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O Romance histórico Jerônimo Barbalho Bezerra (1845-46): ficção, história e a
construção da nacionalidade no Brasil Oitocentista
Matheus Rodrigues da Silva Mello
A exposição a ser aqui apresentada tem como ponto fundamental questões que
giram na órbita da modalidade literária identificada como “romance histórico”. Tais
reflexões partem de um objeto, o romance histórico Jerônimo Barbalho Bezerra, de
autoria de Vicente Pereira de Carvalho Guimarães – que reivindica o título de primeiro
do gênero publicado em terras brasílicas. Romance que veio ao público nas páginas do
Ostensor Brasileiro: Jornal literário e pictorial (1845-1846) ao longo de onze capítulos
e que evidencia a estreita vinculação existente entre literatura, história e a construção de
um projeto de nação para o Brasil.
O periódico vinha ao público “a bem da civilização e recreio do povo”. Ostensor
– adjetivo masculino de origem latina que qualifica que, ou o que expõe à vista. Assim,
procurava expor, trazer aos olhos, ostentar e bradar a assim chamada brasilidade,
sobretudo, com a publicação de temas históricos, geográficos e sociais através da
literatura. A segunda folha de rosto exibe a nota: “Coleção de produções originais em
prosa e verso sobre assuntos pertencentes à história política e geográfica da Terra de Santa
Cruz”. E já na introdução ao primeiro número, os editores Vicente Pereira de Carvalho
Guimarães e João José Moreira declaram suas intenções: “o plano circunscrito, que nos
impusemos de tratar exclusivamente de objetos relativos, ou pertencentes ao Brasil
constitui a primeira parte do nosso programa”.
Além disso, o Ostensor se caracterizava pela defesa de uma informação acessível
às diferentes camadas sociais. As traduções de textos de viajantes estrangeiros, comum
em outros periódicos do mesmo período, são substituídas pela riqueza de detalhes
ficcionais das paisagens da Terra de Santa Cruz. E defende a promoção da leitura em todo
o Império:
É preciso civilizar o povo, dizem todos, e o jornal literário é uma
poderosa alavanca da civilização; porém, ignora-se que para o povo no
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Brasil, e em muitas partes ainda não é a leitura uma necessidade?
Enfastiam-no cientificamente e depois gritam que as empresas literárias
no Brasil são impossíveis de manter, que o povo não lê vinte e trinta
páginas, que de uma vez só lhe atiram; ainda mais, para que esta
civilização estrangeirada, que não cria raízes no coração do povo?!
(Ostensor Brasileiro, p.1)
Como mostra João Cezar de Castro Rocha (1999), a linguagem coloquial e, por
isso mesmo, de fácil acesso da literatura cedo se revelou o veículo ideal para a difusão de
conceitos que, de outra forma, permaneceriam de difícil apreensão, dado o caráter abstrato
da exposição filosófica ou o caráter técnico da narrativa historiográfica.
Desta forma, o tom marcadamente romântico do periódico apresentava um projeto
para a nação brasileira, principalmente, através da literatura. Esta se estabelece em um
sentido de aquisição de uma civilização própria (local), mediante uma filosofia
(universal). E ainda, cultivar a originalidade e não copiar, ainda que sob constante
impacto e diálogo com a Europa (ANTELO, 2010, p.26). Afinal, o grande mérito
ambicionado pelo Ostensor é o de se contrapor à “literatura estrangeirada” que então
circulava.
Por meio dessas empresas, a literatura vai começando a apontar sua autonomia,
como identifica Antônio Cândido (2011, p. 178):
Uma conjugação de fatores levou a esboçar-se, logo após a
Independência, a referida consciência de autonomia, podendo-se, entre
eles, destacar o desejo de dar equivalente espiritual à liberdade política,
rompendo também, neste setor, os laços com Portugal. Destaquemos
ainda as tendências historicistas, marcadas de relativismo, que, vendo
na literatura uma consequência direta dos fatores do meio e da época,
concluíram que cada país e cada povo possui, necessariamente, a sua
própria, com características peculiares.
O empenho do Ostensor era no sentido de exprimir as características que se
julgavam nacionais através da literatura, fosse pela descrição e exaltação dos
acontecimentos históricos edificantes, fosse pelo relato das paisagens peculiares e
grandiosas que se multiplicavam pela geografia brasileira, fosse através do exotismo tão
próprio marcado nos diversos grupos indígenas.
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A formação da nação seguirá um duplo percurso: criar-se-ão os
símbolos em torno dos quais ela será pensada e, a partir daí, se
estabelecerá a identidade comum dos seus habitantes. Isto é, a nação é
tanto um conjunto de tradições inventadas, ou mais ainda, a invenção
de novas tradições, como a crença nelas. O primeiro elemento da
fórmula pode existir sem o segundo; é possível inventar-se tradições,
criar símbolos, sem que muita gente acredite neles, o que, na verdade,
não tem muito propósito, mas não se podem criar identidades,
estabelecer direção intelectual e moral, sem que haja símbolos e
tradições (RICUPERO, 2004, p. XXIII).
Nesse sentido, a história, o passado, não só nas páginas do Ostensor, mas no
programa romântico em geral era constantemente revisitado. A associação das noções de
progresso, evolução e nação deu origem ao sentido de história característico do
Romantismo. Visto pela ótica de Benedict Anderson (2008) de “comunidade imaginada”
– ou seja, uma comunidade sobretudo criada a partir da difusão impressa de informações
compartilhadas pela população de um país. Assim, os romances históricos impressos nas
páginas do Ostensor Brasileiro, desta maneira, contribuíam no sentido de compartilhar
um passado comum que, para além da distância física e das diferenças contemporâneas,
colocasse os habitantes do jovem país sob uma identidade comum. Lukács – ao pensar os
romances scottianos - não vê só um romance
que retrata o seu tempo, mas que, ao fazê-lo, é inspirado por um senso que concebe a
"história como precondição do presente." (LUKÁCS, 2011, p. 36).
O surgimento do romance, na acepção moderna do termo, entre o final do século
XVIII e o início do XIX, provocou intensa discussão sobre o lugar que deveria ocupar no
quadro conceitual do gênero épico, o desafio era determinar as relações que o romance
mantinha com a epopeia. Ao romance, portanto, é posto o desafio de se afirmar num
quadro teórico no qual as posições já estavam marcadas, em que as conceituações dos
gêneros literários e suas respectivas modalidades estabelecidas. Por isso, como salienta
Alcmeno Bastos (2007, p.10), o romance se apresentou com uma modalidade receptiva a
diversas outras formas discursivas, literárias ou não, como o ensaio, a epistolografia, o
memorialismo e a historiografia – e a história seria a forma que lhe seria mais próxima.
Georg Lukács (2009, p.89) aponta que o romance seria “a epopeia de um mundo
abandonado”. É a epopeia de uma era para a qual a totalidade extensiva da vida não é
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mais dada de modo evidente; para qual a imanência do sentido da vida tornou-se
problemática, mas que ainda assim tem por meta a totalidade (p.55). O verso épico está
subordinado a uma totalidade preestabelecida, e o romance aspiraria por uma totalidade
e, assim, seria o descendente moderno da épica. Mas este mundo do romance já é um todo
fragmentado, povoado por sujeitos individuais, privados e heterogêneos.
De outra maneira, Mikhail Bakhtin (1998, p.399) aponta que:
O romance [...] se acomoda mal com os outros gêneros. E não se pode
falar de uma harmonia possível, baseada sobre uma limitação e
substituição recíprocas. O romance parodia os outros gêneros
(justamente como gêneros), revela o convencionalismo das suas formas
e da linguagem, elimina alguns gêneros, e integra outros à sua
construção particular, reinterpretando-os e dando-lhes um outro tom.
O romance é visto como o único gênero nascido e alimentado pela era moderna
da história mundial e, assim, profundamente aparentado a ela. O romance é o único gênero
em evolução, por isso ele reflete mais profundamente, mais substancialmente, mais
sensivelmente e mais rapidamente a evolução da própria realidade. É o gênero nascido
neste mundo e em tudo semelhante a ele (1998, p.400).
Portanto, em seu aspecto formal, o romance se destaca pela ausência de modelos.
Ele introduz uma problemática, um inacabamento semântico específico e o contato vivo
com o inacabado, com a sua época que está se fazendo. A épica, nesse sentido, falava de
um mundo completamente acabado, não só como um acontecimento autêntico do passado
distante como em seus próprios termos, de acordo com seus próprios padrões; é
impossível mudar, repensar, reavaliar qualquer coisa nele.
Em suas características, ainda, Bakhtin destaca que os estudiosos não foram
capazes de determinar nenhum traço invariável e fixo característico do romance. O
romance, assim, é um gênero plural, de múltiplas formas:
Eis alguns exemplos destes “índices de gênero”: o romance é um gênero
de muitos planos, mas existem excelentes romances de um único plano;
o romance é um gênero que implica um enredo surpreendente e
dinâmico, mas existem romances que atingiram o limite da descrição
pura; o romance é um gênero de problemas, mas o conjunto da produção
romanesca corrente apresenta um caráter de pura diversão e frivolidade,
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inacessível a qualquer outro gênero; o romance é uma história de amor,
mas os maiores modelos do romance europeu são inteiramente
desprovidos do elemento amoroso; o romance é um gênero prosaico,
mas existem excelentes romances em verso. Pode-se citar ainda grande
número de “índices de gênero” de romance, anulados pela restrição que
lhes é associada com toda honestidade. (1998, p.402)
E Claudio Magris1 (2009, p.1018) expõe o quanto o romance é intimamente ligado
e indissociável do mundo moderno:
O romance nasce do triunfo da “prosa do mundo”, que se põe como
guinada de período na história, mudança subversora da sociedade e da
relação entre os homens, suas vidas e da narração de suas vidas; [...]À
modernidade é essencial, entre outras coisas, a ideia de domínio da
história e da natureza, do projeto capaz de mudar-lhe e dirigir-lhe o
curso. Não importa o fim a que se proponha, esse projeto a sensação
concreta [...] de uma mutabilidade vertiginosa de tudo que se mostrava
[...] eterno e imutável. O próprio homem, pouco a pouco [...], surgirá
mutável em sua essência, e mutável surgem, por conseguinte, os
próprios cânones e ideais da poesia e beleza. O romance é o gênero
literário por excelência dessa transformação universal, que envolve e
destrói todo classicismo, todo Belo poético eterno [...].
Os caminhos trilhados pelo romance até sua afirmação apontam para a
necessidade de reavaliação do próprio entendimento do que é literatura. Terry Eagleton
(1994) discorre sobre como o texto literário é um discurso que não tem o objetivo
declarado de produzir conhecimento ou de aplicá-lo e que prescinde de objetivos
científicos, um discurso não-pragmático. Para o autor, há maior relevância nos contextos
de produção e recepção de um texto que o texto em si. Assim, um texto pode ser lido
pragmaticamente em um contexto e, nessa lógica, algo que hoje não é reconhecido como
literatura pode ter sido um dia. Como é, por exemplo, o caso de Leviatã de Hobbes e a
filosofia de Descartes que eram considerados textos literários (EAGLETON, 1994, p.1)
em seus contextos históricos. Logo, o que deve se manter no horizonte é que
1 MAGRIS, Claudio. “O Romance é concebível sem o mundo moderno?”. In: MORETTI, Franco (org.). O Romance – A cultura do romance. São Paulo: Cosac Naify, 2009.
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[...] a sugestão de que a “literatura” é um tipo de escrita altamente
valorizada é esclarecedora. Contudo, ela tem uma consequência
bastante devastadora. Significa que podemos abandonar, de uma vez
por todas, a ilusão de que a categoria “literatura” é “objetiva”, no
sentido de ser eterna e imutável. Qualquer coisa pode ser literatura, e
qualquer coisa é considerada literatura, inalterável e
inquestionavelmente – Shakespeare, por exemplo-, pode deixar de sê-
lo. Qualquer ideia de que o estudo da literatura é o estudo de uma
entidade estável e bem definida, tal como a entomologia é o estudo dos
insetos, pode ser abandonada como uma quimera. Alguns tipos de
ficção são literatura, outros não; parte da literatura é ficcional, e parte
não é. (1994, p.15)
Nesse sentido, ao tomar o contexto de emergência do romance enquanto gênero
literário, devemos considerar as acepções que o termo comportava. A passagem do
romance ao novel na Inglaterra é emblemática nesse sentido. Os romance do século XVII
tinham como inspiração, em grande parte, personalidades públicas reais, exemplos de
virtude e dificilmente poderiam ser consideradas histórias de indivíduos totalmente
imaginários – não renegavam às exigências de veracidade e a referência a indivíduos
concretos. Enquanto o novel, no século posterior, estabelece uma categoria conceitual da
ficção que apresenta as narrativas críveis, mas sem a pretensão de serem tomadas por
verdadeiras. A passagem do romance ao novel se insere em uma mudança epistemológica
geral, de uma concepção limitada de verdade como exatidão histórica a uma mais ampla
que também inclui a simulação mimética, a aceitação geral da verossimilhança como
forma de verdade, antes que de fraude, pontos que estão na origem do conceito de ficção
e na do romance enquanto gênero literário.
Como aponta Catherine Gallagher2, nada no romance é tão óbvio e ao mesmo
tempo tão invisível quanto o fato de ser ficção e é essa dimensão, por vezes negligenciada,
é um traço distintivo do gênero que precisa ser visitado. As diferenças de gênero literário
entre novel e romance na Inglaterra setecentista mostram como a natureza da ficção
mudou de maneira tão emblemática que deu lugar a novas formas narrativas (2009,
p.630).
2 GALLAGHER, Catherine. “Ficção”. In: MORETTI, Franco (org.). O Romance – A cultura do romance. São Paulo: Cosac Naify, 2009.
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A mudança de significado sofrido pela palavra ficção em inglês exibe que o
conceito moderno de narrativa de invenção desenvolveu-se na Europa e é datado
historicamente:
Ao lado das primeiras acepções – “algo modelado ou construído; uma
maquinação, um intriga com propósito de fraude ou não” ou “algo
inventado ou imaginado” -, emerge uma nova no limiar do século XVII
e tornou obsoleto o significado mais antigo de “engano, dissimulação,
fingimento”. Assim, a narrativa de ficção deixou de ser uma subespécie
da dissimulação para tornar-se fenômeno literário (2009, p.631)
Se mantivermos a visão de que a ficção, de algum modo, suspende, desvia ou
mesmo segrega qualquer exigência de veracidade em relação ao mundo da experiência,
podemos dizer que os romance, os contos populares, as fábulas, muitos gêneros literários
anteriores ao século XVIII, não eram tomados literalmente como verdade, embora não
tivessem a pretensão de enganar – mas mudavam ou suspendiam a “referencialidade” dos
próprios enunciados. Assim, em inícios do século XVIII os leitores ainda consideravam
as ficções verossímeis fraudes e aos poucos vai se percebendo a afirmação de um conceito
mais refinado de ficção. Somente quando os leitores são capazes de distinguir as
narrativas ficcionais tanto da realidade como da mentira é que se configura um espaço
para a afirmação do romance.
No entanto, enquanto o romance conquista seu terreno no reino dos literatos, o
discurso histórico se lhe distancia. Mais do que a linguagem ou o objetivo explícito de
produzir conhecimento, o compromisso com o real, reconstituído por meio das fontes,
passa a marcar o limite entre as duas esferas. Em suma, eis a separação pretensamente
definitiva entre o “fato” e a “ficção”, sobretudo, embasada a partir do significado de
“invenção” – no limite, “mentira” – dado ao termo ficção, traço tido, por excelência, do
discurso literário (VIEIRA, 2009, p.18).
Michel de Certeau (2011, p.45) aponta que a historiografia ocidental se bate contra
a ficção:
Entre história e as histórias, essa guerra intestina remonta a épocas bem
recuadas. Trata-se de uma querela familiar que, de saída, fixa posições.
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Entretanto, por sua luta contra a fabulação genealógica, contra os mitos
e as lendas da memória coletiva ou contra as derivas da circulação oral,
a historiografia cria um distanciamento em relação ao dizer e ao crer
comuns, além de se instalar precisamente nessa diferença que a
credencia como erudita ao distingui-la do discurso ordinário. [...] No
plano tanto dos procedimentos de análise (exame e comparação de
documentos), quanto das interpretações (produtos da operação), o
discurso técnico capaz de determinar os erros característicos da ficção
autoriza-se, por isso mesmo, a falar em nome do real. Ao estabelecer,
de acordo com seus próprios critérios, o gesto que separa os dois
discursos – científico e de ficção -, a historiografia adquire seu crédito
de uma relação com o real, porque seu contrário está colocado sob o
signo do falso.
A citação é extensa, mas muito enriquecedora. Se somada a perspectiva exposta
por Stephen Bann(1994), podemos pensar o movimento do romance moderno em direção
à suposta objetividade da história em seu momento decisivo de afirmação. Enquanto a
historiografia do século XIX postulava um paradigma científico, libertando-se de ser
considerada um gênero literário entre outros, a própria literatura libertava-se da retórica
e adotava um paradigma histórico, como no romance realista e no romance histórico.
Este último, por sua vez, apresenta desafios substanciais quanto às aproximações
e distanciamentos entre história e literatura. Surgindo em inícios do século XIX, o
romance histórico não recorria ao mito e seu corolário, o maravilhoso, no sentido estrito
do termo, e se apoiava na documentação histórica, enfatizando, portanto, o dada da
realidade, surgiram inquietações sobre o peso que cada uma das suas matérias
componentes – a ficcional, inventada, e a de extração histórica, documentada – deveriam
ter na estruturação da narrativa (BASTOS, 2007, p.10).
Algumas são as características dessa modalidade narrativa que a distingue das
outras modalidades do romance. De maneira sintética:
Em primeiro lugar, o fato de que a matéria narrada no romance histórico
deve ser, obviamente, de extração histórica. Os elementos que a
constituem deverão ter sido objeto de registro documental, escrito ou
não, e apresentar satisfatório grau de familiaridade para o leitor
medianamente informado sobre a história de uma determinada
comunidade, preferencialmente de uma comunidade nacional. [...] Da
matéria de extração história também fazem parte os acontecimentos em
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si, as instituições, os lugares, tudo, enfim, que de algum modo contenha
historicidade [...]. Deve valer o princípio de que o acontecimento só é
verdadeiramente histórico quando reverbera além da trajetória
individual e/ou familiar da personagem. [...] Deve haver íntima
solidariedade entre o destino do protagonista (ou do grupo de
personagens principais) e o da comunidade de que faz parte [...].
(BASTOS, 2007, p.86)
Além disso, pode-se acrescentar que é comum, no romance histórico, recorrer à
invenção verossímil de nomes de figuras e/ou de eventos supostamente históricos. Pode-
se mesmo dizer que não há romance histórico que não recorra a esse expediente e que tais
elementos adquirem historicidade por “contaminação” (p.93), na medida que
contracenam com os elementos de real extração histórica.
Nesse sentido, estabelece-se um diálogo com o estudo do romance histórico
Jerônimo Barbalho Bezerra. Ambientado no período histórico da manifestação popular
conhecida como Revolta da Cachaça (1660), no exercício do que lembrar e do que
esquecer, a narrativa romanesca procura se afirmar em um caráter de ficção fundacional
(ANTELO, 2010, p. 46).
Em janeiro de 1660, o governador recém-empossado, Salvador Correa de Sá e
Benavides, sucedendo seu primo Tomé Correia de Alvarenga, discorria sobre os
problemas relativos ao sustento das guarnições, dos presídios e das obras de fornecimento
de água do rio Carioca. Para cumprir com essas necessidades, o governador decide por
estabelecer um imposto aos moradores da cidade, como mostra Balthazar da Silva
Lisboa3:
Cada morador de casas da rua Direita, que nelas morar, pague
mensalmente, além do aluguel costumado que ficaz livre para o
proprietário, dous tostões do alto, e das lojas outros dous, e os das
travessas e mais ruas detraz meia pataca do alto e um tostão dos baixos
e casas térreas.
3 LISBOA, Balthazar da Silva. Annaes do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Editora Leitura, 1967. p. 340-341.
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Diversos segmentos da sociedade se mostraram imediatamente contra essas
determinações. Realizou-se, então, uma reunião na Câmara a fim de decidir sobre tal
assunto, três representantes dos proprietários de terra (Capitão Luiz Freitas Mattozo,
Capitão Matheos de Mendonça e o Sargento Mor João Rodrigues Pestana) e dois
representantes do povo (Pedro Pinto e Antônio Fernandes Valongo), além de
representantes do clero. Os representantes compreendiam que o imposto seria mais um
fator de prejuízo. O parecer dos Beneditinos, por exemplo, afirmava que o imposto era
ilegal e apresentava a carência dos habitantes da cidade, e caso fosse realmente necessário
tais quantias, deveriam ser feitas por empréstimo ou donativo e, seguindo as leis
eclesiásticas, estariam sujeitos à excomunhão aquele que lançar finta (imposto)
injustamente4.
As decisões tomadas pelos representantes foram levadas ao povo e aclamadas por
eles. Dentre as decisões, encontram-se a requisição ao governador acerca de uma maior
liberdade de navegação e comércio; a abolição de impostos alfandegários para alguns
produtos; e a liberação da produção de aguardente, proibida pela metrópole, sobretudo
por ser um produto de concorrência direta com os vinhos de Portugal.
Apesar dos esforços da Câmara e dos segmentos sociais, o governador Salvador
Correia de Sá e Benavides não aceitou as resoluções da Câmara e o imposto foi mantido.
Uma conspiração, liderada por Jerônimo Barbalho Bezerra – sesmeiro, tinha título de
Capitão e pertencia a uma família ligada à Coroa -, começava a se formar contra o
representante da Coroa e angariava a simpatia de proprietários de terra, homens do setor
mercantil, religiosos dentre outros.
Ao tomar Jerônimo Barbalho Bezerra, líder da revolta, como ator central do
romance, Carvalho Guimarães se debruça no esforço de criação de um herói que compõe
o panteão da jovem nação e do país recém-independente. Como se a trajetória do
indivíduo, assim, se confundisse com a trajetória da nação. Como mostra Jobim (1999),
identificar a origem de uma comunidade se transformou numa fórmula segura para
4 Ibidem, p. 354-355.
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garantir a estabilidade de seu presente e garantir um futuro promissor. E é nesse ponto
que a história passa a desempenhar um papel relevante.
O romance histórico impresso nas páginas do Ostensor Brasileiro, desta maneira,
contribui no sentido de compartilhar um passado comum que, para além da distância
física e das diferenças contemporâneas, colocasse os habitantes do jovem país sob uma
identidade unificadora.
Lukács sintetiza a riqueza do romance histórico nesse sentido, no seguinte trecho:
No romance histórico [...] trata-se de figurar de modo vivo as
motivações sociais e humanas a partir das quais os homens pensaram,
sentiram e agiram de maneira precisa, retratando como isso ocorreu na
realidade histórica. E é uma lei da figuração ficcional [...] que, para
evidenciar as motivações sociais e humanas da ação, os acontecimentos
mais corriqueiros e superficiais, as mais miúdas relações [...] são mais
apropriadas que os grandes dramas monumentais da história mundial.
(LUKÁCS, 2011, p. 60).
Fredric Jameson acrescenta:
O romance histórico articula uma oposição entre um plano público ou
histórico (definido seja pelos costumes, acontecimentos, crises ou
líderes) e um plano existencial ou individual, denotado pela categoria
narrativa que denominamos personagens. A arte do romance histórico
consiste na habilidade com que essa interseção é configurada e
exprimida, em uma invenção singular que se produz de modo
imprevisto em cada caso (2007, p.185).
Tão logo surgiu, no início do século XIX, o romance histórico obteve êxito
imediato no mundo inteiro, inclusive no Brasil. E de tal modo identificou-se com o
modelo romântico – imbuído de propósitos patrióticos na recuperação de um passado
nacional glorioso, hiperbólico na atribuição de virtudes inexcedíveis ao herói. A delicada
questão das origens que era posta à afirmação da nacionalidade no Brasil do século XIX,
assume na ficção histórica o ponto central a ser desenvolvido, inclusive devido ao seu
rápido e fácil reconhecimento social. O romance histórico é chamado à tarefa de
interpretar a evolução histórica da civilização brasileira. A fim de alcançar tal
empreendimento, a “ausência” de tradições foi compensada pela criação das tramas
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ficcionais da narrativa romanesca. E onde faltavam fatos e fontes, a imaginação preenchia
o vazio. Oscilando entre o real e o fictício, o romance histórico estabelece uma dialética
entre o verdadeiro e o verossímil, ou seja, entre o que é realmente documentado e o que
o autor afirma conhecer, o que não nos autoriza julgar o grau de acerto do romance tomando
por base sua fidelidade histórica5. Parte-se do entendimento de que este gênero não
implicava ainda um distanciamento claro entre a “verdade histórica” e a ficção. Assim
como a historiografia, o romance histórico constitui uma forma de narrar os eventos
humanos, extraindo seus significados, estabelecendo um limite tênue entre o verdadeiro
e o verossímil, e que ao público é imperceptível em grande parte do tempo.
5 MARCO, Valéria de. “A questão do romance histórico”. In: AGUIAR, Flávio. Gêneros de fronteira: cruzamentos entre o histórico e literário. São Paulo: Xamã, 1997, p. 196.
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