giro dervixe

188
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS v> 'X PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA ENTRE O CAMELO E O LEÃO: A DIALÉTICA DO GIRO DERVIXE Uma Etnografia do Sama - a Dança Girante dos Dervixes da Ordem Sufi Mevlevi GISELLE GUILHON ANTUNES CAMARGO FLORIANÓPOLIS SANTA CATARINA - BRASIL SETEMBRO -1997

Upload: vinking-soul

Post on 05-Sep-2015

428 views

Category:

Documents


46 download

DESCRIPTION

Giro Dervixe Mevlevi

TRANSCRIPT

  • UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA

    CENTRO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANASv>'XPROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA

    ENTRE O CAMELO E O LEO: A DIALTICA DO GIRO DERVIXE

    Uma Etnografia do Sama - a Dana Girante dos Dervixes da Ordem Sufi Mevlevi

    GISELLE GUILHON ANTUNES CAMARGO

    FLORIANPOLIS SANTA CATARINA - BRASIL

    SETEMBRO -1997

  • ENTRE O CAMELO E O LEO: A DIALTICA DO GIRO DERVIXE. UM A ETNOGRAFIA DO SAM A - A DANA GIRANTE DOS DERVIXES DA ORDEM SUFI MEVELEVI.

    GISELLE GUILHON ANTUNES CAMARGO

    Esta Dissertao foi julgada e aprovada em sua forma final para obteno do ttulo de MESTRE EM HISTRIA DO BRASIL

    BANCAEXAM INADO RA

    Prof. Dr. Fernando Dias de vila Pires (Orientador)

    Prof. Dr. Artur Csar Isaia

    At aiHjJcAoProfApr. Joj Jorge Carvalho (U N B )

    Prof. Dr. lio Cantalcio Serpa (Suplente)

    Florianpolis, 12 de setembro de 1997

  • ENTRE O CAMELO E O LEO: A DIALTICA DO GIRO DERVIXE

  • Ao meu av (in memorium), por ter me ensinado a perseverar.

  • AGRADECIMENTOS

    Eu gostaria de agradecer primeiramente ao meu orientador Fernando Dias de vila Pires,

    por ter acreditado nesse trabalho e incentivado minha ida Turquia;

    Aos professores do Curso de Ps-Graduao em Antropologia Social da UFSC, por terem

    contribudo para a minha formao de pesquisadora, e me iniciado na prtica do trabalho de

    campo antropolgico, especialmente os antroplogos Slvio Coelho dos Santos, Rafael Jos de

    Menezes Bastos, Miriam Pillar Grossi e Elsje Maria Lagrou;

    Ao Programa de Ps-Graduao em Histria por ter aceito minha transferncia do

    mestrado em Antropologia, bem como meu projeto de pesquisa;

    s queridas me e av, por sempre respeitarem as minhas escolhas pessoais, mesmo as

    mais radicais;

    Sou muitssimo grata aos amigos Mara Loureiro, Maria da Graa Pontes, Cleusa Ramos,

    Oswaldo Miqueluzzi, Virgo e Mariza Miqueluzzi, Juclia e Janete Corra, Maurcio Muller,

    Cristina du Pasquier, Eliane de Jesus, Joo Kracik Jr., Omar Sabbag Filho, Flvio Alarsa, Samuel

    Napolitano, Norton Carneiro, Marina Moros, Maria Jos dos Santos, Edmundo Agorio, kleber

    Rosa, dentre outros, por terem me acompanhado, cada um a seu modo, nessa caravana;

    Agradeo a incrvel hospitalidade daqueles que me receberam na Turquia, especialmente

    Misbah Erkmenkul, Yasar Guvenc, Rahmi Guvenc, Meryem e Hanefi Kirgiz, Ender Karaca,

    Nazan karaca, Fatima e Talip Karaca, Mustafa Bas, Asim Kaplan, Husseyin Kaplan, Muzafer

    Kaplan, Mustafa Diken, Abdurrahmann Evin, Nail Kesova e Suleyman Erguner.

    Finalmente aos amigos da Karavan de Konya e ao departamento de msica da

    Universidade Seljuk de Konya, que me forneceu um material muito raro sobre msica sufi, bem

    como algumas partituras de Msica Turca Clssica.

  • Vieste apenas contemplar o nascer do e te deparas conosco girando como tomos em profuso, quem teria tanta sorte?

    Rumi

  • RESUMO

    Esta dissertao uma pesquisa etnogrfica do Sama, a dana girante inspirada

    pelo poeta persa Jalaluddin Rumi, em Konya (Turquia), no sculo XIII. uma

    descrio densa do ritual, com suas pertinncias etno-coreo-musicolgicas.

    Tomando como ponto de partida a Antropologia e a Histria optei por uma abordagem

    interdisciplinar, dialogando com a Filosofia, a Poesia, a Dana e a Etnomusicologia. A

    interpretap envolvida consistiu em salvar o dito sob formas pesquisveis, fixando-

    o, assim, no quadro geral de prticas mstico-filosfcas , tanto orientais quanto

    ocidentais.

  • ABSTRACT

    This thesis is an ethnographic research of Sama, The gyrating dance inspired

    by the Persian poet Jalaluddin Rumi, in Konya (Turkey), in the 13th century. It

    includes a dense descriptionof that ritual, with its ethno-coreo-musicological

    relevance. Taking Anthropology and History as the starting point, this study provides

    an interdisciplinary approach including Philosophy, Poetry, Dance and

    Ethnomusicoly. The interpretation involved consisted of preserving discourseunder

    researchable forms, thereby placing it in the general framework of both eastern and

    western mystical-philosophical practices.

  • SUMRIO

    APRESENTAO ________;______________________ _________________________

    ENTRE UM GIRO E OUTRO: UMA INTRODUO //

    I. DE UMA CINCIA DA HISTRIA PARA UMA HISTRIA DA CINCIA:OS SUFIS.____________________________________________________________________

    II. ENTRE O VISVEL (RUMI) E O INVISVEL (SHAMS): UM ENCONTRO DE MESTRES____________________________________________________________________

    III. ENTRE AS CINCIAS HUMANAS E AS ARTES: EM BUSCA DE UMA TEORIA DO SAM A___________________________________________________________

    1. ENTRE A ARTE E O PENSAMENTO: UM REFERENCIAL POTICO- TERICO______________________________________________________________

    2. ENTRE A ANTROPOLOGIA E A HISTRIA: UMA METODOLOGIA DIALTICA____________________________________________________________

    3. ENTRE A PERFORMANCE E O RITUAL: UM REFERENCIAL ETNOLGICO PARA A ANLISE DO SAM A_____________________________________

    4. ENTRE A ETNOMUSICOLOGIA E A MUSICOLOGIA CULTURAL: ALGUMAS TRILHAS A SEGUIR NO DESERTO__________________________

    IV. ENTRE O CAMELO E O LEO: A DIALTICA DO GIRO DERVIXE__________

    V. ENTRE O ESTTICO E O EXTTICO: PARA ALM DE UM PENSAMENTO SEM CORPO E DE UM CORPO SEM ALMA____________________________________

    V. CONCLUSO_______________________________ ______________________________

    ANEXO:

    AS ORDENS DE DERVIXES DA TURQUIA: FRAGMENTOS DE UM DIRIO DE CAMPO

    BIBLIOGRAFIA CONSULTADA

  • dia, le\anta! tomos danam, as almas, perdidas em xtase, danam, a abboda celeste, por causa desse Ser, dana, ao ouvido eu te direi para onde o leva a sua dana. Todos os tomos que esto no ar ou no deserto, saiba que esto enamorados como ns, e que cada tomo, feliz ou infeliz, est atordoado pelo sol da Alma no-condicionada.

    Rumi

  • 7APRESENTAO

    A presente dissertao tem como inteno primeira um estudo preliminar do Sama, a

    dana girante dos dervixes' da Ordem sufi2 Mevlevi, criada pelo poeta persa Jalaluddin Rumi, em

    Konya (Turquia), no sculo XIII.

    A vontade de estudar o Sama comeou a germinar quando vi pela primeira vez a imagem

    de um dervixe girando. Foi numa revista que eu folheava distraidamente numa pequena livraria de

    Londres, em 1993. Dias depois, enquanto caminhava com uma amiga no Richmond Park,

    conversando sobre os nossos destinos profissionais, tive uma estranha certeza: iria retomar ao

    Brasil para estudar o Sama... Na Turquia.

    Havia, naquela poca, uma situao sincronicamente relacionada com esta deciso: em

    Londres eu tomara conscincia, uma vez mais, de um desejo antigo: estudar a msica e a dana

    dos povos do Oriente. A dana eu tentava efetivamente resgatar trabalhando para uma companhia

    que mesclava dana contempornea com dana clssica indiana.

    Alm disso, j vinha eu me interessando, desde 1990, pelo estudo do Sufismo e suas

    prticas, o que, de certo modo, facilitou a minha aproximao do objeto em questo.

    Em 1994 entrei para o mestrado de Antropologia Social desta universidade com um

    projeto que propunha a continuao de um trabalho iniciado por mim em 1991: o estudo da

    msica dos ndios Guarani de Ibirama (SC), que foi tambm tema do meu Trabalho de Concluso

    de Curso em Cincias Sociais, em 1992.

    No decorrer do mestrado, aps ter cumprido a maioria dos crditos, o desejo de estudar o

    Sama voltou com fora total. Traindo o projeto indgena, fiz um outro, voltado para a

    compreenso desse ritual turco-balcnico que tanto me suscitava reflexes sobre a cincia

    contempornea, as artes e a filosofia.

    Esta mudana de direo implicou tambm na minha transferncia, em 1995, para o

    mestrado de Histria. Assim, revalidei os crditos cumpridos na Antropologia, fazendo mais

    algumas disciplinas.

    1 A palavra "dervixe" de origem persa e significa literalmente "algum que espera na porta". tambm associada ao estado de pobreza e simplicidade. No contexto sufi designa o "buscdor". uma traduo do rabe "sufi", palavra provavelmente mais antiga. Ver Textos Sufis. RJ: Edies Dervish, 1990.

    A palavra "sufi" deriva do radical rabe suf que significa l. Os sufis vestiam l a fim de demonstrar sua rejeio luxria. Ver MATAR, N. I. Islam for Beqinners. NY: Writers and Readers Publishing, 1992:112.

  • Em 1996. entre os meses de maro e junho, viajei para a Turquia em busca dos Dervixes

    Danantes, com a finalidade de realizar o campo.

    Agora, entre as influncias diversas que tem este trabalho, influncias que comeam com a

    minha formao em dana e yoga, a paixo pela msica, a graduao em Cincias Sociais, o

    mestrado em .Antropologia Social, e, dentre outras, a tentativa de interface com a. Histria,

    procuro um ponto de interseco que permita uma traduo do Sarna para a linguagem

    acadmica. Na busca de um sistema de comunicao comum s vrias reas que por aqui

    transitam, a inevitvel dissonncia interdisciplinar.

    A dissertao formada de uma introduo, cinco captulos e um anexo:

    A introduo antes um elogio ao giro e s prticas similares de dana e meditao do

    que propriamente um referencial do que vem a ser o Sama. Tem como inteno colocar o leitor

    em contato com o esprito do objeto, mais do que com o objeto ele prprio.

    O captulo I pode ser considerado uma segunda introduo. E uma passada de olhos pela

    Histria da Cincia, do ponto de vista da influncia que esta teve dos rabes sufis. No deixa de

    ser tambm uma interface com o Sufismo. Aqui a inteno aproximar o leitor do contexto

    histrico-cientfico-filosfico do qual Rumi, o criador do Sama, tambm fez parte. A sntese foi' 3feita com base no livro Uma Histria dos Povos Arabes, de Albert Hourani e no texto A

    Sabedoria do Isl, de Jos Tadeu Arantes4.

    O captulo II narrativo: conta os principais fatos da vida de Rumi, dentre os quais o seu

    decisivo e clebre encontro com o mestre Shams de Tabriz. Me baseio aqui, principalmente, na5 6sntese de Jos Jorge de Carvalho e na traduo reduzida de Aflaki, ambas edies nacionais.

    O captulo III narra algumas verses de como Rumi teria se inspirado para fazer o Sama,

    e depois divide-se em quatro subcaptulos, onde se concentram os referenciais tericos desta

    dissertao, com toda a interdisciplinaridade que lhe cabe.

    O primeiro subcaptlulo, intitulado Entre a Arte e o Pensamento: um referencial potico-

    terico, uma anlise introdutria do Tausto, de Goethe7 e do Zaratustra, de Nietzsche8. Os

    dois filsofos alemes trouxeram a Arte (a poesia, a msica, a dana) para o texto, colocando-a

    3 A HOURANI. Uma Histria dos Povos rabes. SP: Cia. Das Letras, 1994.4 J. T. ARANTES. A Sabedoria do Isl. Publicado em Globo Cincia nmero 29, 1993.5 J. J. de CARVALHO. Seleo, Traduo e Introduo dos Poemas Msticos - Divan de Shams de Tabriz de Jalaluddin Rumi. RJ: Edies Dervish, 1996.

    AFLK. Os Sufis Voadores. Trechos extrados de Biografias dos Msticos (manqib ul-rifn), traduzido do Persa ao Francs por Clment Houart, sob o ttulo de "Les Saints des Derviches Tourneurs. RJ: Editorial Kashkul, 1995.7 J. W. von GOETHE. Fausto. Traduo de J. K. Segall. BH: Ed. Itatiaia, 1987.8 F. W. NIETZSCHE. Assim Falava Zaratustra. Traduo de J. M. de Souza. RJ: Ed. Tecnoprint, S/D.

  • em dilogo vigoroso com o Pensamento (a filosofia, a histria, a literatura). Espero que possam,

    de alguma forma, cubrir o abismo criado pelas Cincias Humanas, que tanto dissociaram a Arte

    do Pensamento, ampliando, assim, o campo para pensar o Sama.

    O segundo subcaptulo, Entre a Antropologia e a Histria: uma metodologia dialtica

    uma tentativa de interface entre as duas disciplinas, usando como ponto de ligao, dentre outros,

    a viso histrico-filosfica de Walter Benjamin9.

    O terceiro subcaptulo chama-se Entre a Performance e o Ritual: um referencial

    etnolgico para a anlise do Sama. Aqui o Sama tratado como uma sequncia organizada de

    etapas, como um Rito de Passagem. E essas sequncias, aparentemente invariveis, ganham

    suporte terico na abordagem performtica de Tambiah10.

    O quarto e ltimo subcaptulo, Entre a Etnomusicologia e a Musicologia: algumas trilhas

    a seguir no deserto tem por finalidade re-inaugurar um caminho que vem sendo to

    exaustivamente enfatizado tanto na Antropologia Cultural quanto na Musicologia Histrica, que

    a importncia da msica no contexto social ao qual ela pertence. No a msica na cultura, mas a

    msica como parte integrante, atuante e significante dela. (Infelizmente no podemos extrair sons

    do texto! Este ser sempre uma metfora do contexto.) H aqui tambm uma calassificao dos

    instrumentos musicais Mevlevi, e um resumo das partes do Sama.

    O captulo IV, Entre o Camelo e o Leo: a Dialtica do Giro Dervixe, o centro de

    gravidade deste trabalho. Nele est contida a etnografia do ritual, a descriso densa11 do Sama.

    Aqui o discurso social fixado, tanto quanto possvel, atravs do relato minucioso do ritual12

    (estrutura e simbolismos). O objetivo aqui possibilitar o dilogo entre ns e o mundo

    conceituai no qual vivem os outros, os sujeitos ativos do discurso ritual. Este captulo

    entrecortado por um segundo texto, que est propositalmente em itlico para diferenciar-se da

    etnografia, com a qual vai dialogar. Aqui o leitor pode optar entre ler a descrio do ritual

    somente, com as partituras para flauta ou ler o texto descritivo simultaneamente com o subtexto.

    O captulo V, "Entre o Esttico e o Exttico, para alm de um pensamento sem corpo e de

    um corpo sem alma, uma relativizao de conceitos como xtase, transe e possesso,

    9 W. BENJAMIN. Sobre o Conceito de Histria. In: Obras Escolhidas. SP: Ed. Brasiliense, 1987. Alegorias, Imagens, Tableau. In: ARTEPENSAMENTO. SP: Companhia das Letras, 1994.10 TAMBIAH, S. J. A Performative Approach to Ritual. RJ: Editora Vozes, 1978.11 Ver GEERTZ, C. A Interpretao das Culturas. RJ: Zahar, 1978: 13-41. De acordo com Geertz, a descrio densa etnogrfica possui trs caractersticas: ela interpretativa; o que ela interpreta o fluxo do discurso social, e a interpretao envolvida consiste em salvar o dito num tal discurso da sua possibilidade de extinguir-se e fix-lo em formas pesquisveis.

    Ritual aqui entendido diaieticamente, em oposio rotina; como um ciclo que se deseja marcar e revelar; como um fenmeno dotado de certos mecanismos recorrentes, e tambm de certo conjunto de significados. Ver A van Gennep. Os Ritos de Passagem. RJ: Editora Vozes, 1987.

  • 10

    necessrios para o estudo do Sama. A base terica aqui a abordagem sociolgica de Ioan

    Lewis.13

    Segue-se ento a Concluso, que mais um trilhar sobre algumas pistas histricas e

    antropolgicas que possam nos levar a uma compreenso do Sufismo enquanto sistema prtico e

    filosfico, tanto do Oriente quanto do Ocidente, do que propriamente uma concluso. Minha

    inteno aqui, ao contrrio do que fiz na Etnografia, onde utilizei exaustivamente termos e

    referncias prprios da escola Mevlevi, havendo pouco estranhamento, dar uma viso mais

    distanciada, procurando estabelecer algumas fronteiras que nos permitam pensar o Sufismo como

    um sistema singular de conhecimento, dentro do quadro geral de prticas mstico-filosfcas,

    tanto orientais quanto, e principalmente ocidentais, trazendo sua discusso tambm para a

    diversidade do contexto mstico-religioso-filosfico brasileiro.

    A ltima parte um anexo: As Ordens de Dervixes da Turquia: fragmentos de um

    dirio de campo. Tem por finalidade aproximar o leitor do campo vivido por mim na Turquia, de

    modo que possa acompanhar a minha busca do objeto. Esse texto est repleto de imponderveis e

    no tem compromisso com a chamada objetividade cientfica, embora esta permanea como pano

    de fimdo. a revelao da subjetividade da pesquisadora em campo. No h neutralidade aqui.

    H uma explcita intersubjetividade que pretende tirar a mscara hipcrita e imprecisa da pureza

    cientfica. Nenhum pesquisador neutro no campo. Assim como nenhum campo permanece

    inalterado com a presena de um observador. Se no h uma pr-disposio do observador para

    criar empatia com as pessoas do contexto analisado, como pode ser possvel aprender o outro?

    Como entender o que fazem ou sentem em determinado contexto? sempre necessrio um

    mergulho, penso. E tambm uma boa dose de despojamento de idias pr-concebidas sobre o que

    seja certo ou errado. (De qualquer maneira, nossos valores bsicos esto sempre presentes! Mas

    l, no campo, eles precisam ser deixados um pouco de lado, se quisermos exercitar o

    relativismo14 inerente s Cincias ditas Humanas.)

    Gostaria de ter dialogado tambm com a Fsica. Sendo o ritual do Sama, dentre tantas

    definies, tambm uma representao viva da sntese de contrrios contida em tudo que tem

    forma e vida, a possibilidade de dialogar com a fsica contempornea e seu anti-determinismo

    seria bastante frtil, ficando aqui em aberto.

    13 Ver LEWIS, I. M. xtase Reliaioso Um Estudo Antropolgico da Possesso por Esprito e do Xamanismo. SP: Ed. Perspectiva, 1977.14 Ver DAMATTA, R. Relativizando - Uma introduo Antropologia Social. RJ: Rocco, 1987.

  • 11

    ENTRE UM GIRO E OUTRO: UMA INTRODUO

    Toscana. Sculo XIII. So Francisco de Assis, enquanto caminha em companhia de seu

    discpulo Irmo Maseo, ao chegar numa encruzilhada, percebe que esta se divide em trs

    caminhos: um que leva a Florena, outro a Arezzo, e um terceiro a Siena. Maseo pergunta qual

    dos trs caminhos devem tomar.

    -O que quiser, diz So Francisco.

    -E que caminho esse?

    -Conhece-lo-emos por meio de um sinal. Ordeno-lhe, visto que voc me prometeu

    obedincia, que gire sobre si mesmo, como fazem as crianas, at eu mandar parar.

    O pobre Maseo ps-se a girar, at cair no cho de tontura. Depois se levantou e olhou

    splice para o santo. Mas como esse no lhe disse nada, lembrando-se do voto de obedincia,

    recomeou a girar com toda a fora. Continuou a girar e a cair, at lhe parecer que passara toda a

    existncia girando. Ento, finalmente, ouviu as palavras bem vindas:

    -Pre!, e diga-me para onde est voltado o seu rosto.

    -Para Siena - arquejou Maseo, que sentia a terra rodopiar a sua volta.

    -Nesse caso, vamos para Siena - disse So Francisco; e para Siena se dirigiram.15

    Comeo com esta desconcertante histria de giros no casualmente, uma vez que So

    Francisco de Assis viveu na mesma poca que o persa Jalaluddin Rumi, fundador da Ordem sufi

    M evlevi ou Ordem dos Dervixes Danantes, cujo Sama, a dana girante caracterstica dessa

    confraria o objeto central desta dissertao.

    H uma sincronicidade interessante entre Francisco de Assis (nascido em 1182 e Rumi

    (1207 - 1273), criador da Ordem Mevlevi: Francisco de Assis, embora fosse italiano, falava

    provenal, a linguagem dos trovadores. Sua poesia se assemelha tanto, em certas partes, aos

    poemas do poeta Rumi, que se poderia at pensar que houve algum tipo de vnculo entre os dois.

    Em 1224, ou por volta desse ano, So Francisco comps o mais importante e

    caracterstico de todos os seus cnticos: o Cntico dei Sol. Um fato curioso que Rumi,

    considerado o maior poeta da Prsia, escreveu, tambm inmeros poemas dedicados ao sol, o sol

    de Tabriz (cidade do norte da Prsia, onde teria nascido seu mais importante mestre :

    Shamsuddin. O prprio nome Shams significa sol), e at chegou a dar a uma coleo de

    poemas o ttulo de Coleo do Sol de Tabriz. Em sua poesia a palavra sol usada muitas e

    15 Ver IDRIES SHAH. Os Sufis. RJ: Crculo do Livro, 1977: 256

  • 12

    muitas vezes. Coincidentemente, o Cntico dei Sol, de So Francisco de Assis, foi composto

    depois de sua viagem ao Oriente.

    Faltam-te ps para viajar?Viaja dentro de ti mesmo, e reflete, como a mina de rubis, os raios de sol para fora de ti.A viagem te conduzir a teu ser, transmutar teu p em ouro puro.Ainda que a gua salgada faa nascer mil espcies de frutos, abandona todo amargor e acridez e guia-te apenas pela doura.

    o Sol de Tabriz que opera todos os milagres: Toda a rvore ganha beleza quando tocada pelo sol.

    Rum i16

    Mas, voltando ao giro, quem nunca girou? O giro to universal, que est presente em

    tdas as culturas. As pessoas giram, consciente ou inconscientemente, numa espcie de imitao

    cosmolgica, reproduzindo, assim, semelhanas 17, no jogo de espelhos do universo, onde tudo

    gira: estrelas, planetas, sis, luas. A Terra gira ao redor do Sol e ao redor de si mesma; assim

    fazem as crianas quando esto contentes.

    Numa situao de controle, como o caso das escolas sufis e tambm de certas religies,

    que usam o giro como tcnica especfica com determinada funo, o ato de girar parece ativar

    faculdades especiais no ser humano. Umbandistas giram, xams em transe giram, e em todas as

    formas de dana existem giros, piruetas, voltas. Basta lembrar da valsa.18

    16 J. RUMI. Poemas Msticos - Divan de Shams de Tabriz. Seleo, Traduo e Introduo de Jos Jorge de carvalho. SP: Attar Editorial, 1996: 80, 81.17 Ver W. Benjamin. A doutrina das Semelhanas. In: Obras Escolhidas, v. I. SP: Brasiliense, 1985.18 A dana tradicional das bruxas, na Europa medieval, era identificada, ou pelo menos comparada, com duas formas de dana de origem oriental: a dos sarracenos, a valsa (que se supe oriunda da sia atravs dos Balcs, e a dikba, dana de roda do Oriente mdio, conhecida desde o Mediterrneo at o Golfo Prsico.

    Convm notar que a palavra "bruxa", (em espanhol, "bruja"), vem da palavra rabe "mabrush", que quer dizer folies, "marcados na pele", embriagados pelo estramnio", cujo radical rabe "brsh". (Cf. IDRIES SHAH. Os Sufis. RJ: Crculo do Livro, 1977: 234-235)

  • 13

    No momento do giro, a pessoa que o executa como que desaparece, no sentido que

    Nachmanovitch19 usa o termo:

    Quando mente e sentidos ficam por um momento inteiramente presos na experincia nada mais existe. Quando desaparecemos dessa maneira, tudo nossa volta se torna uma surpresa nova e fresca. O ser e o ambiente se unem. Ateno e intuio se fundem. Como na brincadeira infantil, onde a criana se absorve inteiramente, e numa tal concentrao, que tanto ela como o mundo se esvanecem, restando apenas a brincadeira.

    Quando a nica coisa que importa a dana, e no o danarino, quando nos tomamos

    aquilo que estamos fazendo, nossas necessidades fsicas diminuem e o tempo pra. como se

    estivssemos manuseando um instrumento; o corpo que dana o prprio instrumento, e a

    medida que o afinamos, afinamos tambm o esprito.

    um estado que ao mesmo tempo de transe e alerta, quando somos capazes de perceber

    nossa prpria voz interior, apurando nossa percepo intuitiva. Segundo Nachmanovitch, nesse

    momento que o substantivo ser se toma verbo, e desse fulgor de criao, no momento

    presente, que o trabalho e o prazer emergem.

    De acordo ainda com este autor, os sufis chamam esse estado de fana, a anulao do ser

    individual.

    No fana, as caractersticas do pequeno ser se dissolvem para que o grande Ser possa se revelar. Graas a esse poder transpessoal, os artistas, embora usem o idioma de sua terra e de sua poca, so capazes de falar diretamente ao corao de cada um de ns, transcendendo as 7< barreiras do tempo, do espao e da cultura. 20

    Uma experincia semelhante o Sama (a dana girante) dos dervixes (sufis) danantes,

    que significa danar em xtase. Nesse estado, corpo e mente esto to intensamente ocupados na

    atividade, as ondas cerebrais esto to sintonizadas com o ritmo da dana, que o se lf normal se

    anula e a mente atinge um estado de ampliao de conscincia.21

    Desta forma, os dervixes, atravs dos movimentos giratrios do Sama, buscam entrar em

    comunho com o universo manifestado e com a sua origem divina. Nesse sentido, so diferentes

    dos yogues da ndia, os quais, por intermdio de posturas corporais mais extticas, onde a

    permanncia na posio (sana) mxima e a repetio mnima, e de prticas respiratrias e

    19 E. NACHMANOVITCH. Ser Criativo - O Poder da improvisao na Vida e na Arte. Summers ^ Editorial, 1993: 57. ^20 Idem. pp. 58.21 Idem. pp. 58.

  • 14

    meditativas, almejam alcanar um nvel de conscincia superior que os harmonize com a energia

    vital (prana) em estado no-manifestado.

    O Sama na verdade uma forma de meditao dinmica. Com seus rodopios

    embriagantes, ele procura colocar o danarino em harmonia com o movimento dos astros e do

    cosmos, produzindo nele um a forma de transe ou xtase mstico. Os dervixes acreditam que no

    contemplando, mas sim participando do rodopio dos cus que se pode atingir uma completa unio

    com a divindade. Encontramos atividades anlogas na tradio afro-brasileira do candombl e da

    umbanda, que, assim como os dervixes, tambm giram. Porm h uma diferena substancial entre

    as duas tradies: apesar de ambas considerarem o giro, acompanhado de msica e canto, uma

    forma eficaz de orao e meditao, somente na umbanda e no candombl h incorporao; no

    Sufismo no h.

    Sabe-se que Rumi costumava projetar seus mtodos atravs de canais artsticos. A msica,

    a dana e a poesia sempre foram cultivadas e usadas nos encontros dos dervixes, de modo que o

    Sama foi tambm incorporado a esse conjunto de prticas.

    Os movimentos corporais e os exerccios mentais, bem como a respirao ritmada dos

    dervixes danantes, associados msica da flauta pastoril na qual so executados, so o produto

    de um mtodo especial destinado a colocar o discpulo em afinidade com a corrente mstica.22

    Alm desses exerccios, Rumi usava em seu sistema de ensino a explicao, o treinamento mental,

    a reflexo, a meditao, o trabalho, o jogo e exerccios de ao e inao, todos destinados a abrir

    a mente ao reconhecimento de seu potencial maior.

    De acordo com Idries Shah23, mestre sufi e ex-antroplogo, Rumi organizou suas danas

    de acordo com o que considerava a melhor maneira de desenvolver nos discpulos as experincias

    sufistas:

    Isso fo i feito, como revelam antigos documentos, em harmonia com a mentalidade e o temperamento da gente de Konya (Turquia). Imitadores tentaram exportar o sistema para fora

    dessa rea cultural, mas disso resultou que eles s ficaram com uma pantomima, e o efeito original dos movimentos desapareceu.

    Segundo Idries Shah, aconteceu com Rumi o que acontece com todos os mestres sufis, a

    mensagem parcialmente preparada em resposta ao meio em que ele trabalha:

    consta que Rumi introduziu danas e movimentos giratrios entre os discpulos em

    22 Ver I.SHAH. Os sufis RJ: Crculo do Livro, 1988:144,145.23 Idem. pp. 318.

  • 15

    virtude do temperamento jleumtico das pessoas no meio das quais se viu atirado. A chamada variao de doutrina ou de ao prescrita pelos vrios professores sufistas nada mais , na realidade, do que a aplicao dessa regra. 24

    So mtodos geradores de xtase - exemplo fenomenal do mtodo dispersivo por meio do

    qual se constri uma imagem por impacto mltiplo para infundir na mente uma determinada

    mensagem. Outros exemplos dessa tcnica so as piadas, as fbulas e os contos sufis, que por

    meio de uma linguagem aparentemente absurda e irreal tentam comunicar rea necessria da

    mente o evento superior. Para ilustrar o mtodo, apresento, a seguir uma histria de mestre

    Nasrudin (mais lendrio que histrico), que viveu tambm no sculo XIII, e ensinou atravs do

    humor:

    Nasrudin decidiu que poderia beneficiar-se com o aprendizado de algo novo, e procurou um professor de msica:

    - Quanto cobra para ensinar alade?- Trs moedas de prata no primeiro ms, e dai em diante uma moeda de prata por ms.- timo! Comearei pelo segundo ms.>f2s

    As histrias de humor, no ensinamento sufi, tem por finalidade quebrar o pensamento

    condicionado do discpulo, levando-o a um nvel mais apurado de percepo da realidade.

    As histrias-ensinamento, assim como certos movimentos rtmicos e arrtmicos chamados

    dana, so usadas em muitas ordens, sempre em resposta s necessidades dos indivduos e do

    grupo, com a finalidade de alcanar um estado de conscincia maior.

    Tcnicas diversas de dana e meditao foram elaboradas por diferentes culturas para

    alcanar esse estado. Umas de carter mais apolneo, como a filosofia Zen-budista (devocionais),

    outras de carter mais dionisaco, como o Sufismo (mais prticas): essas tradies e prticas,

    assim como o namoro e a brincadeira, so maneiras de esvaziar o self e desaparecer.

    Segundo Idries Shah, os movimentos corporais sufistas nunca podero ser estereotipados,

    e no constituem o que em qualquer outra parte se chama propriamente de dana, calistenia, etc.

    O emprego de movimentos obedece a um modelo baseado em descobrimentos e conhecimentos

    que s podem ser aplicados pelo mestre de uma ordem de dervixes.

    O movimento giratrio contnuo que caracteriza os rodopios do Sama, conforme j o

    concluram diversos autores, no , em sua projeo mental, o estabelecimento de crculos

    concntricos. Seu sentido aquele de uma espiral ascendente, que o dervixe percorre em sua

    24 Idem. pp. 307.25 Histrias de Nasrudin. Traduo de Henrique Cukierman e Mnica Udler Cromberg. RJ: Edies

  • 16

    caminhada para o infinito. A dana vai num crescendo at chegar a um pice em que todos os

    dervixes rodopiam freneticamente. Nesse ponto a msica cessa, mas os danarmos, em seu estado

    de xtase, continuam voltas silenciosas. a que o som de uma flauta solitria comea a traz-

    los pouco a pouco de volta realidade.

    Atualmente, um Sama dura em tomo de 50 minutos. Mas, segundo diversas fontes, diz-se

    que, no passado, o recolhimento nessa atividade poderia durar vrios dias. Os dervixes voltavam

    por eles mesmos ao estado de conscincia normal, aps ter atingido outros nveis mais amplos de

    conscincia.

    Do ponto de vista sufi, a experincia fsica e a experincia espiritual no so antagnicas:

    uma deve ser o reflexo da outra, e ambas devem se sustentar mutuamente. O fato de a dana fazer

    parte do imenso acervo de tcnicas meditativas usadas pelos dervixes no casual: atravs da xL

    dana que o buscador atinge a percepo superior e a comunho com o esprito divino. pela

    dana que ele mergulha no movimento universal, integra-se harmoniosamente nele e alcana a

    conscincia desse movimento.

    Desta forma, o Sama, bem como outras tcnicas sufs fsicas e mentais, tem por finalidade

    despertar no ser humano certas faculdades especiais, com a inteno de chegar a uma

    percepo apurada de uma energia que os sufis chamam de baraka (beleza impalpvel, graa):

    Na forma ou na aparncia de uma coisa a qualidade do amor comum. Quando este se transforma em amor profundo (especial), transmuta-se para ver a essncia, e no a forma. O efeito do amor mostra-se no contraste entre o amor que embeleza a existncia ( amor comum) e o amor que refina (amor especial) 26

    Para falarmos de baraka precisamos relativizar o conceito de energia, uma categoria

    que nos tempos atuais, principalmente nos meios altmativos, tomou-se to comum: substrato

    material e espiritual da vida; substncia-movimento que produz e modifica, como fonte27autnoma, seres e estados.

    28A antroploga Vitria Peres de Oliveira , que estudou um grupo sufi do Brasil, afirma

    que no Sufismo o conceito de baraka vai mais alm do que o conceito de energia, conforme o

    entendido na Cultura Alternativa, pois a baraka no a energia como um todo, isto , algo

    Dervish, 1994: 52.26 Ver IDRIES SHAH. Os Sufis. RJ: Crculo do Livro, 1988: 307.27 Ver L. E. SOARES. Religioso por natureza: cultura alternativa e misticismo ecolgico no Brasil.In: Landim, L. org. - Sinais dos Tempos - Tradies Religiosas no Brasil - RJ: ISER 22,1989:125-131.28 V. P. de OLIVEIRA. O Caminho do silncio - Um estudo de Grupo sufi. Campinas: Unicamp,1991.

  • 17

    especial, que pode ser descrita como um tipo de energia e que se encontra no em todos ou em

    tudo, mas em algumas pessoas, alguns objetos, alguns lugares especiais. Sobre esse conceito na

    Cultura Sufi, diz Oliveira:

    No Sufismo no se fa la em energia como categoria geral, mas se fa la em tipos de energia, qualidades de energia, em ser capaz de captar tipos sutis e diferentes de energia, em sintonizar com determinado tipo de energia. Segundo se diz o ser humano um captador e emissor de energias. Aqui se entendendo captar e emitir, por exemplo como um rdio o faz,

    >'29emitindo ondas eletromagnticas.

    Os dervixes danantes, sujeitos histricos desta dissertao, esto vinculados Ordem sufi

    M evlevi, escola sufi criada por Rumi, no sculo XIII. Esses dervixes buscam o conhecimento

    intuitivo, em parte, por uma forma peculiar de girar sobre si mesmos sob a direo de um mestre.

    ao redor deste centro de gravidade que este trabalho pretende se mover.

    Danar no flutuar sem esforo como um gro de areia soprado pelo vento.danar elevar-se acima do mundo, despedaar o corao e desistir da prpria alma.Danar partir-se em mil pedaos e abandonar totalmente as paixes mundanas.Verdadeiros homens danam e rodopiam num campo de batalha;danam em seu prprio sangue. /Quando renunciam a si mesmos, eles batem palmas;Quando deixam para trs as imperfeies do ser, eles danam.Seus menestris tocam msica interior;e oceanos de paixo se rompem em espuma na crista das ondas.

    1991.29 Idem. pp. 35.30 J. RUMI. in E. NACHMANOVITCH. Ser Criativo - O Poder da Improvisao na Vida e na Arte.Summers Editorial: 1993.

  • 18

    I. DE UMA CINCIA DA HISTRIA PARA UMA HISTRIA DA CINCIA: OS SUFIS

    Os sufis, tambm chamados de dervixes, so membros de uma antiqussima confraria

    mstica e intelectual cujas origens nunca foram traadas nem datadas, mas a quem os povos do

    Oriente devem suas maiores realizaes no campo da mstica, da filosofia, das cincias e das

    artes.'1 '

    A literatura sufi encontra-se amplamente dispersa, desde pelo menos o segundo milnio

    a.C., mas pode-se identificar historicamente, atravs de vrios registros, o seu impacto sobre a

    civilizao a partir do sculo VIII da Era Crist, quando, na antiga Prsia, passou a existir como

    escola de dervixes. Esse impacto estendeu-se at o sculo XVIII, embora sua atuao mais

    visvel tivesse ocorrido nos sculos XI, XII e XIII da Idade Medieval.

    Os primeiros msticos sufis procuraram ensinar, escrevendo contos e versos que pudessem

    devolver ao homem o conhecimento esotrico que as religies estabelecidas j no podiam

    oferecer.

    Sua filosofia e suas tcnicas eram de carter secreto, mas seus grandes feitos imprimiram

    marcas profundas na histria da humanidade. Seus pensadores enfrentaram a constante oposio

    de figuras do establishment durante suas vidas, bem como da ortodoxia islmica, sofrendo,

    assim, grandes perseguies. No entanto, os notveis xitos alcanados pela cincia islmica

    foram realizados pelos sufis, e em campos bastante diversos como a Matemtica, a Astronomia, a

    Fsica, a Qumica, a Medicina, a Geografia, a Histria e a Lingustica. Os exemplos so inmeros:

    Jabir, um dos maiores mestres da alquimia islmica, que viveu no sculo VIII, foi autor de

    uma obra imensa, onde descreveu com perfeio as principais operaes qumicas, como

    destilao, sublimao e cristalizao. A qumica moderna deve muito aos seus ensinamentos, e

    tanto os alquimistas do Oriente quanto os do Ocidente o consideram, ao lado de Hermes

    Trimegisto'2 e de Jafar Sadiq, o sufi, um iniciado de sua arte.

    31 Ver ALBERT HOURANI. Uma Histria dos Povos rabes. SP, Companhia das Letras, 1994.32 Hermes Trimegisto, conhecido dos rabes como Idries, juntamente com Jabir (Geber), o suposto criador da Alquimia ocidental, cuja tradio estudaram clebres professores: Mary (o hebreu), Demcrito (da Grcia), Morieno (de Roma), Avicena (da Arbia), Alberto, o Grande (da Alemanha), Arnold de Villaneuve (da Frana), Toms de Aquino (da Itlia), Raimundo Llio (da Espanha), Roger Bacon (da Inglaterra), Melquior Cibiense (da Hungria), e Antnio Sarmata (da Polnia).

    No entanto, embora seja a tradio que conhecemos, a alquimia j era praticada anteriormente por outros povos. Por exemplo, a China do sculo V a.C. j possuia refinadas idias de alquimia, presentes nos ensinamentos do sbio chins Lao-Ts, fundador do Taosmo, e nascido provavelmente em 604 a.C. A "teoria do elixir", preparao ou mtodo que confere imortalidade, tambm encontrada nos filsofos da china ligados Alquimia, assim como no "Atharva Veda" hindu, cuja data anterior ao ano 1000 a.C.

  • 19

    Das tradues para o latim, muito se perdeu da assonncia que tinham as obras sufistas,

    mas sua interpretao continuou (em proveito dos no-rabes), nos livros escritos em lngua

    persa, como A Alquimia da Felicidade, do sculo XI, de Al-Ghazali, o fiandeiro33, que

    relacionou os estados de felicidade e realizao a um processo de transmutao alqumica da

    mente humana. As idias de Al-Ghazali influenciaram So Toms de Aquino e So Francisco de

    Assis. Al-Ghazali dizia que o Deus dos filsofos no era o Deus do Alcoro, falando a cada

    homem, julgando-o e amando-o. Em sua opinio, as concluses que o intelecto discursivo podia

    alcanar, sem orientao de fora, eram incompatveis com as reveladas humanidade por

    intermdio dos profetas.

    O matemtico rabe Al-Khwarizmi, do sculo IX (800-847), de cujo nome deriva a

    palavra algarismo, foi o introdutor, no pensamento islmico, dos algarismos indianos, que ns

    conhecemos erroneamente como arbicos, alm de ter sido autor de vrias tcnicas para

    resoluo de equaes algbricas. Com ele as tradies gregas, iranianas e indianas foram

    reunidas.

    Al-Kindi, tambm do sculo IX (801-866), considerado o pensador com quem

    praticamente comea a histria da filosofia islmica, fazendo suas idias chegarem ao pensamento

    ocidental. Influenciado pelo filsofo grego Plotino, representante mximo do neo-platonismo, ele

    foi o primeiro a defender a propagao retilnea da luz, a extenso infinita do universo e a

    estabelecer uma relao entre os efeitos qualitativos dos remdios e sua composio quantitativa.

    Al-farabi (872-950), mstico, filsofo, matemtico e mdico, e Averris (1126-1198),

    filsofo, foram dois dos maiores comentadores rabes da obra de Aristteles, que exerceram

    enorme influncia tanto no Isl como no pensamento cristo medieval, de onde se originaram

    muitos dos princpios do pensamento ocidental. Al-Farabi acreditava que o filsofo podia alcanar

    a verdade por meio da razo, e viver por ela, mas que nem todos os seres humanos eram filsofos

    e capazes de apreender diretamente a verdade. Implcita nessas idias estava a sugesto de que a

    filosofia em sua forma pura no era para todos. Averris tratou especificamente do que parecia a

    Ghazali ser a contradio entre a revelao por meio dos profetas e as concluses dos filsofos.

    Segundo ele, nem todas as palavras do Alcoro deviam ser tomadas ao p da letra Quando o

    ano 1000 a.C.33 Al-Ghazali conciliou a sabedoria cornica com a filosofia racionalista, o que lhe valeu o ttulo de "Prova do Islamismo". Os sufis muulmanos tiveram a sorte de proteger-se das acusaes de heresia, vindas, principalmente, dos religiosos islamitas, graas aos esforos de Ghazali, conhecido na Europa por Al-Gazel, que se tomou uma das mais altas autoridades filosficas do mundo muulmano. Ghazali defendeu o emprego especial da msica para elevar as percepes em seu "Ibya", e a msica empregada dessa maneira nas ordens de dervixes Mevlevi e Chisti. A melodia conhecida no ocidente por "Bolero de Ravel" , na verdade, uma adaptao de uma dessas peas especialmente compostas.

  • 20

    sentido literal dos versculos cornicos parecia contradizer as verdades a que chegavam os

    filsofos pelo exerccio da razo, esses versculos precisavam ser interpretados metaforicamente.'4

    Na rea da matemtica e da astronomia, no se pode deixar de mencionar Al-Battani (877-

    929), que fez correes fundamentais no clebre tratado astronmico Almagesto, do grego

    Ptolomeu. Ele tambm lanou as bases da moderna trigonometria, substituindo o sistema grego

    de cordas de ngulos pelas noes de seno e co-seno. Nessa mesma rea, pode-se citar ainda AJ-

    Sufi, que com base nos estudos gregos de Hiparco e Ptolomeu, elaborou um interessante tratado

    sobre as estrelas fixas que serviu de mola para a astronomia posterior.

    Na fsica, no campo das teorias clssicas, preciso lembrar da contribuio de lbni al-

    Haytham (965-1039), conhecido no Ocidente como Alhazem. Considerado o maior fsico do Isl,

    ele deu grande impulso ptica, ao estabelecer o conceito de raio luminoso e negar a propagao

    instantnea da luz. Formulou tambm as leis sobre a reflexo e a refrao da luz utilizadas mais

    tarde por Ren Descartes e Johannes Kepler.

    De todos os pensadores rabes, o mais conhecido, na rea da filosofia, Avicena, ou Ibn

    Sina. Ele viveu entre 980 e 1037, e se dedicou a quase todos os ramos do saber, notificando-se

    pela vasta enciclopdia de medicina que escreveu - uma obra chamada Canon, que durante seis

    sculos foi a bblia dos estudiosos ocidentais. E h dezenas de outros:

    Al-Biruni, filsofo, matemtico, astrnomo, fsico, gegrafo, historiador e poeta, que

    calculou com incrvel preciso o raio do globo terrestre. Sua famosa obra Tahqiq ma lil-Hind

    (Histria da ndia) considerada a tentativa mais sria de um escritor muulmano de ir alm do

    mundo islmico. A observou que as crenas dos hindus eram semelhantes s dos gregos: tambm

    entre eles a gente comum adorava dolos, nos dias de ignorncia antes do advento do

    Cristianismo, mas que os educados tinham opinies semelhantes s dos hindus.

    Ibn-Arabi (1165-1240), o filsofo mais profundo do Isl, que antecipou em sete sculos a

    teoria dos arqutipos, desenvolvida depois pelo psiclogo suo Cari Gustav Jung, cuja teoria do

    inconsciente coletivo teria tambm sua fonte de inspirao na obra do espanhol Ibn Rushd

    Averris (1126-1198). Era um rabe de Andaluzia cujo pai era amigo de Averris, tendo vivido

    tambm no Magreb, no sultanato seljcida de Anatlia e em Damasco, onde parece ter tido um

    encontro com Rumi. Em sua obra al-Futuhat al-makkyya ( As Revelaes de Meca), ele tentou

    expressar uma viso do universo como um fluxo interminvel de existncia que sai do Ser Divino

    e retorna a ele: um fluxo cujo smbolo primrio era o da Luz. Esse processo podia ser encarado,

    num de seus aspectos, como um transbordamento do amor de Deus, o desejo do Ser necessrio

    34 Ver ALBERT HOURANI. Uma Histria dos Povos rabes. SP: Companhia das Letras, 1994: 184.

  • 21

    de conhecer-se vendo Seu Ser refletido em si mesmo. Entre os sufis, sua obra sempre teve um

    lugar de destaque, assim como a de Al-Ghazali.

    Ibn-Batuta, viajante incansvel, cujos dirios constituem exelente fonte documental, e Ibn-

    Khaldun (1332-1406), literato e jurista que definiu a Histria como cincia independente e foi

    autor de uma importante Histria Universal. Ibn-Khaldun viveu em Sevilha, Granada, Tnis e

    no Cairo, onde morreu. Sob a influncia dos gregos, este filsofo encarava a interpretao de

    sonhos como uma das cincias religiosas: quando as percepes sensrias comuns eram afastadas

    pelo sono, a alma tinha um vislumbre de sua prpria realidade; libertada do corpo, recebia

    percepes de seu prprio mundo, e depois disso retornava ao corpo com elas; passava a

    percepo para a imaginao, que formava as imagens apropriadas, que a pessoa adormecida

    percebia como atravs dos sentidos.

    Isso sem falar do grande mstico e poeta sufi Omar Khayyam'5, que tambm foi

    matemtico e astrnomo, famoso por sua obra potica Rubaiyat, e por ter proposto uma

    soluo parcial para as equaes de terceiro grau. dele o poema abaixo:

    Quer seja na cela,no mosteiro, ou na sinagoga,alguns temem o inferno, outros cobiam o cu.Mas aquele que tem o conhecimento dos segredos de Deus no introduz tais pensamentos em seu corao.>y16

    Enfim, so muitos os sufis e as Ordens sufis que atuaram aberta ou ocultamente, em

    diversos momentos histricos e contextos religiosos. Sempre adaptada ao tempo, ao lugar e s

    pessoas, sua sabedoria assumiu formas muito variadas. E, numa extensa cadeia de mestres, eles,

    os sufis, incluem os nomes dos filsofos gregos Pitgoras e Plotino, e do profeta Elias.

    Sinais da sabedoria sufi so encontrados em toda parte. O Domo do Rochedo, por

    exemplo, obra de arquitetos sufis. Construdo no final do sculo VII, e guardado pelos

    cavaleiros templrios (uma das ordens de cruzados), na poca das Cruzadas, ele ainda domina,

    com sua cpula dourada, o cenrio da cidade velha de Jerusalm. Importantes tradies religiosas,

    como o sacrifcio de Abrao, o templo de Salomo e a ascenso de Maom, esto associadas ao

    local onde o Domo foi erguido. E sua planta de base octogonal resulta de numerosas

    especulaes msticas sobre os nmeros e as figuras geomtricas. Nada nela fortuito. Os

    menores detalhes esto impregnados de valor simblico. Esse mesmo esprito est no s nas

    35 O. KHAYYAM. Rubavvat. Buenos Aires: Ed. Dervish International, 1989.36 O KHAYYAM. In: Idries Shah. El camino dei Sufi. Buenos Aires: Ed. Paidos, 1974.

  • 22

    obras arquitetnicas e artsticas, mas na natureza inteira, concebida pelo sufi como manifestao

    visvel de uma realidade transcendente.

    Da mesma forma, a expresso de um fato fsico, como as esferas concntricas em tomo da

    Terra do modelo ptolomaico eram, para o sbio sufi, a representao grfica de uma verdade

    metafsica.

    Num corpo nico, coerente e harmonioso, esses sbios de todas as cincias, integraram

    toda a sabedoria do Mundo Antigo, acrescentando-lhe contribuies profundamente originais,

    numa das mais brilhantes snteses culturais que a histria registra. Interpenetraram e combinaram

    elementos msticos e filosficos, cientficos e artsticos, tecnolgicos e artesanais, de todas as

    grandes culturas da Antiguidade: egpcia, sria, judaica, mesopotmica, persa, grega, romana,

    indiana e at chinesa. Uma sntese to grandiosa s havia sido realizada pela escola grega

    neoplatnica, que retomou e reinterpretou toda a filosofia grega e numerosas tradies msticas,

    religiosas e cientficas orientais.

    Os rabes acabaram herdando esse legado atravs dos sufis, e espalharam-no pelo mundo

    ocidental durante a sua expanso no Mediterrneo. No Oriente, repisaram os caminhos trilhados

    pelos exrcitos de Alexandre37, o Grande (356-323 a.c.), da Macednia, que j havia inaugurado

    a fuso cultural entre persas e gregos, posteriormente conhecida como cultura helenstica.

    Foram quase 1000 anos de intensas trocas produzidas num mundo anteriomente dominado pela

    cultura grega, ou helnica; um extraordinrio amlgama cultural, trabalhado e retrabalhado por

    sucessivas geraes.

    Esse precioso legado foi chegando Europa crist atravs de um complexo intercmbio

    cultural, que o comrcio, as conquistas, as guerras, as Cruzadas, as encarniadas lutas religiosas

    entre cristos e muulmanos pela posse da Terra Santa, favoreceram ao invs de dificultar. Foi

    esse legado que revitalizou o pensamento europeu e que, direta ou indiretamente, criou condies

    para o fervilhar intelectual daquele intenso sculo XIII, ponto de partida dessa dissertao, -

    perodo onde foram plantadas as sementes que germinariam quase quatro sculos mais tarde na

    chamada revoluo cientfica - em que brilharam as notveis figuras de Alberto Magno, Toms

    de Aquino, Raimundo Llio, Mestre Eckart, Roger Bacon, Roberto Grosseteste e So Francisco

    de Assis, contemporneo do persa Rumi, o fundador da Ordem dos Dervixes Danantes, cuja

    dana caracterstica o objeto de ateno desta dissertao.

    37 Alexandre fundou 33 cidades no antigo Imprio Persa, recebendo a coroa simblica de Imperador. Casou-se com uma princesa da Prsia, e 1000 de seus soldados o imitaram.

  • 23

    A escola neoplatnica, que via a realidade como um todo unitrio, foi assimilada sem

    dificuldades e conflitos pelas trs maiores religies do monotesmo semita (judasmo, cristianismo

    e islamismo), devolvendo-lhes, em linguagem filosfica, as pores da verdade que seus prprios

    msticos haviam recebido atravs da experincia direta. E no era outra a viso de realidade dos

    cabalistas judeus, dos contemplativos cristos e dos sufis muulmanos:

    A sntese da especulao neoplatnica com a pulsao viva das religies reveladas influenciou profundamente a filosofia, as cincias e as artes medievais, fazendo-as conceber a natureza inteira como uma teofania ou manifestao de Deus. Para o sbio medieval, integrado no corpo das tradies espirituais, nenhum ente ou evento da natureza tinha existncia puramente factual. Devia, ao contrrio, ser pensado como um smbolo, sinal visvel da

    f 38divindade invisvel, que cabia ao homem interpretar.

    As evidncias de que houve uma comunicao mtua entre os msticos do Ocidente

    Cristo e os sufis, so muitas, e a filosofia iluminista parece ter interessado tanto o Oriente,

    quanto as escolas sufistas influenciado o Mundo Ocidental Cristo. Roger Bacon, por exemplo,

    afirmava que os ensinamentos secretos dos antigos gregos, persas, egpcios, etc.), foram levados

    Europa, dando origem a numerosas sociedades secretas (Rosa-Cruz, Cabala, Maonaria, etc.),

    algumas das quais autnticas, outras esprias. Com esse conhecimento, disse Bacon, j estavam

    familiarizados No, Abrao e Jesus Cristo, os mestres caldeus e egpcios, Zoroastro, Hermes, e

    gregos como Pitgoras, Anaxgoras e Scrates - e os sufis.39

    38 Ver texto de JOS TADEU ARANTES, intitulado Amor e Teofania , na Introduo dos Poemas Msticos de Rumi. SP: Attar Editorial, 1996: 47.

    Ver I. SHAH. Os Sufis. RJ: Crculo do Livro, 1988: 270, 271, 272.

  • 24

    II. ENTRE RUMI (O VISVEL) E SHAMS (O INVISVEL): UM

    ENCONTRO DE MESTRES

    Na Tradio sufi, enquanto o buscador procura alucinadamente por seu Amado, que pode

    ser personificado de diversas formas, muito comum o uso de metforas relacionadas aos

    domnios do visvel e do oculto. Nada mais ilustrativo para essa simblica relao do que o

    clebre encontro entre Rumi (ou Mevlana), o maior poeta mstico de toda a tradio persa e

    rabe, desenhador da Ordem sufi Mevlevi ou Ordem dos Dervixes Danantes ou Giradores,

    fundada em Konya (Turquia), no sculo XIII, e um dos mais controvertidos mestres sufis que a

    histria j conheceu, Shamsuddin de Tabriz.

    Jalaluddin Mohammed ibn Mohammed al-Balkhi Rumi nasceu na pequena aldeia de

    Waksh (atualmente no Tajiquisto), em Khulm, sob a jurisdio de Balkh (hoje no Afeganisto),

    que ficava no Khorassan40 (na antiga Prsia), no dia 30 de setembro de 1207 (6 de Rabi I, do ano

    604 da Hgira41), e morreu em Konya, na Turquia, no dia 17 de dezembro de 1273. Seu pai,

    Bahauddin Walad, chamado de sultan ul-ulama (sulto dos sbios), era mestre sufi42 e

    encadernador de profisso. Educou Rumi em ambas as coisas desde a infncia, influenciando-o

    profundamente. Com o pai, Rumi foi iniciado em teologia e literatura clssica rabe, sendo por ele

    logo reconhecido como um mestre precoce, e nomeado, por esta razo, de Mevlana, que

    significa nosso mestre ou nosso senhor .

    Quando completou quinze anos, Rumi fora enviado por seu pai a Gazorgah, provncia do

    Afeganisto, acompanhado de um tio que tambm era encadernador. Havia uma imensa biblioteca

    nesse lugar, razo pela qual seu tio havia sido contratado. Rumi viveu ali por nove anos. Depois

    foi para Qandahar, com o objetivo de estudar Tafsil (a compreenso do Alcoro), na mesquita

    onde est o manto do Profeta.

    O Sheik Naqshbandi de toda essa regio era o Sayed Zahir Shah, de quem Rumi tomou-se

    discpulo. Esse mestre ordenou que Rumi fizesse uma viagem de sete anos sem lhe dizer aonde

    deveria ir. O dia de seu regresso coincidiu com o funeral de seu Sheik, que deixara para o

    40 Naquele tempo, a regio do Khorassan se extendia por Herat, Hazarayat, Mashad..., at o Mar Cspio.41 A Hgira a era islmica, iniciada em 622 do nosso calendrio com a fuga de Mohamed (Maom) de Meca para Medina (Yatreb).42 O pai de Rumi era um mestre sufi da Ordem Naqshbandi (naqsh: desenho, e bandi: pessoas que fazem o desenho). tambm conhecida como a Ordem-Me ou a Ordem dos Khwajagan (guardies da Tradio neste planeta.)

  • 25

    discpulo seu tasbih (rosrio) e seu manto Naqshbandi. Assim. Rumi tornou-se o sucessor de

    Zahir Shah, permanecendo em Gazorgah, Herat e Mazar-i-Sharif pelos sete anos seguintes. 4~

    Ordenar com preciso os acontecimentos da vida de Rumi tarefa rdua, uma vez que

    esta foi repleta de episdios, com perodos de diferentes duraes, tendo, por isso, muitas

    verses. Sabe-se, no entanto, que a famlia teve que fugir de Balkh, que era um dos principais

    centros culturais do mundo islmico, devido invaso mongol. Por mais de cinco anos

    mantiveram uma vida errante, e aps vrias peripcias, que inclui a peregrinao de Rumi a Meca,

    seu encontro em Nishapur com o poeta mstico Fariduddin Attar, e o seu casamento, em 1226,

    com Gowhar Katun, de Samarcanda, acabaram instalando-se na Anatlia Central, radicando-se

    finalmente, em 1228, em Konya 44, a rica capital dos Seljcidas. Quando l chegaram, essa regio

    da atual Turquia era conhecida por Rum (da a alcunha de Rumi).

    Ao chegarem em Konya, Bahauddin, a convite do soberano seljcida Aladdin Kayqobad,

    incentivador das cincias e das artes, fora convidado para assumir a direo de uma escola, onde

    ensinou at a sua morte, em 1231 (628 da gira). Rumi tornou-se, ento, discpulo de um antigo

    aluno de seu pai, Burhanuddin Muhaqiq Tirmidhi, tambm fugitivo de Balkh devido s invases

    de Genghis Khan, com quem Rumi conviveu durante uma dcada. Esse mestre ensinou a Rumi

    todos os segredos do chamado conhecimento inspirado, fonte das dimenses mais profundas da

    via mstica e transmitiu-lhe, de forma ordenada, a sabedoria espiritual de Bahauddin.

    Esse mestre aconselhou-o a ir para Alepo, na Sria, estudar na escola de Halawiya, que

    tinha eminentes sbios (hanefites). Permaneceu alguns anos em Damasco, onde travou contato

    com o grande mstico e filsofo Ibn A rabi4'.

    Rumi foi o legtimo herdeiro espiritual de seu pai, tornando-se tambm um mestre, com

    centenas de seguidores. Versado em filosofia, poesia clssica, teologia, jurisprudncia e moral,

    Rumi falava cinco lnguas e tinha sido professor em diversas universidades. Mas o sucesso

    acadmico foi somente at os seus 37 anos, quando teve o seu decisivo encontro com o mestre

    43 Ver O. A. SHAH. Prefcio do Masnavi edio brasileira. RJ: Edies Dervish,1992.44 A histria de Konya comeou h aproximadamente 7000 anos a.C., com os Hititas, quando a regio era denominada "atalhoyuk". Com a chegada dos Frgios, passou a chamar-se "Kawania". Depois vieram os Ldios, os Persas, os Macednicos liderados por Alexandre, os Romanos, os Bizantinos, os rabes (sculos VII e VIII) e finalmente os Turcos, no sculo XI. A tomada de Anatlia (Turquia atual) - cuja capital era Konya -pelos turcos teve trs perodos: "Seljuk" (sculos XI-XIV), liderado por povos turcomenos, "Karamanogullar" (sculos XIV-XV), liderado por alguns povos anatolianos que uniram-se s tribos turcas, e por ltimo, o "Otomano", que possua a mistura dos povos turcos, rabes e persas.45 Ibn Arabi, j citado no captulo 1, foi um importante mestre sufi da Idade Medieval. Sua fonte de inspirao era o devaneio, em que a conscincia continuava ativa: "Pelo exerccio dessa faculdade sufista, ele estabelecia, a partir do mais ntimo da mente, contato com a realidade suprema, a realidade que jaz debaixo das aparncias do mundo familiar." dele a frase: "Os anjos so poderes escondidos nas faculdades e nos rgos dos homens." (Cf. Idries Shah. Os Sufis. RJ: Crculo do Livro, 1988)

  • 26

    sufi Shamsuddin de Tabriz, que ficou conhecido na tradio sufi como o encontro de dois

    oceanos . O encontro se deu no dia 28 de novembro de 1244 (26 jumada do ano 642 da Hgira) e

    foi um acontecimento capital na sua vida, que ele mesmo resume assim:

    eu estava cru, fu i cozido, estou queimado.

    Existem inmeras verses e relatos da poca que registram esse encontro. Alguns

    nitidamente alegricos, outros mais verossmeis. Apresento aqui, quatro destas verses, que

    foram cuidadosamente selecionadas por Carvalho46.

    Na primeira verso, Rumi, vindo da madrassa (escola religiosa muulmana)

    acompanhado de seus discipulos, cavalgava um burrico. Ao passar perto de um caravanarai, um

    homem que estava margem do caminho ps-se sua frente e dirigiu-lhe a seguinte pergunta:

    Tu, que s o grande conhecedor de Teologia e das escrituras, responde-me: quem maior, o

    profeta Mohammed ou Bayazid Bistami? - Rumi respondeu sem hesitar: Mohammed foi sem

    dvida o maior de todos os santos e profetas . - Se assim, replicou Shams, como explicas que

    Mohammed disse: No te conhecemos, Senhor, como deves ser conhecido, enquanto Bayazid

    exclamava: Glria a mim! Imensa minha glria.? Ao ouvir isso, Rumi desmaiou. Quando

    despertou, levou Shams para sua casa e l ficaram a ss, em santa comunho, por quarenta dias.

    Aflaki, o maior bigrafo de Rumi, assim detalha essa comunho:

    "Por trs meses eles ficaram, dia e noite, em retiro, ocupados no jejum do 've sa l' (unio com o objeto amado); no saram uma nica vez e ningum teve a ousadia ou o poder de violar seu isolamento. " 4

    Na segunda verso, Rumi ensinava seus discpulos em sua casa e tinha diante de si uma

    pilha de livros. Durante a aula um homem entrou e, depois de cumprimentar os presentes, sentou-

    se num canto da sala. Apontando para os livros, o visitante perguntou: O que isso? Rumi,

    incomodado pela interrupo, respondeu secamente: Tu no sabes o que isso ". Imediatamente

    os livros incendiaram-se. Perplexo e assustado, Rumi dirigiu-se ao estranho: O que isso? O

    estranho apenas repetiu: Tu no sabes o que isso, e retirou-se tranquilamente da sala. Rumi

    abandonou a classe e saiu desesperado em busca do estranho, mas no pde encontr-lo.

    46 Ver J. J. DE CARVALHO. Introduo. In: J. Rumi. Poemas Msticos Divan de Shams de Tabriz. SP: Attar Editorial, 1996: 15,16.4' AFLK. In: CARVALHO, J. J. de. Introduo dos Poemas Msticos Divan de Shams de Tabriz. SP: Attar Editorial, 1996: 15.

  • 27

    A terceira verso, e uma variao dessa histria, narrada por Jami. um grande poeta persa

    do sculo XV:

    Enquanto falava a seus discpulos, Rumi empilhara seus livros borda de um tanque. Shams apareceu e perguntou o que continham aqueles livros. Rumi respondeu: 'Aqui s h palavras, em que te podem interessar? Shamsuddin apanhou os livros e jogou-os dentro d'gua. Rumi ebravejou, furioso: 'O que fizeste, denixe? Alguns desses livros continham manuscritos importantes de meu pai que no se encontram em nenhum outro lu g a rE n t o , para espanto de Rumi e dos discpulos, Shams enfiou a mo no fundo do tanque e retirou intactos, um a um, todos os livros. Mevlana lhe perguntou: 'Qual o segredo? ' Shamsudin respondeu: 'Isso o que se chama prazer ou desejo de Deus (dhcrwq), e xtase ou estado espiritual (hal); tu no sabes o que isso '.

    A quarta verso uma outra variante dessa mesma histria, segundo a qual Shams teria

    jogado os manuscritos do pai de Rumi no fundo do tanque, retirando-os depois com todas as

    pginas secas e intactas, porm em branco: a gua havia apagado as palavras de Bahauddin, como

    um sinal para que Mevlana pudesse ento imprimir as suas prprias.

    A histria de Shams comea na cidade de Tabriz (na antiga Prsia, atual Ir), onde j

    havia adquirido estatuto de santidade muito antes de seu encontro com Rumi. Seu verdadeiro

    nome era Sayed Shamsuddin Shah, e era filho do Sayed Zahir Shah. Foi discpulo do Sheik Abu

    Bakr, cesteiro de profisso e respeitadssimo em Tabriz, conhecido como O Trilhador . Embora

    Shams seja descrito por muitos como um dervixe errante, solitrio e anti-convencional, como uma

    figura estranha, envolta num manto escuro de feltro ordinrio (seu disfarce favorito era o de

    simples mercador), com um carter excessivamente altaneiro, agressivo, dominador e impulsivo,

    seus simpatizantes o descrevem como algum to discreto que seria capaz de viver numa cidade

    por anos como um desconhecido.

    Devido ao seu temperamento irrequieto, caracterstico daqueles que buscam o

    conhecimento incansavelmente, Shams foi apelidado de parinda (o pssaro, ou o voador).

    Muitos autores descrevem-no como uma personalidade avassaladora, algum que

    desafiava os mais respeitados argumentos dos mestres da poca, derrubando-os com seu

    durssimo arsenal crtico.

  • 28

    Viajava constantemente, buscando por toda a parte a "meia ansiada e ama-da 4N

    Finalmente, quando o desenvolvimento de sua instruo mstica e seus xtases ultrapassaram

    todos os limites, partiu em busca do mais perfeito e excelente de todos os mestres. Visitou

    ermidas e retiros, tanto a sbios ocultos como conhecidos mestres da idia e da forma. E fez dos

    mestres espirituais seus servos e discpulos. Ia com frequncia Siria e ao Iraque, entrevistando-

    se com os mestres espirituais da poca, tendo inclusive, se encontrado com Ibn Arabi, um dos

    pilares de toda a tradio sufi, a quem teve a ousadia de julgar imaturo e arrogante.

    Shams de Tabriz estava em busca de um homem com quem pudesse compartilhar seus assuntos espirituais e que fosse capaz de suportar o impacto de sua personalidade dinmica, que pudesse receber e embeber-se de sua experincia; algum que ele pudesse sacudir, destruir, construir, regenerar e elevar. Era a busca desse homem que o levava a voar como um pssaro de um lugar a outro. Seu mestre, Ruknuddin Sanjabi, finalmente colocou-o no rumo certo, encaminhando-o a konya. L chegando, alojou-se no Caravaarai dos vendedores de acar. Foi ento que se deu o notvel encontro com Rumi .49

    O prprio Shams conta, no Maqalat Shams-i Tabrizi (Discursos de Shams de Tabriz),

    obra em que foram compiladas suas reflexes e ensinamentos, o que significou seu encontro com

    Rumi:

    Eu tinha em Tabriz um mestre espiritual, Abu-Bakr, e fo i dele que obtive todas as santidades. No entanto, havia em mim algo que meu mestre no pde ver; de fato, ningum era capaz de v-lo. M as meu senhor Mevlana o viu.

    Eu era gua estagnada, fervendo e entornando-me sobre mim mesmo e j comeando a cheirar mal, at que a existncia de Mevlana me encontrou; ento aquela gua comeou a correr e continua correndo doce, fresca, saborosa. "'

    O encontro entre os dois mestres foi to forte e profundo que permaneceram quarenta dias

    no jejum do Vesal (unio mstica com o amado). Shams passou a viver na casa de Rumi, que,

    ocupando-se inteiramente do dervixe, abandonou as aulas e conversas com seus discpulos, nada

    mais fazendo, a no ser dialogar com Shams. Assim Carvalho sintetiza esse encontro:

    48 Ver AFLK. Os Sufis Voadores. Trechos extrados de "Biografias dos Msticos" (Manqib ul-'rifn), traduzido do persa ao francs por Clment Houart, sob o ttulo de "Les Saints des Derviches Tourneurs". RJ: Editorial Kashkul, 1995.49 Descrio feita pelo historiador iraniano Sadiq Guharin, com base em texto extrado provavelmente de DAULAT SHAH, autor do sculo XIII. in CARVALHO, J. J. de. Introduo do Poemas Msticos de Rumi. SP: Attar Editorial, 1996.30 Maqalat, 245-246. in CARVALHO, J. J. de. Introduo do Poemas Msticos de Rumi. SP: Attar Editorial, 1996: 18.

  • 29

    Esse longo encontro fundiu dois homens espiritualmente realizados, duas almas em idntica condio de despertar, dois espritos igualmente sedentos de um confidente com quem pudessem trocar, como jamais o haviam feito, seus estados mais sutis de entendimento e experincia mstica.

    Embora Rumi considerasse Shams como sendo seu mestre, a relao entre os dois ia

    muito alm do modelo mestre-discpulo, ficando praticamente impossvel definir quem foi o

    mestre de quem. Ambos eram submissos um ao ensinamento do outro, tratando-se mutuamente

    como mestres. Mas, do ponto de vista histrico, Shams entendido como o verdadeiro mestre de

    Rumi, at por uma questo hierrquico-cronolgica: Shams era mais velho que Rumi, o que o

    coloca, mais obviamente, numa posio de superioridade com relao a Rumi, o que, no caso

    muito especfico dessa histria, s importante para efeitos de referncia. Sobre essa amistosa e

    delicada relao, descreve o prprio Shams:

    Oitando cheguei at Mevlana, a primeira condio fo i de cpie no chegasse como Sheik. Deus ainda no criou o homem que possa agir como Sheik para Mevlana. Tambm no estou mais em condies de ser discpulo de ningum, j estou muito alm dessa etapa. 51

    Talvez se possa comparar esse encontro com o do escritor Carlos Castaneda e o xam

    Don Juan Matus, ou, traando um paralelo ocidental mais consoante com esta identificao,

    relao entre San Juan de la Cruz e Santa Tereza dvila. A vida do jovem Rumi foi abalada a

    partir da. Logo abandonou a academia e lanou-se no caminho mstico. Durante trs anos foi

    discpulo fervoroso de Shamsuddin, o que trouxe-lhe consequncias bastante nefastas. Alguns

    discpulos de Rumi passaram a ver Shamsuddin com preconceito e inveja, pois esse estranho e

    misterioso homem fizera o seu mestre deixar de ensinar, passando condio submissa e humilde

    de um aprendiz. Outros incomodavam-se com o desdm que Rumi passara a expressar para com a

    ortodoxia religiosa: agora ele ouvia a msica em xtase, por horas seguidas, e danava. Os

    discpulos mais ciumentos dessa relao que os exclua, passaram a responsabilizar a mudana

    radical de comportamento de Rumi influncia nefasta exercida pelo inslito personagem, Shams.

    Dezesseis meses aps sua chegada em Konya, mais precisamente no ms Shawwal 21, ano

    643 da Hgira (1246 d.C.), Shamsuddin, no suportando mais o despeito e o ressentimento que

    passaram a rond-lo, decide partir de Konya, retomando sua sina de andarilho. Rumi,

    51 Maqalat, 33. in CARVALHO, J. J. de. Introduo do Poemas Msticos de Rumi. SP: Attar Editorial, 1996: 20.

  • 30

    desesperado, e com um profundo sentimento de paixo e perda, escreveu os sublimes versos que

    o imortalizaram.

    Depois de muito procur-lo, Rumi, atravs de um sonho, consegue localizar Shams em

    Damasco, enviando seu filho, Sultan Walad, para traz-lo de volta. Nesse ponto da histria, os

    discpulos de Rumi j haviam pedido perdo a Mevlana por sua incompreenso, admitindo que

    Shams devesse regressar para consolar o corao do mestre. Desta maneira, quase um ano aps a

    sua partida, o bizarro mestre errante, Shamsuddin de Tabriz, retorna Konya.

    Entretanto, o perodo de trgua durou pouco, pois logo os discpulos comearam a

    conspirar novamente contra a singular figura de Shams, movidos pelos mesmos sentimentos

    mesquinhos de antes. A conspirao parece ter-se iniciado dentro do prprio crculo familiar de

    Rumi, o que levou Shams, finalmente, a um misterioso e definitivo desaparecimento.

    Sobre esse desaparecimento, apresento aqui, uma vez mais, verses escolhidas por

    Carvalho 32

    Uma verso diz que um dos filhos de Mevlana, Aladin Mohammed, teria liderado um

    segundo movimento conspiratrio contra Shams. J havia, para isso, uma situao propcia:

    Shams casou-se com Kimiya, uma jovem enteada de Rumi e de sua segunda esposa, e o casal

    passou a viver em um pequeno quarto na casa de Rumi. Apesar de Shams gostar muito da esposa,

    isso no impediu que se acirrassem as animosidades entre o casal e Aladin, filho de Rumi. Kimiya

    faleceu no final do outono de 1248. Poucos meses aps sua morte, Shams desaparece.

    Na verso de Jami, um extraordinrio mestre da poca, certa noite, Sheik Shamsuddin e

    Mevlana Rumi conversavam a ss quando algum de fora da casa solicitou a presena imediata do

    Sheik. Ele se levantou, dizendo a Mevlana: Sou chamado para a minha morte. Sete

    conspiradores aguardavam-no em uma emboscada e avanaram sobre ele com seus punhais; mas

    o Sheik emitiu um grito to terrvel que ficaram todos paralizados. Um deles era Aladin

    Mohammed, filho de Mevlana, que durante o atentado recitava a frase do Alcoro: Ele no do

    teu povo Quando recobraram os sentidos, nada viram alm de algumas gotas de sangue.

    Baseada na verso de Jami e na descoberta de Mehmet Onder, ex-diretor do Museu

    Mevlana em Konya, Annemarie Schimmel, em The Triumphal Sun assim reconstruiu o ocorrido

    na noite de 5 de dezembro de 1248:

    52 Ver J. J. de CARVALHO. Introduo, in J. RUMI. Poemas Msticos Divan de Shams de Tabriz. SP: Attar Editorial, 1996: 24, 25.

  • 31

    Rumi e Shams conversavam a altas horas quando algum bateu a porta e solicitou a presena de Shams. Este saiu, fo i apunhalado e jogado dentro do poo situado nos fundos da casa, um poo que at hoje existe. Informado sobre o sucedido, Sultan Walad correu a retirar o corpo do fundo do poo e sepultou-o s pressas ali perto, numa tumba feita de reboco, cobrindo-a depois com terra. Seria este o local em que mais tarde se ergueu o maqam ", o memorial de Shams. Escavaes recentes no maqam , por ocasio de algumas restauraes, provaram de fa to a existncia de uma tumba gi-ande coberta de reboco datada da era Seljcida.

    Essa ltima verso corrobora a narrativa da poca de Aflki3' , fundamentada, segundo

    ele, na mais clara de todas as histrias, a que conta o Sulto Walad, que v o ltimo

    desaparecimento de Shams como tendo sido causado pelo repdio dos discpulos de Rumi contra

    Nos primeiros dias, Shamsuddin havia suplicado constantemente ao Senhor, com toda a sorte de oraes e de austeridades, que lhe revelasse alguns dos seres velados pelo seu zelo. Por fim , disse-lhe uma voz:

    Posto que sois srio e insistente, e de paixo violenta, que oferta fareis pelo que pedis? 'E ele respondeu:'Minha cabea. '

    Agora, ao fin a l de sua vida e havendo conseguido este favor de divina beleza, e obtendo a felicidade de desfrutar da companhia que buscava, servia certa noite a Nosso Mestre em seu retiro. Do lado de fora, algum o chamou. Levantou-se imediatamente e disse a Nosso Mestre:

    Sou chamado tortura. Tendo esperado um longo momento, Jalaluddin disse:Acaso no pertencem a Ele a criao e o direito de mandar? Isto produtivo. 'Contam que sete desgraados haviam conspirado uma emboscada maneira Ismaelita.

    Quando viram sua oportunidade, o apunhalaram com suas adagas. Shamsuddin lanou tal grito que os conspiradores perderam os sentidos. Ouando voltaram a si, no viram nada, salvo umas tantas gotas de sangue. Desde esse momento em diante no se tornou a ver vestgio algum deste homem de sabedoria.

    Deus trabalha como quer , exclamou Rumi. Ele ju lga conforme seu gosto. Por que temos de horrorizar-nos? Ele havia fe ito seu voto e havia se dedicado para este momento. Empenhou sua cabea por nosso mistrio. Inexoravelmente o destino divino tomou ao homem que assim havia disposto de si mesmo. A caneta que traa o destino no erra. E assim foi escrito.'

    O martrio de Shamsuddin ocorreu numa tera-feira de maio de 1247. Em sua amarga pena, Rumi se afastou, solitrio, para o jardim e no assistiu aos funerais.

    Durante um ms procurou-se o corpo sem encontrar o menor vestgio. No quadragsimo dia, Rumi deu ordem para que todos vestissem roupas de luto, de pano rabe listrado e um gorro da cor de mel, em lugar do turbante branco. E ele vestiu uma camisa aberta no peito e calou sandlias giosseiras chamadas maulevi.

    Depois fez uma guitarra hexagonal, dizendo:Os seis ngulos desta guitarra explicam os mistrios dos seis cantos do mundo: suas

    cordas explicam a hierarquia dos espritos at Allah .

    53 AFLK. Os Sufis Voadores. Trechos extrados de "Biografias dos Msticos" (Manqib ul-'rifn). Traduzido do persa ao francs por Clment Houart. RJ: Editorial Kashkul, 1995.

  • 32

    E fo i ento que estabeleceu o concerto e a dana giratria.(...)

    Unicamente aqui e acol os ciumentos comearam a murmurar:Boa coisa! uma grande lstima que este homem to maravilhoso tenha ficado louco

    de repente! A msica e o jejum desequilibraram sua mente. Isso e a m sorte que lhe trouxe Shamsuddin de Tabriz.

    Segundo dizem, por muito tempo Rumi no teve acesso ao que se passou naquela noite.

    Informaram-lhe que Shams partira novamente para a Sria, o que fez com que Rumi viajasse uma

    vez mais para procur-lo. Durante dois anos ele persistiu na busca, seguindo todas as pistas que

    surgiam, at que rendeu-se fatalidade do seu desaparecimento.

    Embora as verses apontadas aqui sejam bastante aceitas, existem registros indicando que

    a morte de Shams ocorreu em Bagd, onde est sepultado. Sua tumba est esquerda da de Al-

    Ghazzali, no mausoulu de Al-Ghazzali, e, embora a inscrio esteja ilegvel, ainda pode ser

    identificada pelo nmero 613, que no sistema abjad54 equivale alfabeticamente a Shams.55

    Rumi ficou inconsolvel por muito tempo e dedicou memria do amigo e mestre

    desaparecido um poema de rara beleza lrica, o Masnavi 56 A vida e o trabalho de Rumi nunca

    mais foram os mesmos, depois de sua intensa relao com Shamsuddin. Rumi libertara-se das

    amarras do caminho espiritual quase totalmente mstico e intelectual que seguira at ento, para,

    sem prescindi-lo, desenvolver e propor um caminho que valorizasse tambm as percepes

    alcanadas pela via dos sentidos, da atividade corporal, e pela contemplao e produo da obra

    artstica.

    Foi nesse contexto que instituiu o Sama, a tcnica dervixe do xtase mstico atravs da

    dana, oratrio espiritual que acompanha a clebre dana giratria caracterstica de sua confraria.

    Com o Sama, a Ordem Mevlevi (de Mevlana), definitivamente tomou forma e estrutura.

    O Sama a paz para a alma dos vivos, aquele que o sabe possui a paz na alma.Aquele que deseja que o despertem,E o que dormia no seio do jardim.Mas para aquele que dorme na priso,Ser despertado somente um pesar.Assiste ao Sama quando se celebra um banquete, no no momento de um luto, num lugar de lamentao.Aquele que no conhece sua prpria essncia,Aquele aos olhos de quem est escondida essa beleza

    54 ABJAD: sistema alfanumrico da lngua rabe, equivalente Cabala hebraica.55 VerO. A. SHAH. Prefcio, in J. RUMI. Masnavi. RJ: Ed. Dervish, 1992: 11.56 J. RUMI. Masnavi. RJ: Edies Dervish, 1992.

  • 33

    semelhante lua,Uma tal pessoa, que deve fazer do Sarna e do pandeiro?O Sama feito para a unio com o Bem-Amado.

    Odes Msticas57

    A criao do Sama ou dana girante, juntamente com o seu poema pico Masnavi e 58os complementos de seu significado em Fihi-ma-Fihi , bem como a sua msica, fazem de

    Rumi um dos mais importantes mestres sufis de todos os tempos.

    Divulgador de idias que s se tomaram correntes sculos mais tarde, Rumi, j no sculo

    XIII, falava na evoluo do homem, que a terra girava ao redor do sol, que existiam nove

    planetas, e que a estrutura interna do tomo assemelhava-se a um sistema solar em miniatura.

    O Masnavi - ou dsticos espirituais uma antologia de seis volumes publicados depois da

    morte de Rumi, a sua obra prima, sendo considerado o Alcoro59 em persa. Essa obra

    exerceu enorme influncia sobre toda a poesia do Oriente Prximo e Mdio. Foi ditado por

    Rumi, durante doze anos, a Hussan Celebi, seu discpulo, que assim descreveu este processo:

    Ele nunca pegou uma pena enquanto compunha o Masnavi. Recitava onde quer que estivesse, na madrassa (escola dervixe), nas fontes quentes de Hgin, nos banhos turcos de Konya, nas vinhas. Quando comeava, eu escrevia e frequentemente achava difcil acompanh- lo. Algumas vezes ele recitava dia e noite por vrios dias. Outras vezes no compunha por meses. Uma vez, num perodo de dois anos, ele no disse poesia alguma. Quando um volume estava completo, eu o lia para que ele pudesse revisar. 60

    Tu s o microcosmo na aparncia, porque na realidade s o macrocosmo.Do ponto de vista da aparncia, o ramo a origem do fruto; mas na realidade o ramo chegou a existir por causa do fruto.Se no tivesse havido um desejo e uma esperana pelo fruto, como o jardineiro teria plantado a raiz da rvore ?

    Masnavi, de Rumi61

    57Divan e Shams de Tabriz. Edio Fornzafar, Teer, 1958-1962: 339. in E. de Vitray-Meyerovitch. Rumi e o Sufismo. SP: ECE. 1990: 43-44.CB "'Fihi-ma-fihi, ou O Livro do Interior, significa literalmente "pode-se encontrar neste livro o que est contido naquele livro", ou "Nisso est o que aqui est", ou "Isso encerra o que isso encerra", ou "Isso contm o que isso contm", ou ainda "Tudo est nisso". uma coletnea em prosa de conversas de Rumi com os seus discpulos e com diferentes personagens da poca, entre os quais o mais frequente o poderoso emir Pervana (Ver J. Rumi. Fihi-ma-Fihi. RJ: Ed. dervish, 1993)59 De fato h uma semelhana entre o Alcoro e o Masnavi, tanto na forma como foram feitos, quanto por seus contedos: ambos foram recitados por inspirao divina, e ambos possuem uma linguagem que no apenas um veculo da mensagem divina, mas um objeto sagrado. Tanto o Alcoro quanto o Masnavi no falam sobre Deus, cantam Deus ele mesmo. (Cf. C. GEERTZ. Local Knowtedqe Further Essavs in Interpretative Anthropoloqy. NY: Basic Books, Inc. Publishers. Captulo III, pgs. 110-111.)

    J. Rumi. Masnavi. RJ: Edies Dervish, 1992: contracapa.61 J. RUMI. Mathnavi. Edio e traduo inglesa, por R. A. Nicholson, 8 volumes, Leyde, 1925. in E. de Vitray-Meyerovitch. Rumi e o Sufismo. SP: ECE, 1990.

  • 34

    Rumi considerado por muitos o maior poeta mstico da historia da humanidade,

    pertencente ao seleto grupo daqueles que foram capazes de amalgamar a mstica e a potica: San

    Juan de la Cruz, Santa Tereza d Avila, Kabir, Al-Hallaj, Omar Khayyam. entre outros.

    Quando Rumi morreu, no dia 12 de dezembro de 1273, todos os habitantes de Konya, sem

    distino de crenas, acompanharam seu funeral.

    O rudo dos timbaleiros, o som dos obos e dci trombeta anunciavam a boa notcia. Os almuadens (anunciadores), com sua voz agradvel, convidavam orao da ressurreio, vinte grupos de excelentes cantores recitavam cantos fnebres que o prprio Rumi havia composto 62:

    O rei do pensamento sem inquietude Danando fo i embora Paru outra regio,A regio da luz-

    Rumi est sepultado no lugar que ele mesmo indicou em Konya. Ali existem quatro

    criptas, e sua cripta est alguns metros abaixo da superfcie.

    6i Um discpulo de Rumi. in J. RUMI. Fihi-ma-Fihi. RJ: Edies Dervish, 1993: 16-17.

  • 37

    Figura 3. Aps recitarem o Alcoro e o Masnavi de Rumi, os dervixes giram com acompanhamento musical (The Morgan Library, New York, Nmero 466)

  • 39

    Figura 5. Tumba de Shams em Konya. (Foto da autora, 1996)

  • 40

    Figura 6. Museu Mevlana, onde se encontra a tumba de Rumi, em Konva. (Foto da autora. 1996)

  • 41

    III. ENTRE AS CINCIAS HUMANAS E AS ARTES: EM BUSCA DE UMA TEORIA DO SAMA

    63Sama a clebre dana giratria dos dervixes da Ordem Mevlevi , criada por Rumi.

    Significa propriamente audio e designa um dos nomes ou atributos de Deus revelados no

    Alcoro (Ya-Sami, aquele que tudo ouve). A dana descrita como resposta do dervixe ao

    chamado divino.

    Sama a inspirao de Mevlana Jalaluddin Rumi (1207-1273), bem como parte do

    costume, histria e cultura turcos.

    Possivelmente, a origem da inspirao de Rumi para a criao do Sama, est tambm no

    seu encontro-separao com o mestre Shams de Tabriz. Conforme Carvalho64, a famlia de Shams

    era ismaelita e seguia uma linha de dissidentes do islamismo sunita que tinham entre os seus

    postulados de vida, a prtica de se fazerem passar por loucos ou tolos. Vinha da tribo dos

    Hashishins, da Sria, liderada pelo legendrio Aladin, conhecido como O Velho da montanha,

    cujas prticas rituais admitiam vrias formas de estados alterados de conscincia, como o xtase

    mstico atravs da dana. Marco Polo conheceu seus integrantes e, nos captulos 23 a 25 das

    Viagens, relata inclusive o uso de drogas para intensificar estados de conscincia, nos quais se

    vislumbrava um maravilhoso jardim onde corriam arroios de vinho, leite, gua e mel, habitado por

    belas mulheres dispostas satisfao de todos os deleites, imagem bem prxima do Paraso

    cornico. Carvalho sugere que Rumi possa ter aprendido com Shams a busca do xtase mstico

    atravs da dana, e que o Sama poderia ser, como j sugeriram outros autores, uma adaptao

    das tcnicas de exaltao religiosa que Shams praticava.

    Assim descreve-nos Carvalho, a inspirao de Mevlana: Rumi, ardendo na separao

    lancinante de seu insubstituvel amado, desenvolveu o Sama, uma dana exttica em que os

    dervixes giram em torno de si e ao mesmo tempo de um eixo projetado do centro, imitando os

    movimentos dos planetas em tomo do Sol. Assim, nas palavras de Rumi, do mesmo modo que o

    Universo se move na busca amorosa de Deus - o amado por excelncia - os buscadores

    perseguem em sua dana a personificao do amado, no caso de Mevlana, Shamsuddin.63

    63 Embora a criao da Ordem Mevlevi esteja diretamente associada a Rumi, quem verdadeiramente a fundou, organizando-a, foi o Sulto Walad, o primeiro intrprete e exegeta da obra de Rumi, seu filho dileto, bigrafo e sucessor.64 J. J. CARVALHO, in J. Rumi. Poemas Msticos divan de Shams de Tabriz. SP: Attar Editorial, 1996: 19.b5 Idem. pp. 29.

  • 42

    Desta forma, inspirado na ausncia-presena de Shamsuddin de Tabriz, Rumi girava ao

    som da msica, em transe mstico, compondo odes e quadras. Assim que, a maioria dos poemas

    concebidos em transe eram transcritos quase que instantaneamente por seus discpulos, ou ditados

    deliberadamente a outrem. Eis como o filho de Rumi, o Sulto Walad, descreveu a vida de seu pai

    durante aqueles tempos de dor e revelao potica:

    Noite e dia, em xtase ele danava, na terra girava como giram os cus.Rumo s estrelas lanava seus gritos e no havia quem no os escutasse.Aos msicos provia ouro e prata, e tudo mais de seu entregava.Nem por um instante ficava sem msica e sem transe, nem por um momento descansava.Houve protestos, no mundo inteiro ressoava o tumulto.A todos surpreendia que o grande sacerdote do Isl, tornado senhor dos dois universos, vivesse agora delirando como um louco, dentro e fora de casa.Por sua causa, da religio e da f o povo se afastara; e ele, enlouquecido de amor.Os que antes recitavam a palavra de Deusagora cantavam versos e partiam com os msicos. 66

    Conta-se que certo dia, aps o desaparecimento de Shams, Rumi, caminhando pelo

    quarteiro dos ourives em Konya, ao ouvir o som dos martelos das oficinas, entrou em xtase e

    ps-se a danar o Sama em plena rua. Isso teria acontecido bem em frente loja de Salahuddin

    Zarkub, um velho amigo de Rumi, um homem simples e sem formao oficial, mas que havia

    estado presente em muitos encontros entre Mevlana e Shams. Ao ver o mestre em xtase, Zarkub

    atirou-se a seus ps.

    Se foi exatamente assim que Rumi concebeu o Sama, no se pode precisar. Sabe-se,

    entretanto, que a msica, a dana e a poesia da Tarika (escola) Mevlevi adquiriram uma grande

    importncia em todo o Imprio Otomano e no resto do mundo islmico, tanto pelo nmero de

    seus seguidores quanto por sua propagao. Os principais centros de fora mevlevi que brotaram

    durante a expanso do Imprio Otomano foram criados em Istambul (Turquia), Nicsia (Chipre),

    Jerusalm (Israel), Cairo (Egito), Atenas (Grcia), e Trpoli (Lbano). Depois espalharam-se pela

    66 Poema citado em J. J. CARVALHO, in J. RUMI. Poemas Msticos Divan de Shams de Tabriz. SP: Attar Editorial, 1996: 30.

  • 43

    Europa Mediterrnea e sia Menor, alcanando o nmero de 365 escolas: foi como se a cabea

    de Shamsuddin tivesse se multiplicado mil vezes, dizem.

    Para Rumi, a dana Mevlevi era uma criao estratgica: Entre Europa e Turquia havia

    uma necessidade de ajustamento, alinhamento e controle. A dana Mevlevi, o Sama, era este

    controle.67

    Nos tempos modernos, aps a fundao da Repblica na Turquia, mais precisamente no

    dia 2 de setembro de 1925, sob o mandato secular e populista de Attaturk, uma ditadura foi

    instituda visando banir antigas fraternidades da vida turca. Com isto, muitas escolas passaram a

    funcionar secretamente, mas na verdade nunca deixaram de existir. Mesmo hoje, quase um sculo

    depois deste acontecimento, apesar das profundas transformaes da sociedade turca ao longo

    dos anos, a confraria Mevlevi tem garantido a continuidade e a permanncia da tradio. Os

    Dervixes Danantes continuam girando, o que mostra, no mnimo, a resistncia cultural diante da

    poltica turca deste sculo, que quase apagou as tradies sufistas.

    A dana girante, hoje, faz parte do conjunto de tcnicas utilizadas pela Ordem Mevlevi,

    mas a evoluo do rito mevlevi, que culminou no Ayin ou Mukabele, nomes que designam a

    cerimnia do Sama, ainda imprecisa.

    Sabe-se, no entanto, que a partir do sculo XVI, o rito se tomou mais detalhado e

    elaborado, at assumir a forma atual. Hoje, divide-se em oito partes, que podem ser classificadas

    em trs estgios distintos:

    Primeiro - uma espcie de preparao para o SAMA e pode ser subdividido em trs

    etapas, chamadas:

    1.NAT-I SHERIF (Um poema em louvor a Mevlana);

    2. TAKSIM (Improvisao de flauta ney); e

    3. DEVRI VELEDI (O Ciclo do Sulto Veled).

    Segundo - o SAMA propriamente dito, com quatro selam ou saudaes,

    denominados:

    67 Ver O. A. SHAH. Prefcio, in J. RUMI. Masnavi. RJ: Edies Dervish, 1992: 12.

  • 44

    4. HAKKA YURUYUSH ou ILALLAH (indo para Deus),

    5 HAKKA YAKLASHMA ou MAALLAH (com Deus );

    6 HAKKA VARISH ou FILLAH (em Deus); e

    7 HAKDAN DONUSH ou MINALLAH (vindo de Deus).

    Terceiro - a finalizao do SAMA, com uma improvisao de msica instrumental,

    seguido de uma recitao do Alcoro e orao, denominado:

    8. K U RAN-1 KERIM (recitando o Alcoro).

    Poderamos, ainda, classificar o Sama segundo as partes da msica. Teramos, assim,

    quatro momentos distintos:

    1. NAT-I SHERIF (Honorvel Poema)

    2. TAKSIM (Improvisao de flauta ney)

    3. PESHREV (Preldio)

    4. AYIN (Dividido em seis partes (quatro saudaes, um ltimo preldio e uma volta

    terceira saudao), com diferentes compassos, que acompanham os giros dos dervixes)

    Para que seja possvel uma anlise mais consistente do Sama, adotarei quatro

    referenciais tericos distintos: um primeiro englobando a discusso geral entre Arte e

    Pensamento, um segundo oscilando entre a Antropologia e a Histria, um terceiro, apoiado na

    Etnologia Ritual, e um quarto entre a Etnomusicologia e a Musicologia Histrica. Esses

    referenciais esto nos quatro subcaptulos a seguir.

  • 45

    1. ENTRE A ARTE E O PENSAMENTO: UM REFERENCIAL

    POTICO- TERICO

    A separao entre a cincia e a tcnica, de um lado, e a poesia e a filosofia de outro, que

    espelha, dentre outras cises, a separao entre as Artes e as Cincias ditas Humanas (Histria,

    Antropologia, Psicologia, etc.) como um todo, est resu