globalização, democracia e terrorismo - eric j. hobsbawm

Download Globalização, Democracia e Terrorismo - Eric J. Hobsbawm

If you can't read please download the document

Upload: diogo-sergio

Post on 15-Dec-2015

56 views

Category:

Documents


11 download

DESCRIPTION

Autor do clássico Era dos extremos e louvado mundialmente como um dos maiores historiadores vivos, Eric Hobsbawm apresenta uma coletânea de dez palestras e conferências em que faz um balanço dos principais temas da política internacional dos nossos dias.Embora trate de um amplo conjunto de assuntos - imperialismo, nacionalismo e hegemonia, guerra e paz, ordem pública e disponibilidade de armas, o poder da mídia, mercado e democracia, além de futebol e cultura contemporânea - a obra tem forte unidade temática, centrada na análise da situação mundial no início do novo milênio e dos problemas mais agudos que nos confrontam.Longe de ser um "otimista", Hobsbawm mostra-se crítico com relação às tendências que prevalecem no mundo de hoje. Considera "remotas" as perspectivas de uma paz mundial sólida no século XXI; ressalta o forte crescimento das desigualdades econômicas e sociais e dos desequilíbrios ambientais e políticos trazidos pela globalização baseada no conceito do mercado livre; e não poupa críticas à atuação do governo americano, tanto do ponto de vista econômico-financeiro quanto do político-militar. "Houve um tempo em que o império americano reconhecia a existência de limitações, ou pelo menos a conveniência de comportar-se como se tivesse limitações. Isso se devia basicamente ao fato de que tinha medo de alguém mais - a União Soviética. Na ausência desse tipo de medo, é preciso que o interesse próprio esclarecido e a cultura tomem o seu lugar", sentencia Hobsbawm.Com o ar crítico e ousado que caracteriza seus estudos, Hobsbawm classifica a democracia como "uma vaca sagrada que dá pouco leite", e sem perder o estilo, a leveza e o bom humor diz que "enfrentamos o terceiro milênio como o irlandês anônimo, que perguntado sobre o caminho para Ballynahinch, refletiu e disse: 'Se eu fosse você, não começaria por aqui'."

TRANSCRIPT

GLOBALIZAO, DEMOCRACIA E TERRORISMO

GLOBALIZAO, DEMOCRACIA E TERRORISMO

ERIC HOBSBAWM

OMPANHIA DAS LETRAS

Ttulo original: Globalisation, democracy and terrorism

Traduo: Jos Viegas

Gnero: Sociologia e poltica

Numerao: rodap - 182 pags

Contracapa

Nos dez textos que compem este livro, o renomado historiador Eric

Hobsbawm, autor do clssico Era dos extremos, analisa a situao mundial

no incio do novo milnio e trata dos problemas mais agudos que nos

confrontam. Nesta esclarecedora aula de histria contempornea, Hobsbawm

traa um painel do cenrio poltico internacional ao discorrer sobre

temas como guerra e paz, imperialismo, nacionalismo e hegemonia,

ordem pblica e terrorismo, mercado e democracia, o poder da mdia

e at futebol.

"O mais importante historiador ainda em atuao." - Sylvia Colombo,

Folha de S.Paulo

"Com grande lucidez e a conciso que lhe natural, Hobsbawm esboa o

novo cenrio do sculo XXI." - The Guardian "Globalizao, democracia e

terrorismo d uma boa idia do vigor e da paixo com que este grande

intelectual investiga o mundo contemporneo." - Sunday

Telegraph

Orelhas

Nesta coletnea de dez palestras e conferncias, Eric Hobsbawm, um dos

maiores historiadores vivos, faz um balano dos principais

temas que compem o cenrio internacional contemporneo. Com a

profundidade que o caracteriza, o pensador ingls examina a poltica

atual adotada pelas grandes potncias e no se exime de fazer

comentrios afiados a respeito das tendncias que tm marcado a evoluo

da histria recente.

Em textos leves e elegantes, Hobsbawm discute a democracia e a

anarquia, o nacionalismo e o terrorismo, o estado nacional e as

organizaes transnacionais, a guerra e a paz, a violncia e a ordem

pblica, o poder da mdia, o futebol e a cultura contempornea. Para o

autor, os efeitos nem sempre positivos da globalizao, as dvidas

e problemas que abalam a democracia, e a tragdia ainda no superada

do terrorismo, no so tratados apenas como questes tericas, mas como

assuntos concretos ligados diretamente vida cotidiana, influindo, por

exemplo, no aumento da violncia urbana, no nvel de empregos e nas

prximas eleies.

Longe de ser um otimista, Hobsbawm considera remotas as perspectivas

de uma paz mundial slida no sculo XXI e ressalta o forte crescimento

das desigualdades econmicas e sociais, acentuadas pela

globalizao baseada no conceito de mercado livre. Crtico impiedoso

do atual governo dos Estados Unidos, o historiador analisa as

impressionantes aes imperialistas desenvolvidas por Washington desde

o trmino da Guerra Fria, os erros que tem cometido e a necessidade

urgente de que aprenda as lies da histria e evite contribuir para

que o mundo se torne cada vez mais um lugar de desequilbrio poltico

e ambiental, caracterizado pela desordem, pelo conflito e pela

barbrie.

Eric Hobsbawm nasceu em Alexandria, em 1917, e educou-se na

ustria, na Alemanha e na Inglaterra. Recebeu o ttulo de doutor

honoris causa de universidades de diversos pases. Lecionou at se

aposentar no Birkbeck College, da Universidade de Londres, e

posteriormente na New School for Social Research, de Nova York. De

sua autoria, a Companhia das Letras publicou Era dos extremos (1995),

Ecos da MarseIhesa (1996), Sobre histria (1998), O novo sculo (2000)

e Tempos interessantes (2002).

GLOBALIZAO, DEMOCRACIA

TERRORISMO

COMPANHIA DAS LETRAS

GLOBALIZAO, DEMOCRACIA E TERRORISMO

ERIC HOBSBAWM

Globalizao, democracia e terrorismo

Traduo

Jos Viegas

2 reimpresso

OMPANHIA DAS LETRAS

Copyright (c) 2007 by Eric Hobsbawm

Ttulo original

Globalisation, democracy and terrorism

Capa

Hlio de Almeida

Foto de capa

A fachada sul da torre sul (World Trade Center, Nova York), de Joel Meyerowitz. Cortesia da

Galeria Edwynn Houk.

Preparao

Cacilda Guerra

Reviso

Ana Maria Barbosa

Valquria Delia Pozza

ndice remissivo

Luciano Marchiori,

Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)

(Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Hobsbawm, Eric, 1917

Globalizao, democracia e terrorismo / Eric Hobsbawm;

traduo Jos Viegas. - So Paulo: Companhia das Letras, 2007.

Ttulo original: Globalisation, democracy and terrorism

ISBN 978-85-359-1130-5

1. Globalizao - Aspectos sociais 2. Globalizao - Aspectos

polticos 3. Mudana social 4. Terrorismo I. Ttulo.

07-8664 CDD-327.1

ndice para catlogo sistemtico:

1. Globalizao: Aspectos polticos: Cincia poltica 327.1

[2008]

Todos os direitos desta edio reservados

EDITORA SCHWARCZ LTDA.

Rua Bandeira Paulista 702 cj. 32

04532-002 - So Paulo - SP

Telefone (11) 3707-3500

Fax (11) 3707-3501

www.companhiadasletras.com.br

Sumrio

Prefcio____............................................ 9

1. Guerra e paz no sculo XX ........................... 21

2. Guerra, paz e hegemonia no incio do sculo XXI ...... 36

3. Por que a hegemonia dos Estados Unidos difere da do Imprio Britnico ............................... 54

4. Sobre o fim dos imprios ............................ 77

5. As naes e o nacionalismo no novo sculo ........... 86

6. As perspectivas da democracia ...................... 97

7. A disseminao da democracia ...................... 116

8.0 terror............................................ 121

9. A ordem pblica em uma era de violncia ............ 138

10.0 imprio se expande cada vez mais ................. 152

Notas ................................................. 165

ndice remissivo ....................................... 171

Prefcio

O sculo XX foi a era mais extraordinria da histria da humanidade,

combinando catstrofes humanas de dimenses inditas, conquistas

materiais substanciais e um aumento sem precedentes da nossa capacidade

de transformar e talvez destruir o planeta - e at de penetrar no espao

exterior. Qual a melhor maneira de refletir sobre essa "era dos

extremos" e imaginar as perspectivas da nova era que surge a partir da

antiga? Esta coleo de ensaios a tentativa de um historiador de

examinar, analisar e compreender a situao do mundo no incio do

terceiro milnio e alguns dos principais problemas polticos que nos

confrontam hoje. Eles suplementam e atualizam o que escrevi em

publicaes anteriores, sobretudo a minha histria do "breve

sculo XX", Era dos extremos, a entrevista sobre O novo sculo com

o jornalista italiano Antnio Polito e Naes e nacionalismo desde

1780. Essas tentativas so necessrias. Qual a contribuio dos

historiadores para tal tarefa? Sua funo principal, alm de

relembrar o que outros esqueceram ou querem esquecer, tomar

distncia, tanto quanto possvel, dos registros da poca

9

contempornea e v-los em um contexto mais amplo e com uma

perspectiva mais longa.

Nesta coleo de estudos, mais que nada sobre temas polticos,

escolhi focalizar cinco conjuntos de questes que hoje requerem um

pensamento claro e bem informado: a questo genrica da guerra e da paz

no sculo XXI, o passado e o futuro dos imprios globais, a natureza e

o contexto cambiante do nacionalismo, o futuro da democracia liberal

e a questo da violncia poltica e do terror. Todas elas tm lugar em

um cenrio mundial dominado por dois desenvolvimentos correlatos: a

acelerao enorme e contnua da capacidade da espcie humana de modificar

o planeta por meio da tecnologia e da atividade econmica e a

globalizao. O primeiro deles, infelizmente, no produziu at aqui um

impacto significativo sobre os que tomam as decises polticas. A

maximizao do crescimento econmico continua a ser o objetivo dos

governos, e no existe ainda uma perspectiva realista para que se

dem passos efetivos que nos permitam enfrentar a crise do aquecimento

global. Por outro lado, desde a dcada de 1960, o avano acelerado da

globalizao ou seja, o mundo visto como um conjunto nico de atividades

interconectadas que no so estorvadas pelas fronteiras locais-provocou

um profundo impacto poltico e cultural, sobretudo na sua forma

atualmente dominante de um mercado global livre e sem controles. Estes

ensaios no discutem esse ponto especificamente, sobretudo porque a

poltica o principal campo da atividade humana que praticamente no

foi afetado pela globalizao. Tratando de realizar a duvidosa tarefa de

quantific-la, o ndice de Globalizao KOF (2007), da Sua, no

teve dificuldades em encontrar indicadores de fluxos econmicos

e de informao, contatos pessoais ou difuso cultural (como o nmero de

lanchonetes McDonald's e de lojas da rede de mveis IKEA por habitante),

mas no conseguiu nenhuma medida melhor para a "globalizao poltica"

do que o nmero de embaixadas em

10

determinado pas e sua participao em organismos internacionais e em

misses do Conselho de Segurana das Naes Unidas.

Uma discusso ampla sobre a globalizao est fora do escopo deste

livro. Contudo, trs observaes de ordem geral a respeito dela so

particularmente pertinentes para os temas aqui cobertos.

Primeiro, a globalizao acompanhada de mercados livres, atualmente

to em voga, trouxe consigo uma dramtica acentuao das desigualdades

econmicas e sociais no interior das naes e entre elas. No h

indcios de que essa polarizao no esteja prosseguindo dentro dos

pases, apesar de uma diminuio geral da pobreza extrema. Este surto

de desigualdade, especialmente em condies de extrema instabilidade

econmica como as que se criaram com os mercados livres globais na

dcada de 1990, est na base das importantes tenses sociais e polticas

do novo sculo. Na medida em que as desigualdades internacionais podem

tambm estar sofrendo presses decorrentes da ascenso das novas econo-

mias asiticas, tanto a ameaa aos nveis de vida relativamente

astronmicos dos povos do velho Norte quanto a impossibilidade prtica

de alcanar algo parecido para as vastas populaes de pases como a

ndia e a China produziro suas prprias tenses internas e

internacionais.

Segundo, o impacto dessa globalizao mais sensvel para os

que menos se beneficiam dela. Da provm a crescente polarizao

de pontos de vista a seu respeito, entre os que esto potencialmente

protegidos contra seus efeitos negativos - os empresrios, que

podem reduzir seus custos utilizando mo-de-obra barata de

outros pases, os profissionais da alta tecnologia e os formados em

cursos de educao superior, que podem conseguir trabalho em

qualquer economia de mercado de alta renda e os que no esto.

por isso que, para a maior parte daqueles que vivem dos salrios

provenientes dos seus empregos nos velhos "pases desenvolvidos",

11

o comeo do sculo XXI oferece um quadro sombrio, para no dizer

sinistro. O mercado livre global afetou a capacidade de seus pases

e sistemas de bem-estar social para proteger seu estilo de vida. Em

uma economia global, eles competem com homens e mulheres de

outros pases que tm as mesmas qualificaes, mas recebem apenas uma

frao dos salrios vigentes no Ocidente e sofrem nos seus prprios

pases as presses trazidas pela globalizao do que Marx chamava

"o exrcito de reserva dos trabalhadores", representado pelos imigrantes

que chegam das aldeias das grandes zonas globais de pobreza. Situaes

desse tipo no antecipam uma era de estabilidade poltica e social.

Terceiro, embora a escala real da globalizao permanea modesta, talvez

com a exceo de alguns pases em geral pequenos e sobretudo na Europa,

seu impacto poltico e cultural desproporcionalmente grande. Assim, a

imigrao um problema poltico substancial na maior parte das

economias desenvolvidas do Ocidente, ainda que a proporo dos seres

humanos que vivem em pases diferentes daqueles em que nasceram seja

de apenas 3%. No KOF de globalizao econmica de 2007, os Estados

Unidos esto em 39 lugar, a Alemanha em 40, a China em 55, o Brasil

em 60, a Coria do Sul em 62, o Japo em 67 e a ndia em 105 lugar,

embora todos, menos o Brasil, ocupem lugares algo mais altos na escala

de "globalizao social" (o Reino Unido a nica grande economia que

est entre as dez primeiras tanto na globalizao econmica quanto na

social). Conquanto, do ponto de vista histrico, esse fenmeno possa

ser temporrio ou no, a curto prazo esse impacto desproporcionalmente

grande pode bem ter srias conseqncias polticas nacionais e

internacionais. Minha opinio a de que, de um modo ou de outro, a

resistncia poltica, embora provavelmente no logre fazer reviver

12

O ranking baseado em dados de 2004.

prticas protecionistas formais, tender a desacelerar o progresso da

globalizao dos mercados livres nos prximos dez ou vinte anos.

Espero que os captulos sobre guerra e hegemonia, imprios e

imperialismo, o estado atual do nacionalismo e as transforma es

da violncia pblica e do terrorismo faam sentido para o leitor sem

a necessidade de comentrios adicionais do autor. O mesmo espero dos

dois captulos sobre democracia, embora o autor tenha conscincia de

que tentar demonstrar que uma das maiores vacas sagradas do discurso

poltico vulgar do Ocidente produz menos leite do que em geral se

presume algo altamente controverso. No discurso pblico ocidental

de hoje falam-se mais bobagens e absurdos sobre a democracia, e

especificamente sobre as qualidades milagrosas atribudas aos governos

eleitos por maiorias aritmticas de votantes que escolhem entre

diferentes partidos, do que, praticamente, sobre qualquer outra

palavra ou conceito poltico. Na retrica recente dos Estados Unidos,

a palavra perdeu todo contato com a realidade. Meus captulos so uma

pequena contribuio necessria tarefa de esfriar os nimos por

meio do uso da razo e do bom senso, conservando, ao mesmo

tempo, o compromisso firme de um governo para o povo - todo

o povo, ricos e pobres, estpidos e inteligentes, informados e

ignorantes -, mediante consulta a ele e com seu consentimento.

Os artigos aqui reunidos, sobretudo a partir de conferncias

diante de platias variadas, tentam enquadrar e explicar a situao

em que o mundo, ou grande parte dele, se encontra hoje. Pode ser

que eles ajudem a definir os problemas que nos confrontam no

comeo do novo sculo, mas no propem programas ou solues

prticas. Eles foram escritos entre 2000 e 2006 e refletem, portanto,

as preocupaes internacionais especficas desse perodo, que foi

dominado pela deciso tomada pelo governo dos Estados Unidos

em 2001 de afirmar uma hegemonia unilateral sobre o mundo,

condenando convenes internacionais at ento aceitas, reservando-se

13

o direito de fazer guerras de agresso ou outras operaes militares

sempre que o desejasse e levando-as prtica. Dada

a derrocada da Guerra do Iraque, j no necessrio demonstrar

que esse projeto era irrealista e a questo de saber se teramos

desejado seu xito no , portanto, totalmente acadmica. No obstante,

deve estar claro, e os leitores precisam ter ateno para isso, que meus

ensaios foram escritos por um autor que tem crticas profundas a esse

projeto. Isso se deve em parte fora e indestrutibilidade das minhas

convices polticas, que incluem a hostilidade ao imperialismo, seja

o das grandes potncias que afirmam estar fazendo um favor s suas

vtimas ao conquist-las, seja o do homem branco que pressupe, para si

prprio e para os arranjos que faz, uma superioridade automtica sobre

as pessoas cuja pele tem outra cor. Deve-se tambm a uma suspeita

racionalmente justificvel contra a megalomania, que a doena

ocupacional dos pases e dos governantes que crem que seu poder e seu

xito no tm limites.

A maior parte dos argumentos e mentiras que justificaram as

aes tomadas pelos Estados Unidos desde 2001, usados por polticos,

advogados remunerados ou no, articulistas, propagandistas, lobistas e

idelogos amadores, americanos e britnicos, j no precisa tomar nosso

tempo. Contudo, fez-se tambm uma defesa, menos desabonadora, no

tanto

da Guerra do Iraque, e sim da proposio genrica da legitimidade e da

eventual necessidade de intervenes armadas internacionais para

preservar ou impor os direitos humanos em uma era de crescente barbrie,

violncia e desordem. Para alguns, isso implica a desejabilidade de uma

hegemonia imperial mundial especificamente exercida pela nica potncia

capaz de estabelec-la, os Estados Unidos. Essa proposi o, que pode

ser chamada de imperialismo dos direitos humanos, passou a fazer parte

do debate pblico no transcurso dos conflitos balcnicos que derivaram

da desintegrao da Iugoslvia comunista, especialmente na Bsnia, os

quais pareciam indicar que apenas o uso externo da fora armada poderia

pr fim a um massacre mtuo e infindvel e que somente os Estados Unidos

tinham a capacidade e a vontade de usar tal fora. O fato de que os

americanos no tinham interesses particulares - histricos, polticos

ou econmicos - na regio tornou a interveno mais vistosa e

aparentemente desinteressada. Tomei a devida nota disso nos meus

ensaios. Embora eles, especialmente o que se intitula "A disseminao

da democracia", contenham razes para rejeit-la, algumas observaes

adicionais a respeito dessa posio podem ser cabveis. Ela

fundamentalmente errada porque as grandes potncias que buscam

implementar seus pontos de vista na poltica internacional podem fazer

coisas que convm aos defensores dos direitos humanos e tm conscincia

do valor publicitrio de faz-lo, mas isso no faz propriamente parte

dos seus propsitos, os quais, quando elas julgam necessrio, so

perseguidos com a crueza e a barbrie que constituem a herana do sculo

XX. A relao entre aqueles para quem uma grande causa da humanidade

essencial e as aes de qualquer Estado pode ser de aliana ou de

oposio, mas nunca de identificao permanente. Mesmo os raros casos

de jovens Estados revolucionrios que buscam genuinamente difundir sua

mensagem universal - a Frana depois de 1792, a Rssia depois de 1917,

mas no os Estados Unidos isolacionistas de George Washington - tm

durao curta. A posio tpica de qualquer Estado defender seus

interesses. Ademais, a defesa da interveno armada de carter

humanitrio nos assuntos dos Estados baseia-se em trs premissas: o

surgimento de situaes intolerveis no mundo contemporneo -

normalmente o massacre ou o genocdio - que clamam por ela; a ausncia

de modos alternativos para trat-las; e a presuno de que os ganhos a

serem obtidos com a interveno, so claramente superiores aos seus

custos. Todas essas premissas so por vezes justificveis,

15

embora, como o debate sobre o Iraque e o Ir comprova, seja rara a

existncia de acordo universal a respeito do que constitui precisamente

uma "situao intolervel". Provavelmente houve consenso nos dois casos

mais bvios de interveno justificada: a invaso do Kampuchea pelo

Vietn, que deu fim ao regime estar recedor dos "campos da morte" de

PolPot (1978), e a destruio do regime de terror de Idi Amin na Uganda,

pela Tanznia (1979).

(Evidentemente, nem todas as intervenes armadas estrangeiras

rpidas e bem-sucedidas em situao de crise local produziram

resultados assim satisfatrios-para outros exemplos duvidosos,

considere-se a Libria e o Timor Leste.) Em ambos os casos, o xito

foi obtido por meio de incurses breves, que produziram efeitos

positivos imediatos e provavelmente alguns melhoramentos

duradouros, sem implicar o abandono sistemtico do princpio

consagrado da no-interveno nos assuntos internos dos Estados

soberanos. Na verdade, elas no tiveram implicaes imperiais

nem envolveram os nveis mais amplos da poltica internacional.

Com efeito, tanto os Estados Unidos quanto a China continuaram

a apoiar o deposto Pol Pot. Essas intervenes adhoc no so relevantes

para quem queira defender a desejabilidade de uma hegemonia mundial

dos Estados Unidos.

No esse o caso das intervenes armadas dos anos recentes, que

foram, alis, seletivas e no tocaram alguns dos casos de atrocidades

mais cruis, em termos humanitrios, notadamente o genocdio na frica

central. Nos Blcs da dcada de 1990, as preocupaes humanitrias

foram decerto um fator significativo, mas no o nico. Provavelmente,

embora se tenha afirmado o oposto, a interveno externa na Bsnia

ajudou a terminar a carnificina antes do que teria ocorrido se se

houvesse permitido o prosseguimento da guerra entre srvios, croatas e

bsnios muulmanos at sua concluso natural, mas a regio permanece

instvel. No est claro, de modo algum, se em 1999 a interveno

16

armada era o nico caminho para resolver os problemas causados por uma

rebelio contra a Srvia por parte de um grupo minoritrio extremista

de nacionalistas albaneses no Kosovo nem, na verdade, se a verdadeira

razo para o fim da intransigncia srvia foi a ameaa de invaso ou a

ao da diplomacia russa. A base humanitria da interveno era bem mais

duvidosa do que na Bsnia, e a prpria situao humanitria pode ter

piorado, uma vez que a Srvia se viu provocada a promover uma expulso

em massa de albaneses do Kosovo e em decorrncia das baixas civis

causadas pela prpria guerra e dos meses de bombardeios destrutivos

sofridos pelo pas. As relaes entre srvios e albaneses tam pouco se

estabilizaram. Mas as intervenes nos Blcs pelo menos foram rpidas

e decisivas a curto prazo, embora at aqui ningum, alm, talvez, da

Crocia, tenha razes para sentir-se satisfeito com os resultados.

Por outro lado, as guerras do Afeganisto e do Iraque, a partir

de 2001, foram operaes militares dos Estados Unidos que no se

realizaram por razes humanitrias, embora tenham sido justificadas

perante a opinio pblica humanitria com base na destituio de regimes

detestveis. Mas, no fosse pelo Onze de Setembro,

nem mesmo os Estados Unidos teriam considerado a situao em qualquer

dos dois pases como merecedora de uma invaso imediata. O Afeganisto

era aceito por outros Estados com base em um "realismo" j um pouco

antiquado; o Iraque, por sua vez, era condenado quase universalmente.

Ainda que os regimes do Talib e de Saddam Hussein tenham sido

rapidamente derrubados, nenhuma das duas guerras levou vitria, nem

mesmo ao alcance dos objetivos anunciados inicialmente - o

estabelecimento de regimes

democrticos consentneos com os valores ocidentais e um forte sinal

para outras sociedades ainda no democratizadas da regio. Ambas, mas

sobretudo a catastrfica Guerra do Iraque, acabaram sendo longas,

sangrentas, profundamente destrutivas e ainda

17

prosseguem, ao tempo em que este texto est sendo escrito, sem

perspectivas de concluso.

Em todos esses casos, a interveno armada foi executada por

pases estrangeiros com poder militar e recursos francamente

superiores. Em nenhum deles a interveno gerou, at aqui, solues

estveis. Em todos os pases assinalados, a ocupao militar e a

superviso estrangeira prosseguem. No melhor dos casos, mas claramente

no no Afeganisto e no Iraque -, a interveno ps fim a guerras

sangrentas e produziu algum tipo de paz, porm os resultados positivos,

como nos Blcs, foram desanimadores. No pior dos casos - o Iraque

-, nenhuma pessoa sria pode negar que a situao do povo, cuja

libertao foi a desculpa oficial para a guerra, est pior do que antes.

A histria recente das intervenes armadas nos assuntos de outros

pases, mesmo as das superpotncias, no uma histria de xito.

Isso se deve, em parte, a uma premissa, que tambm est subjacente

ao imperialismo dos direitos humanos, de que os regimes brbaros e

tiranos so imunes mudana interna, de modo que apenas a fora

externa pode extingui-los e produzir a conseqente difuso dos nossos

valores e instituies polticas e legais. Essas premissas foram

herdadas dos dias em que os combatentes da Guerra Fria denunciavam o

"totalitarismo". Elas no deveriam ter sobrevivido ao fim da Unio

Sovitica, ainda mais com o evidente processo de democratizao interna

de alguns regimes no-comunistas detestveis, autoritrios, militaristas

e ditatoriais da sia e da Amrica do Sul, depois da dcada de 1980.

Elas tambm se fundamentam na crena de que os atos de fora podem

produzir instantaneamente grandes transformaes culturais. Mas isso

no verdade. A difuso de valores e de instituies atravs de sua

sbita imposio por uma fora estranha tarefa quase impossvel, a

menos que j estejam presentes no local condies que os tornem

adaptveis e sua introduo, aceitvel. A democracia, os valores

18

ocidentais e os direitos humanos no so como produtos tecnolgicos de

importao, cujos benefcios so bvios desde o incio e que so

adotados de uma mesma maneira por todos os que tm condies de

us-los, como uma pacfica bicicleta ou um mortfero AK 47, ou servios

tcnicos, como os aeroportos. Se fossem, haveria maior similaridade

poltica entre os numerosos Estados da Europa, da sia e da frica,

todos vivendo (teoricamente) sob a gide de constituies democrticas

similares. Em uma palavra, a histria tem muito poucos atalhos: lio

que o autor aprendeu, em boa medida, por ter vivido durante grande

parte do ltimo sculo e pensado a respeito.

Por fim, uma palavra de agradecimento aos que proporcionaram a

ocasio para a apresentao inicial destes estudos. O captulo 1

baseia-se em um texto escrito para o colquio comemorativo do

Centenrio do Prmio Nobel da Paz (Oslo, 2001); o captulo 2,

na Nikhil Chakravarty Memorial Lecture (Nova Dlhi, 2004), conferncia

que dei como convidado pela Indian Review of Books; o captulo 3, em

q uma das conferncias do ciclo Massey, na Universidade de Harvard,

em 2005; o captulo 4, como discurso inaugural na cerimnia de outorgado

ttulo de doutor honoris causa na Universidade de Tessalnica, Grcia,

em 2004; o captulo 5 uma considervel elaborao de um prefcio

escrito para uma nova edio alem de Naes e nacionalismo (Campus

Verlag, Frankfurt, 2004); o captulo 6 foi originalmente apresentado e

impresso como uma conferncia do Athenaeum, naquele clube, em 2000; o

captulo 7 foi publicado como contribuio a um nmero de Foreign

Policy dedicado s "idias mais perigosas do mundo" (setembro/outubro

de 2004); o captulo 8 teve um ponto de partida remoto em algumas notas

para um seminrio sobre o terrorismo, na Universidade de Columbia, Nova

York, no comeo

19

da dcada de 1990; o captulo 9 foi apresentado no Birkbeck College

como conferncia pblica, fazendo parte de uma srie sobre "Violncia ",

em 2006; e o captulo 10 foi escrito e publicado por Le Monde

Diplomatique em 2003. Gostaria tambm de agradecer aos colegas e a

outros que se deram ao trabalho de me ouvir e discutir minhas

apresentaes, sobretudo em Nova Dlhi, Harvard e Nova York. Como autor

profissional, devo um agradecimento aos meus editores

italianos, que foram os primeiros a sugerir que um conjunto de textos

como este tinha coerncia suficiente para compor um pequeno livro digno

de ser publicado, e a Bruce Hunter e Ania Corless, que lograram

persuadir tanto a mim quanto a outros editores.

Por outro lado, devo desculpar-me pela ocorrncia de duplicaes,

inevitveis em um livro baseado em diferentes palestras e conferncias

dadas em ocasies diversas. Eliminei algumas, mas eliminar todas teria

prejudicado a continuidade da argumentao em cada captulo - e talvez

a prpria sensao de que o livro forma um todo coerente. possvel

que elas tambm ajudem a ilustrar a argumentao de alguns captulos,

por vezes demasiado compacta. Alm do mais, certa dose de repetio faz

parte do arsenal de um autor que no consegue se libertar do hbito de

toda uma vida dedicada a ensinar, ou seja, a persuadir medida que

expe. Espero no ter exagerado na dose.

E. J. Hobsbawm, Londres, 2007

20

i. Guerra e paz no sculo XX.

O sculo XX foi o mais mortfero de toda a histria documen-tada.

O nmero total das mortes causadas pelas guerras do sculo ou associadas

a elas foi estimado em 187 milhes de pessoas, o que eqivale a mais

de 10% da populao mundial em 1913.' Se consideramos 1914 como seu

incio real, foi um sculo de guerras praticamente ininterruptas, com

poucos e breves perodos em que no houve conflitos armados organizados

em algum lugar. Ele foi dominado por guerras mundiais: ou seja, guerras

entre Estados territoriais ou alianas de Estados. O perodo entre 1914

e 1945 pode ser visto como uma nica "Guerra dos Trinta Anos",

interrompida apenas por uma pausa na dcada de 1920 - entre a retirada

final dos japoneses do Extremo Oriente sovitico, em 1922, e o ataque

Manchria, em 1931. A isso seguiram-se, quase imediatamente, uns

quarenta anos de guerra fria, a qual compatvel com a definio dada

pelo grande filsofo Thomas Hobbes guerra, como algo que consiste

"no em batalhas apenas, ou no ato de lutar, mas em um lapso de tempo

em que a vontade de travar batalhas suficientemente conhecida". At

que ponto as aes em que

21

as Foras Armadas dos Estados Unidos tm se envolvido desde o fim da

Guerra Fria em vrias partes do mundo constituem uma continuao da era

da guerra mundial matria de debate. No h dvida, contudo, de que a

dcada de 1990 se mostrou plena de conflitos militares formais e

informais na Europa, na frica e na sia ocidental e central. O mundo

como um todo no teve paz desde 1914 e no est em paz agora.

No obstante, o sculo no pode ser tratado como um bloco

nico, seja do ponto de vista cronolgico, seja do geogrfico.

Cronologicamente ele se divide em trs perodos: a era da guerra

mundial, centrada na Alemanha (1914-45), a era da confrontao entre

as duas superpotncias (1945-89) e a era posterior ao fim do sistema

clssico de poder internacional. Denominarei esse perodos com as

cifras i, n e m. Geograficamente, o impacto das operaes militares

altamente desigual. Com uma exceo (a Guerra do Chaco, de 1932-35),

no houve guerras significativas entre pases (diferentes, portanto, das

guerras civis) no hemisfrio ocidental (as Amricas) no sculo XX.

As operaes militares conduzidas por foras inimigas mal tocaram essas

terras, razo por que os bombardeios das Torres Gmeas e do Pentgono

no Onze de Setembro foram to chocantes. Desde 1945, as guerras entre

pases desapareceram tambm da Europa, que fora, at ento, a regio

com mais campos de batalha. Embora a guerra tenha retornado ao Sudeste

da Europa no perodo m, muito pouco provvel que ela ocorra de

novo no resto do continente. Por outro lado, durante o perodo n,

guerras entre pases, no necessariamente desvinculadas da confrontao

global, permaneceram endmicas no Oriente Mdio e no Sul da sia, e

guerras importantes diretamente derivadas dessa confrontao ocorreram

no Leste e no Sudeste da sia (Coria, Indochina). Ao mesmo tempo, reas

como a frica subsaariana, que ficara comparativamente a salvo da guerra

no perodo I (com exceo da Etipia, tardiamente submetida conquista

colonial

22

pela Itlia em 1935-36), tornaram-se teatro de conflitos armados

durante o perodo 11, e sofreram fortes episdios de carnificina e

sofrimento no perodo m.

Duas outras caractersticas da guerra no sculo XX sobressaem,

embora a primeira seja menos bvia do que a segunda. No incio do sculo

XXI, encontramo-nos num mundo em que as operaes armadas j no esto

essencialmente nas mos dos governos ou dos seus agentes autorizados,

e as partes disputantes no tm caractersticas, status e objetivos

em comum, exceto quanto vontade de utilizar a violncia. As guerras

entre pases dominaram tanto a imagem da guerra nos perodos I e 11 que

as guerras civis e outros conflitos armados dentro dos territrios dos

pases e dos imprios existentes ficaram obscurecidos. At as guerras

civis que ocorreram no Imprio Russo depois da Revoluo de Outubro,

assim como as que se verificaram aps colapso do Imprio Chins, podem

caber no marco dos conflitos internacionais, na medida em que no podem

ser vistas como independentes deles. Por outro lado, a Amrica Latina

pode no ter visto exrcitos cruzando as suas fronteiras no sculo XX,

mas foi cenrio de importantes conflitos civis: no Mxico depois de

1911, por exemplo; na Colmbia desde 1948, e em vrios pases da

Amrica Central durante o perodo n. No tem sido objeto de

reconhecimento geral o fato de que o nmero de guerras internacionais

diminuiu de maneira praticamente contnua desde meados da dcada de

1960, quando os conflitos internos passaram a ser mais comuns

do que as guerras entre pases. O nmero de conflitos dentro das

fronteiras nacionais continuou a subir fortemente at se estabilizar

na dcada de 1990.

Mais conhecida a perda de nitidez da distino entre combatentes e

no-combatentes. As duas guerras mundiais da primeira metade do sculo

XX envolveram a totalidade das populaes dos pases beligerantes;

tanto os combatentes quanto os 23 no-combatentes sofreram. No

transcurso do sculo, no entanto, o preo da guerra deslocou-se cada

vez mais das foras armadas para a populao civil, no s como vtima,

mas, de maneira crescente, como objetivo de operaes militares ou

poltico-militares. O contraste entre as duas grandes guerras mundiais

dramtico: apenas 5% dos que morreram na Primeira Guerra Mundial eram

civis; na Segunda Guerra Mundial esse nmero subiu para 66%.

Supe-se geralmente que de 80% a 90% das pessoas afetadas pelas

guerras atuais sejam civis. Essa proporo aumentou a partir do

fim da Guerra Fria porque a maioria das operaes militares desde

ento no foi conduzida por exrcitos regulares, e sim por grupos

diminutos de soldados, regulares ou no, operando, em muitos

casos, armas de alta tecnologia e protegidos contra o risco de sofrer

baixas. Se bem que seja verdade que o armamento de alta tecnologia

tornou possvel, em certos casos, o restabelecimento da distino

entre objetivos militares e civis e, por conseqncia, entre combatentes

e no-combatentes, no h razo para duvidar de que as principais

vtimas das guerras continuaro a ser os civis.

Alm disso, o sofrimento dos civis no proporcional intensidade

das operaes militares. Em termos estritamente militares, a guerra de

duas semanas entre a ndia e o Paquisto em torno da independncia de

Bangladesh, em 1971, foi um conflito de dimenses

modestas, mas produziu milhes de refugiados. As lutas entre unidades

armadas na frica na dcada de 1990 no envolveram muito mais do que

alguns milhares de soldados, em sua maioria mal armados, mas produziu,

no seu auge, quase 7 milhes de refugiados - nmero muito maior do que

em qualquer perodo da Guerra Fria, quando o continente africano era

cenrio de guerras por procurao entre as superpotncias. Esse

fenmeno no est restrito s reas pobres e remotas. Em alguns

aspectos, o efeito da guerra sobre a vida civil amplificado pela

globalizao e pela crescente dependncia do mundo com

24

relao a um fluxo constante e ininterrupto de comunicaes,

servios, tecnologias, entregas e suprimentos. Mesmo uma interrupo

relativamente breve desse fluxo - por exemplo, o fechamento do espao

areo dos Estados Unidos por alguns dias aps o Onze de Setembro-pode

ocasionar efeitos considerveis e talvez dura douros sobre a economia

global.

Seria mais fcil escrever sobre o assunto da guerra e da paz no

sculo XX se a diferena entre ambas tivesse permanecido to clara

quanto se esperava ao comear aquele sculo, nos dias em que as

Convenes de Haia de 1899 e 1907 codificaram as regras da

guerra. Supunha-se ento que os conflitos ocorreriam sobretudo

entre pases soberanos, ou, se tivessem lugar dentro do territrio

de um Estado em particular, entre partes opositoras suficientemente

bem organizadas para receber o status de beligerantes, reconhecido por

outros Estados soberanos. Supunha-se que a guerra se distinguia

flagrantemente da paz, atravs de uma declarao de guerra no incio

e de um tratado de paz ao final. Supunha-se que as operaes militares

distinguiriam claramente entre combatentes - reconhecveis como tais

pelos seus uniformes, ou outros sinais de que pertenciam a foras

armadas organizadas - e civis no-combatentes. Estes deveriam, na

medida do possvel, estar protegidos em tempos de guerra. Sempre se

entendeu que essas convenes no cobriam todos os conflitos armados,

civis e internacionais, em especial aqueles que derivavam da expanso

imperial dos pases ocidentais em regies que no estavam sob a

jurisdio de pases soberanos reconhecidos internacionalmente,

ainda que alguns (mas claramente no todos) desses conflitos fossem

chamados de "guerras". Tampouco elas cobriam grandes rebelies contra

Estados j estabelecidos, como o chamado Motim Indiano; nem as

atividades armadas recorrentes que tinham lugar em regies que estavam

fora do controle efetivo dos Estados ou das autoridades imperiais que

nominalmente os que

25

governavam, tais como os assaltos e as lutas entre grupos rivais nas

montanhas do Afeganisto e no Marrocos. No obstante, as Convenes de

Haia serviram ainda como linha de orientao na Primeira Guerra Mundial.

No transcurso do sculo XX, essa clareza relativa foi substituda pela

confuso. Em primeiro lugar, a linha que separa os conflitos entre

pases e os conflitos no interior dos pases - ou seja, entre guerras

internacionais e guerras civis - tornou-se difusa porque o sculo

XX teve como caracterstica no s guerras, mas tambm revolues e

desmembramentos de imprios. As revolues ou as lutas de libertao no

interior dos Estados tinham implicaes para a situao internacional,

particularmente durante a Guerra Fria. Reciprocamente, depois da

Revoluo Russa, as intervenes dos Estados nos assuntos internos de

outros Estados tornaram-se comuns, pelo menos onde elas pareciam no

apresentar maiores riscos. Assim continua a ser.

Em segundo lugar, a distino clara entre guerra e paz tornou-se

obscura. Exceto em alguns poucos lugares, a Segunda Guerra Mundial

no comeou com declaraes de guerra nem terminou com tratados de paz.

A ela seguiu-se um perodo to difcil de classificar, seja como guerra,

seja como paz, no sentido habitual, que o neologismo "guerra fria"

teve de ser inventado para descrev-lo. O carter obscuro da situao

posterior Guerra Fria

ilustrado pelo atual estado de coisas no Oriente Mdio. Antes da Guerra

do Iraque, nem a palavra "paz" nem a palavra "guerra" descreviam com

exatido o que ocorria no Iraque a partir do encerramento formal da

Guerra do Golfo - o pas continuava sofrendo bombardeios quase dirios

por parte de potncias estrangeiras -, tampouco se aplicavam plenamente

s relaes entre palestinos e israelenses, ou ainda entre Israel e

seus vizinhos Lbano e Sria.

Tudo isso constitui uma herana infeliz das guerras mundiais do

sculo XX, e tambm da maquinaria cada vez mais poderosa e

26

macia de propaganda de guerra e de um perodo de confrontao entre

ideologias incompatveis e apaixonantes que trouxeram s guerras

elementos prprios das cruzadas, por serem comparveis aos que se viram

nos conflitos religiosos do passado. Esses conflitos, ao contrrio das

guerras tradicionais sob a vigncia do sistema internacional de poder,

foram conduzidos com freqncia cada vez maior em torno de finalidades

no negociveis, como a "rendio incondicional". Como tanto as guerras

quanto as vitrias eram vistas como totais, quaisquer limitaes

capacidade de ao dos beligerantes que pudessem ser impostas pelas

convenes que regularam as guerras dos sculos XVIII e XIX-inclusive

as declaraes formais de guerra foram rejeitadas. O mesmo aconteceu com

quaisquer limitaes ao poder dos vitoriosos para impor sua vontade.

A experincia j revelara que os acordos forjados pelos tratados de

paz podiam ser facilmente desfeitos. Nos anos recentes, a situao

complicou-se ainda mais com a tendncia ao emprego do termo "guerra" nos

discursos polticos para designar o uso da fora armada contra diversas

atividades nacionais ou internacionais vistas como anti-sociais - a

"guerra contra a mfia", por exemplo, ou a "guerra contra os cartis das

drogas". A luta para controlar, ou mesmo para eliminar, essas

organizaes ou redes, o que inclui grupos terroristas de pequena

escala, bem diferente das grandes operaes de guerra. Essa

terminologia imprecisa tambm confunde as aes de dois tipos distintos

de fora armada. Uma - vamos cham-la de "exrcito" - dirige-se contra

outras foras armadas com o objetivo de derrot-las. A outra - vamos

cham-la de "polcia"-dedica-se a manter ou restabelecer o grau

requerido de respeito lei e ordem pblica dentro de

uma entidade poltica preexistente, tipicamente um pas. A vitria,

que no tem necessariamente uma conotao moral, o objetivo de

uma fora; a apresentao dos violadores da lei justia, que, sim,

tem uma conotao moral, o objetivo da outra.

27

No entanto, essa distino mais fcil de se fazer na teoria do

que na prtica. O homicdio cometido por um soldado em batalha

no constitui, por si s, uma violao lei, ao contrrio do que

acontece com o homicdio em todos os Estados territoriais que

funcionam normalmente. Mas o que acontece se um membro do

Exrcito Republicano Irlands (IRA) considera a si prprio como

beligerante, ainda que a lei do Reino Unido o considere um assassino?

As operaes na Irlanda do Norte foram uma guerra, como sustenta o IRA,

ou uma tentativa de sustentar um governo legtimo de uma provncia do

Reino Unido diante da ao de violadores da lei? Uma vez que, alm de

uma formidvel fora policial local, tambm um Exrcito nacional foi

mobilizado contra o IRA durante mais ou menos trinta anos, poderamos

concluir que se tratou de uma guerra, a qual, contudo, foi conduzida

sistematicamente como uma operao policial, de maneira a minimizar as

baixas e os efeitos negativos sobre a vida da provncia. Afinal, houve

uma soluo negociada-que, como tpico, ainda no produziu a paz,

mas simplesmente o prosseguimento da ausncia de luta. Essas so

as complexidades e confuses das relaes entre a paz e a guerra ao

iniciar-se o novo sculo. Elas so bem ilustradas pelas operaes,

militares e outras, em que os Estados Unidos e seus aliados esto

engajados no momento presente.

Existe agora, como durante todo o transcurso do sculo XX uma

ausncia total de qualquer autoridade global efetiva que seja capaz de

controlar ou resolver disputas armadas. A globalizao avanou em quase

todos os aspectos - econmico, tecnolgico, cultural, at lingstico,

menos um: do ponto de vista poltico e militar, os Estados territoriais

continuam a ser as nicas autoridades efetivas. Existem oficialmente

cerca de duzentos pases, mas na prtica apenas um punhado deles pesa

na balana, e h um, os Estados Unidos, que esmagadoramente mais

poderoso do que os demais. Contudo, nunca nenhum pas ou imprio foi

grande, rico

28

ou poderoso o bastante para manter a hegemonia sobre o mundo

poltico e muito menos para estabelecer a supremacia poltica e

militar sobre todo o planeta. O mundo demasiado grande, complexo e

plural. No existe nenhuma probabilidade de que os Estados Unidos, ou

qualquer outra potncia singular, possam estabelecer um controle

duradouro, mesmo que o desejassem.

Uma nica superpotncia no pode contrabalanar a ausncia de

autoridades globais, especialmente dada a falta de convenes relativas,

por exemplo, ao desarmamento ou ao controle de armamentos, com fora

suficiente para serem voluntariamente aceitas como obrigatrias pelos

pases principais. Alguma autoridade desse tipo existe, como as Naes

Unidas, os diversos rgos tcnicos e financeiros, como o Fundo

Monetrio Internacional, o Banco Mundial e a Organizao Mundial do

Comrcio, e certos tribunais internacionais. Mas nenhum desses rgos

tem algum poder efetivo alm daquele que lhe conferido voluntariamente

pelos Estados, ou por acordos entre eles, ou graas ao apoio de pases

poderosos. Por mais que seja lamentvel, essa situao no deve sofrer

modificaes no futuro previsvel.

Como apenas os Estados tm poder real, o risco que as

instituies internacionais se mostrem ineficazes ou carentes de

legitimidade universal ao tentar lidar com questes como os "crimes

de guerra". Mesmo quando se estabelecem tribunais por acordo geral

(como, por exemplo, o Tribunal Penal Internacional, estabelecido pelas

Naes Unidas no Estatuto de Roma de 17 de julho de 1998), suas decises

no sero necessariamente aceitas como legtimas e obrigatrias, ao

menos enquanto pases poderosos tiverem condies de ignor-las. Um

consrcio de Estados poderosos pode ter fora suficiente para conseguir

que alguns violadores nacionais de pases fracos sejam levados a esses

tribunais, o que talvez contribua para diminuir a crueldade dos

conflitos armados em certas reas. Mas este um exemplo do exerccio

tradicional do poder e 29

da influncia em um sistema internacional de Estados, e no da

implementao do direito internacional.

Existe, no entanto, uma diferena marcante entre o sculo

XXI e o XX: a idia de que a guerra acontece em um mundo dividido em

reas territoriais que esto sob a autoridade de governos efetivos que

detm o monoplio dos meios de coero e poder pblico deixou de ter

aplicao. Ela nunca foi aplicvel a pases em estado de revoluo nem

aos fragmentos de imprios desintegrados, mas at recentemente, em sua

maior parte, os novos regimes revolucionrios ou ps-coloniais - com a

exceo principal da China entre 1911 e 1949 - estabeleceram-se de maneira

bastante rpida como pases e regimes sucessores mais ou menos

organizados e funcionais.

Nos ltimos trinta anos, contudo, o Estado territorial perdeu,

por vrias razes, o monoplio tradicional da fora armada, boa parte

da sua prpria estabilidade e do poder que anteriormente tinha e, cada

vez mais, o sentido fundamental da legitimidade, ou, pelo menos, da

aceitao da sua permanncia, que permite aos governos impor obrigaes

consensuais aos cidados, como o pagamento de impostos e o servio

militar. O equipamento necessrio guerra, assim como os meios para

financiar guerras no-estatais, est hoje amplamente disponvel a

entidades privadas.

Nesse sentido, o equilbrio entre os Estados e as organizaes

no-estatais modificou-se. Os conflitos armados dentro dos pases

tornaram-se mais srios e podem prosseguir durante dcadas sem

perspectivas reais de vitria ou soluo: Caxemira, Angola, Sri Lanka,

Chechnia, Colmbia. Em casos extremos, como em algumas

* Esse , tambm, por definio, o caso em que determinados Estados

aceitam o direito humanitrio internacional e afirmam unilateralmente o

direito a aplic-los

a cidados de outros pases em seus prprios tribunais nacionais,

como fizeram as cortes espanholas, apoiadas pela Cmara dos Lordes da

Gr-Bretanha, no caso do general Pinochet.

30

regies da frica, o Estado pode virtualmente deixar de existir;

ou, como na Colmbia, deixar de exercer o poder sobre uma parte

do territrio do pas. Mesmo em pases fortes e estveis tem sido

difcil eliminar grupos armados no-oficiais, como o IRA, na

GrBretanha, ou o grupo separatista basco ETA, na Espanha. O carter

novo dessa situao est demonstrado pelo fato de que o pas mais

poderoso do mundo, aps ter sofrido um ataque terrorista, viu-se

obrigado a engajar-se em operaes formais contra uma organizao,

ou uma rede internacional pequena e no-governamental sem territrio

prprio e sem um Exrcito reconhecvel como tal.

Como essas mudanas afetam o equilbrio entre a guerra e a

paz nos prximos cem anos? Prefiro no fazer previses sobre as

guerras que podero ocorrer e sobre seus possveis desfechos.

Contudo, tanto a estrutura dos conflitos armados quanto os mtodos para

sua resoluo modificaram-se profundamente com as transformaes

sofridas pelo sistema internacional de Estados soberanos. A

dissoluo da Unio Sovitica significa que o sistema de grandes

potncias, que comandou as relaes internacionais por quase dois

sculos e que, com bvias excees, exerceu algum controle sobre os

conflitos internacionais, j no existe. Seu desaparecimento removeu

um importante entrave s guerras entre pases e s intervenes armadas

de uns pases nos assuntos de outros, enquanto durante a Guerra Fria

as fronteiras territoriais internacionais permaneceram basicamente

invioladas. Mesmo ento o sistema internacional era potencialmente

instvel, no entanto, graas multiplicao de pases pequenos e por

vezes demasiado dbeis, que, contudo, eram oficialmente membros

"soberanos" das Naes Unidas. A desintegrao da Unio Sovitica e dos

regimes comunistas europeus aumentou claramente essa instabilidade.

31

Tendncias separatistas de intensidade variada em Estados nacionais

at ento estveis, como Gr-Bretanha, Espanha, Blgica e Itlia,

podem bem ampliar-se no futuro. Ao mesmo tempo, o nmero de atores

privados no cenrio internacional multiplicou-se.

Nessas circunstncias, no surpreendente que as guerras

transfronteirias e as intervenes armadas tenham aumentado depois

do fim da Guerra Fria.

Que mecanismos existem para controlar e resolver esses conflitos?

Os clculos no so promissores. Nenhum dos conflitos armados da dcada

de 1990 terminou com uma soluo estvel. A sobrevivncia de

instituies, premissas e retricas da Guerra Fria manteve vivas

velhas suspeitas, exacerbando a desintegrao ps-comunista do Sudeste

da Europa e tornando mais difceis as solues para a rea antes

conhecida como Iugoslvia.

Essas premissas da Guerra Fria, tanto as ideolgicas quanto as

relativas poltica de poder, tero de ser abandonadas se quisermos

desenvolver algum meio de controlar os conflitos armados. Tambm

evidente que os Estados Unidos no conseguiram e inevitavelmente no

conseguiro impor uma nova ordem internacional (qualquer que seja ela)

por meio da fora unilateral, por mais que as relaes de poder

inclinem-se em seu favor no presente e mesmo que o pas tenha o apoio

de uma aliana (de durao inevitavelmente curta). O sistema

internacional permanecer multilateral e seu equilbrio depender de

que as diversas entidades relevantes logrem concordar entre si, ainda

que um dos Estados goze de predominncia militar. O grau de dependncia

das aes militares internacionais tomadas pelos Estados Unidos com

relao a acordos negociados com outros pases j ficou claro. Tambm

ficou claro que a soluo poltica para as guerras, mesmo aquelas

em que os Estados Unidos esto envolvidos, ser dada pela negociao,

e no pela imposio unilateral. A era das guerras que terminam

32

com a rendio incondicional no retornar no futuro previsvel.

* O papel dos organismos internacionais existentes, sobretudo

a Organizao das Naes Unidas, tem de ser repensado. Embora

esteja sempre presente e normalmente se recorra a ela, sua atuao

na resoluo de disputas no clara. Sua estratgia e sua operao

esto sempre merc das instabilidades da poltica de poder. A

ausncia de um intermedirio internacional considerado genui- namente

neutro e capaz de agir sem a autorizao prvia do Con selho de

Segurana constitui a carncia mais bvia do sistema de soluo de

controvrsias.

Desde o fim da Guerra Fria as decises sobre a paz e a guerra

tm sido improvisadas. No melhor dos casos, como nos Blcs, os

conflitos armados tiveram fim graas interveno armada

externa, e o status quo ao final das hostilidades foi mantido pelos

exrcitos de terceiras partes. Esse tipo de interveno a longo prazo

foi aplicado por muitos anos pela ao de pases fortes nas suas

esferas de influncia (pela Sria no Lbano, por exemplo). Como

forma de ao coletiva, no entanto, s foi usado pelos Estados

Unidos e seus aliados (s vezes com o beneplcito das Naes Unidas,

s vezes no). O resultado at aqui tem sido insatisfatrio para

todas as partes. Obriga os interventores a manter suas tropas

inde finidamente e a custos desproporcionais em reas nas quais no

tm nenhum interesse particular e das quais no podem extrair

nenhum benefcio. Torna-os dependentes da passividade da

populao ocupada, a qual no se pode garantir; se houver

resis tncia armada, foras relativamente reduzidas de "manuteno da

paz" dotadas de armamentos tero de ser substitudas por foras

muito maiores. Os pases pobres e fracos podem se ressentir com

esse tipo de interveno, pela lembrana que lhes traz dos dias do

colonialismo e dos protetorados, especialmente quando grande

parte da economia local se transforma em parasita das

33

necessidades das tropas de ocupao. No est claro se de tais

intervenes pode resultar um modelo geral para o controle futuro dos

conflitos armados.

O equilbrio entre a guerra e a paz no sculo XXI depender muito

mais da estabilidade interna dos pases e da capacidade de evitar os

conflitos militares do que da construo de mecanismos mais eficazes

para a negociao e a soluo de controvrsias. Com algumas poucas

excees, as rivalidades e frices internacionais que levaram a

conflitos armados no passado tm menos probabilidade de faz-lo agora.

Comparativamente, hoje existem, por exemplo, menos disputas candentes a

respeito de fronteiras internacionais. Por outro lado, os conflitos

internos podem facilmente tornar-se violentos: o maior perigo de guerra

est no envolvimento de outros pases ou de outros agentes militares

nesse tipo de conflito.

Os pases que tm economias pujantes e estveis e uma distribuio

de renda relativamente eqitativa entre seus habitantes tendem a ser

menos vulnerveis - social e politicamente - do que os pases pobres,

economicamente instveis e com distribuio interna de riquezas

fortemente desigual. O aumento significativo da desigualdade econmica

e social dentro dos pases ou entre eles reduzir as possibilidades de

paz. Evitar ou controlar a violncia armada interna depende ainda mais

imediatamente, contudo, dos poderes e da efetividade do desempenho dos

governos nacionais e da sua legitimidade perante a maioria dos

habitantes dos respectivos pases. Nenhum governo pode, hoje, dar por

garantida a existncia de uma populao civil desarmada ou o grau de

ordem pblica h tanto tempo vigente em grande parte da Europa.

Nenhum governo est, hoje, em condies de ignorar ou eliminar

minorias internas armadas. No entanto, o mundo est cada vez

mais dividido em pases capazes de administrar seus territrios e

seus cidados efetivamente - mesmo quando afetados, como

34

estava o Reino Unido, durante dcadas por aes armadas efetuadas por

um inimigo interno - e um nmero crescente de territrios cujo entorno

demarcado por fronteiras oficialmente reconhecidas com governos

nacionais que flutuam entre a debilidade, a corrupo e a no-existncia.

Essas reas produzem lutas internas sangrentas e conflitos

internacionais, como os que temos visto na frica central. No h,

apesar de tudo, perspectivas imediatas de melhoras duradouras nessas

regies, e a continuao do enfraquecimento dos governos centrais nos

pases instveis, assim como o prosseguimento da balcanizao do mapa

do mundo, sem dvida provocaro um aumento do perigo de conflitos

armados. Um prognstico tentativo: no sculo XXI, as guerras

provavelmente no sero to mortferas quanto foram no sculo XX. Mas a

violncia armada, gerando sofrimentos e perdas desproporcio nais,

persistir, onipresente e endmica-ocasionalmente epidmica -, em

grande parte do mundo. A perspectiva de um sculo de paz remota.

35

2. Guerra, paz e hegemonia no incio

do sculo XXI

O tema a guerra, a paz e a hegemonia, mas considerarei os

problemas atuais na perspectiva do passado, como a prtica entre

os historiadores. No podemos falar sobre o futuro poltico do mundo, a

menos que tenhamos em mente que estamos vivendo um perodo em que a

histria, ou seja, o processo de mudanas na vida e na sociedade humana

e o impacto que os homens impem ao meio ambiente global, est se

acelerando a um ritmo estonteante. Neste momento, ela est evoluindo a

uma velocidade que pe em risco o futuro da raa humana e do meio

ambiente natural.

Quando caiu o muro de Berlim, um americano incauto anunciou o fim da

histria. Evito, portanto, usar uma expresso to claramente

desacreditada. No obstante, no meio do sculo passado entramos

subitamente em uma fase nova da histria que acarretou o fim da histria

como a conhecemos nos ltimos 10 mil anos, isto , desde a inveno

da agricultura sedentria. No sabemos para onde estamos indo.

Tentei esboar os contornos dessa quebra dramtica e sbita

na histria do mundo no meu livro sobre o "breve sculo XX" (Era

36

dos extremos). As transformaes tecnolgicas e produtivas so bvias.

Basta pensar na velocidade da revoluo das comunicaes, que

virtualmente aboliu o tempo e a distncia. Em 2004, a internet mal

completou dez anos. Tambm assinalei quatro aspectos sociais desse

processo, que so relevantes para o futuro das naes. Refiro-me ao

forte declnio do campesinato, que at o sculo XIX formava a grande

base da raa humana e o alicerce da economia; correspondente ascenso

de uma sociedade predominantemente urbana e sobretudo ao aparecimento

das hipercidades, cuja populao se mede em oito cifras; substituio

de um mundo de comunicao oral por um mundo baseado na leitura e na

escrita universais, mo ou mquina; e, finalmente, transformao

da situao das mulheres.

O declnio do nmero de pessoas que trabalham no setor agrcola da

humanidade bvio no mundo desenvolvido. Hoje, ele representa 4% da

populao ocupada nos pases da OCDE (Organizao para a Cooperao e

o Desenvolvimento Econmico) e 2% nos Estados Unidos. Mas isso tambm

se faz notar em outras regies. Em meados da dcada de 1960, ainda

havia cinco pases europeus com mais da metade da populao ocupada

nessa rea, onze nas Amricas, dezoito na sia e, com trs excees

(Lbia, Tunsia e frica do Sul), toda a frica. A situao

de hoje inteiramente diferente. Praticamente j no existe nenhum pas

com mais de 50% de agricultores na Europa, nas Amricas e inclusive

no mundo islmico-at no Paquisto o nmero caiu para menos de 50% e

na Turquia a populao camponesa caiu de trs quartos para um tero

do total. Mesmo as grandes fortalezas da agricultura camponesa do

Sudeste Asitico foram tomadas em diversos lugares - na Indonsia,

caram de 67% para 44%, nas Filipinas, de 53% para 37%, na Tailndia,

de 82% para 46%, na Malsia, de 51% para 18%. Em 2006, at a China, cuja

populao tinha 85% de camponeses em 1950, tem hoje cerca de 50%

nesse setor. Com

37

efeito, com exceo da maior parte da frica subsaariana, os nicos

basties slidos que restam da sociedade rural - digamos, com mais de

60% da populao ocupada em 2000 - esto nos antigos imprios britnico

e francs no Sul da sia - ndia, Bangladesh, Mianmar e os pases da

Indochina. Mas, em vista da acelerao da industrializao, por quanto

tempo mais? No final da dcada de 1960, a populao agrcola de Taiwan

e da Coria do Sul era a metade da populao total; hoje ela representa

8% e 10%, respectivamente. Dentro de poucas dcadas, teremos deixado de

ser o que a humanidade sempre foi desde seu surgimento - uma espcie

cujos membros se dedicam sobretudo coleta, caa e produo de

alimentos. Deixaremos tambm de ser uma espcie essencialmente

rural. Em 1900, apenas 16% da populao mundial vivia em

cidades. Em 1950, esse nmero j havia crescido para quase 26%, e hoje

ele est prximo da metade (48 %).1 Nos pases desenvolvidos e em

muitas outras regies do globo, as zonas rurais, mesmo nas reas

agrcolas produtivas, so desertos verdes, em que praticamente

no se vem seres humanos fora dos seus veculos ou de pequenos

ajuntamentos populacionais. Mas a extrapolao aqui se torna

mais difcil. verdade que os velhos pases desenvolvidos so fortemente

urbanizados, mas eles j no tipificam a urbanizao atual, que toma a

forma de uma fuga desesperada do interior em direo ao que chamamos

hipercidades. O que est acontecendo com as cidades no mundo

desenvolvido - mesmo aquelas que crescem nominalmente - a

suburbanizao de reas cada vez maiores no entorno dos centros

originais. Hoje, apenas dez das cinqenta maiores cidades e apenas

duas das dezoito cidades com mais de 10 milhes de habitantes esto na

Europa ou na Amrica do Norte. As cidades com mais de 1 milho de

habitantes que mais crescem esto (com a nica exceo do Porto, em

Portugal) na sia (vinte), na frica (seis) e na Amrica Latina (cinco).

Sem falar nas 3" outras conseqncias dessa evoluo, ela altera

fortemente - e de maneiras difceis de prever, em especial nos pases em

que os chefes de governo e os parlamentos so eleitos-o equilbrio

poltico entre a populao urbana, altamente concentrada, e a populao

rural, geograficamente dispersa.

Falarei pouco sobre a transformao educacional, uma vez

que os efeitos sociais e culturais da alfabetizao generalizada no

podem ser facilmente separados dos efeitos sociais e culturais da

revoluo sbita e totalmente sem precedentes nos meios de

comunicao pblicos e pessoais, da qual estamos todos participando.

Quero mencionar apenas um fato significativo. H hoje vinte pases em

que mais de 55% dos grupos de idade mais avanada continuam estudando

depois da educao secundria. Mas, com a nica exceo da Coria do

Sul, todos esto na Europa (tradicionalmente capitalista e ex-

socialista), Amrica do Norte e Oceania. No que diz respeito capacidade de

gerar capital humano, o velho mundo desenvolvido ainda mantm uma

vantagem substancial sobre os principais pases emergentes do sculo

XXI.

Com que velocidade a sia, e particularmente a China e a ndia,

podero aproximar-se dele?

No quero dizer nada aqui sobre a maior de todas as mudanas

sociais do ltimo sculo, a emancipao da mulher, exceto quanto a uma

nica observao que suplementa o que acabo de dizer. A emancipao das

mulheres encontra seu melhor indicador no grau em que elas alcanaram,

ou mesmo ultrapassaram, a educao dos homens. No necessrio frisar,

aqui na ndia, que h certas partes do mundo que ainda esto atrasadas

a esse respeito.

Dentro desta nossa perspectiva ampla das transformaes

inditas que ocorreram nestes ltimos cinqenta anos, vamos

enfocar com maior detalhe os fatores que afetam a guerra, a paz e

39

o poder no comeo do sculo XXI. Aqui, as tendncias gerais no

valem necessariamente como orientao para o exame das realidades

prticas. evidente, por exemplo, que no transcurso do sculo XX a

populao mundial (fora das Amricas) deixou de ser governada, como

quase toda ela o era, de cima para baixo, por monarcas hereditrios ou

por agentes de potncias estrangeiras. Ela agora vive em uma srie

de Estados tecnicamente independentes, cujos governos reivindicam sua

legitimidade fazendo referncia ao "povo" ou "nao", na maioria

dos casos (o que inclui at os chamados regimes totalitrios), e buscam

confirm-la por meio de eleies ou plebiscitos, reais ou esprios, ou

atravs de grandes cerimnias pblicas realizadas periodicamente para

simbolizar o vnculo entre a autoridade e "o povo". De uma maneira ou

de outra, o povo deixou de ser composto por sditos, que se

transformaram em cidados e que passaram a incluir no sculo XX no s

os homens, mas tambm as mulheres. At que ponto, contudo, isso nos d

uma idia da realidade, mesmo hoje, quando a maior parte dos governos

ostenta, tecnicamente falando, variados tipos de Constituies liberal-

democrticas, com eleies plurais, embora algumas vezes suspensas

por perodos de governos militares, que se proclamam temporrios mas

muitas vezes duram longo tempo? No muito.

No obstante, existe uma tendncia geral que se observa

provavelmente em quase todo o planeta. Trata-se da mudana da posio

do prprio Estado territorial independente, que, no transcurso do sculo

XX, tornou-se a unidade poltica e institucional bsica na qual viviam

os seres humanos. Em seu bero original, na regio do Atlntico Norte,

ele se baseava em vrias inovaes que se implantaram a partir da

Revoluo Francesa. Tinha o monoplio do poder e dos meios de coero -

armas, homens armados e prises - e exercia controle crescente, por meio

de uma autoridade central e de seus agentes, sobre o que acontecia

no territrio

40

do pas com base em uma capacidade cada vez maior de reunir

informaes. O mbito de suas atividades e seu impacto sobre a

vida diria dos cidados cresceu, assim como sua capacidade de

mobilizar os habitantes em funo da lealdade destes ao Estado e

nao. Essa fase do desenvolvimento do Estado alcanou o auge

cerca de quarenta anos atrs.

Pense, por um lado, no sistema de "bem-estar social" da

Europa ocidental da dcada de 1970, no qual o "consumo pblico"

- ou seja, a proporo do produto interno bruto usada para propsitos

pblicos e no para consumo ou investimento privados - chegava

basicamente a 20% ou 30%. Pense, por outro lado, na disposio dos

cidados no apenas para deixar que as autoridades pblicas lhes

cobrassem impostos que permitiam a arrecadao dessas somas enormes,

mas tambm para deixar-se recrutar aos milhes para lutar e morrer

"pelo pas", durante as grandes guerras do ltimo sculo. Por mais

de duzentos anos, at a dcada de 1970, a ascenso do Estado moderno

deu-se de forma contnua e independentemente da ideologia e da

organizao poltica - liberal, socialdemocrata, comunista ou fascista.

Isso j no acontece. A tendncia se reverteu. Temos uma economia

mundial em rpida globalizao, baseada em empresas privadas

transnacionais que se esforam ao mximo para viver fora do alcance das

leis e dos impostos do Estado, o que limita fortemente a capacidade

dos governos, mesmo os mais poderosos, de controlar as economias

nacionais. Com efeito, graas prevalncia da teologia do mercado

livre, os Estados esto, na verdade, abandonando muitas das suas

atividades diretas tradicionais - servios postais, polcia, prises

e mesmo setores importantes das Foras Armadas - em favor de empresas

privadas com fins lucrativos. Estima-se que atualmente 30 mil ou

mais desses "contratados privados" armados estejam atuando no Iraque.

Graas a esse desenvolvimento e inundao do planeta com armas leves mas

41

altamente efetivas durante a Guerra Fria, a fora armada j no um

monoplio dos Estados e de seus agentes. Mesmo Estados fortes e

estveis, como a Gr-Bretanha, a Espanha e a ndia, aprenderam a

conviver por longos perodos com organizaes de dissidentes

armados efetivamente indestrutveis e por vezes portadores de

ameaas diretas ao prprio Estado. Testemunhamos a rpida

desintegrao, por diversas razes, de numerosos Estados-membros das

Naes Unidas, na maior parte dos casos, mas no na totalidade deles,

produtos da desintegrao dos imprios do sculo XX nos quais os

governos nominais so incapazes de exercer controle real sobre boa parte

do territrio, da populao e at de suas prprias instituies.

Impressiona muito, tambm, o declnio da aceitao da legitimidade

do Estado e da aceitao voluntria de obrigaes perante as autoridades

governamentais por parte dos habitantes, seja como cidados, seja como

sditos. Se no houvesse, por parte de vastas populaes e durante a

maior parte do tempo, essa disposio de aceitar como legtimo qualquer

poder estatal efetivamente estabelecido - mesmo o poder de um pequeno

grupo de estrangeiros -, a era do imperialismo dos sculos XIX e XX

teria sido impossvel. As potncias estrangeiras tiveram dificuldades

graves apenas nas raras reas em que tal disposio no estava presente,

como o Afeganisto e o Curdisto. Mas, como o Iraque demonstra, a

obedincia natural das pessoas diante do poder, mesmo um poder com

superioridade militar incontrastvel, desapareceu, e com ela tambm os

imprios. E no s a obedincia dos sditos que est erodindo

rapidamente, mas tambm a dos cidados. Duvido muito que qualquer pas

possa hoje empreender grandes guerras com exrcitos recrutados prontos

para lutar e morrer sem vacilao "pelo pas". Poucos pases do

Ocidente ainda podem confiar, como a maior parte dos chamados "pases

desen- volvidos" antes podia faz-lo, em uma populao que era ordeira e

42

imbuda do respeito lei, exceto nos casos de criminosos e outros

marginais que sempre existem nos desvos da sociedade. A proliferao

extraordinria de meios tecnolgicos, e outros, de manter os cidados

sob vigilncia o tempo todo (com cmeras em locais

pblicos, escuta

telefnica, acesso a dados pessoais e a computadores etc.) no aumentou

a efetividade do Estado e da lei, mas tornou os cidados menos livres.

Tudo isso est ocorrendo na era de uma globalizao dramaticamente

acelerada, que gera crescentes disparidades regionais no nosso planeta. A

globalizao produz, pela sua prpria natureza, crescimentos

desequilibrados e assimtricos. Isso tambm pe em destaque a

contradio entre os aspectos da vida contempornea que esto sujeitos

globalizao e s presses da padronizao global - a cincia, a

tecnologia, a economia, vrias infra-estruturas tcnicas e, em menor

medida, as instituies culturais - e os que no esto sujeitos a ela,

principalmente o Estado e a poltica. A globalizao leva logicamente,

por exemplo, a um fluxo crescente de trabalhadores migrantes das reas

pobres para as ricas, mas isso produz tenses polticas e sociais

em diversos pases afetados, sobretudo entre os pases ricos da velha

regio do Atlntico Norte, ainda que, em termos globais, esse movimento

seja modesto: mesmo hoje, apenas 3% da populao mundial vive fora do pas de

nascimento. Ao contrrio do que acontece com as movimentaes do

capital, das trocas comerciais e das comunicaes, os Estados e a

poltica tm logrado, at aqui, impor obstculos eficazes s migraes

dos trabalhadores.

O desequilbrio novo e mais notvel que a globalizao econmica

criou, alm da enorme desindustrializao da economia sovitica e das

economias socialistas da Europa oriental na dcada de 1990, a

progressiva mudana do centro de gravidade da economia mundial das

regies lindeiras do Atlntico Norte para regies da sia. Isso ainda

est em seus estgios iniciais, mas vem se

43

acelerando. No h dvida de que o crescimento da economia mundial nos

ltimos dez anos foi puxado em grande medida pelos dnamos asiticos e,

acima de tudo, pela extraordinria taxa de crescimento da produo

industrial da China - 30% em 2003, em comparao com 3% para o mundo

como um todo e 0,5% para a Amrica do Norte e Alemanha.

* claro que isso ainda no modificou de maneira mais profunda os

pesos relativos da sia e do velho Atlntico Norte - os Estados Unidos, a

Unio Europia e o Japo continuam a representar entre si 70% do produto

mundial -, mas o simples tamanho da sia j est se fazendo sentir. Em

termos de poder de compra, o Sul, o Sudeste e o Leste da sia j

representam um mercado que dois teros maior do que o dos Estados Unidos.

Como essa mudana global afetar a fora relativa da economia americana

, naturalmente, uma questo vital para as perspectivas

internacionais do sculo XXI. Retornarei a este ponto mais adiante.

Aproximemo-nos ainda mais do problema da guerra, da paz e da

possibilidade de uma ordem internacional no novo sculo. primeira

vista, pareceria que as perspectivas de paz mundial devem ser superiores

s do sculo XX, com seu registro sem paralelos de guerras mundiais e

outras formas de morte em escala astronmica. Contudo, uma pesquisa

recente na Gr-Bretanha, que compara as respostas dadas em 2004 a

perguntas formuladas inicialmente em 1954, revela que o medo de uma

guerra mundial hoje maior do que era ento.3 Esse medo se deve,

em grande parte, ao fato cada vez mais evidente de que vivemos em uma

era de conflitos armados endmicos de extenso mundial, que em geral se

travam no interior dos pases, mas que so magnificados por

* Austrlia, Frana, Itlia, Reino Unido e Benelux tiveram crescimento negativo

(CIA World Facibook at 19 de outubro de 2004).

44

impervertCN estrangeiras. Embora a dimenso militar desses conflitos

Ifijit pequena, quando avaliada nos termos do sculo XX, eles cauiHili

um impacto relativamente enorme e duradouro sobre a poptiluco civil,

que , cada vez mais, sua maior vtima. Desde a qucdti do muro de

Berlim, voltamos a viver em uma era de genocdio c de transferncias

compulsrias e macias de populaes, como as que ocorreram em regies

da frica, do Sudeste da luropa e da sia. Estima-se que ao final de

2003 havia cerca de 38 milhes de refugiados, dentro e fora de seus

prprios pases, cifra que comparvel ao vasto nmero de pessoas

deslocadas ao final du Segunda Guerra Mundial. Uma ilustrao simples:

em 2000, o nmero de mortes relacionadas com a guerra em Mianmar no

ditava acima de quinhentos, mas o nmero de "deslocados internamente",

sobretudo devido s atividades do Exrcito de Mianmar, era de cerca

de 1 milho. A Guerra do Iraque confirma essa caracterstica: guerras

menores, nos padres do sculo XX, provocam vastas catstrofes.

A forma tpica de guerra do sculo XX, a guerra entre pases,

est em forte declnio. Neste momento, nenhum desses conflitos

tradicionais est ocorrendo, embora eles no possam ser excludos

em diversos cenrios da frica e da sia, ou onde a estabilidade

interna ou a coeso dos pases existentes esteja em risco. Por outro

lado, o perigo de uma grande guerra global, provavelmente decorrente

da falta de vontade dos Estados Unidos de aceitar o surgimento da

China como superpotncia rival, no diminuiu, embora no seja imediato.

As possibilidades de evitar tal conflito so melhores do que as de

evitar a Segunda Guerra Mundial depois de 1929. No obstante, essa

guerra permanece como uma possibilidade real dentro das prximas dcadas.

Mesmo sem as guerras tradicionais entre pases, pequenas ou

grandes, atualmente poucos observadores realistas esperam que o

novo sculo nos traga um mundo sem a presena constante de

45

armas e violncia. No entanto, devemos resistir retrica do medo

irracional com a qual governos como os do presidente Bush e do

primeiro-ministro Blair buscam justificar uma poltica imperial

para o mundo. Exceto como metfora, no pode haver algo como

a "guerra contra o terror", ou o "terrorismo", mas apenas contra

atores polticos particulares que o empregam como ttica, no

como programa. Como ttica, o terror indiscriminado e moralmente

inaceitvel, quer seja usado por pases, quer por grupos no oficiais.

A Cruz Vermelha Internacional reconhece a mar montante da barbrie ao

condenar ambos os lados na Guerra do Iraque. H tambm muito medo

de que pequenos grupos terroristas possam empregar agentes biolgicos

letais; mas, infelizmente, h muito menos medo com relao aos perigos

maiores e imprevisveis que surgiro se e quando a nova e crescente

capacidade cientfica de manipular os processos vitais, inclusive a

vida humana, escapar ao controle, o que certamente ocorrer. Contudo,

so irrisrios os perigos reais para a estabilidade do mundo, ou para

qualquer pas estvel, que decorrem das atividades das redes terroristas

pan-islmicas contra as quais os Estados Unidos proclamaram sua

guerra global, ou mesmo da soma de todos os movimentos terroristas

que atuam hoje, qualquer que seja o lugar. Embora eles matem muito mais

gente do que seus predecessores - mas muito menos do que os Estados -,

o risco de vida que causam mnimo do ponto de vista estatstico.

E, do ponto de vista da agresso militar, eles praticamente no

contam. A menos que esses grupos ganhassem acesso a armas nucleares - o

que no impensvel, mas no chega a ser uma perspectiva imediata

q-, o terrorismo pede cabea fria, e no histeria.

E, no entanto, a desordem mundial real, assim como a perspectiva

de outro sculo de conflitos armados e de calamidades

46

humanas. Ser possvel colocar essas tendncias novamente sob algum

tipo de controle global, como aconteceu, salvo por um perodo de trinta

anos, durante os 175 anos que transcorreram entre Waterloo e o colapso

da Unio Sovitica?

O problema hoje mais difcil por duas razes. Primeiro, as

desigualdades geradas pela globalizao descontrolada dos mercados

livres, que crescem muito rpido, so incubadoras naturais de

descontentamentos e instabilidades. Recentemente observou-se

que "no se pode esperar que nem mesmo as instituies militares

mais avanadas sejam capazes de superar uma situao de colapso

geral da ordem jurdica",5 e a crise dos Estados a que me referi torna

essa possibilidade mais plausvel do que no passado. E, segundo, j

no existe um sistema internacional plural de grandes potncias

como o que logrou evitar que um colapso geral se transformasse

em guerra mundial, exceto na era das catstrofes, de 1914 a 1945.

Esse sistema baseava-se na presuno, que vem desde os tratados

que encerraram a Guerra dos Trinta Anos, no sculo XV, de um

mundo constitudo por Estados cujas relaes se pautavam por

regras, especialmente a no-interveno nos assuntos internos de

cada um, e em uma clara distino entre guerra e paz. Nenhum

desses dois pontos mantm-se vlido em nossos dias. Ele baseava-se

tambm na realidade de um mundo de poder plural, mesmo na pequena

"primeira diviso" dos pases, o punhado de "grandes potncias" que se

reduziu aps 1945 a duas superpotncias. Ningum podia prevalecer de

maneira absoluta, e mesmo as hegemonias regionais (com exceo de uma

boa parte do continente americano) mostravam-se apenas temporrias.

O fim da Unio Sovitica e a superioridade militar incontrastvel dos

Estados Uni-dos puseram termo a esse sistema de poder. Por outro lado, a

ao poltica dos Estados Unidos a partir de 2002 levou condenao

das obrigaes contradas em tratados e tambm das prprias convenes

que compunham a arquitetura do sistema internacional,

47

em funo de uma supremacia supostamente duradoura na

guerra ofensiva de alta tecnologia que fez desse pas o nico capaz

de empreender aes militares importantes e com rapidez em

qualquer parte do mundo.

Os idelogos americanos e os que os apoiam vem esses desdobramentos

como o incio de uma nova era de paz mundial e de crescimento econmico

sob o comando de um imprio americano global e benevolente, que eles

comparam, erroneamente, kpaxbritannica do sculo XIX. Erroneamente

porque, do ponto de vista histrico, os imprios no criam paz e

estabilidade no mundo sua volta, ao contrrio de seus prprios

territrios. Inversamente, era sobretudo a ausncia de conflitos

internacionais de grande porte o que os mantinha em existncia, como

aconteceu no caso do Imprio Britnico. Quanto s boas intenes dos

conquistadores e s suas realizaes positivas, isso pertence esfera da

retrica imperial. Os imprios sempre se justificam, e s vezes com

grande sinceridade, em termos morais - seja afirmando que promovem a

disseminao (na verso deles) da civilizao ou da religio entre

os brbaros, seja (na verso deles) da liberdade entre as vtimas da

opresso (alheia), ou como campees dos direitos humanos. Claro que os

imprios alcanaram alguns resultados positivos. A afirmao de que o

imperialismo levou idias modernas a um mundo atrasado, que no tem

validade hoje, no era inteiramente espria no sculo XIX. Por outro

lado, a afirmao de que ele acelerou significativamente o crescimento

econmico dos clientes imperiais no resiste anlise, pelo menos fora

das reas em que os prprios europeus se estabeleceram no ultramar.

Entre 1820 e 1950, o produto per capita mdio de doze pases da Europa

ocidental multiplicou-se por 4,5, enquanto na ndia e no Egito ele mal

chegou a crescer.6 Quanto democracia, todos sabemos que os imprios

fortes a mantm em casa; s os imprios em declnio a concederam, e

na menor dose possvel.

48

Mas a verdadeira questo refere-se a saber se o projeto, sem

precedentes histricos, de dominao do mundo por um nico

pas possvel e se a superioridade militar admitidamente incon

trastvel dos Estados Unidos adequada para estabelec-la e mant-la.

A resposta em ambos os casos no. Com freqncia armas criam

imprios, mas preciso mais do que armas para mant-los, como diz o

velho ditado do tempo de Napoleo: "Voc pode fazer qualquer coisa

com baionetas, menos sentar em cima delas". Especialmente hoje, quando

at uma fora militar esmagadora no consegue produzir por si s a

aquiescncia tcita. Na verdade, a maioria dos imprios da histria

governou indiretamente, por meio das elites nativas que muitas vezes

operavam as instituies locais. Quando se perde a capacidade de

conseguir amigos e colaboradores suficientes entre os sditos, as

armas por si ss no bastam. Os franceses aprenderam que nem mesmo 1

milho de colonizadores brancos, um exrcito de ocupao de 800 mil

homens e a derrota militar dos insurgentes, mediante o massacre e a

tortura sistemticas, no lograram manter a Arglia francesa. Mas p

or que temos de fazer essas perguntas? Isso nos traz ao enigma com

o qual quero concluir minha conferncia. Por que os Estados Unidos

abandonaram as polticas que mantiveram uma hegemonia real sobre a

maior parte do globo, ou seja, as partes no-comunistas e no-

neutralistas, depois de 1945? A capacidade americana de exercer essa

hegemonia no estava baseada na destruio dos inimigos nem em forar

seus dependentes a alinhar-se devido aplicao da fora militar.

O uso desse instrumento estava ento limitado pelo medo do suicdio

nuclear. O poder militar dos Estados Unidos era relevante para a

hegemonia apenas na medida em que era prefervel a outros poderes

militares, ou seja, na Guerra Fria, a Europa da OTAN (Organizao do

Tratado do Atlntico Norte) desejava seu apoio contra o poderio militar

da Unio Sovitica.

A hegemonia americana na segunda metade do sculo XX no

49

se deveu s bombas, e sim sua enorme riqueza e ao papel crucial

que sua gigantesca economia desempenhou no mundo, especialmente nas

dcadas posteriores a 1945. Alm disso, do ponto de vista poltico, ela

se deveu a um consenso geral dos pases ricos do Norte no sentido de

que suas sociedades eram preferveis s dos regimes comunistas. E onde

esse consenso no existia, como na Amrica Latina, resultou de uma

aliana com as elites governantes e os exrcitos locais, que temiam

a revoluo social. Do ponto de vista cultural, ela teve por base a

atrao exercida pela afluente sociedade de consumo, vivenciada e

propagada pelos Estados Unidos, que foram seus pioneiros, e pelas

conquistas mundiais de Hollywood. Do ponto de vista ideolgico, o pas

sem dvida se beneficiou da reputao de defensor exemplar da

"liberdade" con-tra a "tirania", exceto nas regies em que sua aliana

com os inimigos da liberdade era demasiado bvia.

Tudo isso poderia sobreviver facilmente ao fim da Guerra Fria

- como de fato ocorreu. Por que os demais no buscariam a liderana da

superpotncia que representava o que a maioria dos outros pases j

adotava - a democracia eleitoral - e que era a maior de todas as

potncias econmicas comprometidas com a ideologia neoliberal que se

impunha em todo o mundo? A influncia dos Estados Unidos e dos seus

idelogos e executivos era imensa. Sua economia, embora perdesse pouco a pouco

o papel central que tinha no mundo e a dominncia que exercia na

indstria e mesmo no campo dos investimentos diretos, desde a

dcada de 1980,* continuava a ser enorme e a gerar riquezas prodigiosas.

* Em 1980, a participao dos Estados Unidos correspondia a cerca de 40% dos

investimentos estrangeiros diretos; entre 1994 e 2005, alcanava a mdia de

apenas 14%, contra uma mdia de 43% para a Unio Europia (UNCTAD -

Conferncia das Naes Unidas sobre Comrcio e Desenvolvimento, World

Economic Outlook [Genebra, 2006]," Overview", p