu aberto

    to improvisadamente, tampouco quando este,j de roupas trocadas retorna ao carro e ainda

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    se olha no espelho a arrumar o cabelo com asmos, antes de tomar a mangueira, o sabo, asroupas sujas, e coloc-los, cuidadoso, no porta-malas. Senta-se ao volante e inclina o bancono de inteiro, mas o suficiente para que aindaconsiga enxergar a casa, pelo menos a janelaque se volta para a rua. E a fita.) Surpresas, mo-mentos como esse so eternos o que dizem,

    mas mentira. S sua memria, ainda que sen-svel, fica de tudo o que nos trespassa. No. Oque passa e o que fica questo de ponto devista. Ela fica. A morte s o esgotamento dassurpresas. Tenho-a por inteiro e no preciso mesurpreender com ela, sei que essa casa, ningum

    desabita, ela fica, eu fico com ela. (Quando ospassarinhos comeam a cantar anunciando osol que se aproxima, ningum v um carro per-correr a rua emoldurada de grilos e silncio.)Primeiro dia longe de casa. Sinto-me recarre-gado da presena dela, a visita foi um tempoque no passou, a visita um tempo em si, umacarga, energia que se instala, s a estrada quevai, e meu carro vai com ela, vou trabalhandopor que inevitvel nossa vida, mas s atsobrar um atalho, at ficar na pista, at a prxi-

    ma visita, at l eu sei que ela fica me esperan-do, um riso tmido da silhueta, o lado esquerdo

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    erguido, ainda que no mostre os dentes pordetrs dos vidros das janelas l de casa. (Namanh uma curiosidade tmida de coisa es-tranha quase rotineira toma a parca vizinhan-a, os poucos passantes do lugar: um muro toto branco abraa aquela casa abandonada.)

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    ORNAR OS IDOS

    Ele trabalhava ali, to perto da passagemh tanto tempo que era como se estivesse emmeio do caminho. Ornar os idos, era como dizia.Vaidade projetada? No, era s olhar de maislonge, um olhar mais amplo denunciava o pri-

    vilegio de maquiar defuntos. Ningum reclamanessa cama, a penltima daqui.Reavia os traos mais vivos, uma leve

    colorao sobre os lbios. No era apenasgostar do que fazia, era estar bem feito s vi-vas, vivos, rfos, pais que perderam os filhos

    para estes no h uma palavra sozinha queremeta; os homens no se do o trabalho decriar o que no preveem. Prever o inverso, pormais corriqueiro que tenha se tornado no danatureza do homem.

    Naquele dia o expediente foi cheio, e omais inusitado, de mulheres. Aps mais de duasdcadas, se fosse contabilizar, teria contadocerca de trs vezes mais homens, nas mais va-riadas idades, enquanto a maioria das mulheresque lhe vinham para ornar eram senhorinhas.

    Muitas delas j vivas antes de acontecer eera assim que ele se referia morte, acon-

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    tecer. Tinha que todas as outras coisas a quechamamos acontecimentos no so mais queuma falsa impresso de fatos, s o que acontecerealmente a morte, acontece para a vida, orestante so domins tombando e se batendoat que linha se interrompa, sempre abrupta.

    Um dia cheio de mulheres. Nunca seenvolvera realmente com uma. No era virgem

    tampouco s que de todas as relaes que tive-ra a mais longa fora de trs dias, e isso, essa faltade ligao e o desligamento em si nunca decor-riam de vontade sua seno de qualquer coisainexplicvel que o levava a crer que simples-mente, talvez, as mulheres no lhe tivessem

    apreo, que ele no fosse passvel de qualquercoisa a mais do que desejo ou simpatia.Ento adorava orn-las, e o fazia como a

    despejar a sua potncia e vontade de proteo,cuidado e carinho. Tinha uma fantasia, ummodo de enxergar que esse lhes era o ltimocuidado, o ltimo retoque de todas elas, o quelhe confortava a certo ponto de seu insistenteinsucesso amoroso.

    Eram j dezoito horas. J tinha cuidado detrs senhoras em idade avanada, um exe-

    cutivo com cara de amargura (o corao, sem-pre o corao, cortando vida s vsperas de

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    sbado) e trs mulheres de meia idade umaprofessora com as razes do cabelo brancas emuitas rugas, uma cozinheira, mulata roliaque s foi empalidecer depois de um tempo eoutra, de quem no obteve informao precisa,com traos de tristeza marcados pelo tempo eum risco de corda tranada no pescoo. Essamarca de corda lhe rendeu trabalho.

    Estava j a ponto de pegar suas coisas e irpara casa quando mais uma mulher, deman-dando seus cuidados, chegou a sua sala. Re-conheceu-a e nisso tomou um susto. No eranecessariamente uma conhecida, mas umamulher com uma idade entre vinte e cinco e

    trinta anos, que lhe passava ao largo muitasvezes por semana numa das ruas do caminhoat o trabalho. Nunca soube o nome dela, tam-pouco ela o dele e agora lhe cabia render a elao ltimo cuidado.

    Sua beleza tinha algo de assustador jquando em vida, que intimidava devido aaparente perfeio assimtrica, a mais difcilde alcanar. Se no tinha sucesso com asmulheres em geral, que diria com uma tobonita como era o seu caso. No entanto a

    intimidao que gerava sua beleza pareciapotencializada agora, um e outro trao suavi-

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    zaram-se ainda mais, deixando o semblanteharmnico a um ponto que a morte lhe parecialonge. Para ter certeza de que dormia, apenas,s lhe faltava mesmo colocar um arfar no peito.

    inegvel que o abateu certo sentimentode culpa, pois a atrao que tinha por ela emtodas as vezes em que se cruzavam, aliada impossibilidade de t-la, cheir-la, beij-la,

    proteg-la, provocavam em si um sentimentoque apenas se insinuava e que no permitiaque fosse transposto a palavras. Era algo como avontade de possu-la do nico jeito possvel, donico jeito que iria poder tomar conta dela, avontade de que ela estivesse entre as outras

    que ornava. Um sentimento que no confessavaa si mesmo por saber que era uma pssima coisaa se pensar, mas o fato que esta mulher nofora a nica que j despertara nele essa vonta-de, apesar de ser a primeira vez que seu pensa-mento, ainda que no admitido em sua totali-dade, se materializava, numa realizao pro-fundamente inesperada de um desejo ina-dmitido, quase a alegria de um culpado julga-do inocente.

    J estava no caixo, um singelo caixo,

    com alguns parcos arranjos de flores artificiaisassentados sobre si dos ps at a altura do peito

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    ficava horrorizado com as flores artificiais,nada que no morra pode ser realmente belo ,faltando cuidar apenas o rosto, os ombros, opescoo e os cabelos.

    Com uma calma digna da serenidade deum ritual, foi at a mesa onde ficavam expostosseus artifcios, dispostos a serem utilizados comos idos, e tomou uma escova de cabelo. Com

    uma almofada sob o pescoo, inclinou e escoroua cabea da moa em uma posio que deixas-se livres as madeixas. Passou uma vez e maisoutra e mais outra a escova. Incrvel como seucabelo era lustroso (e sem excesso de oleosida-de) o que fazia com que a escova deixasse um

    rastro de brilho a cada passada. Por um mo-mento, devido catarse que alcanara, pensouter visto seu prprio reflexo sorrindo nas ondu-laes do cabelo castanho quase preto, apesarde saber que isso no seria possvel, principal-mente porque no sorria neste momento, faltade elegncia e considerao para com o seuobjeto de cuidado.

    Agora arranjava o cabelo, de compri-mento mdio e que nas pontas formava peque-nos cachos queimados de sol, por sobre os

    ombros, uma moldura de ondas chocolateaqueles ombros delicados, s clavculas que

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    despontavam charmosas por detrs das finasalas do vestido que usava. Este era de um azulclaro, quase beb, com um decote comportadoo que dava uma aparncia anglica moaque repousava perpetuamente. O pescoo erade cisne, sem ser longo demais, e enquantoajeitava os cabelos pode notar os pequenosredemoinhos de pelugem que nasciam logo ali

    onde a comea a nuca. Nesse momento, especi-ficamente quando passou as mos em conchapela parte de trs da cabea, unindo os cabelospara rearranj-los sobre as espduas, teve aimpresso de ver um arrepio correndo a pele damoa, alguns poros eriando os pelos da parte

    traseira do pescoo, mas sabia que devia serimpresso sua. s vezes at podiam ser fios quepuxava juntamente aos outros sem que perce-besse e que lhe davam essa impresso.

    Terminou o arranjo do cabelo e preparou op para dar cor pele. O rosto em si noprecisaria de quase nada, mas o pescoo estavaplido. Comeou a espalhar a cor, vagarosa-mente, ainda com a serenidade ritual. A cadacamada que passava, finas e cuidadosas cama-das, sem perceber ia aumentando a fora com

    que pressionava a carne imvel. Deslizou aesponja com o p at a curva interna da cl-

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    vcula, seu contorno protuberante, e foi a queteve a ntida impresso de que a moa puxara oar, como no movimento que antecede o suspiro.

    Isso de fato o perturbou, porque por maisque dissesse a si mesmo que estava cansado,trabalhando h j tantas horas sem uma pausapara descanso e com um pouco de fome, quedeviam ser coisas da sua cabea, a respirao

    lhe pareceu ntida demais para que fosse umailuso. Hesitou um momento. Olhou-a de perto.Baixou seu ouvido at prximo do nariz damoa para confirmar que nenhuma corrente dear passava ali. No, nada.

    Decidiu retomar a passagem do p, mas

    quando sua mo, atrs da esponja, pressionou apele da mulher de quem cuidava, a mesa quetinha altura regulvel em ambas as pontas cedeu com estrondo sob os ps, fazendo com queo caixo ficasse inclinado e derrubando partedo assombroso arranjo de flores artificiais. Apso sobressalto que o barulho lhe provocouverificou a mesa e se certificou que a regu-lagem de altura tinha cedido. Pelo menos amesa no fora danificada, tampouco o caixo.Lamentavelmente teria que rearranjar aquelas

    malditas flores sem beleza.Agachou-se e comeou a girar a polia da

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    parte inferior da mesa para retorn-la a posi-o correta. Na metade da altura a que deviachegar, o caixo escorregou sobre a mesa demetal, parando somente ao bater em sua testa efazendo com que casse para trs.

    Levantou-se aps a pancada com umpouco de tontura, mas viu que apenas ralara acabea na borda do caixo, nada demais. Alm

    disso, pesou que tinha sorte, pois com a pancadana testa o caixo parou de escorregar. Docontrrio poderia estar agora em baixo docaixo, que sozinho nunca conseguiria levantar,e sem ningum para socorr-lo.

    Ergueu-se, foi at a pia que ficava no canto

    da sala e jogou uma gua no rosto. Com umpano branco que estava ao lado limpou osangue da ferida em sua testa. O atade deixouuma linha reta de pele esfolada paralela a suasobrancelha direita, a uns trs dedos acimadela, j no incio do couro cabeludo. Decidiuque deixaria pra fazer o curativo em casa, aprioridade era terminar os cuidados da moasobre a mesa.

    Diligentemente foi at o regulador dealtura, no entanto, sem tirar os olhos do caixo.

    Aos poucos, enquanto girava a polia, seus olhosforam deslizando para sobre a moa.

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    De fato era muito bonita. No lhe disseramnada sobre sua morte, mas pensava que deveriaser algo interno, pois o corpo estava perfeito.Com a mesa ter cedido, a cabea da moa ha-via pendido levemente para o lado esquerdo,deixando ver o pescoo inteiro, at a nuca, ondeestavam aqueles pequenos redemoinhos. O queser que tinha acontecido com ela? Certamen-

    te teria sido algo imerecido, uma pessoa tolinda, com o semblante to sereno com certezano fora merecedora do que quer que tenha lhetirado a vida. Mas os domins continuamentetombando, que so a prpria vida, certamenteno conhecem senso algum de justia noo

    puramente humana. E o que havia de justo nanatureza em si? A todo o momento catstrofesnaturais retiram vidas de centenas, milhares depessoas, de milhares de animais, retirammilhares de vidas. Deus? Como ele acreditariaem Deus fazendo o que faz? Crentes falam deGomorra, dos pecados que eram cometidosnessa cidade, e de como Deus enviou umachuva de fogo, queimando at a morte todos osseus habitantes. Mas ser possvel uma cidadeem que no houvesse pelo menos meia dzia de

    pessoas boas? Ser que absolutamente todosmereciam uma morte to cruel?

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    No. Preferia no acreditar em Deus, assimpodia culpar somente o acaso, a falta de sorte,sempre. Certamente se a houvesse conhecidoantes ela no estaria aqui, no permitiria. Oacaso um mecanismo intrincado de miradesde causas e consequncias, mas por menor queseja o homem frente ele, h sempre algo quepoderia ter sido feito, h sempre algo a fazer. Se

    a tivesse conhecido, certamente se amariam por mais rejeitado que ele fora por todas asoutras mulheres, ela no faria tal coisa comalgum que s quisesse o seu bem, s quisesseproteg-la. Flores de plstico! Que falta deconsiderao! Tinha asco de toc-las. Era tocar

    no apenas algo sem vida, algo que nuncasofreu de vida, e maior imprecauo ainda eraimit-la, com cara de perfeio, se atrevendo aambicionar paridade com algo que de fatoenfrenta a vida nada mais violento que viver.E sem admitir por um momento, viu-se, ao quefazia, como sendo estranhamente prximo dasflores artificiais.

    Olhando ali a moa com as flores falsascadas em volta da mesa do caixo o seu pesarera duplo. No ter conhecido tal moa extraor-

    dinria em vida; e ter que refazer sobre o peitodela o arranjo de plstico e tecido coloridos. Foi

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    quando se lembrou de que havia na sala umaboa quantidade de flores das outras pessoas deque cuidara no dia. No podia admitir asmmicas. Iria fazer-lhe um enfeite com flores deverdade, uma cortesia sua para a moa, omnimo que poderia fazer, o que estava ao seualcance.

    Foi at o canto da sala. Num grande cesto

    de lixo estavam as flores. Certamente ela no seimportaria que viessem do lixo, mesmo porqueno havia nada de sujo junto delas dentro docesto.

    Estavam sortidos, crisntemos, tulipasroxas, girassis, inclusive uma linda orqudea

    amarela. Preparou mentalmente o arranjo ecomeou a mont-lo. Os crisntemos, colocou-os sobre o ventre; os girassis e tulipas roxaspela altura dos seios. A orqudea amarela,decidiu coloc-la num bolsinho do vestido, queficava pouco coisa abaixo de onde se sente ocorao.

    Tomou a orqudea entre os dedos e desli-zou seu caule para dentro do bolso, quandopercebeu que os mamilos da jovem intumes-ceram sob o vestido. Ela respirou novamente

    como ele achara ter visto, s que dessa vez nohavia dvida. Ele ficou paralisado, segurando a

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    flor cujo caule roava o seio da moa. Ela er-gueu o peito, rebaixando a cintura, como numespreguiar-se, lnguida, e ainda sem abrir osolhos, levou a sua mo at sobre a mo dele e asegurou, levemente. Estava fria, mas no pare-cia ter a mesma temperatura de quandochegara ali, como se estivesse esquentando. Elaabriu os olhos e levou seu olhar, lentamente, at

    o centro dos olhos dele, que continuavaparalisado.Cuida de mim disse ela em voz de sus-

    surro ao p de seu ouvido.Ento ele sentiu um cheiro, o cheiro dela.

    No de perfume nem de creme, nem da maqui-

    agem que passara. Aquele cheiro que onatural de cada um, e o dela era inebriante.Como no se mexesse, a moa lhe falou:

    No queria que voc me visse assim,plida. Por favor, d alguma cor minha boca.

    Ele ento, ainda sem saber ao certo o quefazia, deixou cair ao cho a orqudea amarela e,na falta de um pincel vista, passou o dedo nacolorao para os lbios, que j se encontravaao lado do caixo. Espalhou delicada e cari-nhosamente a cor vermelho suave, o aroma de

    framboesa sobre seus lbios ao passo que osolhos dela no deixavam os seus. Ela levou a

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    mo at o peito dele e lhe segurou a camisa,puxando-o para perto dela, no com fora, coma suavidade de um convite. Rostos emparelha-dos, o beijou. Sua boca estava quente, aindaque seus lbios estivessem brancos at hpouco.

    Eu cuido, sim. Prometo.E, dito isso, se enlaaram mutuamente

    com suavidade, ternura e gentileza numprimeiro momento, aos poucos, com ardor.Beijaram-se como um casal que volta a seencontrar depois da guerra. Os corpos seadentraram, misturaram-se ali mesmo, dentrodo singelo caixo, quase o quebrando ou mesa

    que no mais despertava insegurana: elaabraava-lhe a cintura com as pernas que opuxavam cada vez mais para si, retorno conse-cutivo e nico que a espiral. Os sentidos seturvavam como se engastados no vinho, masainda sem querer deix-lo, as plpebras filtra-vam eternidades e num desses picos reincios,ao abrir-se da piscada j estavam trocados delugar. Estava ele por baixo vendo-a assim, in-teira, to viva e no seu corpo to presente, tomais-proximamente-impossvel, os olhos

    dentro dos seus rumando a um gozo inalcan-vel e to ponta dos dedos que num instant-

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    neo tempo toda a vida se fundiu num nicoestalo emoldurado de silncio.

    Na manh seguinte pela sala, se viam asflores todas jogadas ao cho, como sombras docaixo desarrumado sobre a mesa contra a luzdo sol que entrava pela tmida janela, uma luzfiltrada e oblqua. Era possvel ver duas pessoasdormindo abraadas dentro do caixo, amantes

    com semblantes serenos, que nem um poucolembravam o ardor do que aconteceu na noiteanterior, o frenesi do voo ao znite.

    Ela abriu os olhos com dificuldade, de-monstrando estar saindo de um sono pesado.Sentou-se no caixo com dificuldade, pois este

    se mostrara apertado para dois que no estives-sem to unidos como estiveram. Olhou-o comternura, dormia to profundo. Levantou-se.

    Em p, ao lado do caixo, ele l dentro, elaolhou-o ainda uma vez mais com uma ternuraimensa. Agachou-se para pegar a orqudeaamarela e a colorao para lbios. A primeiraenfiou lentamente na lapela dele. A coloraopara os lbios, passou-a um pouco na ponta dosdedos e espalhou delicada e carinhosamente acor, vermelho suave, aroma de framboesas,

    sobre os lbios dele onde a palidez j seinsinuava.

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    HORRIO DE PICO

    Eles estavam na sala, sobre o sof-cama emfrente tv e ele j no sabia h quanto tempo.Ela estava indiferente como sempre ficava de-pois de se picarem. No necessariamente indi-ferente, no assim que o viam, ele o sabia queno era assim que ela estava, curtia a viagem

    apenas, podiam estar ainda nos primeiros mi-nutos do efeito. A televiso estava na Globo,como sempre haviam vendido os cabos da nete o aparelho pra comprar mais umas doses, asujeira pelo apartamento j nem era vista, jestava incorporada a ele, se um dia sassem pra

    fazer um corre e encontrassem um apartamentolimpo ao voltar, seria necessariamente outro.Nessa perca de noo do tempo veio-lhe umasensao de que devia ser manh por quefalavam de esportes e mostravam gols doscampeonatos estaduais de futebol mais es-crotos do pas. A badtripj se insinuava com oscomentrios desportivos quando lhe vieram memria os comentrios que ela fazia dessetipo programa. Acho que a herona criava umabarreira a essas memrias, pois eram apenas

    sensitivas, lembrava-se de achar graa, demorrer de rir com ela falando besteiras e dando

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    rplicas aos comentaristas, mas no lembravaexatamente o qu, quais palavras ela dizia. Devez em quando em meio a tantas coisas racio-nais que passavam pela cabea dele vinha essapontada que sabia era um amor por ela atmais forte que por ele. Nada o transtornavamais que a ver se retorcendo na cama ou nocho da cozinha por causa de uma crise de

    abstinncia. Responsabilizava a si mesmo porconseguir tudo o que precisavam e isso era algopor que se cobrava, justamente porque a elafazia tanta diferena. Sabia que no era pormal nas vezes em que ela o xingava, mesmoquando arremessou o cinzeiro na sua testa

    aquele de vidro com a cara do Tio Sam, ondesempre faziam questo de apagar os cigarros o que lhe rendeu seis pontos acima da sobran-celha. Ficou charmoso em voc, j te disse queadoro cicatrizes ela lhe disse depois de seacalmar, o que foi mais que suficiente para lhedobrar qualquer ressentimento. No que tives-se foras para inclinar-se agora sobre ela e lheapreciar o rosto, mas achava que ela ficavalindssima chapada, vislumbrava no seu rostototalmente relaxado uma harmonia de trao e

    mesmo de energias. S o que no era lindo nela, claro, eram seus braos, mais especificamente

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    a dobra entre o brao e antebrao, onde se apli-cavam, mas isso inevitvel, pensava ele. Tinhapor ela algo como um amor juvenil, romntico,uma espcie de devoo que no caa nadabem em casal de junkies, como ela dizia, e aoque ele brincava: mas, amor, me deixa ser ca-valheiro, preparar a dose pra voc, posso ataplic-la, que pra ser umgentlemen e os dois

    riam. O que mais ele poderia querer da vidaseno se drogar todos os dias com a pessoa queama? O problema que no eram badtrip aspancadas que soavam em terremoto, ecoandopelo apartamento inteiro; eram mos fechadasde dois policiais indistinguveis que batiam

    porta e que a arrombaram e falaram coisas queno entendeu. No soco que foi a volta reali-dade, ainda no de todo confiante na impressoque tinha dela, ele respirou fundo, bem fundo,at quase o peito estourar e, junto ao oxignioque o queimou os pulmes, pode divisar quehavia umas partculas de cheiro ocre, um chei-ro de carnia doce e azeda e, antes de desmaiar,pode ainda sentir tambm uma lufada deparalisia indescritvel ao ver um dos policiaisindistinguveis arrastar pra fora do sof o corpo

    dela, a boca lindamente branca, no entantovomitada.

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    Redao dos contos: Sinfonia em Vermelho,26/09/2008; Ornar os idos, 11/2013; todos os

    outros, 2014.Editado em Campo Grande MS, 08/2014.

    Capa e contracapa retiradas deold-photos.blogspot.com.br

    www.hadashot-esi.org.ile editadas com o Paint.

    Fontes Poor Richard e High Tower Text.

    Contato: [email protected]: [email protected]

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