gilson, e-evolucao da cidade de deus

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ÉTIENNE GILSON {Da Academia Francesa) EVOLUÇÃO  DA CIDADE DE DEUS ! 18739009 EDITÔRA HERDER  SÃo P aul o 1965

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ÉTIENNE GILSON{Da Academia Francesa)

EVOLUÇÃO  

DA CIDADE DE DEUS

!18739009

EDITÔRA HERDER  SÃo P aulo 

1965

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SUMÁRIOi

 Nota do tradutor   ........................................................... 9

Prefácio  .............................................................................. 11

Capítulo I —  As Origens do Problema  ...............

  15

Capítulo II —  A Cidade de Deus   .........................   43

Capítulo III —  A República Cristã   .......................   73

Capítulo IV — O Império Universal   ...................   100

Capítulo V —  A Paz da Fé   ......................... ............   135

Capítulo VI —  A Cidade do Sol   ...........................   157

Capítulo VII — O  Nascimento da Europa  ........

  175

Capítulo VIII —  A Cidade dos Filósofos   ...........  191

Capítulo IX —  A Cidade dos Sábios   ...................   207

Capítulo  X —A Igreja e a Sociedade Universal..   223

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 Nota do tradutor 

 A gradecendo  a insigne honra que me confe-

riu a ilustre editora Herder de fazer a tradução brasi-leira deste magnífico livro de Étienne G ilson, cabeme 

dizer duas palavras acêrcá da tradução.Primeiramente, devo informar que me conformei

 

com o uso em matéria de nomes de livros e de pessoas.  Às obras de caráter universal, conhecidas em todos os

 

 países, ou que circulam entre nós, dei o nome portu-guês; nas de caráter puramente erudito ou menos usuais, conservei o nome original. Igualmente com relação aos 

nomes próprios: De certas figuras históricas é de uso ime-morial a tradução do nome; de outras é uso conserválo.  Assim fiz, conforme as usanças.

Depois, uma rápida referência a dois “avatares da 

Cidade de Deus”, ligados à nossa história.Coube ao Padre Antônio Vieira a responsabilidade

 

de uma tentativa que ainda não foi estudada convenien 

temente e que está exigindo uma análise mais profunda. O grande jesuíta, preocupado com as dificuldades na

 

conversão de gentios, hereges e infiéis, de que tinha expe-riência pessoal, quer relativamente a índios brasileiros, quer a protestantes de vários tipos e judeus, ele que

 

 passava das cortes mais requintadas às florestas virgens do Brasil, alarmado com todos os problemas de seu tempo,

 

 procurou uma solução extraordinária, que demonstra 

com lógica implacável, que quase chega a convencer... 

Suas bases foram: as trovas do sapateiro Bandarra, que 

tinha por profecias, e a convicção em que se achava de 

que o reinado temporal do Messias, profetizado no Velho

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Testamento, não poderia deixar de realizarse. Baseandose nisto, convenceuse de que um milagre portentoso, irre-sistível, resolvería todos os problemas. Este seria a res-surreição delrei D. João IV, seu amigo e protetor, re-centemente falecido. Ora, a ressurreição do rei de Por-tugal não poderia deixar de ter os inevitáveis resultados: aceitação da fé pelo gentio americano, volta dos irmãos dissidentes, reconhecimento pelos judeus de que o Messias já viera, fim do Islã, volta das dez tribos perdidas de 

Israel, resgate do Santo Sepulcro e mil anos de paz abso-luta e de justiça sob o reinado de Cristo por seu alferes mor, o rei de Portugal. Também não era para menos.

Como aconteceu a Rogério Bacon e Tomás Cam  panella, Vieira viuse às voltas com a Inquisição por suas novidades suspeitas, não obstante ser a maior cabeça do 

reino de Portugal e Algarves, em seu tempo.O outro avatar nos diz mais de perto. G ilson  escre-

 veu um capítulo magnífico sobre o positivismo, dando à Religião da Humanidade importância e interesse pouco 

comuns. Lendo este capítulo sentimos que nossos “após-

tolos da Humanidade”, Miguel Lemos e Teixeira Mendes,  viram algo de especialmente valioso no positivismo. É  pena que G ilson  não mencionasse a aventura brasileira do 

 positivismo, caso único em que a Religião da Humani-dade foi realmente praticada. O assunto foi primeira-mente estudado por nós em O ositivismo■no Brasil, livro para o qual esse capítulo de G ilson seria um grande 

 prefácio. Posteriormente outros autores trataram do assunto, como o Prof. Cruz Costa, de São Paulo, em obras 

bem conhecidas. J. C. O. T.

Belo Horizonte, 24 de junho de 1961.

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P r e f á c i o

 A

E ste  livro  contém   a substância do curso 

inaugural da Cátedra Cardeal Mercier, feito na Univer-sidade de Lovaina, no mês de maio de 1952.

Solicitados a permitir a publicação do texto, consen-timos nisto de muito bom grado. Encontrarseão, pois, aqui as lições exatamente como foram proferidas, nenhuma oferecendo maior interesse fora da série que elas cons-tituem. Algumas notas, mais ou menos numerosas se-

gundo os capítulos, ou as referências que acrescentamos 

com as vistas à publicação, não seriam capazes de transfor-

mar êste curso numa obra de erudição. A História não é aqui senão matéria para a reflexão filosófica e, ocasio-nalmente, oportunidade para um leigo levantar uma ques-tão aos teólogos. Não conhecemos nenhum tratamento teológico explícito da noção de Cristandade. Deseja-ríamos saber se esta noção deve ser tida por estritamente idêntica àquela de Igreja, ou se uma se distingue da outra, e como ? As observações esparsas ao longo dêste livro, 

e especialmente aquelas do fim, não exprimem nenhuma 

intenção de dogmatizar a respeito de um problema que ultrapassa a competência do historiador e do filósofo. 

 Têm por único objeto reunir alguns de seus dados e 

fixar o sentido exato da questão.

 As vistas descontínuas sobre a história, que servem 

de ocasião para levantar o problema, marcam as etapas de uma evolução que não consideramos absolutamente um progresso. Será visto claramente isto, nós o espera-mos, mas podem ocorrer confusões a respeito da pró-

 

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 pria matéria de nossas reflexões. Não se trata aqui, dire-tamente, da noção de Igreja, nem mesmo das relações 

entre o temporal e o espiritual, mas unicamente da 

noção, extremamente confusa ainda hoje, do Povo que 

formam os cristãos dispersos através das nações da terra  

e cujas relações temporais são atingidas, ou deviam sêlo,  pela comum ’ filiação à Igreja. É isto o que explica a

 

ausência de nomes ilustres como aquêles de São Boaven 

tura, São Tomás de Aquino, ou Duns Escoto, ao longo 

das lições que se seguem. Indispensáveis para uma teolo-gia da Igreja, seriam consultados em vão a respeito do 

 problema que nos preocupa. É justamente por isto que 

a questão deve ser proposta. ARe publica fidelium,

  da 

qual tão bem falou Rogério Bacon e que comumente 

denominamos Cristandade, nascería de uma ilusão de pers- pectiva à qual os leigos estariam particularmente expos-tos, pelo simples fato de que, empenhados no temporal, êles lhe exagerariam a importância ? Ou, ao contrário, chegamos ao momento em que a realidade da Cristan-dade deve ser reconhecida, descrita, definida e integrada 

em seu lugar na noção de Igreja ? Se os teólogos, para os quais admitimos sem esforço que o problema seja 

menos urgente do que para os leigos, estimarem que 

não é destituído de sentido, é dêles sòmente que pode-mos aguardar a solução.

Uma das razões que nos fazem crer na realidade do 

 problema é a própria história, cujas principais etapas estas 

lições resumem, posto que bem sumàriamente. Mesmo 

que os teólogos devessem concluir que não há uma ver-dadeira Cristandade, poderiamos lhes assegurar que exis-tem muitas falsas. A história e nosso próprio tempo estão 

cheios de paródias da Cidade de Deus. E que, como era 

de temerse da parte de membros da Cidade Terrestre, quiseramna tornar temporal. A preparação a longo 

 prazo, pela Igreja, duma organização temporal do povo 

cristão e de sua integração temporal na Cidade de Deus, faria, sem dúvida, muito para evitar ou limitar a reno-

 vação destas experiências custosas das quais as duas ordens 

em causa assumem inevitavelmente os riscos. Verseá, 

 por nossas conclusões, que nenhum reforço de erudição

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mudaria a sua natureza. Estamos no problemático e a 

 própria realidade do problema está, aqui, em questão.

Que nos seja permitido agradecer à Universidade de 

Lovaina por nos haver oferecido a ocasião de publicar  

estas reflexões que, sem sua graciosa hospitalidade, não 

teriam provàvelmente jamais sido públicas. Esperamos 

não ter cometido qualquer erro grave. Se forem encon-trados neste livro, deverão ser tidos como exclusivamente 

nossos. Deve ficar bem claro que não temos qualquer 

intenção de nêles fixarmonos. Nada há de interessante 

senão a verdade.

Lovaina, l.° de maio de 1952.

 

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C apítulo  I

As Origens do Problema

S eja   qual  fôr   o  julgamento da história fu-

tura sobre o nosso tempo, nós, que o vivemos, não hesitare-

mos sobre o sentido profundo de seus esforços, de suas 

misérias e de tantas convulsões de que somos causas ou 

vítimas; As dores do mundo contemporâneo são as 

de um parto, e o que nasce com tanto sofrimento é uma 

sociedade humana universal, que seria, para os Estados de 

hoje, o que êles próprios se tornaram para os povos 

outrora divididos, de que se compõem; como êsses mes-

mos povos parecem ter sido, mais remotamente, repar-tidos em famílias, clãs e tribos, de que, afinal, consegui-

ram garantir a unidade. Como nasceu êste ideal ? E 

poderá êle se realizar fora do clima espiritual em que 

teve origem ? Eis o problema que será objeto destas 

lições.

O que caracteriza os acontecimentos de que somos 

testemunhas, o que os distingue de todos aquêles que os 

precederam desde as origens da história, c seu caráter 

mundial, como se diz, ou, como se poderia dizer mais 

exatamente, planetário. Não mais história local. Não 

existe mais história exclusivamente nacional, cujos acon-tecimentos interessariam a um povo particular e tãosò 

mente êste, no sentido que seria unicamente a causa dêle 

ou sofrerlheia os efeitos. A unidade do planeta já se 

fêz. Devido a razões econômicas, industriais e, geral-mente falando, técnicas, das quais se pode dizer que se 

acham todas ligadas às aplicações práticas das ciências da natureza, tal solidariedade de fato estabeleceuse entre 

os povos da terra, de modo que suas vicissitudes se inte

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gram numa história universal de que são momentos par-ticulares. Independentemente do que pensam, tais povos 

fazem realmente parte de uma Humanidade, mais natural ainda que social, e da qual devem doravante tomar cons-

ciência, a fim de querêla em lugar de sofrêla, e a fim  de pensála, com vistas a organizála.

 A História pode representar aqui seu papel. De fato,  por sua própria natureza, ela narra o passado. Não po-dería resolver nenhum problema e, menos ainda, aquele cuja solução deve ser criada pelos povos de hoje; mas nenhum problema é absolutamente novo, e nem há pro-blema cujos dados não possam melhor ser precisados me-diante uma reflexão sobre o passado. É o único serviço 

que lhe pedimos, procurando os primeiros sinais desta so-ciedade universal dos homens cuja existência futura é uma 

certeza. Talvez, esta investigação sumária nos forneça a 

ocasião de conclusões gerais, mas estas deverão resultar delas; não a poderíam, em nenhum sentido e em nenhuma 

 proporção, preceder.O Cristianismo nasceu no Império Romano, que não 

era senão uma vasta ampliação da cidade de Roma, ou,  se a fórmula parece imprudente, que recebia de Roma  

suas leis, sua ordem; e isto lhe dava unidade. Mas que 

era, afinal, Roma ? Já se propuseram várias explicações sobre sua ori-

gem, e como os próprios especialistas não encontraram solução para o problema, aceitável a todos, seria impru-dência» escolher qualquer hipótese e mais imprudência ainda 

edificar sobre tais hipóteses (1). Todavia, ninguém duvida de que, como Atenas, Roma não tenha sido uma dessas 

cidades antigas, que por si era um Estado ou o centro de 

um Estado. Podese admitir que estas cidades, de início, tivessem sido povoadas por homens, unidos pelos laços do sangue(12). Na época de Péricles (451 a.C.) fo i ainda

(1) A. P iganiol,  Essai su r le s orig in es d e Home,  Paris, 1917.

(2) W ilamowitz  Moellendorf, Staat und Gesel lschaft der Griechen, em Die Kultur der Gegenwart,  Teil II, Abt. IV 1, pp. 42-51, 97, 100. Cf.Ern. B arker , Greek Poli t ical Theory. Plato and his P reãeces sors ,  Methuen. London, 1917 (reelaboração completa da obra publicada peloautor em 1906, sob o título: The Political Thought of Plato and Ãris-  tot l e ) .   Vide (Prefácio, pág. 8) esta interessante observação: as Leis  

são “o mais moderno, ou medieval, de todos os escritos de Platão”.

 

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decretado que somente os filhos de pai e mãe atenien-

ses legitimamente casados poderiam ser cidadãos de 

 Atenas. A divisão das cidades gregas em fratrias e linha-

gens, que se encontram na famíl ia   e na gen romanas, confirma, aliás, solidamente esta hipótese.

Ela não exclui, de modo algum, porém, as sugestões tão profundas outrora desenvolvidas por Fustel de Cou langes em seu livro, nascido clássico, sobre a

A Cidade

 Antiga,

  porque a família já era aí apresentada como ligada a crenças religiosas e a ritos sagrados de que era  

inseparável. Exatamente o oposto do materialismo his-

tórico, Fustel de Coulanges professava o que se pode-ría denominar, sem muita inexatidão, um “espiritualismo histórico”. Segundo êle, se o homem não se governa 

hoje como se governava há 25 séculos é que êle não pensa 

mais como pensava então (3). Daí esta tese fundamental 

que “a história não estuda somente os fatos materiais e 

as instituições; seu verdadeiro objeto é a alma humana; 

ela deve aspirar a conhecer o que tem sido objeto das 

crenças, pensamentos e sentimentos, aquilo em que esta alma humana tem acreditado, pensado, sentido nas dife-

rentes idades da vida do gênero humano (4).

Dêste ponto de vista, o que domina, de mais alto, a família e a cidade antiga é a religião. Fundada sobre o culto religioso do lar, isto é, do fogo doméstico real, e não de uma simples metáfora, cada família constitui prin-

cipalmente uma sociedade fechada, que seu culto separa 

das outras: “A religião não dizia ao homem, mostrando lhe outro homem, eis teu irmão. Dizialhe: eis um estran-

geiro; êle não pode participar dos atos religiosos de teu lar; êle não pode se aproximar do túmulo de tua família, 

êle tem deuses diferentes de ti e não pode unirse a ti  por uma prece comum; teus deuses repelem a sua adora-

ção e consideramno como inimigo; êle é também teu ini-

(3) Fustel  de  Coulanges, La Cité Antique   (28.a edição), Paris,

Hachette, 1924, pág. 2-3. Alarmado pelo mal que fôz à França a imitação das democracias antigas durante a revolução de 1789, Fustel quer,antes de tudo, provar que elas são inimitáveis.

(4) Op. cit.,  Livro II, c. 9, pp. 103-104.

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migo” (5). Foi preciso de início superar a separação das famílias para a constituição dos grupos sociais mais extensos.

“Suponhamos que as famílias se hajam agrupado em gen e ou linhagens, as gen e em tribos e as tribos em cidades; aí também encontraremos um culto, aquêle de um outro grupo de divindades, tais como Zeus e Héra cles cuja origem é incerta, mas de que se sabe que se superpôs ao culto dos deuses domésticos sem jamais o eliminar. Somente o reconhecimento de deuses comuns a muitas famílias permitiu, pois, o nascimento da cidade: “a sociedade não se desenvolveu senão na medida em 

que a religião se alargava. Não se podería dizer que o  progresso religioso trouxe o progresso social; o certo é que se produziram ambos ao mesmo tempo e com um notável acordo’” (6).

Eis a razão pela qual a cidade antiga não seria capaz de mudar de caráter, mesmo ao transformarse em império. Podese conceber um tal império de duas ma-

neiras diferentes, como filósofo e como político. Filo-

soficamente falando, a idéia de que o universo é um e 

que constitui, de certo modo, uma Cidade única, não é uma idéia nova. Quando falamos hoje em “um mundo só”, nos retardamos na história da filosofia, porque enten-demos apenas que a terra é uma, enquanto que os estói cos já pensavam que o universo era uno.. Aliás, como seria se não fosse único ? A aceitação da ordem cósmica e, com ela, de tudo que não depende de nós, tornase, desde  então, a primeira regra da sabedoria. Por esta aceitação, o sábio se considera pois solidário com uma ordem infi-

(5) Op. cit.  Livro II, c. 9, pág. 104. É sem dúvida a razão pelaqual o amor desempenha um papel secundário na família antiga: “oque une os membros da família antiga é algo mais poderoso do queo nascimento, o sentimento, a fôrça física: é a religião do lar e dosantepassados” ; livro II, c. 2, pág. 40. Para garantir o culto dosmortos, o casamento era necessário, porque era preciso que viessemfilhos para perpetuá-lo; daí a fórnjula sacramental pronunciada noato do casamento; “ducere uxorem liberorum quaerendorum causa”(livro II, c. 8, pág. 52). “Tudo era divino na fam ília” (pág. 109).“O homem amava então sua casa como ama hoje sua ig re ja” (ibidem).O próprio escravo era integrado na família por uma cerimônia religiosa análoga à do casamento e participava do culto do lar (livroII, c. 10, pág. 127); êle era sepultado no lugar de sepultura da famíliacujos Lares haviam sido seus deuses.

(6) Op. cit.  Livro III, c. 8, pág. 147-148. 1

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nitamente mais vasta do que a sociedade política par-ticular em cujo seio nasceu: “Ó mundo, exclama Marco  

 Aurélio, (7) tudo o que te convém me convém ! Nada  para mim é prematuro ou tardio naquilo que te é opor-tuno. Tudo é, para mim, fruto do que trazem as tuas 

estações, ó N atureza ! Tu produzes tudo, tu conténs tudo, tu retomas tudo. Outros dizem: querida cidade 

de Cécropes! Mas, tu, não dirás: Ó querida cidade de Zeu s!” Nesse sentido é, portanto, verdade dizerse(8) que ser cidadão do universo é “ser cidadão da cidade mais elevada de todas, e para a qual as demais cidades 

são como casas.”

Mas, tratase verdadeiramente de uma cidade ? Quan-do Marco Aurélio nos diz: “Como Antonino, tenho Roma 

 por pátria; como homem, o mundo”, (9) êle escreveu uma nobre frase, mas usa êle a palavra pátria duas vêzes no mesmo sentido ? Podemos duvidar disto; Roma é uma 

sociedade de homens, o mundo uma ordem de coisas. O sábio estóico é um cosmopolita mas, o universo é um 

todo mais vasto do que qualquer sociedade, mesmo 

estendida até os limites da terra e, por outro lado, não 

se poderia ser cidadão dele, pois o “cosmo” não é uma sociedade. Inserirse numa ordem física universal cujas 

leis se aceitam e da qual se considera solidário, isto pode  

ser um ato de sabedoria, mas não é praticar um ato de  cidadania. Os estóicos não parecem, pois, terem conce-bido o ideal duma sociedade universal coextensiva ao 

nosso planêta e capaz de unir a totalidade dos humanos.Não é, todavia, impossível que seu cosmopolitismo 

houvesse indiretamente contribuído para o nascimento de tal idéia, ( 10) por que êles concebiam o universo como unificado e ligado por uma forma de “harmonia” ou de “simpatia” (h m n a) que podia inspirar o desejo de 

unir todos os homens pelo laço de uma só e mesma lei.

(7) Pensamentos ,  IV, 23.(8) _ M arco  Aurélio, Pensamentos ,   III, l l . “Ideo magno animo nos

non unius urbis moenibus clausiinus, sed in totius orbis commercium emisi-mus, patriamque nobis mundum professi sumus, ut liceret Jatiorem

 virtuti campum dare”. Sêneca, De tranquil l i tate animi,  c. III, 9. Conso-  

latio ad Helviam,  IX,1

; IX, 7.(9) Pensamentos ,  VI, 44.(10) Cf. W. W.  T arm,  A lexander and th e Unity o f Mankind,  em

Proceedings o f the Bri t i sh Academy,  -vol. XIX, pág. 16-17 e 28.

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Se se atém ao testemunho de Eratóstenes,(n ) Alexandre o Grande terseia persuadido de não dividir os homens senão em bons e maus, ao contrário da opinião daqueles que, dividindoos em gregos e bárbaros, lhe aconselha-

 vam a tratar uns como amigos e outros como inimigos. Com mais insistência ainda, Plutarco precisa(1112) que Ale-

xandre intentou uma imensa tarefa, não somente de con-quistador mas de civilizador do globo, introduzindo por  tóda parte, com a religião e a filosofia dos gregos, a 

ordem comum que impunha o respeito de suas próprias leis. Conquistar para civilizar, civilizar para unir, tal teria 

sido seu ideal. Seria, sem dúvida, imprudente atribuir a 

êstes testemunhos um sólido valor histórico, mas, mesmo que se admita que Plutarco haja emprestado seu próprio  

estoicismo a um guerreiro cuja ambição explicaria per feitamente suas empresas, o fato subsiste de que a con-

quista progressiva dos estados gregos e dos povos do Oriente, seguida de sua absorção na unidade de um 

único império, haja podido parecer o esboço de uma sociedade universal. Esta prodigiosa ampliação da ci-

dade grega pela força das armas implicava necessaria-

mente numa conquista religiosa correspondente ou, pelo menos, num esforço para realizála. Assegurando seu domínio político, Alexandre não negligenciaria intro-

duzir os deuses helênicos nos países conquistados e não é motivo de admiração mesmo, que êle tivesse querido

(11) Estrabão, Geografia,  livro I, c. 4, n.° 9; ed. Mueller eDubner, t. Io, p. 55.

(12) P lutarco, De Alexandri Magni fortuna sive virtute,  I, 5-6,Plutar ch i . . . s c r ip ta mora l ia ,  Paris, Didot, 1839, t. I, pág. 303-804. Muitoshistoriadores apóiam-se sôbre êste testemunho e alguns outros semelhantes, para fazer jus a Alexandre de “uma grande revolução intelectual”,prelúdio necessário ao futuro sistema imperial do Oiidente. Alémde W. W.  T arn, já citado, ver Ernest B arker , Church, State anã Study, London, Metliuen, 1930, pág. 3. Sem pretender, distantes como estamosno tempo, sondar o coração de Alexandre, deve-se pelo menos dizerque êle possuía a amizade demasiado conquistadora e que o ideal quese lhe empresta, à fé de Plutarco, foi sem dúvida, menos nítido em seuespírito do que no de seus historiadores. Se supuzermos, o que tambémnão é garantido, que haja Alexandre inventado a noção política deImpério, e que a tenha colorido de uma ideologia humanitária, o queé ainda menos provável, não a poderiamos absolutamente assimilarao ensinamento de S. Paulo, como faz E. B arker , op. cit.  pág. 4. Sóum equívoco completo permite assimilar dois casos essencialmente diferentes. Tôdas estas interpretações gerais são ademais discutíveis, inclu

sive a nossa, contra a qual se encontrará um antídoto em R. W. e A. J.C arlyle,  A H is to ry o f M edia eval P oli tic a l T h eory in th e W est,  London,1903. t. I, pág. 8 e seguintes.

 

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completar a sua obra exigindo dos macedônios e dos gre-gos que reconhecessem sua própria divindidade. O filó-sofo Calístenes, sobrinho de Aristóteles, se opôs resolu-

tamente e, por êste motivo, foi morto no ano 327 a.C.

Uma evolução análoga se produziu na história de Roma, onde o estoicismo latino de um Sêneca se aco-

modava muito bem a uma única pátria, o mundo. Cidade 

única, comum aos homens e aos deuses, englobando a tota-

lidade do real que enlaça pela necessidade de suas leis, 

o universo é verdadeiramente a pátria do sábio estóico, se êle possui alguma(13). Mas, aqui ainda, o campo que 

se abre ao exercício da virtude é antes um “cosmo” do que uma sociedade verdadeira; e, mesmo se se admite que o Império Romano, sucessor daquele de Alexandre cuja 

efígie ornava o selo de Augusto, haja podido favorecer a ilusão de Senêca, é necessário, ainda, precisar que o 

reconhecimento da unidade do mundo é incomensurável à unidade política surgida da conquista. A lei romana imposta por Augusto não é de natureza idêntica à ordem 

cósmica à qual o estóico se submete. Por último, admitin-

dose mesmo que a dialética estóica permita reduzir uma 

à outra, resta considerar que o consentimento dos povos  da terra ao domínio de um Estado e, finalmente, de um  homem, não constitui ainda a união cordialmente dese-jada e voluntariamente mantida que supõe tôda socie-

dade digna dêste nome. Aqui, como no caso de seu  predecessor macedônico, a divindade do imperador não 

exprime nada além de uma necessidade ligada à natureza  mesma da cidade antiga (14), e é enganarse voluntaria-

mente fazer de Augusto o pioneiro de uma revolução po-

lítica de significação mundial, ou de Alexandre o após-

(13) Sêneca,  Ad Mareiam,  18, 1. De tranquil l i tate vitae,  4, 4. Cf. E. B arker , op. cit .  pág. 6-11. Não se trata aqui de negar, nem desubestimar os textos estóicos nos quais todos os homens são convidadosa se considerarem como membros de uma só e mesma sociedade (Cf. E. B arker , op. cit.  pág. 8) , mas exatamente de precisar que a unidadedesta sociedade depende da do cosmo, da qual não é senão um aspecto.O que é certo é haver o estoicismo produzido efeitos de desnacionalização análogos aos que verificamos em alguns cristãos, mas vai longeentre considerar-se “cidadão do mundo” e querer-se cidadão de umasociedade humana universal, que, mesmo quando não se funda narecusa ao mundo, professa nada ter de comum com êle.

(14) G. Boissier , La re l i ç ion ronmine ,  Paris, Hachette, 1874; t. I,

pág. 173-177. Cf. os fatos assinalados por E. B arker , op. cit.  pág. 4-6(indicações bibliográficas, pág. 5, nota 2), e pág. 11-20.

 

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tolo da fraternidade humana e da unidade do gênero 

humano. O algoz de Calístenes não tem direito a esta 

honra e é uma simples justificação da força o que Augusto  

pedia ao caráter sagrado da lei.O sentido destas reservas convoca por si algumas 

 precisões. Não é contestável que todos esses aconteci-mentos e essas doutrinas sejam sintomas de um desejo 

mais ou menos confuso de união de todos os homens 

numa sociedade universal. O império de Alexandre e 

o de Augusto, romperam efetivamente as barreiras na-cionais e, provàvelmente, favoreceram a eclosão de sen-timentos comunitários mais abertos do que aqueles de 

que se faziam acompanhar, de ordinário, os nacionalis 

mos locais, fossem políticos ou mesmo religiosos. Que 

 Augusto e, sobretudo, Alexandre hajam colorido seus imperialismos de justificações ideológicas mais ou menos 

 vagas, isto não é certamente impossível. Tão suspeitos 

que sejam de ter desaguado na história romanceada aque-les dos antigos que o afirmavam, é possível que não te-

nham inventado tudo e seus sucessores modernos têm 

o direito, se assim lhes apraz, de os seguir. O estoicismo 

é um sintoma mais significativo ainda, primeiramente 

 porque fo i uma revolução na ordem do espírito e não 

na ordem política, mas também por haver feito bastante 

 para libertar o cidadão do quadro limitado da cidade 

antiga integrandoo diretamente no universo. Todavia, assim, quando tudo é dito, o problema permanece intato. 

/Tratase, com efeito, para nós, de saber onde e quando 

surgiu a dé de uma sociedade humana universal.. Ou, 

a supor mesmo que um conquistador venha a dominar a terra, a idéia de um tal império não seria ainda a de 

uma sociedade. O que querería tal monarca seria a uni-dade de todos numa comum submissão e, não a união 

de todos no acordo das vontades. Quanto ao estoicismo, se êle concebe o universo mesmo como uma sociedade, ele não pensa numa sociedade de homens mais vasta do 

que a cidade e que, sem se confundir com o cosmo e 

nem mesmo igualarse a êle pela extensão, agruparia, no 

interior do cosmo, todos os homens da terra. Nem em tais emprêsas, nem em tal especulação, se vê despón

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tar a idéia de um corpo social universal, que seria para  as cidades particulares isto que a cidade é para as famílias  e, por meio delas, chegando aos indivíduos; em suma, uma sociedade humana digna deste nome. Sem negar 

de modo algum que devemos ver nesses acontecimentos e nessas idéias os sinais anunciadores da idéia nova, sem mesmo contestar que lhes hajam favorecido a eclosão e a difusão, devese precisar que não são a sua realização.

Sob a forma exata que lhe é aqui atribuída, ela não nasceu duma especulação sobre o cosmo nem de um império, fosse mesmo aquele de Alexandre. A história lhe empresta a nobre ambição de unir todos os homens na mesma taça de amor. Êste gênero de taças é bem 

conhecido. São imperadores que as oferecem e elas são, de início, cheias de sangue.

É, todavia, no império romano e sob o reinado mesmo de Augusto que aparece o pacífico fundador duma verdadeira “sociedade” universal, mas as origens d êste acontecimento decisivo para a história do mundo se confudem com a do povo judeu.

Desde o tempo de Abraão, êste povo foi algo mais do que uma simples raça, pois, podiaselhe aderir por um rito, a circuncisão (15) : mas, desde então, também a posteridade inteira de Abraão foi abençoada na pessoa de seu antepassado e‘ escolhida por Jeová como seu pró-

 prio povo no qual seriam abençoadas todas as nações da terra (16). A misteriosa promessa, repetida mais tarde a Isaac, não deveria ser jamais retomada, mas o povo de Israel não podia ainda prever como seria um dia mantida. Sua história, tal como seus sacerdotes a contaram, é com  

efeito dominada por um pacto entre Deus e êle, e cujos têrmos haviam sido definidos pelo próprio Jeová. As con-dições deste pacto eram simples: “se escutais a minha 

 voz e guardais a minha aliança, sereis meu povo par-

iu»)  As citações da Escritura são de A. Crampon, La Sainte Bible, Paris Desclée & Cie, ed. revista pelos Padres da Companhia de Jesus,com a colaboração dos professores de Saint-Sulpice, s. d. A circuncisãofoi com efeito imposta por Abraão a “todos os homens de sua casa;os que aí haviam nascido e aqueles que tinham sido comprados, a preçode dinheiro em mãos de estrangeiros, foram circuncidados com êle”Gên.  17, 27, Cf. 17, 12-14.

(10) Gên.  17, 3-6; 18, 18; 22, 15-18. Para a promessa renovada

a Isaac, v. Gên.  26, 4-5.

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ticular entre todos os povos, por que toda a terra me  pertence; mas vós, vós sereis para mim um reino sacerdo-tal e uma nação santa”, em suma e, em têrmos mais simples: “Eu vos tomarei por meu povo, eu serei vosso 

Deus” (17). Ninguém teria hesitações acerca do sentido autêntico de semelhante tratado. Em troca do culto 

exclusivo que lhe prestaria o povo de Israel, Jeová lhe garantiria a sua proteção exclusiva contra todos os outros  povos da terra: “Hoje Jeová teu Deus te ordena pôr em prática estas leis e êstes mandamentos; tu as obser-

 varás e tu as porás em prática de todo teu coração e toda a tua alma. Tu fizeste declarar hoje a Jeová que seria teu Deus, comprometendote a caminhar em suas vias, 

a observar as suas leis, seus mandamentos e suas ordens e obedecer à sua voz. E Jeová te fêz declarar hoje que tu lhe serias um povo particular, como êle te disse, observando seus mandamentos, e êle se compromete, de seu lado, a te dar a superioridade sobre todas as nações que fêz, em glória, em renome e em explendor, de sorte 

que tu sejas um povo santo de Jeová, teu Deus, como 

êle disse” (18).Não se poderia imaginar fórmula mais perfeita de 

um mais total nacionalismo religioso. Criador do uni- verso, Jeová também o é dos povos; como o próprio universo, êles lhe pertencem. Por que pois não esco-lhería livremente um, para fazer dêle seu povo entre os outros ? Por que não o apartaria, fazendo livremente aliança com êle, contra os demais ? ( 19) É, com efeito, o que se passou, mas, seja de que maneira o povo judeu haja entendido êsse tratado, Jeová guardava o sentido 

 profundo de seus têrmos e mantinhase o senhor de sua

(17)  Êxod,  6, 7 e 19, 5-6.(18) Deut.  26, 16-19. Cf. Levit.  todo o 26.(19) Lev.  20, 26. — Deut.  10, 14-15 e 28, 2, 7, 13. Esta aliança

entre Jeová e seu povo, contra os outros povos, não exclui ademaisos deveres de justiça e de humanidade para com os estrangeiroscom quem Israel mantém relações pacíficas. Lev.  19, 80-34. — Deut. 29, 19. Por outro lado, seria bem difíc il encontrar no antigo Israel,antes dos Profetas, uma alusão clara à possibilidade de uma sociedadereligiosa liberta do quadro da nação. Muitos chegam a duvidar quea promessa de Jeová a Abraão (Geri.  12, 3) deva ser interpretadaneste sentido (Ver, a respeito, A. C ausse , Israel et la Vision de l'humor  ni t é ,  Strasbourg, 1924, pág. 16, n.° 2). Parece, todavia, difícil paranós, que conhecemos o prosseguimento da história, compreendê-la deoutra forma.

 

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interpretação (20). Se não existe efetivamente senão um 

Deus, único criador e soberano de todos os povos, por que faria êle aliança somente com um dentre êles ? JÊ isto que os profetas de Israel procuram saber, não real-

mente todos, nem com uma consciência igual das con seqüências últimas do problema, mas por vêzes em têrmos 

tais que evocam irresistivelmente a visão de uma terra em cujos povos se unem todos na adoração do mesmo Deus. Não obstante, mesmo nos textos bem conhecidos em que, pela bôca de Isaías, Jeová chama a si todos os  povos da terra, a sua salvação permanece ainda ligada a glória de Israel(21). Estabelecido como luz das nações  para que a glória chegue às extremidades da terra, (22) 

ele se rebela por vêzes como fêz o profeta Jonas contra a missão que Deus lhe confiou (23) e aquêles mesmos que

(20) Esta aliança supõe que o povo judeu não se libertara, aestaépoca, do politeísmo. Suas recaídas constantes no culto dos ídolosnascem de que considerava os deuses das outras nações como os seusdeuses próprios enquanto que Jeová cra o próprio Deus d ê l e :    “O queteu deus Chamos te deu em propriedade, não o possues ? E tudoo que Jeová nosso Deus colocou diante de nós em nossa propriedade,nós não o possuímos ?  Ju iz es,  11, 24. Cf. A. Lods. Israe l de s or i g ines   au milieu du VlIIe siècle,  Paris, Renaissance du livre, 1932, págs. 526-529,que assinala bem as tendências monoteístas já fortes no antigo Israel.

 Acrescentemos que própria noção de Jeová, concebido como “aquêleque é”, fôsse como fôsse compreendida de início, deveria necessà-riamente conduzir Israel ao monoteísmo estrito. Cf. E. Gilson, Uespr i t  de la phi losophi e méái éva l e ,  Paris, J. Vrin, 1932, t. I, pâg. 58.

(21) “O judaísmo evoluirá entre êsses dois polos, sem nuncapoder superar a contradição entre o nacionalismo original e as aspirações éticas que trabalham a alma de Israel.” A. C ausse , op. cit.,  pág.26. Denominar-se-iam exatamente “religiosas” essas aspirações, porqueos profetas se acham num plano bem diferente daquele do moralismo,mas, para o essencial, a fórmula é verdadeira. Cf. Isaias,  45, 20-25.

(22) “Disse-me: “Não é suficiente que sejas meu servo, pararestaurar as tribos de Jacó e reconduzir os fugitivos de Israel; voufazer de ti a luz das nações, para propagar a minha salvação atéos confins do mundo”, Isaías,  49, 6.

(23) A profecia de Jonas é dirig ida contra o nacionalismo reli-gioso de certos judeus. Tendo recebido de Jeová a ordem de se dirigirpara Nínive a fim de pregar aí a penitência, Jonas fugiu para Társis,temendo que, se convertesse os habitantes de Nínive, Jeová não lhesperdoaria, Nínive não sendo salva. Com efeito, aconteceu que reconduzido a Nínive por Jeová, Jonas realiza sua missão, salva Nínive,mas fica de ta l modo despeitado que pede a Jeová a morte. Todo ofim do livro, tão belo como instrutivo, põe vigorosamente em relêvo aidéia de um Deus criador de todas as coisas e cheio de solicitude portodos os homens; em suma, que Jeová não é sòmente o Deus dos Judeus{Jonas,  4, 10-11). Esta lição, que muitos judeus certamente acharamdesagradável, atesta o sentimento profundo de alguns dentre êles docaráter necessàriamente universal do culto A Jeová. A história de umprofeta judeu forçado por Deus a salvar Nínive e não agora Jerusalém,

define maravilhosamente o problema que o Judaísmo tinha que resolvere que o Cristianismo resolveu.

 

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aceitam, continuam imaginando um planeta cujo centro 

seria a Jerusalém terrestre. O nacionalismo judeu nunca 

se ultrapassou a si próprio a fim de que o universalismo 

religioso, de que seu monoteísmo era o germe, triun-fasse completamente de seu imperialismo religioso. A  

 paz a que aspira Israel, e que seus profetas aguardam 

da unificação religiosa da terra, é sempre aquela da 

cidade de Jerusalém: “visão da paz”. A pregação de Jesus Cristo fo i a liberação, em 

Israel, por Israel e primeiramente para Israel, apesar de 

seu pequeno consentimento, da contradição em que êle 

 próprio se achava envolvido. Trazendo a todos os 

homens a bova nova da salvação, o Evangelho lhes 

revelava antes de tudo que eram todos filhos do mesmo 

Pai celeste como irmãos do Filhò de Deus feito homem 

 para salválos. Ê por isso que a fé na palavra e na pessoa de Cristo tornouse desde êsse momento o vínculo de 

uma sociedade religiosa à qual não seriam capazes de 

impor limites nem a raça nem o lugar. Puramente espi-ritual em sua essência, a família dos filhos de Deus pôde 

ainda exigir de seus membros o sinal sensível de um 

rito, mas êle será bem diferente da circuncisão. Não se trata mais, com efeito, de agregar um estrangeiro a uma 

raça nem mesmo, simplesmente, a um povo, mas de intro-duzir um novo membro numa sociedade espiritual puri ficandoo do pecado. “Aquêle que crer e fôr batizado 

será salvo”(24). A partir desse momento, a evangeliza ção do mundo inteiro tornase uma tarefa necessária,  por que a propagação da salvação não faz, doravante, senão um com a da fé que salva: “Ide, pois, ensinai a 

todas nações, batizandoas em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, ensinandoas a guardar tudo o que 

ordenei; e eis que estou convosco todos os dias até a 

consumação dos tempos”(2S).Sabese, todavia, que após a morte de Cristo, mesmo 

no seio da Igreja nascente, algumas hesitações se fizeram ainda sentir(26) e continuouse a distinguir durante algum

(24)  Marc.,  16, 1G.

(25)  Mat., 

28, 19-20. Cf.  Marc. 

10, 15.

(26) Gálat.,  2, 1-9.

 

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tempo entre as duas igrejas, a da Sinagoga e a dos gen-

tios, mas, a mensagem de São Paulo devia finalmente  

fazerse ouvir por todos. Porque a sua missão própria 

era precisamente a de trazer à obediência da fé, em  nome de Jesus Cristo, todos os gentios, os de Roma  

como os de Jerusalém e, pelos de Roma, os do mundo 

inteiro. Tratase efetivamente desta vez de uma sociedade, 

 porque a Igreja instituída por Cristo(27), unia os homens 

entre si, não ao universo que os rodeia; e era de fato  

uma sociedade aberta a todos, porque “o Evangelho é uma força divina para a salvação de todo homem que crê, 

 primeiramente do judeu, depois do grego. Com efeito, nêle se revelou uma justiça de Deus, que vem da fé e é destinada à fé, segundo o que é escrito: o justo viverá  da fé ’^ 28). Tudo indica aqui que a sociedade de que se 

trata escapa desde o seu nascimento aos limites do tempo 

e do espaço, porque ela não se refere senão ao espírito, 

 A verdadeira circuncisão é a do coração(29). Com toda 

certeza o povo judeu conserva ainda um privilégio, pois 

foi a êle que a palavra de Deus foi de início confiada, 

mas as condições de salvação passaram a ser, doravante,  as mesmas para todos os homens e, avançando com 

incrível ousadia até o próprio coração do mistério, o 

apóstolo assegura que não é por intermédio da lei ju-daica, mas pela justiça da Fé que a herança do mundo 

fôra outrora prometida a Abraão e à sua posteridade(30).Se algum dia a palavra revelação foi de uso, é êste 

bem o caso. Por uma extraordinária metamorfose a  perspectiva judaica se transformou logo em perspectiva 

cristã, no momento exato em que a mensagem de Jesus manifesta afinal, no ensinamento do apóstolo, a plenitude 

de seu próprio sentido. Ela apreende tanto o passado 

como o futuro. Tudo o que a posteridade de Abraão 

havia criado verdadeiro segundo a carne, aparece, dora- vante, como verdadeiro segundo o espírito e é por isto 

que será, doravante, verdadeiro dizerse que “não há

(27)  Mat.,  16, 18.(28) Rom.,  1, 16-17.(29) Rom.  2, 25-29.(30) Rom., 4, 13-17. Cf. Rom.,  9, 6-13.

 

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diferença entre o judeu e o gentio, pois, o mesmo Cristo  é o Senhor de todos (31). O mistério que Paulo tem a missão peculiar de anunciar não é outro senão aquele, e é o mistério mesmo de Cristo “que os gentios sejam 

coherdeiros com os judeus e membros do mesmo corpo e que participem da promessa de Deus em Jesus Cristo  pelo Evangelho” (32) .

 Ao apelo desta vocação universal, todas as barreiras baixamse e todas as distinções são abolidas neste sen-

tido, a não ser que, subsistindo em si próprias e em sua ordem, elas cessem de interdizer a união universal do humano em um só corpo, cuja alma é a própria fé. Os verdadeiros e autênticos filhos de Abraão são, dora-

 vante, todos aqueles que vivem da fé: “Porque vós sois todos filhos de Deus pela fé no Cristo Jesus. Vós todos, com efeito, que tendes sido batizados em Cristo, tendes revestido Cristo. Não há mais judeu nem grego; não há mais escravo e homem livre; nem homem nem mulher;  porque não sois todos senão uma pessoa em Cristo Jesus. E se vós sois no Cristo, vós sois pois descendentes de   Abraão, herdeiros segundo a promessa” (33).

Não era possível negar mais magnificamente os obs-táculos, mas importa assinalar, logo, que se trata menos de os abolir do que de os transcender. O imenso estorvo do temporal subsiste sob a unidade espiritual que anuncia a mensagem do apóstolo. Há sempre homens e mulhe-res; há, ainda, escravos e homens livres, e judeus, e gre-gos, um César que reclama o tributo, autoridades deste mundo às quais o próprio Deus nos impõe o dever de obedecer (34). Por quanto tempo tudo isto está aí ? Muito 

 pouco sem dúvida, (35) mas enfim, enquanto isto durar, importa aceitálo. Se não há mais judeus nem gregos, isto não quer dizer senão que, deixando de ser nacional, a Igreja tornouse internacional. Se não há mais escravos

(31) Rom.,  10, 12. Cf. Gálat.  8, 1-18.(82)  Ef.  3, 6-7.(33) Gálat.  3, 26-29. É em lembraúça de semelhantes textos que

 Augusto Comte terá S. Paulo, não Jesus-Cristo, como o verdadeirofundador do “catolicismo”. Depois dêle, políticos recomendarão distinguir o “catolicismo” do próprio cristianismo do qual nascera.

(34) Rom.  13, 1-7.(35) Rom.  13, 11-14.

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liem homens livres, isto não quer dizer que, libertando 

o homem da sujeição à Lei pela Graça, a Igreja opera 

alguma revolução econômica ou social. Ela não anula 

estas distinções como não anula a dos sexos, nem mais, nem menos. Para dizer a verdade, ela as ignora, porque 

seu reino não é dêste mundo e que, apesar de viver o 

homem cristão sobre a terra, sua vida de cristão se passa 

numa “cidade”, que não é a terra, mas o céu(36).

Esta doutrina envolvia o cristianismo em duas difi-

culdades terríveis, com as quais se defronta ainda hoje.

 A primeira referese à própria universalidade da so-

ciedade que se cogita fundar. Ela atinge ao mesmo tempo seu fundamento e sua extensão. Seu fundamento, por 

que se esta sociedade repousa sôbre a aceitação comum de 

uma crença transcendente à razão, ela não se universalizará 

senão pela fé. Ora, o conteúdo da fé não é um conheci-

mento racionalmente universalizável. Sem dúvida, a apo 

logética cristã empregará todos os seus esforços para co-

locar a razão do lado da fé. Velaemos sustentar mesmo 

que, apesar de tudo, a fé cristã é ainda o que há de mais 

razoável no mundo, mas não permanece menos verdadeiro 

que o ato de fé na palavra de Deus, se distinguirá sempre 

irredutivelmente do simples assentimento à evidência de 

uma proposição racional. Como pois universalizar o que, 

de si, não é naturalmente universalizável ? Pode acon-

tecer que, de fato, a fé, unicamente, seja verdadeira-

mente universalizável, mas precisaria tanto tempo aos homens para perceberem isto que êles ainda não des-

confiaram da coisa. Enquanto esperamos, devemos ter  presente no espírito a posição desse problema, que, como 

 podemos ver desde logo, está no coração mesmo da 

questão.

Uma segunda dificuldade interessa diretamente à 

relação possível entre uma sociedade cristã e a ordem 

temporal. Enquanto fiel a Cristo, digamos com S. Paulo, 

o cristão não vive na terra, mas no céu. Nasce daí um 

novo problema, por que se tal é a fé do cristão, quanto mais rôr intensa, mais êle o desligará do amor dêste

(36) F ilip.  3, 20.

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mundo e, principalmente, do amor à cidade. Não é, pois, surpreendente que um dos efeitos mais notáveis que o 

cristianismo tenha produzido, haja sido um efeito de des-

nacionalização. À distância em que estamos do aconte-cimento e com a pequena quantidade de documentos de 

que dispomos para poder falar nele, é difícil medir a sua intensidade e apreciar a sua extensão: devemos, to-davia, assinalálo, porque permanece, ainda hoje, um dos 

dados constantes do problema e que, seja lá como 

fôr, ele seguramente se verificou. Desde o tempo da Epíst la a Di gnet

a vida em parte dupla que a religião 

impõe aos cristãos se acha descrita com uma acuidade 

deveras surpreendente. Exteriormente, êles não se dis-tinguem em nada dos outros homens, com os quais com- partilham as cidades, a linguagem, e os costumes. Não 

são pois apátridas, mas não são, todavia, nacionais como os outros “porque habitam pátrias que lhes são próprias, mas como aí seriam domiciliados os estrangeiros; par-ticipam de tudo como cidadãos, e se colocam à parte  

como estrangeiros; toda pátria estrangeira é sua pátria e tôda pátria lhes é estrangeira”. Como seria de outra 

forma se, enquanto se acham sobre a terra, é no céu que elegeram domicílio ? Ouvirseá no mesmo sentido a curiosa declaração de Tertuliano: “Nenhuma coisa nos 

é mais estranha do que a coisa pública. Não admitimos senão uma para todos, o mundo” (37). Fórmula cuja 

ressonância estóica é inegável, mas que, segundo a justa 

observação de um historiador, define não obstante esta  posição paradoxalmente diferente: “um cosmopolitismo"' fundado num acosmismo”(38). Na verdade, como veri-

ficaremos ao examinar o pensamento de Santo Agosti-nho sobre êste ponto, definir desde logo a posição cristã  

relativa ao problema seria logo resolvêlo, porque é exato que o cristão não é membro de um cosmo no sen-

is?)  Tertuliano   A polo geti cum ,  38: “Nobis nulla magis res alienaest quam publica. Unam omnium rem publicam agnoscimus mundum”.

(38) “Es íst ein Kosmopolitismus auf Akosrnistischer Grundlage”H. S cuolz  , Crlaube un d U nglaube in de r W eltgeschichte. Ein K om m entar  zu Augustinns’ De Civitate Dei, mit einern Exkurs: Fruitio Dei, ein  Bei t rag zur Geschi cht e der Theologi e und der Myst ik  Leipzig, J. C.Hinrichs, 1911, p. 95. Cita outros textos de inspiração análoga. Vertambém A. Combès, La doc t r ine pol i t ique de Saint August in,  Paris,Plon, 1927, pág. 217-218.

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tido estóico do termo, mas podese perguntar se o cris-tianismo não transformou a própria noção de cosmo a  ponto de fazer dela uma sociedade verdadeira, caso em* 

que o cosmopolitismo cristão seria suscetível de um sen-tido preciso.

Seja o que fôr, o efeito de desnacionalização pro-

duzido sobre certos cristãos por sua integração numa sociedade diferente daquela de suas pátrias terrestres,  parece um fato dificilmente contestável. Quantas vêzes isto não lhes foi lançado à fa c e ! Não somente êles recusavam aos deuses do Império o culto que lhes era devido, o que era suficiente para os excluir, mas, como 

 Tertuliano, êles se desinteressavam dêle ao ponto de consideraremse estrangeiros. Ad. Harnack insistiu com igual força e razão, sobre êste sentido do Discurs Ver-

dadeir ,  de Celso: não vos coloqueis à margem do Impé-rio, dizia êle aos cristãos, e então nós tentaremos supor-

tarvos (39).Ora, nós devemos insistir nisto no momento em que 

se coloca pela primeira vez êste problema, e nos per-

guntar se a essência mesma do cristianismo não o torna-

ria inevitável. A partir de seu próprio ponto de vista, Celso tinha razão ao forçar os cristãos a escolher entre  as duas sociedades, uma de que usavam sem a amar, a outra que serviam com amor sempre permanecendo na 

 primeira: “A razão exige que, dos partidos existentes, seja escolhido um ou o outro. Se os cristãos se recusam a efetuar os sacrifícios habituais e honrar aquêles que os presidem, êles não devem permitir que sejam eman-

cipados, nem se casarem nem criar os filhos, nem cumprir nenhuma outra obrigação da vida comum. Não lhes resta senão ir para bem longe daqui e não deixar depois de si nenhuma posteridade: de tal maneira, uma seme-

lhante casta será extirpada desta terra. Mas, se con-

traem casamentos, se geram filhos, se gozam dos frutos

(39) Ad. H arnack ,  M ission und A usb rei tu ng d es Chris tentums, 8.a ed., t. I, pág. 474 e segs. Citado por P. de L abriolle, La réact ion   pa ie nn e, Essai su r la po lém iqu e a n tich ré tienn e du l e r au VIe si4.de, Paris, l/artisan du livre, 1934,  pág.  122, que pensa que esta preocupa-

ção é menos profunda, ou sincera, em Celso, do que diz Harnack.É possível, mas Harnack julga de acordo com um conjunto mais amploque o texto de Celso e seus fatos são indiscutivelmente exatos. Quantoao mais, o autor concorda também, pãg. 169.

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da terra, se participam das alegrias da vida como aos males que lhes são inerentes, então devem pagar um justo tributo de honra àqueles que velam sobre estas coisas, desobrigaremse dos deveres que a vida impõe, até que sejam libertados dos laços da vida terrena. Do .contrário, eles passarão por ingratos, pois, havería injustiça a gozar, sem uma contrapartida, dos bens de que se aproveitam(40).

Os cristãos, com toda a certeza, não estavam sem resposta. Podiam protestar sua fidelidade ao Império, menos seu culto e seus deuses, mas, além da objeção que lhe faziam de ser a divindade do Imperador inseparável do Império, faziamlhes atentar para o fato de que, se 

a sua própria cidade não era efetivamente deste mundo, tinham o dever de sair dêle. Os padres do deserto foram cristãos segundo o coração de Celso; de certo modo, eles lhe davam satisfação a ponto de quase lhe darem razão. Num sentido um pouco diferente, Orígenes não fazia outra coisa, quando respondia a Celso dizendo que os cristãos não se achavam sem pátria, pois, êles  possuíam uma em suas igrejas. Era responder à questão,  pela questão mesma, a qual, recordemos, está no próprio  cerne da história cujas grandes linhas traçamos. Não dizemos que o cristianismo haja pôsto os homens em 

 presença de uma situação impossível; é antes o contrário que seria verdadeiro, pois que, ainda que por acaso assim pensem, é preciso que se conformem com isto, mas o cristianismo provocou um conflito de tendências entre aqueles que, inteiramente devotados à sua pátria terres-

tre (41), não concebem riada além dela e aquêles que, 

sendo antes de tudo cidadãos da cidade celeste, ten-dem a desinteressarse mais ou menos de sua pátria cá

(40)  Celso, Discurso verdadeiro ,  VIII, 55; em P. de  L abriolle, op. cit. 121.

(41) Êste totalitarismo do estado é, ademais, convém lembrar,inerente a tôda noção paga da Cidade. Êle se afirma claramente nadoutrina de  Aristóteles  ( Polít i ca ,  VIII, 1 ): “Não convém que algumcidadão pense em se pertencer, mas que todos pensem em pertencerà cidade; cada um dêles, com efeito, é uma parcela da cidade e nãose deve cuidar das partes senão em vis ta do todo”. É por isto que aeducação das crianças não deve ser feita senão pela cidade e para acidade. Ela deve ser, no sentido mais forte, “pública”. Ver  Tomás  de  Aqui no, In I Ethic,  l , 2; Pirotta, pág. 9, 11-27. Sôbre a noção grega deEstado, além de F ustel  de  Coulanges,  ver. E. B arker ,  Qreek P oli ti ca l  Theory . Plato and his Predecessors.   London, Methuen, 1918, c. I.

 

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de baixo. Assim Tertuliano, assim este Orígenes, que, sem negar que o cristianismo possa melhorar a morali-dade em proveito do Estado, nos é descrito como não* sentindo pelo Estado senão “um interêsse medíocre” e 

 vivendo, desde êste mundo, num sonho metafísico ou, mais exatamente talvez, religioso. Se são mesmo “ao ser-

 viço das igrejas, verdadeiros “corpos de pátria” ( y tema patrid ) “instalados em cada cidade, que êle deseja que 

cada cristão culto reserve sua atividade” (42), conve-nhamos que um pagão como Celso era desculpável ao considerar o cristianismo, senão por uma sedição, ao menos por uma secessão no corpo político. Alguns entre os primeiros cristãos descobriram e praticaram uma das 

respostas possíveis à questão nova que colocava o cris-tianismo: renunciar ao mundo, é renunciar à cidade.

Há outras, e a difusão da Boa Nova não podia deixar  de sugerir uma completamente diversa, contrária mesmo: 

em lugar de renunciar à cidade, cristianizála, e, ao cris tianizála, apoderarse dela. Nada prova que tal haja sido 

o pensamento de Constantino, cujo segredo escapa à his-

tória, como tudo o que se refere à psicologia individual. Quais sejam os motivos que lhe tenham influído, a con-

 versão de um imperador romano ao cristianismo não per-manece menos um fato histórico de importância capital, 

menos, talvez, pelas consequências do que pela situação de fato que testemunha e que havia provocado (43). Por 

aí, e é o mínimo que se pode dizer, o Império entrava  em composição com a Igreja, ou, em outros têrmos, o 

Império acedia em deixarse cristianizar.Daí, para os próprios cristãos, uma situação total-

mente nova. Era possível, doravante, atribuir ao Império uma lealdade sem reservas, isto é, servir ao imperador sem trair a Deus. Pouco antes ainda membro de uma 

minoria perseguida, ou, em circunstâncias mais favorá

(42) P. de L abrioi.i.e, La réac t ion paienne ,  págs. 168-169.(43) Norman B aykks  (Constantine the Great and the Christian  

Cliurch,  em Proceedings o f the Bri t i sh Academy,  vol. XV; RaleighLecture, 1929) atribui a Constantino o sentimento de uma missão quelhe teria sido confiada pelo Deus dos cristãos. Isto não é impossível.Christopher D awson  {The Máking of Europe,  London, 1932, págs. 34-35)iria bem menos longe, mas não duvida nem um pouco da sinceridade

de Constantino.

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 veis, que se colocava à margem do Estado, o cristão se achava agora súdito de um chefe que se proclamava  submetido ao mesmo chefe supremo que de seus pró-

 prios súditos. Assim o “cidadão cristão” tornavase o caso normal, em lugar de ser uma anomalia, e viase raiar o dia em que a qualidade de membro da Igreja se confundiria pràticamente com a de membro do Estado (44).  

 Ainda mais, como já foi justamente assinalado, era agora impossível que os membros da hierarquia eclesiástica não se tornassem, cedo ou tarde, membros daquela que, sob a autoridade do Imperador, regia então o Estado. A auto-

ridade religiosa que lhes reconhecia doravante o Impera-

dor, lhes conferia mesmo uma autoridade moral que não iria demorar e exercerse sob a forma de reclamações ou, mesmo, reprimendas. Eusébio de Cesaréia, no Oriente, Santo Ambrósio, no Ocidente, não hesitaram em fazer uso  públicamente dela, a tal ponto que já houve quem visse neles os primeiros intérpretes do “ideal de um Estado cristão” (45). Mesmo se se admite que a noção não se apresentava ainda muito nítida quando, em 390, Ambró-

sio repreendia severamente Teodósio pelo massacre de 

Salônica, parece incontestável que ela começava a tomar  consciência de si mesma, ao menos sob a forma de uma  possibilidade de que já se tinha o princípio. Num pas-sado ainda bem próximo, já todavia resolvido, não se  podería servir, ao mesmo tempo e com a mesma alma, Deus e o Império; porém, viase o contrário, pois Ambró-sio garante ao imperador Graciano que ao trair Deus os súditos traíram o Império (46). A sedição dogmática do

(44) “The citizenship of the future Iay is the membership of the

Church”, Christ. D awson, op. cit.,  pág. 35.(45) Christ. D awson, op. cit.  pág. 44 — Ver pág. 43-44, uma excelente descrição do sentimento nôvo que deveria desde então demonstraro cristão em face do Estado.

(46) “Nec ambiguum, sancte imperator, quod qui perfidiae alienaepugnam excepimus, fidei catholicae in te vigentis liabituri simus auxi-lium. Evidens etenim anteliac divinae indignationis causa praecessit,ut ibi primum fides romano império frangeretur, ubi fracta esta Deo.”Santo  Ambrósio, De Fiãe,  lib. II, cap. 16, n.° 139; Pat. Lat.,  t. 16, col.612. Cf.  Epíst .  n , 4, col. 986, onde o herege é apresentado como umperigo para o conjunto do corpo político. Notemos, a propósito distoque, como os futuros gregorianos, Ambrósio já é um antidialético, algunsde seus temas preludiando aquêles de Pedro Damião. Cf. De fide, 1, 5, 41-42, COl. 559, I, 13, 84-85; col. 570-571. IV, 8, 78; col. 658; De  incarnatione,   IX, 89; col. 876. É que, como ôle próprio diz: “Nonlex ecdesiam congregavit, sed fides Dei”,  Epíst.  21, n.° 24, col. 1057.

 

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arianismo é a prova manifesta disto: a unidade do Impé-

rio está ligada doravante à da fé.

 Assim se reconstituía, à luz do Novo Testamento, 

o povo santo de que havia o Antigo Testamento narrado a história. E era a mesma história, pois que no 

fundo, era o mesmo povo, espalhado, porém, sobre toda  a terra conhecida e virtualmente senhor da que lhe res-tava a descobrir ou conquistar. Submetido a um Impe-

rador santo, êste povo tinha com Deus o mesmo tratado  de aliança, de que esperava a união, a paz e prosperidade neste mundo, enquanto esperava a glória no outro. Que, 

aliás, de mais sensato e de mais razoável ? Desde que o 

Império é cristão, por que a Igreja não garantiría o Império ? Não parecería, de preferência, que o próprio  

Deus quisesse, na sua providência, o Império romano  de Augusto a fim de preparar à sua Igreja um mundo  temporalmente unificado, pacificado, que lhe fosse sufi-

ciente batizar para fazer dele, ao menos, o centro de uma sociedade cristã universal, da qual, pelo simples fato  

de alguém ser cristão, tornarse seu membro ? Alguns cristãos ao menos, pensaram assim e ninguém 

o disse melhor do que o poeta Prudêncio, quando escre-

 via, entre 385 e 388, contra o pagão Símaco. O Império Romano aparecialhe, com evidência para nós ainda co-movente, como a preparação providencial de uma socie-dade universal dos homens unidos pelos laços da cris tandade. Um patriotismo cristão, isto é, um amor de Roma justificado pelo próprio cristianismo, tornavase desde então coisa concebível, e, mesmo natural,(47), por-

que a história de Roma integravase já por aí nesta história universal, de que a Encarnação de Cristo é o 

centro e que, para tantos pensadores cristãos, será a 

única história inteligível e verdadeira da humanidade: 

“presentemente, vivese em todo o universo como se não houvesse senão cidadãos da mesma cidade, senão pa-rentes habitando juntos a casa da família. Muitos vêm de países longínquos, que as margens do mar sepajram,

(47) G. Boissier , La f in du pagani sme . Étude sur l e s derni é r e s   lu t t e s r e l i g i euse s en Occ ident au quatr i ème s i è c l e ,  Paris, Hachette* 2.»ed., 1894, t. II, pág. 153.

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trazer suas demandas aos mesmos tribunais, submeten-

dose às mesmas leis. Pessoas estrangeiras entre si pelo 

nascimento reúnemse nos mesmos lugares, atraídos pelo 

comércio e pelas artes; êles concluem alianças e contraem 

casamentos. Assim, o sangue de uns e outros misturase, e de tantas nações formouse um só povo. Eis o que fêz  

tantos sucessos triunfais ao Império Romano ! A Cristo, que vai logo chegar, crêdeme, a via achase aberta, que  a amizade pública de nossa paz construiu, sob a conduta  de Roma. Do contrário, que lugar havería para Deus num mundo selvagem, ou em corações humanos dividi-

dos, em que cada um, como outrora, defendesse os seus direito à sua maneira ? Mas, quando apossandose do 

 poder, o espírito reprime superiormente as revoltas do coração e suas fibras rebeldes, quando êle submete todas 

as paixões ao jugo único da razão, então também a sua  vida se faz estável, e tirando de Deus uma sabedoria segura, ela se submete a um único senhor. Grande Deus, tua hora chegou. Penetra nestas terras agora reunidas ! 

Está pronto a receberte, ó C risto !, este mundo que unem os dois laçoà, a paz e Roma” (48) A esperança era bela, mas o Império Romano ia perecer no momento pre-

ciso em que os cristãos pensavam em utilizálo.

No dia 24 de agosto de 410, Alarico penetrava em Roma e, bem que cristão, entregouse durante três dias à pilhagem. Quando, no quarto dia suas tropas deixaram enfim a cidade, carregavam uma enorme quantidade de despoj os e deixavam em pós de si um amontoado de cadáveres e ruínas. Assim, pela primeira vez, um império

(48) Pkudêncto, Contra Symmachum,  II, 609-635; Pat. Lat.,  t. 60,col. 228-230. Do princípio a só povo”, trad . de G. Boissiek , op. cit.r  

t. II, pág. 136-137. Cf. Christ. D awson, The Making of Europe., pág. 23. G. Boissier   (op. cit.,  t. II, pág. 137), cita sôbre a própriaRoma testemunhos análogos de Claudiano, In secunã. cônsul. Stil ich. 150 e de Rutílio N amaciano, De Reditu suo,  61-66. Dizendo a Roma:“Tu formaste para as nações inais distantes uma mesma pátria...oferecendo aos vencidos a partilha de tuas próprias leis. Tu fizesteuma cidade do que era outrora o universo”, (ed. Vessereau et Prèchac,Paris, Belles Lettres, 1933, pág. 5) Rutílio, que escreve, aliás, após osaque de Roma (pág. 18, v. 331), não tira dêle qualquer conclusãocristã. Os deuses lhe parecem ter trabalhado para Roma, não Romapara Deus: “sollicitosque habuit Roma futura deos” (pág. 36, v. 40). — A idéia de que o império romano tenha sido desejado por Deuscomo uma preparação providencial para a Igreja será muitas vêzesretomada pelos pensadores cristãos; encontra-la-emos em Dante.

 

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 vinha abaixo exatamente no momento em que a Igreja alimentava a esperança de firmarse sobre ele. Não deve-

ria ser a última; de tantas experiências anólogas, todavia, 

esta deveria ficar de certo modo a mais chocante, pois  parecera de início que a ruína de Roma devesse trazer consigo a da Igreja; porém, do colosso político em armas e do povo dos fiéis unidos unicamente pela fé de Cristo, apenas o último sobreviveu.

Semelhante lição não podia perderse. A tomada de Roma pelos bárbaros produziu uma impressão profunda em todo o Império. As polêmicas entre cristãos e pagãos, que jamais haviam cessado(49), aí tornaramse mais vio-

lentas e mais azêdas. Analisar os argumentos que se opu-nham de uma parte e de outra seria trabalho longo, minu-

cioso e que, a dizer a verdade, não teria mais onde ter-minar do que a mesma polêmica. Do lado pagão, os  principais argumentos são, aliás, simples e, diretamente ou não, foram êles que engendraram os outros. De prin-cípio, a doutrina cristã ensina a renúncia ao mundo; êle desvia, pois, o cidadão do serviço do Estado, cuja ruína  

esta negligência prepara. Em seguida, o destino de Roma estêve sempre ligado ao culto de seus deuses; desde que a religião cristã começara a expandirse, os pagãos haviam  anunciado os castigos terríveis com que os deuses traídos não deixariam de ferir o Império, mas ninguém os havia escutado e eis que o acontecimento justificava enfim  a sua profecia, com um brilho tal que ninguém podia deixar de aceitar. O Império tomarase cristão e foi 

sob o reinado de um Imperador cristão que Roma fôra  conquistada e pilhada pela primeira vez desde as longín-

quas origens de sua história. Como não compreender o sentido de uma lição tão evidentemente trágica ?

Estas objeções se vêem formuladas, com tôda a niti-

dez desejável, numa carta do cristão Marcelino ao bispo de Hipona. Em 412 o pagão Volusiano as havia levan-

tado e Marcelino voltase logo para Agostinho, a pedir lhe que as respondesse. Volusiano, disse Marcelino, objeta

(49) V. particularmente a questão do altar da  vitória, em G.Boissier , La  f in du paganism e,  t. II, pâgs. 231-291. Sôbre a reação

 violenta de certos cristãos contra o Império, H. Leclercq, art. “Égliseet État”, em Dict , d ’a r ch éo l o g i e ch r é t i enne ,  t. IV, col. 2255-2556.

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que a pregação da doutrina de Cristo não convém  absolutamente aos costumes da comunidade nacional (re i publicae m ribus). Não dizemos entre outras coisas, que o cristão ensina a não pagar o mal com o mal (Rom.  12, 17) ? Ou, se se é atingido numa face, vo lver a 

outra ? Ou, ainda, se nos levam perante a justiça por haver tomado a nossa túnica, a abandonar, ademais, o manto, e se alguém nos quer obrigar a fazer mil passos, a andar dois mil (Mat. 5, 3942) ? Ora, parece claro 

que tais costumes não poderíam ser praticados por um  povo sem o conduzir a ruína. Quem permitisse, sem 

reagir, que o inimigo se apoderasse de seus bens, re cusarseía a castigar os invasores de uma província ro-mana, segundo o direito da. guerra ? Argumentos que, con-forme conhecemos bastante, pelo exemplo incessante-mente renovado dos que levantam “objeçÕes de cons-ciência”, se referem a exigências as mais profundas da 

consciência cristã e cuja força não podemos desprezar. É, todavia, notável que não haja sido o pagão Volusiano, mas o cristão Marcelino, quem lhe tenha acrescentando o 

último e mais temível: “é manifestamente graças a prín-

cipes cristãos, praticando largamente a religião cristã, que tamanhas desgraças atingiram o nosso país”(so). A objeção era exigente e Agostinho não demorou em 

respondêla. Pediamlhe primeiramente como viver como 

cristão num Estado, ou como podería existir um Estado composto de cristãos, pois que a prática das virtudes cristãs conduziría infalivelmente à ruína do Estado ? A isto Agos-tinho ofereceu esta resposta inesperada, que os pagãos já haviam pregado as mesmas virtudes que criticavam ao cris-

tianismo por recomendar. É coisa que não há necessidade de recordar a um homem culto como Volusiano. Salústio 

não louva os romanos por haverem preferido o esqueci-mento das injúrias à violência ? E Cícero não elogia César  por nada ter esquecido senão os prejuízos que lhe deram ?(5051). A julgar pela história de Roma, a obser-

 vância dêsse preceito não lhe trouxe incovenientes. Com

(50) Em S.  Agostinho,  Epist.  180, Pat. Lat.,  t. 83, col. 515.(51) S alústio, Catilina,  cap. V, Cícero, Pro Q. Ligario,  XII, 85,

S anto  Agostinho, De Civitate Dei , II, 18, 2; Pat. Lat.,  t . 41, col. 68.

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 preendamos, entretanto, o ensinamento do Evangelho.  Tais mandamentos não prescreviam aos soldados cris-tãos depor as armas ou recusar o serviço. Na verdade, 

êles não interdiziam a quem quer que seja a devotarse  

generosamente ao serviço do Estado. Muito ao contrá-

rio ! Que nos mostrem antes maridos e mulheres, pais 

e filhos, senhores e escravos, chefes e juizes, coletores 

e contribuintes comparáveis aos que são conforme o exige a doutrina cristã e veremos então se esta doutrina é nociva ou favorável ao Estado ! O que pode aconte-cer de melhor para o Império, é serem os ensinamentos 

do cristianismo fielmente observados (52).

Como, então, explicar que as calamidades do Império lhe vieram de imperadores cristãos ? Simplesmente ne-gando o fato. Não foi o cristianismo de seus imperadores que perdeu o Império, mas seus próprios vícios, cujo 

extravasamento nada impediría doravante, se o próprio Deus não houvesse afinal aí implantado a cruz. Que se 

leiam Salústio e Juvenal e verseá bem a que grau de 

imoralidade havia chegado a sociedade romana (S3). O 

que se acusa ao cristianismo nascente é, bem antes, ao 

 paganismo moribundo que se deve atribuir, pois a reve-lação crista se atribuiu dois objetivos distintos: salvar 

a sociedade humana e, depois, construir aí uma que seja plenamente divina. Não se vê o que possa temer o 

Estado dêste duplo esforço, mas vêse bem mais o que 

 pode ganhar, pois o cristianismo realizará o primeiro ao  procurar o segundo.

De comêço, salvar a sociedade política, humana e 

natural, da perda inevitável à qual sua corrupção a con-duzia inevitàvelmente. O que põe em perigo a sociedade 

romana, não é que ela ignore as virtudes requeridas para  garantir a sua felicidade e a sua prosperidade. Seus 

membros sabem muito bem a que os obriga o simples 

amor natural dêste Império cuja grandeza é obra unica-mente das virtudes antigas, mas êles não têm a coragem  

de pôlas em prática. Ora, isto que êles não conseguem

(52) S.  Agostinho,  Epist.  138, II, 15; Pat. Lat.,  t. 33, col. 531-532.

(58) S.  Agostinho, De Civitate Dei,  II, 19; Pat. Lat.,  t. 41, col. 04.

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fazer por amor de sua pátria, o Deus dos cristãos lhes 

exige por Seu amor.

 Assim, neste desabamento universal da moral e das 

 virtudes cívicas, a autoridade divina intervém para impor costumes frugais, a continência, a amizade, a justiça e 

a concórdia entre os cidadãos, se bem que todo homem 

que professa a doutrina cristã e lhe observa os preceitos 

se verá fazendo, por amor de Deus, tudo o que apenas 

o interêsse da sua pátria exigiria que ele fizesse por 

ela(54). Agostinho colocava desde logo o grande prin-cípio que justifica a inserção da Igreja em toda a socie-dade humana, seja qual fôr o tempo e o lugar de que 

se trata; tende bons cristãos; os bons cidadãos vos serão dados por acréscimo. Efetivamente não se garantirá 

jamais, assim, as exigências do integrismo evangélico, mas 

nem se garantirá, igualmente, as do mundo onde os mais 

 puros evangélicos aceitam viver, finalmente, donde lhes é apesar de tudo difícil usar sem jamais lhe devolver o 

que êles não cessam de receber. A supor que o próprio 

Cristo não houvesse reservado a parte de César, haveria 

ainda um problema de eqüidade moral, sobre cuja solução correta não se poderia hesitar.

 Admitamos, pois, que as virtudes cristãs sejam úteis 

à boa ordem e à prosperidade da coisa pública; e não é 

menos verdade que esta ordem e esta prosperidade não 

constituem seu fim próprio. Vêse bem neste sinal que, 

na medida em que êle assegura o exercício das virtudes  

morais naturais, o Estado está apto a garantir a sua pros-

 peridade. Tal foi, de modo eminente, o caso da Roma  primitiva, cujas virtudes Agostinho não hesita em louvar, seguindo nisto a tradição dos historiadores latinos. Não 

é precisamente à sua frugalidade, à sua fortaleza e à 

castidade de seus costumes, que Roma antiga deveu seus 

triunfos ? Não foi exatamente da decadência de seus costumes, tão freqüentemente denunciada pelos historia-dores e poetas, que ela própria datava a origem de sua decadência ? Muito longe de se sentir peiado pela recor-

dação de uma Roma próspera, ainda que pagã, Agosti

(54) Op. cit.  8, 17; COl. 533.

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nho aí vê antes a marca de um desígnio providencial. 

Se Deus quis esta grandeza temporal obtida graças a  virtudes puramente cívicas, isto provinha de que ninguém 

se podería enganar em seguida sobre o fim próprio das 

 virtudes cristãs. Já que o mundo pode prosperar sem elas, isto prova que elas não estão lá em vista do mundo. 

“Mostrando, pela opulência e pela glória do Império 

Romano, tudo o que podem produzir as virtudes cívicas, 

mesmo sem a verdadeira religião, Deus dava a entender 

que esta religião torna os homens cidadãos de uma ci-dade, da qual a Verdade é a rainha, a Caridade a lei, 

cuja duração é a eternidade” (55). A suficiência, em sua 

ordem, das virtudes políticas atesta a especificidade sobre-

natural das virtudes cristãs em sua essência e em seu fim.

Duas cidades serão, pois, doravante presentes ao pen-

samento de Agostinho, e vêse logo que aliviar a Igreja 

de toda a responsabilidade nas calamidades de Roma 

era, para êle, coisa diferente do que pleitear uma causa 

 perdida por um advogado esperto. A decadência do 

Império e suas causas sendo, da confissão dos próprios historiadores romanos, anteriores ao advento do cristianis-

mo, êste não podia ser julgado responsável por aquela.Mas, o desastre de 410 estava aí e os pagãos não se 

cansavam de explorar êste argumento, ao qual, pelo menos, 

se convirá, não faltava aparência de solidez. Foi por 

isto que, desde 413, Agostinho deliberou respondêlo: 

“Entretanto, escreve êle em suasRetrataçõe

, Roma, inva-

dida pelos godos sob o comando de seu rei Alarico, foi  

tomada e devastada. Os adoradores dos deuses, tão falsos 

como numerosos, e aos quais damos o nome de pagãos, 

fizeram a religião cristã responsável por êste desastre e levantaramse contra o verdadeiro Deus em blasfêmias 

mais azêdas e mais amargas do que de costume. Um zêlo ardente pela casa do Senhor me inspirou, então, escrever 

contra suas blasfêmias ou seus erros, meus livrosDa

 

Cidade de Deu .

  Dos vinte e dois livros que compõem 

esta obra, os doze últimos são principalmente consagra-dos a narrar a história das “duas cidades, uma das quais

( 55 ) Ib id .

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é a de Deus, a outra dêste mundo”, desde o seu nasci-

mento até o fim que as espera ainda(56). Se a obra se intitula A Cidade de Deu , é que ela toma o seu título da melhor das duas, mas éb em a história de uma e de outra cidade que narra (57).

 Agostinho não se enganava a respeito do objeto ver-dadeiro de sua obra. Empreendida sob a pressão das cir-cunstâncias, sugerida talvez pela questão levantada por este mesmo Marcelino a quem é dedicada, ela se propõe bem mais do que defender a Igreja de uma acusação de circunstância. O drama cujas peripécias vai narrar e cujo sentido vai extrair é de amplitude literalmente cósmica, 

 pois confundese com a história do mundo. A mensa-gem que o bispo de Hipona trazia assim aos homens é que, o mundo inteiro, desde a sua origem a seu termo,  tem por fim único a constituição de uma sociedade santa, em vista da qual tudo se fêz, inclusive o próprio universo. 

 Jamais, talvez, na história das especulações humanas, a noção de sociedade sofreu, em profundidade, metamorfose 

comparável a esta nem, em se metamorfoseando, haja 

 provocado um aumento igual de perspectivas. A cidade 

faz mais do que se estender até os limites da terra ou do mundo; ela o inclui e o explica a ponto de justificar  a sua própria existência. Tudo o que existe, com exce-ção de Deus apenas, de quem ela é criatura, não possui sen-

tido senão por ela e, se se pode ter fé na inteligibilidade  última do menor dos acontecimentos e do mais humilde 

dos sêres, a Cidade de Deus lhes conserva o segredo.

(50) S. A gostinho, Retractationes,  l ib. II, cap. 43: n.° 2: Pat. Lat., t. 32, CO). 048.

(57) S.  Agostinho, De Civitate Dei,  II, 19. Prefácio. Pat. Lat., t. 41, col. 13.

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C apítulo  II

A Cidade de Deus

Q u e   É u m a   c i d a d e , não segundo o sentido material, mas pelo sentido social do têrmo ? Procurar seia em vão, no mundo que é a Cidade de Deu ,  uma discussão abstrata e geral do problema, tal como o con-sideram os filósofos, quando tentam definir por sua natu-reza o nexo social. Por mil voltas e rodeios, Agostinho  prossegue na realização de sua obra, de que não é inexato dizerse que é uma apologética^1) mas que o empenha em mais de uma discussão em que a filosofia como tal é julgada segundo um ponto de vista cristão. 

 Tal é, precisamente, o caso da noção de cidade. Não a discute nem como filósofo indiferente ao cristianismo, nem como cristão indiferente à filosofia, mas como cris-

tão que julga a filosofia e, se é preciso, lhe reforma as noções à luz da fé.

Quando fala de uma “cidade” humana, Agostinho 

 pensa, primeiramente, em Roma e em sua história, tal qual os escritores latinos lha haviam ensinado (12). Se lhe foi possível refutar a recriminação dirigida contra a

(1 ) H. Scholz, Glaube und ünglaube, Vorrede,  p á g . I V . Ê l e s eo p õ e a o s q u e v ê e m n a Cidade de Deus   u m a “ f i lo s o f i a d a h i s t ó r i a ” ;n o q u e t e m r a z ã o , o q u e n ã o i m p e d e q u e u i n a f i l o s o f i a d a h i s t ó r i ah a j a s a í d o d a í m u i to s s é c u lo s m a i s t a r d e . S e g u n d o S ch o lz , o t e m ad o m i n a n t e d a o b r a s e r i a “ o c o m b a t e e n t r e a f é e a i n f i d e l i d a d e ”(pág . 2 ) , o q u e é m u i to r azo áve l . O ina i s s im p l e s é , t oda v i a , ad m i t irq u e o t e m a d o m i n a n t e d a Cidade de Deus   é , p r e c i s a m e n t e , a C i d a d ede D eu s .

( 2 ) “ C i d a d e ” s i g n i f i c a “ s o c i e d a d e ” : “ c i v i t a s , q u a e n i h i l a l i u de s t q u a m h o m i n u m m u l t i t u d o s o c i e t a t i s v i n c u l o c o l l i g a t a ” . De civ. Dei, X V , 8, 2; col. 447.

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Igreja, de ter causado a ruína de Roma, é que, como 

 vimos, Salústio em pessoa, havia considerado Roma arrui-nada por seus próprios vícios, bem antes do nascimento 

de Cristo. Ao levantar a questão acerca do momento de sua história em que Roma mereceu o nome de cidade, 

foi, ainda, a uma definição pagã de cidade que êle fez  apelo. Assim, julgando a sociedade paga em nome das normas que ela própria havia estabelecido, êle se inspira em regras que ela mesma não seria capaz de recusar.

O que parece dominar a concepção pagã de cidade, que é um corpo ao mesmo tempo político e social, é a noção de justiça. Tal como a concebia Cícero, por 

exemplo, toda sociedade seria semelhante a concêrto mu-sical, em que, sons diferentes vindos dos instrumentos e 

das vozes, chegariam finalmente ao acorde e à harmonia. 

O que o músico denomina harmonia, o político denomina 

concórdia. Sem concórdia, nada de cidade, mas, sem justi-

ça, nada de concórdia. A justiça é, pois, a condição preli-

minar requerida para a existência da cidade. Quando um 

historiador afirma que, em certo momento de sua história, 

Roma perdera toda a justiça, Agostinho crê poder con-

cluir disto que, apesar de tôdas as aparências, Roma dei-xara desde então de existir. Não basta pois dizer, com 

Salústio, que a sociedade romana se achava então corrom- pida; é necessário chegar mesmo a dizer, com Cícero, que, como sociedade, ela deixara totalmente de existir: iam  tun c pr rsus periisse et nu llam mnim remansisse rem- 

pub l icam (3) .

Será dizer bastante ? Se se relaciona a tese, igual-

mente defendida por Agostinho(4), de que Roma republi-cana prosperara por suas virtudes, parece bem que se 

 podería admitir a existência de uma sociedade pagã digna 

dêste nome. Deus, escrevia êle a Marcelino em 412, dese-jou manifestar a finalidade sobrenatural das virtudes cris-tãs, permitindo a Roma antiga prosperar sem elas. Isto significava o reconhecimento de uma eficácia temporal

(3) De civ. Dei,  II, 21, 1 ; col. 65-67 (tôdas as nossas referencias& Cidade de Deus   referem-se ao t. 41 da Patrologia Latina de Migne).

 Agostinho força um pouco o texto de Cícero, que cita, II, 21, 3, col. 68.(4) Ver mais acima, c. I, pág. 40.

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certa para as virtudes cívicas dos pagãos e do caráter de uma autêntica sociedade para a própria Roma. Para dizer a verdade, Agostinho absolutamente nunca o negará. Por razões divinas ou humanas, a antiga Roma era à sua 

maneira, uma sociedade. Ela foi melhor administrada  pelos antigos Romanos do que por seus sucessores, mas enfim, pr su m d , era uma sociedade. Somente, que no próprio lugar onde o concede,(5) Agostinho acres-centa que ela não o era e que o provará mais tarde, apoian-dose nas definições de corpo social que Cícero em 

 pessoa havia proposto. Nunca houvera uma “verdadeira” sociedade romana, por que a “verdadeira justiça” nunca aí reinara.

Manifestamente estamos aqui às voltas com um pro-blema que não se pode resolver por um simples sim, ou um simples não. Em certo sentido, houve uma “coisa 

 pública” romana onde, sobretudo, na época das origens, reinava uma espécie de justiça, geradora de uma espécie de sociedade. Todavia, pois que esta justiça não era a “verdadeira justiça”, esta sociedade não era uma verda-deira sociedade. Aqui, cedendo um momento às solicita-ções da dialética, diremos que nunca houve sociedade romana porque não ser uma verdadeira sociedade, é não ser nenhuma. É não ser uma sociedade de forma alguma.

Tomada a rigor, esta tese significa que não existe e não pode existir senão uma única cidade digna deste nome, aquela que observa a verdadeira justiça, em suma, cujo chefe é Cristo. Deve haver ao menos uma segunda,

(5) De civitate Dei,  II, 21, 4, col. 68; “nunquam filam fuisse rem-publicam, quia nunquam in ea fuit vera jus titia . Secundum probabi-

liores autem definitiones, pro suo modo quodam respublica fuit: etmelius ab antiquioribus Romanis, quam a posterioribus administrataest. Vera autem jus titia non est, nisi in republica, cujus conditor rector-que Christus est; si et ipsam rempublicam placet dicere, quoniam eamrem populi esse negare non possumus. Si autem hoc nomen, quod alibialiterque vulgatum est, ab usu nostro locutionis est forte remotius,in ea certe civitate est vera justitia, de qua Scriptura sancta_ dicit:Gloriosa dieta sunt de te, Civitas Dei.   Ps. 86, 3”. Êste texto tão ricoregula muitos pontos: o conjunto dos homens submetidos a _Cristoforma um povo; seria possível nomeá-lo a respubl i ca   dos cristãos; otêrmo respublica   já tendo sido apropriado a Roma, pode-se pelo menosdesignar êste povo como uma c i v i tas ;    o têrmo civitas Dei é   tirado daEscritura, fonte da fórmula. Isto não impede, ademais, admitir, comH. Scholz (.Glaube und TJnglaube.. pág. 78), que a noção de duas

cidades opostas tenha sido sugerida a Agostinho por Ticônico: “Ecceduas civitates, unam Dei et unam diaboli”.

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que é constituída por todos homens que não têm Cristo  por chefe; mas esta não é senão resíduo da primeira e 

não é senão por sua causa que existe. Não havería cidade 

da injustiça, se não houvesse cidade da justiça. Toda sociedade digna deste nome ou é a Cidade de Deus ou se 

define por sua relação a ela.Que tal seja a posição absoluta de Agostinho, nin-

guém o duvidaria e nós teremos em breve mais de uma  prova. Todavia, não se poderia duvidar de que as virtudes 

romanas e a grandeza cívica da ordem romana não lhe tenham apresentado problemas a respeito dos quais, na melhor das hipóteses eralhe necessário acomodarse, bem 

ou mal. A ambigüidade da noção de justiça eralhe a causa, pois, se a noção de “verdadeira justiça” é clara, aquela de falsa justiça não o é, e como não se sabe mais então se a justiça de que se fala é ainda uma justiça, não  se sabe também se a sociedade que ela funda é ainda 

uma sociedade.É, sem dúvida, por isto que, volvendo mais tarde ao 

exame da questão, Agostinho foi levado a uma nova defi-nição do nexo social na qual, sem que ela fosse eliminada, a noção de justiça passa a um segundo plano. Alguns 

lamentaram isto(6) mas não é certo que estejam com  razão, e, de qualquer modo, convém compreender, pre-liminarmente, por que Santo Agostinho se achou na emer-gência de fazêlo. Identificar o nexo social à justiça o 

comprometería numa dificuldade dupla, em primeiro lugar a que constituía o caso de Roma, do qual se viu  agora como conseguiu esquivarse; em seguida a da Ci-dade, que não é de Deus: se seu nexo social, como se vê  

logo, fosse a verdadeira justiça, isto criaria uma di-ficuldade da qual Agostinho absolutamente não podia sair, Como podería haver duas cidades, para uma doutrina em que toda sociedade, fundandose sobre a justiça, não 

aceita senão uma cidade de Cristo fundada na justiça de Cristo ?

O movimento dialético realizado por Agostinho parte da definição do que é um povo, tal como Cícero a havia

(8) A. J . C arlyle, St. Augustine and the City of God,  em F. J. C.Hearnshaw , The Social and Polit ical Ideas of some Great Mediaeval  Thinkers,  Lontlon, G. G. Harrap, 1923, págs. 42-52.

 

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 proposto em seu diálogo perdido, De Republica.  “Um  povo, dizia por intermédio de Cipião, é uma multidão reunida pelo reconhecimento do direito e pela comuni ' 

dade de interesses” (7). Submeterse ao direito ( ju )  é submeterse à Justiça, porque onde não há

ju ,

  como ha  veria

ju titia ?

  O que se faz pelo “direito certo” se faz justamente e não se poderia dar o título de “direito” a decisões iníquas estabelecidas por alguns homens com des- prezo por toda justiça. Do princípio estabelecido por Cipião e Cícero, seguese pois que uma multidão que não é unida pela justiça, não forma um povo. Mas, onde não há povo, não há igualmente “coisa do povo”, “coisa 

 pública”, ou como se diz, “república” . Ora, que é a jus-tiça, senão a virtude que dá a cada um o que lhe pertence ?E que é esta justiça dos homens, que arranca o homem a Deus, para submetêlo aos demônios ? Será dar a cada um o que lhe pertence ? Pois que os deuses romanos não eram outra coisa senão os próprios demônios, e sob a forma de inumeráveis ídolos, eram os espíritos impu-ros que se faziam adorar(8). É preciso pois renunciar a dizer que os Romanos foram algum dia um povo, o que 

seria assaz incômodo, ou definir um povo de maneira di-ferente do que por referência à justiça, solução pela  qual, finalmente, Santo Agostinho se decidiu (9).

(7) “Populum esse definivit coetum multitudinis, juris consensuet utilitatis communione sociatum”, De civ. Dei,  XIX, 21, 1; coí. 648.

(8) De civ. Dei,  XIX, 21, 1-2, col. 648-650.(9) Falando da definição nova que vamos examinar, A. J . Carlyle

diz não chegar a saber se corresponde, em S. Agostinho, a uma concepção defintiva, ou se representa em sua obra apenas um juízoacidental e isolado (St. Avgustine and the d tp o f Gog,  pág. 50). Se,diz êle, a primeira hipótese fôr a verdadeira, o fato seria grave, poisisto significaria que o mais importante dos doutores cristãos quiseliminar a noção de justiça da definição de povo. Daí sua conclusão:“Eu não estou perfeitamente seguro de que Santo Agostinho haja delibera-damente tentado mudar o conceito de Estado. Se o fêz, não possodeixar de pensar que foi um ê r ro   deplorável num grande doutorcatólico. Felizmente, a coisa é sem importância, pois, se verdadeira-mente cometeu êsse êrro, ficou sem efeito na história das idéias cristãs. É um fato notável que esta passagem de S. Agostinho não se japor assim dizer citada nunca pelos escritores latinos que vieram depois dêle”. Êsse último fato nos parece exato, mas não o que precede. Agostinho eliminou a noção de justiça da definição de povo porquepode haver um povo sem que haja justiça (exatamente por isto deli-beradamente mudou a definição ciceroniana de povo), mas não pretendeu liberar qualquer povo do respeito pela justiça. Quanto^ adizer que a nova definição agostiniana de povo permaneceu sem influência na história das idéias, é um fato do qual o presente trabalho crêtrazer muitas razões de duvidar.

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 Após ter mais uma vez recordado que, se a defini-ção ciceroniana é verdadeira, não podería haver povo onde não houvesse justiça, (10) Agostinho propõe então 

esta definição bem diferente: “Um povo é um grupo de seres racionais, unidos entre si pelo fato de amarem 

as mesmas coisasf11). Não é difícil ver em que sociedade 

 pensa em primeiro lugar Agostinho, quando procura 

definir todas. Se se trata de saber que associação de seres racionais se fundou, antes de tudo, sobre o amor  comum da mesma coisa, em que outra se pensaria senão 

naeccle a

  de Cristo ? Seguramente, a Igreja foi estabele-cida sobre a autoridade divina que legitima seu magis-

tério, mas a fé sobre a qual é fundada não se separa nem  um só instante da caridade que lhe serve de liame. Desde a sua própria origem, o amor está presente; é êle que  

mantém reunido todo êste povo, unido na caridade comum  do bem, assegurada por sua fé. Jesus em pessoa os con-

 vocou a amar a Deus e a amaremse mütuamente como 

êle os ama e como êles o amam. Graças a seu ensina-mento, esses dois mandamentos da lei tornaramse “gran-des mandamentos” e adquiriram, por isto, uma fôrça 

completamente nova, porque resumem doravante tôda a lei e os profetas. É bem a um povo novo que Jesus se dirige quando fala assim a seus discípulos, porque o amor mútuo que lhes prescreve e que lhes dá é preci-samente o sinal por meio do qual o mundo reconhecerá  doravante os cristãos (12). Precisaria recordar aqui a prece 

de Jesus a seu Pai, não somente para seus discípulos,  mas para os discípulos de seus discípulos, até a consuma-

ção dos séculos ? “Eu não oro por êles somente, mas também, por aqueles que por sua pregação crerão em mim, para que todos sejam um, como vós, meu Pai, sois em mim e eu em vós — de modo que êles também sejam

(10) 0 mesmo que dizer que não pode haver senão um povo,o da . Cidade de Deus: “Quapropter ubi non est ista justitia, utsecundum suam gratiam civitati obcdienti Deus imperet unus etsummus..., profecto non est coctus hominum juris consensu et utili-tatis communione siciatus. Quod si non est, utique populus non est,si vera est liaec populi definitio. Ergo nec respublica est; quia respopuli non est, ubi ipse populus non est.” De civ. Dei,  XIX, 23, 5;col. 635.

(11) “Populus est coetus multitudinis rationalis, rerum quas diligitconcordi ratione sociatus”. De civ. Dei,  XIX, 24, col. 655.(12)  Mat.  5, 43-48; 10, 10; 22, 34-40.  Marc.  12, 20-31. Luc.  6, 27-86.

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um em nós, a fim dé que o mundo creia que vós me 

tendes en viado... Pai justo, o mundo não vos conheceu; mas eu vos conheci e êstes souberam que fostes vós quem 

me enviou. Eu envieilhes vosso nome, e eu lhes ensi-narei a fim de que o amor com o qual vós me amastes  

esteja neles e que eu esteja neles também” ( 13).

 Assim nasce uma nova família humana, a dos predes-tinados a serem filhos adotivos do Pai em Jesus Cristo,(14) na qual já dizíamos que “não há grego nem judeu, nem circunciso nem incircunciso, nem bárbaro nem cita, nem  escravo nem homem livre”, mas na qual “Cristo é tudo 

em todos” (15). Eis porque todos os cristãos são membros 

de um mesmo corpo, cuja cabeça é Cristo ( 16) e no qual todos se esforçam numa mútua caridade “para conser- var a unidade do espírito pelo laço da paz” ( 17).

Procurarseia em vão na Escritura uma definição 

abstrata do que é um povo, mas o Novo Testamento nos  permite ver nascer um, e é aquele mesmo cuja essência  Agostinho acaba de definir: homens unidos em comunhão 

no amor de um mesmo bem. Definição de uma socie-dade puramente religiosa e mesmo, como se verá, mís-

tica, esta fórmula não se revela aplicável de maneira menos imediata a toda sociedade, seja qual fôr, e de início ao povo romano. A questão de saber se uma sociedade determinada é boa ou má, não se confunde mais dora-

 vante com esta outra: tal grupo de homens é, ou não, 

um povo ? Interpretado por um cristão, a fórmula de Cícero não deixava lugar senão para um povo: o povo  oristão, detentor da justiça verdadeira, a de Cristo. A  nova fórmula permite ao contrário reconhecer povos 

dignos dêste nome, posto que injustos: “Desde que ela ame, se uma multidão se compõe de criaturas racionais, não de animais, e contanto que seja unida pela comunhão 

de corações, podese dizer sem absurdo que é um povo,  um povo de melhor qualidade, se êle se une no amor do

(13)  J o ã o   17, 20-26.(14)  Ef.  1, 5.(15) Colos.  3, 11.(16) I Cor.  12, 27;  Ef.  1, 22 segs . ,   4, 15 segs.; Coloss.,  2, 19;

Rom.  12, 4 segs.(17)  Ef.  1, 2-3; Cf. 4, 3.

 

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melhor, um povo de qualidade pior, se aquilo cujo amor os une é pior. De acordo com esta definição, que é a nossa, o povo romano é um povo e a coisa romana é, 

sem dúvida alguma, uma coisa pública”. Assim, malgrado a decadência política de que foi causa a decadência dos 

costumes, não se lhe recusará o nome de povo, contanto  que aí subsista um ajuntamento qualquer de sêres racio-

nais, unidos na unânime comunhão de todos os seus 

membros em torno das coisas que amam. Ora, acrescenta 

 Agostinho, o que digo dêsse povo e dessa república, com 

 preenderseá que o digo e o entendo dos atenienses e de todos os gregos, dos egípcios, dos assírios da antiga 

Babilônia e, geralmente falando, de todo povo, pequeno ou grande, desde que seja um povo. Se, pois, existe uma cidade dos ímpios, certamente não possui a justiça, mas não deixa de ser uma cidade: (18) a cidade que não é a 

da paz.Das inumeráveis cidades espalhadas pelo mundo, duas 

somente prendem a atenção de Santo Agostinho. Duas 

cidades, isto é, duas “sociedades de homens” (19), e como o indivíduo está para a cidade como a letra para a pala-

 vra, é na própria natureza de seu elemento que importa  procurar a origem das duas sociedades entre as quais se distribuem os homens. Houve um momento em que 

a unidade do gênero humano foi efetivamente realizada: quando êle não se compunha ainda senão de um único homem. De fato, foi precisamente para garantir esta uni-

dade que Deus criou inicialmente um homem único, do qual todos os outros descendem. Isto não era, em si, 

necessário. A terra podería ser, hoje, povoada pelos des-cendentes de muitos homens simultaneamente criados na origem dos tempos e sendo cada um a fonte. Mesmo que fosse assim, a unificação do gênero humano perma-

necería desejável e possível; mas, pelo antepassado único  de que se originou, sua unidade não é somente um ideal realizável, mas um fato. Um fato físico, já que todos os homens são parentes; um fato moral também, porque em lugar de não se sentirem ligados senão por uma seme-

(18) De d v Dei,  XIX, 24, col. 655.(19) De civ. Dei,  XV, 1, 1 ; col. 437. Cf . cap. II, nota 2.

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lhança de natureza, o são por um sentimento propria-mente familial. Que todos os homens, tão diferentes que 

sejam pela raça, a cor da pele e, mesmo, a forma de seus membros, retirem a sua origem do primeiro homem 

formado por Deus, e que este primeiro homem haja sido único, eis o que nenhum fiel pode pôr em dú 

 vida(20). Que Deus haja, êle mesmo, criado o gênero humano desta maneira “para fazer compreender aos homens como a unidade lhe agrada, mesmo na diversi-

dade’^ 21) e para que sua unidade fosse verdadeiramente aquela de uma família (22), Agostinho não o duvida de maneira alguma. Assim, e a fé nolo assegura, os homens 

são naturalmente irmãos em Adão, antes mesmo de o 

serem sobrenaturalmente em JesusCristo(23**).

Desde a própria origem da história humana, todavia, duas espécies de homens aparecem: Abel e Caim. Seres racionais e ademais nascidos de um mesmo pai, de quem 

a mãe fôra tirada, eles são idênticamente homens, mas tendo duas vontades radicalmente diferentes; cada um deles representa a possibilidade pelo menos de uma so~

(20) 0 antiracismo de Agostinho estende-se a todos os homens,sejam quais forem, inclusive os Pigmeus e, mesmo, se existem, coisade que não está seguro, os Ciópodos (que se abrigam do sol à sombrade seus pés), os homens sem cabeças, e os Cinocéfalos: “Sed omniagenera hominum, quae dicuntur esse, credere non est necesse. Verumquisquis uspiam nascitur homo, id est animal rationale mortale,quamlibet nostris inusitatam sensibus gerat corporis formam seu coloremsive motum sive sonum sive qualibet vi, qualibet parte, qualibetqualitate naturam: ex illo uno protoplasto originem ducere nullusfidelium dubitaverit. Apparet tamen quid in pluribus natura obtinueritet quid sit ipsa raritate mirabile.” De civ. Dei,  XVI, 8, 1; col. 485.Notar a cláusula “nullus fidelium”.

(21 ) De c iv De i , X II , 2 2 ; co l . 373.(22) “Hominem vero .. . unum ac singulum creavit, non utique solum

sine humana societate dcserendum, sed ut eo modo vehementius eicommendaretur ipsius societatis unitas vinculumque concordiae, si nontantum inter se naturae similitudine, verum etiam cognationis áffectuhomines necterentur; quando nec ipsam quidem feminam copulandam viro, sicut ipsum creare il li placuit, sed ex ipso, ut omne ex homineuno diffunderetur genus humanum”. De civ . Dei,  XII, 21; col. 372.

(23) O próprio fato em si de que ha ja uma unidade natural dogênero humano não é conhecido senão pela fé, pois os cristãos acreditam que Deus criou um único homem, do qual tirou a primeiramulher e que todos os outros humanos nasceram dêste primeiro casal.O Criador poderia ter feito de outro inodo. Se fêz assim foi precisamente para que o povo dos eleitos fôsse preparado para se concebercomo único. A unidade do gênero humano é um esboço e prefiguraçãoda unidade do povo santo convocado à adoção em Jesus-Cristo. De  Civ. Dei,  XII, 22; col. 373. Tôda esta perspectiva sôbre a natureza é

tomada do ponto de vista da fé.

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ciedade radicalmente distinta. Na medida em que segui-rem um ou outro exemplo, os homens se distribuirão,  doravante, entre dois povos: aquele que ama o bem e aquele que ama o mal. O primeiro teve Abel por fun-dador, o segundo, Caim(24). A partir desta origem, a história dos povos se confunde com a história universal, ou melhor, ela é esta história mesma(2S). Agostinho a esboçou em grandes traços, outros, após êle, a retoma-

ram ou a prolongaram, mas nosso objeto próprio não nos convida a atirarmonos nesta via. Temos, apenas, a 

 perguntar como Agostinho, pessoalmente, concebe as duas sociedades de que fala, e é a sua natureza mesma 

que temos que definir.Quantos amores partilhados em comum, dizíamos, 

quantas sociedades. Quando o próprio Agostinho fala duma “cidade”, é pois em sentido figurado — ou mesmo, como diz, “místico” — que semelhante têrmo deve ser entendido. Há, dum lado, a sociedade, ou cidade, de todos os homens, que amando a Deus no Cristo, são pre-

destinados a reinar eternamente com êle e, doutro lado, 

há a cidade de todos os homens que, não amando a Deus, são predestinados a sofrer com os demônios um suplício eterno. Agostinho nunca, portanto, concebeu a idéia de uma sociedade universal única, mas sim a de duas, que são universais ao menos no sentido que todo homem, seja qual fôr, é necessàriamente cidadão de uma ou de outra, 

 predestinado, mesmo, a uma ou outra(26). Nesse sen-

tido, é verdadeiro dizer que dois amores fizeram as

(24)  Enarr. in Ps.,  142, 3; t. 37; col. 1840. Observar ibidera:“Antiqua ergo ista civitas Dei, semper tolerans terram, sperans coelum,quae etiam Jerusalem vocatur et Sion”. — Cf. “Natus est igitur priorCain ex illis duobus generis huniani parentibus, pertinens ad hominumcivitatem; posterior Abel, ad civitatem Dei”, De civ. Dei   XV, 1, 2;col. 437. Aqui ainda, observar desde logo que a “cidade dos homens”não significa o Estado, ou a nação, mas o povo dos homens cujo fimnão é Deus. É evidente que, enquanto homem, Abel em nada se distingue de Caim.

(25) Com efeito não há senão um gênero humano, dividido entredois povos: “Universum genus liuinanum, cujus tanquam unius hominis vita est ab Adam usque ad finem hujus saeculi, ita sub divinaeprovidentiae legibus administratur, ut in duo genera distributum appa-reat”. De vera re l ig ione ,  50; t. 34, col. 144.

(26) De civ, Dei, XV,  l . l . col. 457. Ver, mais adiante, cap. IInota 32.

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duas cidades, uma em que o amor de Deus une entre si todos os membros, a outra em que todos os cidadãos, em que tempo e em que país vivam, são unidos pelo  

amor comum do mundo. Agostinho distinguiulhes os 

 princípios de muitas maneiras: amor de Deus ou amor do mundo, amor de Deus até o desprêzo de si, amor de  

si levado até o desprêzo de Deus, amor da carne ou amor do espírito; de qualquer modo elas se distinguem bem 

 pelo amor com que cada uma nasce, como de sua própria 

raiz. Seja qual fo r o nome pelo qual as designamos,  permanece verdadeiro dizerse: duas civitates faciunt 

du am res, ou fecerunt civitates duas am res du (27).  

Mesmo antes de haverlhes escrito a história e quando a 

Cidade de Deus  não era ainda para êle senão um projeto, foi assim que as imaginou. Distinguido o amor perverso 

de si e a caridade santa, acrescentava logo: “Êstes dois 

amores, um dos quais é santo, outro impuro; um social, outro particular; um procurando o bem de todos em 

 vista da sociedade superior, outro reduzindo a seu pró- prio poder, com espírito de arrogância dominadora, mesmo 

aquilo que pertence a todos; um submetido a Deus, outro 

em rivalidade com Êle; um tranqüilo, o outro turbu-

lento; um pacífico, o outro sedicioso; um preferindo a  verdade aos louvores enganosos, o outro ávido de elogios 

 por pouco que valham; um amistoso, outro ciumento; um que deseja para os outros o que deseja para si, o 

outro que deseja submeter o próximo; um que governa 

o próximo no interêsse do próximo, outro que governa  

o próximo em seu interêsse próprio. São êstes dois amo-res, um dos quais se afirmou primeiramente entre os 

anjos bons, o outro entre os maus, que fundaram a dis-tinção do gênero humano em duas cidades, segundo a 

admirável e inefável providência de Deus, que ordena e 

administra todas as suas criaturas. Duas cidades, uma 

dos justos, outra dos maus, que persistem como entre-meados no tempo até que o julgamento final as separe e 

que, reunida aos anjos bons sob seu rei, uma obtenha a

(27)  Ena rr. in Ps.   64, 2; t . 36, col. 773; De civ. Dei,  X I V , 1; col.

403; X I V , 28, col. 486; XV, 1, 1, col. 437.

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 vida eterna, e a outra, reunida aos anjos maus sob seu rei, seja entregue ao fogo eterno” (28). ^

Neste resumo da história dos dois ámôres está, pois, 

o da história universal, inclusive a raiz última de sua inte-ligibilidade — digame o que ama um povo e direi o que ele é(29).

O que são exatamente estas duas cidades ? Nós o dissemos: são dois povos, cuja natureza se define pelo que amam. A palavra “cidade” os designa já de maneira simbólica, mas podemos darlhes nomes ainda mais sim-bólicos: Jerusalém (visão de paz) e Babilônia (Babel, confusão) (30). Seja qual fôr o nome que se lhes dê, 

tratase sempre, da mesma coisa, isto é, de duas “socie-dades humanas” (31). Para fixar melhor a noção, o mé-todo mais seguro é o de definir os membros de que se compõem, mas Agostinho exprimiuse sobre este ponto de maneiras tão diferentes que os seus leitores podem ser bem desculpados de hesitar a respeito, e mesmo alguns de seus intérpretes de ficarem perdidos. Um fio condutor  permite, todavia, orientarse com segurança no dédalo

(28) De Genesi ad litteram,   XI, 15, 20; t. 34, col. 437.(29) Profecto ut videatur qualis quisque populus sit, illa suntintuenda quae diligit”. De civ. Dei,  XIX, 24, col. 655.

(30) Todos os gêneros de sociedades humanas, por mais numerosose variados que sejam, se reduzem pois a dois. Inspirando-se nalinguagem da Escritura, Agostinho denomina êstes “genera societatishumanae” de “civitates”. De civ. Dei,  XIV, 1, col. 403. Agostinhonão afirma aqui suas fontes escriturarias, mas já o fizera em De  civ. Dei,  XI, l, col. 317, onde alegava de início: “Gloriosa dietasunt de te, civitas Dei” (Ps. 86, 3); e em seguida Salmos: 47, 2, 8, 9;e 45, 5-6. H. Seholz, Glaube und Unglaube   pág. 71, nota 1, remete aoutros textos do Nôvo Testamento (corrigir assim a última referência:

 Apoc. 21, 2). Sôbre a pré-história desta noção agostiniana, discutir-se-á

com fruto op. cit. pág. 71-81. Os textos tirados de Ticônio, pág.78-81, são particularmente importantes. Ticônio já fa la ra de Babilônia,cidade ímpia e Jerusalém, igre ja do Deus vivo. Recordemos a propósitoque o sentido dêsses nomes é, para Jerusalém, vts io pac i s    e paraBabilônia (como para Babel): confus io .  Cf. De civ. Dei,  XVI, 4, col. 482;XVIII, 2, col. 601, para Babilônia; e De civ. Dei,  XIX, 9, col. 687,para Jerusalém.

(31) De civ. Dei,  XV, 18, col. 461; XV, 20, l , col. 462. Agostinhopermanece, pois, fiel à tradição greco-romana da cidade-povo. Êlepróprio não distingue senão três formas orgânicas de vida social(v i ta sor ial i s ) :    a família, a cidade ( c iv i tas ve l urbs) , o   globo terrestre.“Post civitatem vel urbem sequitur orbis terrae, in quo tertium gradumponunt societatis humanae, incipientes a domo, atque inde ad urbem,deinde ad orbem progrediendo venientes”. De civ. Dei,  XIX, 7, col. 633.

H. Seholz observou justamente ( Glaube und Unglaube,  pág. 85-86)que é, geralmente, inexato e muitas vêzes perigoso traduzir civitas  por Estado, se bem que existam alguns casos, relativamente raros, emque isto seja legítimo.

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dos textos: é o princípio, muitas vezes proposto por  

 Agostinho, de que as duas cidades de que fala recrutam  

seus cidadãos unicamente segundo a lei da predestinação 

divina. Todos os homens fazem parte de uma ou de outra, 

 porque todos os homens são predestinados à bemaven turança com Deus, ou à miséria com o demônio (32). Nenhuma outra alternativa sendo imaginável, podese afirmar sem mêdo de êrro que a qualidade dos cidadãos de uma ou de outra cidade se reduz, em última análise, à 

 predestinação divina, da qual cada homem é objeto. É,  pois, neste sentido que convém interpretar as fórmulas  variadas que usa Agostinho para designar as duas cidades. Certas não criam dificuldade, como por exemplo, “A  

Cidade de Deus e a cidade do diabo”, ou o que dá na mesma, “a cidade de Cristo e a cidade do diabo” (33). Da 

mesma forma, ainda “a família dos homens que vivem  

da fé e a família dos homens que não vivem da fé”, “o 

 povo dos fiéis e o povo dos infiéis”, ou “a sociedade dos homens piedosos e a sociedade dos ímpios”, isto é, daqueles que unem o amor de Deus e daqueles que unem 

o amor de si.(34). Em troca, podemos hesitar, quando 

 Agostinho opõe “cidade terrestre e cidade celeste”, “ci-dade temporal e cidade eterna” ou mesmo “cidade mor-tal e cidade imortal” (35), por que afinal as duas cidades são imortais, e os predestinados que vivem no tempo são, todavia, membros de uma das duas cidades eternas; e já 

nesta terra podese ser membro da cidade celeste, pelo

(82) “Quas etiam mystice apellamus civitates duas, lioc est duassocietates hominuin; quarum est una quae praedestinata est inaeternum regnare cum Deo; altera, aeternum supplicium subire cum

diabolo”. De civ. Dei.  XV, 1, 1. col. 457.(33) “Civitates quarum una est Dei, altera diaboli”. De civ. Dei, 

XXI, 1, col. 709. “Quod pertinet ad civitates duas, unam diaboli,alteram Christi”, De civ. Dei,  XVII, 20, 2, col. 556. Agostinho acrescenta:“et earum reges diabolum et Christum”, e nomeia mais adiante de“liberam civitatem” a Cidade de Deus.

(34) D e civ. Dei,  XIX, 17, col. 645. De civ. Dei,  XIV, 18, 1, col . 421:“ u n a s c i li c e t so c i e t as p io r u m h o m in u m , a l t e r a ii n p io r u m , s i n g u l a q u a e q u ec u m a n g e l is a d - s e p e r t in e n t ib u s , i n q u i b u s p r a e c e s s i t h a c a m o r D e i,h a c a m o r s u i ” .

(35) De civ. Dei,  XI, l , col. 317. (Notar isto: “quamdam civitateniDei, cujus eives esse concupiseimus illo amore, quem nobis illius con-ditor inspiravit”) — De civ. Dei,  V, 18, 3, col. 165. De civ. Dei,  XXI, 11,

col. 726.

 

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simples fato de se ser predestinado (36). Agostinho usa, 

 pois, tanto de fórmulas precisas quanto de fórmulas que 

o não são. Em caso de dúvida, as primeiras devem ser-

 v ir de regra de interpretação: seja qual fôr o nome que 

traz, toda cidade se reduz àquela de que Deus é o rei, ou àquela onde reina o diabo, e suas diferentes denomina-

ções não significam nada além disto.

Evitarseá, pois, de início o contrasenso, desgraça damente muito freqüente, de confundir a cidade do diabo com as sociedades políticas como tais, ou como disseram 

às vezes, com o Estado. Ambas podem coincidir de fato, isto é, em circunstâncias históricas determinadas, mas se distinguem sempre de direito.

 A verdadeira definição da cidade terrestre é bem di-ferente (37). A questão não está em saber se se vive ou não numa das sociedades que atualmente partilham entre si a terra, o que é inevitável, mas se se situa o seu 

 próprio fim na terra ou no céu. No primeiro caso, ése 

cidadão da cidade terrestre, no segundo, da cidade celeste. 

O problema não muda de aspecto, quando colocado a  propósito, não de indivíduos, mas de sociedades; as que 

se organizam em vista somente da felicidade dêste mundo, 

incorporamse, por isto, à cidade terrestre, que não é outra  

senão a do diabo; as que se organizam em vista da beatitude 

divina, se incorporam, automàticamente, à cidade celeste, 

que não é outra senão a cidade de Deus.

 A sociedade romana da decadência, por exemplo, com todos os vícios que lhe arguem seus poetas, seus 

historiadores e seus moralistas, não passa de fato, de um fragmento da cidade do diabo peregrinando pela terra em direção ao fim funesto que a espera. Na medida em

 que, mesmo após o advento de Cristo, tal sociedade se  perpetua, que se pode fazer senão suportála com paciên

(36) O próprio Agostinho o diz em têrmos exatos, antes em todosos textos em que apresenta estas duas cidades como “misturadas”uma na outra nesta vida; em seguida, e sobretudo, nas passagens ondeescreve: “Civitas autem coelestis, vel potius pars ejus, quae in hacmortalitate peregrinatur et vivit ex f id e . .. ”; “Haec ergo coelestiscivitas dum peregrinatur in terra”... De civ. Dei,  XIX, 17, col.615-646. Cf. op. cit . XXII, 6, col. 758.

(37) Ver sôbre êstes pontos as justas observações de H. Scholz Glaube und Unglaube,  págs. 87-89. Cf. O tto  Schi i.i.ing , Die Staats-und  Sozial lehre der hl . Augustinus,  Freiburg im Breisgau, Herder, 1910, pág. 54.

 

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*

\

cia, predizendolhe o destino ? “Os servidores de Cristo 

têm Ordem de suportála, sejam reis, príncipes, juizes, funcionários civis ou militares, ricos ou pobres, livres 

ou escravos, de um ou de outro sexo; de suportar, digo 

eu, se necessário, esta funesta e criminosa república, asse gúrandose assim, por sua paciência mesma, um lugar de 

honra nesta corte augustíssima e santíssima, da república 

celeste, cuja lei é a vontade de Deus” (38). Nenhuma 

dúvida é aqui permitida; a república terrestre que Agos-tinho condena é bem Roma, e a que se lhe opõe é bem a 

cidade de Deus, a única onde reina a verdadeira justiça, 

 porque seu fundador e chefe é o Cristo (39). Ademais, 

ao falar em homens “como cidadãos da república terres-tre” (40) é bem nos membros de um povo ou de um 

Estado em que pensa. Todavia, em todos êstes casos, nem um povo, nem o Estado são condenados como tais, mas porque, situando seu fim sobre a terra, êles se inte-

gram na cidade do demônio, cuja lei aceitam. Não são 

maus senão na medida em que se querem exclusivamente 

terrestres, o que basta para os excluir da Cidade de Deus.

O sentido pre,ciso de civita terrena  é, pois, aquêle de 

“cidade dos filhos da terra”, isto é, sociedade cujos mem-bros, ligados que são por seu amor exclusivo e prepon-derante das coisas da terra, consideram a terra como sua 

única e verdadeira cidade. Mas, tratandose da terra, ou 

do céu, que fim as “cidades” perseguem ? .Quando expõe completamente seu pensamento sobre tal ponto, Agos-tinho demonstra que todo grupo social tem como objetivo 

atingir a paz: ora, podemos conceber e desejar duas “pazes” 

distintas, a da terra e a do céu. Nada impede ao homem de desejar ambas ao mesmo tempo, mas uma diferença radical separa os homens que perseguem exclusivamente 

a paz terrestre daqueles que, por outro lado, desejam a 

 paz do céu. Esta razão nos faz volver à distinção das 

sociedades em função de suas vontades dominantes: todas as vontades que tendem para a paz de Deus formam o 

 povo da Cidade de Deus; todas as vontades que tendem

(38) De civ. Dei,  II . 19, col. 65.(39) De civ. Dei,  II , 21, 4, col. 68-69.(40) De civ. Dei.  XXII, 6, col. 759.

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 para a paz deste mundo como seu fim último, formam  

o povo da cidade terrestre. O primeiro povo reúne todos aquêles que u am   do mundo para f ru r   Deus; o segundo 

 povo reúne todos aquêles que, se reconhecem um Deus 

ou muitos deuses, pretendem usálos para gozar o mundo (41). Tal amor, dizemos, tal povo. Se se pode 

legitimamente identificar tal povo determinado com a ci-dade terrestre, isto se dá unicamente na medida em que 

ele próprio nela se incorpora por sua vontade dominante  

e não porque se incorpora nela pelo fato de durar no  

tempo, como sua condição de criatura o exige, mas por  

sua recusa em usar do tempo a fim de gozar da eter-

nidade. Assim como a sociedade humana, tomada em si 

mesma, não se confunde com a cidade terrestre, a Igreja 

não se confunde com a cidade de Deus. Esta, recorde-mos, inclui todos os predestinados à beatitude celeste e 

somente êles. Ora tal não é o caso da Igreja. Por mais 

restritamenté que a imaginemos, sempre poderá haver o 

caso de homefis que gozarão um dia a visão de Deus e 

que, todavia, não pertencem à Igreja. O caso de S. Paulo 

antes de sua conversão é um exemplo típico disto: êle 

não estava ainda na Igreja do Cristo, mas já era cidadão 

 predestinado da Cidade de Deus. Inversamente, há na 

Igreja cristãos que não são destinados à beatitude ce-leste; são membros da Igreja, mas não cidadãos da Cidade 

de Deus. Todavia, assim como certos povos se incorpo-ram à cidade terrestre por força de sua vontade domi-nante, a Igreja encarna, de fato, e da mesma forma, por  

sua vontade essencial, em direito, a Cidade de Deus, e Santo Agostinho exprimese, por isto, com exatidão ao 

dizer que, na terra, as duas cidades são perplexae , isto é, ainda misturadas uma à outra. A expressão deve ser enten-

dida em seu sentido forte, pois, se suas idéias são irre  

dutivelmente distintas, ao ponto de excluíremse mütua mente, seus cidadãos não se acham assim sempre onde deveríam estar, enquanto que elas próprias estão peregri-nando no tempo. Quando Paulo perseguia os cristãos, êste

(41) De civ. Dei,  XV, 7, 1, col. 444. Cf. IV, 34, col. 140. XV,15, 1, col. 456; XIX; 17, col. 645.

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 predestinado à Cidade de Deus achavase confundido entre 

o povo da cidade terrestre: a Cidade de Deus conta pois, com futuros cidadãos mesmo entre seus inimigos, assiríi como que “durante sua peregrinação neste mundo ela tem  

conseguido (habet ecum) homens que lhe são unidos pela comunhão dos sacramentos, mas que não partilharão com 

ela a sorte eterna dos santos”. Presentemente misturados, é 

o juízo final que as separará(42) ; mas,os membros da Igreja 

que não fruirão da beatitude celeste são aquêles que, na  

Igreja, não vivem segundo a Igreja. O fato de haver, no 

tempo, confusão entre seus membros não altera a pureza de 

suas idéias. Mesmo se estão na Igreja, aquêles cujo amor 

aspira aos bens da terra são cidadãos da cidade terrestre, 

sem que a Igreja como tal deixe de aspirar aos bens da cidade celeste. A êste título, enquanto que Igreja, ela se 

identifica já com a Cidade de Deus(43), porque assim como 

aquêles que vivem no mundo segundo o mundo já são membros da cidade terrestre, aquêles que vivem na Igreja 

segundo a Igreja, reinam já com Cristo no reino dos Céus.

 Assim concebida, a Cidade de Deus tem fronteiras que, apesar de espirituais, são indestrutíveis, porque coin-

cidem com os têrmos colocados pela fé. Sendo o Reino de Cristo, é animada no interior pela fé em Cristo, de que 

ela vive, e coextensiva ao conjunto dos homens que  vivem desta fé, pois, onde Cristo reina está o seu reino. Êste ponto é de uma importância extrema. Uma sociedade 

nova achase, doravante, constituída pelo acôrdo das von-tades unidas no amor de um mesmo bem, que lhes é  proposto por uma mesma fé. Aqui, o acôrdo dos cora-ções pressupõe, pois, aquêle dos espíritos e é porque, ao mesmo tempo que êle é um amor, o bem da sociedade  

santa é uma doutrina; seu amor é aquêle de uma verdade 

que não pode ser senão única, a de Cristo. Agostinho

(42) De civ. Dei,  I , 35, col. 45-46.

(43) “Aedificatur enim domus Domino civitas Dei, quae est sanctaEcclesia in omni te r r a .. .”, De civ. Dei,   VIII, 24, 2, col. 251. “Sedphilosophi, contra quorum calumnias defendimus civitatem Dei, hoc estejus Ecclesiam...” De civ. Dei,  XIII, 16, col. 387. — “neque nisi adChristum et ejus Ecclesiam, quase civitas Dei es t .. . De civ. Dei, XVI, 2, 8, col. 479. “Ecclesia, quae nunc etiam est regnum Christi. . . ” ;“ . . . de regno ejus, quod est E ccles ia ...”. De civ. Dei,  XX, 9, 3, col. 674.

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o sentiu tão vivamente que deduziu daí toda uma doutrina  

sobre a diferença essencial que distingue a atitude do mundo e a da Igreja com referência à verdade(44).

 As filosofias prometem ao homem a felicidade. Tra-

çam, mesmo, a estrada que para lá conduz, mas não há dois filósofos de certa importância que estejam de acordo 

sobre o que é a felicidade, nem sobre o caminho que se deve seguir para atingila. As razões deste desacordo são múltiplas, como por exemplo, a vaidade, que os leva a 

querer a originalidade a todo preço ou superar os outros  

em sabedoria, mas a razão principal é mais profunda: homens, estes filósofos procuraram a felicidade como 

homens, com sentimentos humanos e raciocínios huma-

nos. O que lhes faltou para achar a verdade e se porem de acordo sobre ela, foi a oportunidade de se apoiarem  

sobre uma revelação divina simultaneamente segura e 

comum a todos. Os autores sagrados procederam de um modo bem diferente. Apesar dg, pouco numerosos, dizem 

todos a mesma coisa e esta unidade de sentimento lhes 

fez encontrar crédito junto de uma imensa multidão. 

 Assim de um lado, grande número de filósofos diferentes, 

cada um dos quais não tendo senão alguns discípulos; 

do outro, poucos escritores sagrados, todos de acordo, e conduzindo em pós de si uma multidão imensa de dis-

cípulos.

Esta diferença fundamental explica por que a ati-tude dos Estados em relação à filosofia não é a mesma 

da Igreja. Num povo pagão, o Estado permanece indi-ferente às doutrinas que ensinam os professores de sabe-

doria. A experiência da história é conclusiva a êste  ponto: nunca, na cidade terrestre, o Estado assumiu o 

 patrocínio de uma doutrina filósofica qualquer de ma-neira suficientemente resoluta para condenar outras: “Qual o chefe duma seita filosófica qualquer que foi algum dia aprovado, na cidade do diabo, ao ponto que aí desaprovassem.aquêles que falavam de outro modo e contra 

êle ?” Escrevendo estas linhas, Agostinho pensa par

(44) Os homens são, pois, aqui, a cidade e o reino. Daqueles cuja vida já se passa no céu (Fil.  3, 20), pode-se dizer que “eo modo suntin regno ejus, ut sint etiam ipsi regnum ejus (scil. Christi) ”. De civ. Dei,  XX, 9, 1, col. 673. Cf. XX, 9, 3, col. 674.

 

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ticularmente em Atenas, onde se viram ensinar simultâ-neamente o epicurismo, que negava a providência divina 

e o estoicismo que a afirmava. Seria, todavia, impor' 

tante para a felicidade humana que se soubesse quem 

tinha razão, quem se enganava. Antístenes coloca o so-berano bem na volúpia, Aristipo, na virtude; um diz que 

o sábio deve fugir das funções públicas, o outro que 

deve procurar o poder. Consideremos outros pontos de 

doutrina não menos importantes: se a alma é mortal ou 

imortal, se há, ou não, transmigração das almas, e esbarra-remos por toda parte na contradição. O Estado inter- veio para estabelecer o acordo ? Nunca: “as dissençÕes 

filosóficas, e outras quase inumeráveis que se poderíam 

citar, qual povo, qual senado, qual autoridade pública, qual poder público da cidade ímpia cuidou em os regu-lar ? Quando se viu aprovar ou autorizar uma doutrina 

ou desaprovar ou interdizer as outras, mas tolerar em 

seu seio, numa confusão onde nenhum julgamento punha 

ordem, tantas controvérsias, que punham os homens em 

luta, não a respeito de campos, de casa, ou quaisquer 

 problemas de dinheiro, mas a propósito daquilo mesmo que faz a felicidade ou a infelicidade da vida ?”. Na rea-

lidade, o Estado pagão é uma Babilônia, porque é uma 

cidade de “confusão”, e mesmo da pior confusão de 

todas, aquela que, autorizando todos os erros, se desinte-ressa da verdade.

Poderseia, aliás, prevêlo, porque a cidade terrestre 

é aquela cujo rei é o diabo, e o que lhe importa que os 

erros mais contrários se oponham ou se combatam ? 

Tão diversas que sejam estas impiedades, fazem todas o 

seu serviço, e basta que sejam falsas para garantir o seu 

 poder. Vêse daí que Agostinho não previra a filosofia ofi-

cial do Estado marxista, mas o Estado marxista não re- presenta, talvez, senão uma tardia tomada de consciência 

de uma necessidade inerente à noção de sociedade univer-sal. A partir do momento em que a cidade terrestre 

aspira à universalidade que, primeiramente, se atribuiu 

à cidade de Deus, élhe forçoso, por sua vez, promulgar 

um dogma único, atribuir a todos os homens um único

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e mesmo bem terrestre cujo amor comum fará deles 

um só povo, uma única cidade. Entre o Estado pagão 

da Antigüidade e o Estado pagão de nossos dias de hoje, 

há a Igreja Católica, da qual o Estado pagão de hoje 

reivindica e usurpa a autoridade espiritual. Enquanto 

que ateu, o Estado moderno é totalitário de pleno direito.

O regime intelectual da Cidade de Deus, completa-

mente contrário ao da cidade antiga, difere, também, 

daquele da cidade moderna. Vêse bem isto, desde suas 

origens, quando comparamos o povo de Israel às cidades 

gregas. Com toda a certeza, esta “república” jamais co-

nheceu semelhante indiferença. Distinguiramse aí ime-

diatamente os verdadeiros dos falsos profetas e o acordo  perfeito dos autores sagrados entre si sempre fo i tido 

como uma marca segura de verdade. “Mas somente êles 

então eram filósofos, isto é, amantes da sabedoria: êles os 

sábios, os teólogos, os profetas, os mestres de probidade e 

de piedade. Quem quer que haja pensado e vivido como 

êles, não viveu nem pensou segundo os homens, mas de 

acordo com Deus que falava por êles”. Assim, pois, o que 

faz a coerência e a força de semelhante ensinamento é o 

fato de apoiarse sôbre a autoridade de Deus. A da 

razão humana provou sua fraqueza por seu próprio ma-

logro, e não somente Agostinho não parece prever o nas-

cimento de povos onde, fazendose doutor, o Estado de-

cretaria por sua vez uma verdade de Estado, mas duvi-

dava visivelmente de que alguma sociedade cujo único fim 

seja dêste mundo, possa interessarse por tal questão. Não 

que a filosofia se veja impedida de ensinar, entre muitos 

erros, algumas das verdades accessíveis à razão. Se muito tempo após o primeiro entusiasmo que lhe tinha inspirado 

a leitura de Plotino, Agostinho não se esquecia, todavia, 

do que os filósofos haviam dito de verdadeiro acêrca 

de Deus, autor e providência do mundo, sôbre a exce-

lência da virtude, o amor da pátria, a confiança na ami-zade; todas estas virtudes, e muitas outras ainda, êles,

 

efetivamente, conheceram e ensinaram, misturadas, porém, 

a inúmeros erros e sem saber a que fins relacionálas, nem 

como relacionálas. Ora, na mesma época, os profetas 

ensinavam ao povo de Deus estas mesmas verdades, mas

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 puras de todo êrro, e com uma autoridade tão irrecusável como definitiva. É à unidade mesma de sua doutrina sa-grada que o povo de Deus deve a sua unidade(45).

Encarnação da Cidade de Deus, a Igreja não faz aqui senão manter a tradição do povo judeu do qual é a her-deira, cujo depósito sagrado enriqueceu, somando o Novo  Testamento ao Antigo. Sua Catolicidade, isto é, sua universalidade, não lhe obriga senão mais estritamente a 

 preservar esta unidade doutrinai. O cuidado que ela demonstra no cumprimento dêste dever deu origem a um fenômeno desconhecido dos antigos — a heresia. Só-crates foi morto por impiedade relativamente aos deuses 

da cidade e não por haver cometido qualquer êrro doutrinário sôbre a natureza dos deuses em geral. Con-tanto que não se diga nada contra seus deuses, a cidade 

antiga podería tolerar todas as teologias. A Cidade de Deus, ao contrário, não pode tolerar senão uma, aquela cuja aceitação comum assegura com sua unidade, a sua 

 própria existência. Quem rompe a doutrina rompe o laço 

da cidade. Ora, está precisamente aí o que faz o herege.  Ao “escolher” a sua própria verdade, êle age como uma 

fôrça de destruição suscitada pelo demônio para abalar  por dentro a Cidade de Deus, no momento preciso em que, pela graça divina, começa a triunfar sôbre os inimi-gos do exterior. Daí, para a Igreja que a encarna neste mundo, êste imperioso dever de absolutismo doutrinai, que tomará mais tarde o aspecto de uma intolerância  

 propriamente cívica e social, nas épocas em que a ci-dade de Deus terá, por assim dizer, absorvido os Estados, mas que, em sua essência mesma, não é exigido senão 

no interior da Cidade Celeste. Que tal seja exigido, nada mais evidente. É para ela uma questão de vida 

ou de morte. A Igreja não podería tolerar com indi-ferença e sem intervir, que aquêles que falam em seu

(45) De civ. Dei,  XVIII, 41-43, col. 600-003. Poder-se-á objetar aesta tese com as divergências que os tradutores podem introduzir noensinamento da Escritura, mas Agostinho não sentia qualquer inquietação. Para êle, mesmos os desvios dos tradutores são inspirados porDeus, tanto assim que êsses tradutores foram, a seu modo, profetas(De civ. Dei,  XVIII, 43, col. 603.604). Se se pensa que o próprio

 Agostinho tirou doutrinas fecundas de traduções manifestamente aber-rantes, é-se inclinado a dar-lhe razão.

 

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nome sustentem o que lhes agrada. A Cidade de Deus, 

cuja existência se deve à unidade da fé, não pode permitir 

a seus doutores o direito de se combaterem e se con-tradizerem de modo semelhante ao que a Cidade de con-

fusão outorgava com indiferença a seus filósofos. A única coisa que ela pode fazer em semelhante caso é intervir com autoridade para restabelecer a unidade à qual os aberrantes são revertidos; porque um homem que se 

engana não é um herege, mas, se aquêle que se engana 

se torna um herege ao preferir seu sentido próprio à doutrina de que vive a Igreja, esta não pode senão excluilo  

do corpo que ele trabalha para destruir(46). Para dizer 

a verdade, ela não o exclui, ela verifica que êle se exclui 

 por si próprio.

 Vêse daí onde está a oposição entre as duas cidades em matéria de doutrina: indiferença de uma parte, dogma tismo de outra. Esta posição agostiniana do problema define, simultaneamente, um de seus dados constantes e a origem de inumeráveis dificuldades, algumas das quais se 

impuseram à atenção do próprio Agostinho, enquanto 

outras, bem mais graves, deveríam surgir mais tarde ao 

longo da história, já que não é deste mundo, a Cidade de Deus não tem nenhum dever de intolerância relativa-mente às coisas dêste mundo e, enquanto que não obriga  a cidade terrestre a abdicar de sua missão própria, ela 

não incomoda nenhum indivíduo nem nenhum Estado. 

Que os cristãos pensem e vivam como êles queiram, que 

importa, contanto que não obriguem os outros a pensar 

como êles. Todavia, a cidade de Deus não seria capaz de aprovar a cidade “terrestre”; é, antes, forçada a repreen-

dêla, a condenála e, se possível, mesmo a reformála. Por que meios se julgará autorizada a intervir aí ? Eis 

todo o problema e a solução pode variar segundo os tempos e os lugares, mas nada pode impedir, se se atém  à posição agostiniana, que a autoridade espiritual da ci

(46) De civ. Dei.  X VII I , 51, 1-2, col. 613-614. Sôbre os problemasque colocou para o próprio S. Agostinho o recurso eventual ao braçosecular, ver Nourisson, La Philosophie de S. Augustine,  2.» ed., Paris,1869, t. II , pág. 65-73. A evolução de seu pensamento a respeito

dêste ponto é bem estudada por A.Combès,

La doctr ine po l i t ique de  Saint Augustin,  Paris, Plon, 1927, pág. 852-409.

 

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dade de Deus intervenha então para ordenar esta liber-

dade temporal a qual, segundo a descrição que lhe dá 

o próprio Agostinho, é da essência mesma da cidade 

terrestre de se prevalecer.

Quando sua oposição mística se transpõe para o plano 

do tempo, degenera inevitàvelmente em conflitos e, bem 

que Agostinho não o haja previsto jamais, não é já impossí-

 vel imaginar a cidade terrestre unindose, por seu lado, à 

imagem da Cidade Celeste e, como uma contraIgreja,  

sob uma verdade doutrinária própria e imposta desta vez 

 pela força, com exclusão de toda dissenção e intolerante 

a toda contradição. É que vemos em nossos dias. 

Pelos tempos em que o bispo de Hipona escrevia aA

 Cidade de Deus,  nada anunciava que uma tal coisa seria 

 possível. Entre os gregos, duzentos e oitenta e oito seitas 

morais diferentes se oferecem à escolha do público.Mesmo que se reduzam a três as definições do sobe-

rano bem, como Varrão propõe fazêlo, permanece uma 

 possibilidade de escolha de respostas das quais nenhuma, 

lamentàvelmente, pode satisfazer a um cristão. Se ele 

deseja saber em que consiste o soberano bem, êste último 

se dirige à revelação: aprende com ela o que é a vida eterna e a aceita pela fé (47). Doravante, tudo é regu-

lado por ela, da mesma maneira, para todos que a aceitam. 

 A vida presente, onde o nascimento o empenha, não é, 

 para o cristão, senão um tempo de provas, que o esperam 

em cada um dos três degraus da ordem social em que 

lhe é necessário inserirse; sua família, cheia de preocupa-ções; seu país, cheio de injustiças; a terra, enfim, repleta 

de confusões de toda a sorte que provocam as guerras  

entre Estados e, principalmente, mesmo pela simples diver-

sidade de línguas, preferindo um homem a viver com 

seu cão do que com um seu estrangeiro cuja língua não 

compreende(48). D mus, urbs, rbis,  onde achar uma 

sociedade digna dêste nome, suficientemente unida para 

 proporcionar a paz ? Unificando a terra debaixo de um só império ? Mas, já se fêz a experiência e seu malogro 

é visível. Há uma certa ingenuidade em crêr que a

(47) De civ. Dei,  XIX, 4, l, col. 627-628.(48) De civ. Dei,  XIX, 3-6, col. 031-633.

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unificação do mundo supriría as guerras. No seio do Império Romano, e devido mesmo a sua. extensão, quan-tas guerras intestinas ! Os conflitos internacionais foram 

substituídos pela guerra civil ou pela guerra social, o 

que passará dificilmente por um progresso (49).Para qualquer lado onde se volva o olhar, a terra 

não oferece nenhum refúgio para a paz, salvo a esperança cristã numa paz que não se espera nesta terra mas, na 

beatitude eterna (50). É, por sinal, esta a razão porque, desde a vida presente, os cristãos vivem já na outra. Participam, pois, desde logo de sua paz, mas não o con-seguem senão participando de sua ordem, da qual toda 

 paz deriva. Esta ordem, em si mesma, pressupõe o conhecimento da verdade, alcançada um dia plenamente 

 pela visão de Deus, mas que somente a fé assegura sufi-cientemente nesta vida. Ela, pelo menos, o assegura. É o que diz Santo Agostinho em uma destas fórmulas onde se acumula de uma vez a totalidade de sua doutrina: “A fim de que o espírito humano, trabalhado pelo desejo 

de conhecer, não caia por fraqueza na miséria do erro, impÕese um magistério divino ao qual êle obedeça livre-

mente”. Porque a graça não suprime a liberdade, ela a fundamenta. Assim, nessa viagem de exílio durante a qual seu corpo mortal esconde ao homem a visão de Deus, é unicamente a fé que o guia(51), e, pois, cpie o gê-nero humano em sua totalidade não é senão um unico ho-mem que caminha para Deus, igualmente é a fé unica-mente que assegura a paz ao coração de cada homem, ao 

seio de cada família, de cada povo e de cada império, assim 

também e mais evidentemente ainda, pode ela assegurar a paz na Cidade de Deus. “A paz da Cidade Celeste, é a sociedade daqueles que, na ordem e na concórdia, fruem Deus em comum e fruem em Deus uns aos 

outros” (52). Mas esta ordem c esta concórdia, ela as deve à submissão que lhe faz aceitar a lei eterna, que 

recebe neste mundo pela fé(53).

(49) De civ. Dei,  XIX, 7, col. G33-G34.(50) De civ. Dei,  XIX, 11, col. 637.

(51) De civ. Dei,  XIX, 14, col. 642. Cf. II Cor. 5,  6-7.(52) De civ. Dei,  XIX, 13, 1, col. 640.(53) De civ. Dei,  XIX, 14, col. 642.

 

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Não se pode ler Santo Agostinho sem sentir a impres-são da imensa importância de sua doutrina nem sem 

hesitar freqüentemente sobre a maneira de interpretála. 

Tantas coisas nasceram daí, que tememos atribuirlhe 

o que preparou sem o conter, e, inversamente, de recusar lhe o que devia perfeitamente conter, ao menos em germe, 

 pois que lhe deu origem. Teríamos prazer em poder dis-tinguir com certeza as conseqüências dc seus princípios 

de que êíe próprio teve consciência, das que não previu  

e não podia, sem dúvida, prever. Como chegar até êste 

 ponto ? Êle próprio hesitou, variou na aplicação de suas idéias a circunstâncias mutáveis, quando as que êle co-nheceu são pouco numerosas em comparação à imensa

 

série das que não chegou a conhecer, porque se produ-zem depois de seu tempo, ao longo de uma experiência 

hoje estendida a 15 séculos. Não é fácil saber como 

 Agostinho em pessoa aplicou seus princípios às condições 

diversas e variáveis de seu tempo; saber como as teria  

aplicado às outras é impossível, mas podemos, ao menos, apurar como seus sucessores o entenderam.

 As duas cidades, achamse igualmente inseridas num 

universo único, cuja cabeça é seu próprio criador, Deus. 

Todavia, diversamente dos estóicos, Agostinho não con-cebe o universo como uma “cidade”. Nunca fala no 

cosmo como a Cidade de Deus, no mesmo sentido que 

um estóico podería falar nêle como da Cidade de Zeus. Para êle, uma sociedade não pode existir senão entre  

seres dotados de razão. Esta a razão pela qual nós o vimos 

colocar o universo como a cena na qual a história das 

sociedades se desenrola e, se, por mais um motivo, o 

universo é atingido por esta história, ela não é exatamente 

a sua. Nesse sentido, Agostinho difere profundamente 

dos estóicos: quando fala de “cidade”, não é de uma 

ordem de coisas, mas de uma sociedade verdadeira que 

tem a intenção de falar.Se se considera com êle o conjunto dos seres racio-

nais, os Anjos inclusive, todos aparecem sujeitos a uma 

só e mesma história, que, preparada por tôda a eterni-dade, no segrêdo da predestinação divina, começa com a 

criação do mundo e do tempo para não terminar senão

 

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com o fim de um e a consumação do outro. Agostinho 

empreendeu verdadeiramente escrever um tratado sobre 

a história universal e, se êle não foi o último a tentar o 

empreendimento, parece bem ter sido o primeiro. No 

que concerne particularmente à natureza do homem, êsse 

 projeto implicava o reconhecimento prévio da unidade 

do gênero humano, e, por conseguinte, da unidade de 

sua história. É o que disse, de passagem, quando se 

 propôs a considerar todos os homens como um único 

homem, cuja história se desenrolaria sem rutura do co-meço ao fim dos tempos. A noção de história universal achase claramente implicada na obra de Santo Agosti-

nho, mesmo faltando a fórmula.Podese dizer o mesmo desta outra, cjue é a “filo-sofia da história” ? Parece desta vez difícil responder sim ou não, porque a resposta implica uma certa noção 

de filosofia. No próprio Agostinho, a presença de uma 

sabedoria cristã é incontestável. Já se poderia arguir se, segundo êle, uma simples história universal seria pos-sível sem a Revelação que nos desvenda a origem e o 

término. Todavia, mesmo amputada de tudo o que ela 

deve para êle à Revelação, a noção de uma história uni- versal tornarseia possível, porque não é certamente 

contraditório admitir que todos os homens possam ser considerados como um ser coletivo, cuja história única 

se desenrola no tempo. Os limites e o método desta 

história estarão, então, em causa, nunca a sua possibili-dade.

O problema é mais complexo se se trata de uma 

filosofia da história, porque, agora devemos perguntar 

se, do ponto de vista do próprio Agostinho, a história 

seria susceptível de uma interpretação de conjunto, pura-mente racional e, portanto, válida, sem as luzes da reve-lação. O que é certo é que êle não tentou o empreen-dimento: sua explicação da história universal é essencial-mente religiosa, no sentido de derivar a sua luz da reve-lação.

Êle foi, pois, um teólogo da história; a interpretação 

que propõe releva menos disto, que denominamos hoje 

filosofia, do que disto, que êle próprio denominava Sabe-

 

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doria, entendendo por isto esta Sabedoria que não é apenas do Cristo, mas que é o Cristo. Interrogado sobre este 

 ponto, o que lhe teria provocado a maior surprêsa e' 

coisa que ninguém pensaria em fazer, teria admitido que a razão sozinha podería retirar da história universal um sentido que, em seus limites mesmos, fosse ao mesmo tempo inteligível e verdadeiro ? O fato não se havendo 

 produzido, esta questão não pertence mais à história e, se 

há sólidas razões para considerar que tal aventura lhe aparecia como ruinosa, ninguém seria capaz de proválo.

Deduzse daí que Agostinho não serviu para nada no nascimento de uma filosofia da história ? É uma terceira 

questão, distinta das duas outras; porque, se nada pensou a respeito disso, tal não é uma razão para dizer que a sua obra não lhe seja a origem. Tudo, ao contrário, convida a 

 pensar que as diferentes filosofias da história que se de-senvolveram depois de Agostinho, foram tantos outros ensaios para resolver apenas pelas luzes da razão natural, um problema que não foi, no princípio, colocado senão  pela fé e que não se podería resolver, talvez, sem ela. 

Neste sentido, o primeiro teólogo da história(54) seria bem o pai de todas as filosofias da história, mesmo sem as querer e ainda que elas não se reconheçam o que são: destroços de um edifício mais vasto somente no qual 

 poderíam encontrar, com um sentido autêntico de que elas próprias não têm consciência, a justificação plena 

de sua própria verdade.

 Admitindo que Agostinho haja proposto esta teolo-gia e provocado o nascimento desta filosofia, resta a per-

guntar se sua doutrina implicava a noção exata de uma única sociedade temporal. Não; mas a sugeriu. Como já

(54) Trata-se aqui de teologia no sentido de doutrina especulativa, pois todo o Antigo Testamento, com a interpretação que lhe trazo Nôvo já era, de fato, uma história universal das sociedades conhecidas, tratada do ponto de vista da revelação. A história do povode Deus era aquela do desígnio de Deus a respeito de todos os povos.Encontra-se mesmo um esboço de conjunto desta história em Sap.X-XIX, que narra como a Sabedoria conduziu os povos desde a criaçãode Adão. Já é um “discurso sôbre a história universal”. Sôbre osentido em que se pode falar de progresso histórico na doutrina de

 Agostinho, ver o ensaio de  Theodor   Mommsen , S. Au gustine and the 

Christian Idea o f Pro gress,  no  Jou rna l o f th e H is to ry o f Ideas,  X II(1951), pág. 340-374.

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observamos, Agostinho nunca falou de uma sociedade, 

mas de duas, entre as quais se divide todo o gênero 

humano. Neste sentido, sua doutrina é, simultaneamente, 

mais vasta e mais estreita que a de uma sociedade política 

universal. Mais vasta, não somente porque inclui tanto 

os Anjos como os homens, mas também porque, apoiada 

sobre uma revelação que transborda os quadros da his-tória empírica no passado como no futuro, funda na uni-

dade de uma explicação total o que o homem sabe de sua 

história e o que o cristão crê a respeito. Mais estreita 

 porque seu próprio unificador lhe interdita de unir os 

homens numa única sociedade. Esta sociedade única e ver-

dadeiramente universal teria sido possível de direito: basta-ria para isto que todos os sêres racionais se unissem no 

mesmo amor do mesmo Bem; de fato, a rutura se pro-duziu imediatamente, c como tôda sociedade é a união 

de um grupo de sêres racionais na comunhão de um 

mesmo amor, a sociedade dos que não amam Deus se 

separa irredutivelmente da sociedade dos que o amam. 

Que uma sociedade terrestre universal seja possível ou 

não neste mundo, admitese, mas uma sociedade celeste 

absolutamente universal, de todos os homens parece im-

 possível, a menos que seja abolida a distinção, fundamen-

tal em Agostinho, entre a cidade do demônio e a Cidade 

de Deus.

Há, pois, um primeiro obstáculo, insuperável parece, 

a qualquer tentativa de traduzir diretamente em têrmos 

de unidade temporal, a noção agostiniana de cidade ce-

leste. Para unir os homens com o fito na outra vida, a 

Igreja não dispõe nesta de outra coisa senão da fé. Ora, 

não basta que a Cruz seja plantada no meio da terra; importa ainda que os homens consintam em contem-

 plála e que aquêles que uma vez a viram não fechem 

os olhos para não mais a verem. Mesmo quando êles a 

têm sobre os ombros, êles nem sempre reconhecem que 

é ela, que Deus, havendoa conduzido êle próprio, nola 

dá para transportar. Assim, para não pensar doravante 

senão no futuro, de que meios dispõe a Igreja, que não 

é senão a Cidade de Cristo em peregrinação sobre a terra, 

 para reunir todas as ovelhas num só redil e sob um só

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 pastor ? Em outros têrmos, de que meios dispõe para 

fazer aceitar por todos os homens a fé de que tem o 

depósito e q̂ ue o amor lhes propõe ? Não se impõe 0 

amor pela força; Jesus Cristo deixou a força a César e 

quis que assim se fizesse. Mas, seria talvez possível con- verter César e, por êle, que detém legitimamente a 

força, reformar a Cidade temporal à imagem da Cidade 

de Deus ? Não é necessário que o que está neste mundo 

seja dêste mundo, que o terrestre queira ser da terra,  que o temporal recuse sempre conceberse como uma 

etapa para o eterno. Da mesma forma que a fé, que 

transcende à razão, pode conquistar e lhe dar inteligência, 

a Igreja, que transcende a todo povo e se recruta indis 

tintamente entre os homens de tôda a raça, de toda a 

língua e de tôda a condição, não poderia dar também 

esta unidade e esta paz puramente terrestres, de que êles 

gozariam imediatamente sobre a terra se, como em pessoa 

os convida, se unissem todos, pela fé, no amor do Cristo ? 

 Assim, exatamente quando colocava a fé como fronteira 

 para tôda sociedade universal, a doutrina de Agos-

tinho sugeria um esforço incessante para recuar esta 

fronteira aos limites da terra. A despeito de suas des-

graças, Roma já tinha imperadores cristãos e continuava 

a ser Roma. Se talvez não haja concebido claramente 

um mundo unido e pacificado debaixo de um único impe-rador cristão, que encontraria, na fé cristã mesma, o fun-damento de uma espécie de paz temporal sobre a terra, 

na expectativa da paz perfeita do Céu, Agostinho não 

 pecou ao mostrar aos soberanos terrestres que a sorte de 

seus impérios estava doravante ligada à da Igreja. Para 

inspirar aos príncipes o desejo de organizar a terra em 

uma única sociedade feita à sua imagem e semelhança, 

basta à Cidade de Deus existir.

No próprio Santo Agostinho tudo é claro. A Cidade 

de Deus e a cidade terrestre são duas cidades místicas, 

a tal ponto que seus cidadãos são separados por predes-

tinação divina. Seus povos respectivos são aquêles dos 

eleitos e dos condenados. Não se poderia, pois, estar mais 

distanciado de tôda a consideração política no sentido 

temporal do têrmo. Em seus sucessores, uma tendência

 

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dupla e complementar foi progressivamente afirmandose. De uma parte, esquecendo a grande visão apocalíptica 

da Jerusalém celeste, reduziuse a Cidade de Deus à Igreja  

que, na perspectiva agostiniana autêntica, não era senão 

a sua parte peregrina, trabalhando no tempo a recrutar 

lhe cidadãos para a eternidade. Doutro lado, tendiase 

acentuadamente a confundir a cidade terrestre de Agos-tinho — cidade mística da perdição — com a cidade tem- poral e política. A partir desse momento, o problema 

das duas cidades tornouse aquêle dos dois poderes, o 

espiritual dos papas, e o temporal, dos Estados ou dos 

 príncipes. Mas como, pela Igreja, mesmo o espiritual 

está presente no temporal, o conflito das duas cidades 

desceu da eternidade ao tempo. Igualmente, a sociedade 

universal dos homens descia do céu para a terra e, pois 

que uma única sociedade não podia ter duas cabeças, colocavase o problema de saber qual dos dois podêres 

exercia sobre ela a jurisdição suprema. A história dêste 

 problema seria aquela do conflito, permanente na Idade 

Média, entre o sacerdócio e o império. Sofremos ainda 

do mesmo conflito, mas não data de hoje, e é uma grande  

ingenuidade acreditarse que a Idade Média foi uma idade de ouro, onde príncipes seguiam como cordeiros o báculo 

do pastor romano dos povos. Bastaria tãosòmente a 

ignóbil bofetada de Agnani, para dissipar esta ilusão. Mas, apesar de completamente ligado àquele, o nosso problema 

é outro. Consiste exatamente em saber como, uma vez  

instalada no tempo, a sociedade universal dos homens 

concebeu a sua própria natureza. Énos necessário saltar muitos séculos para encontrar o gênio que soube tomar 

consciência clara dos dados novos do problema. Acha-remos todos reunidos na Re publica fidelium   do francis cano inglês Rogério Bacon.

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C apítulo III

A República Cristã

Entre  as figuras  incrivelmente diversas que 

 povoam o século XIII, nenhuma é mais original do que 

a de Rogério Bacon. Não o podemos ler sem o amar, não sem nos perguntarmos se, todavia, o amamos de pre-ferência morto do que quando vivo. Êste frade fran 

ciscano passou longos anos em dificuldades com os de 

sua Ordem, talvez um pouco por culpa deles, sem dúvida 

também por sua própria culpa, mas, que sabemos exata-

mente disto ? Nós o conhecemos apenas por seus escri-tos, que são de um destes apóstolos devotados à missão 

que Deus lhes confiou, incapazes de falar doutra coisa, um tanto cômicos no princípio, depois aborrecidos a seus 

contemporâneos, afinal francamente insuportáveis. Mas, é possível que nos enganemos e que êste inglês tenha 

sido, antes, um taciturno cuja agitação gastouse toda em 

livros. Nada é menos interessante do que inventar história.  A única coisa absolutamente certa é que o espírito dêste 

frade foi obcecado por um sonho de nobreza incompa-rável, porque lhe foi dado conceber, na plenitude de 

suas implicações e exigências, a idéia de um povo universal cuja cidadania seria aberta a todos os homens de boa 

 vontade unidos por sua comum profissão de fé cristã.Seguramente, o ideal de Rogério Bacon, recorda  

aquêle de Santo Agostinho, mas a república dos fiéis 

em que pensa é bem diferente da Cidade de Deus. É 

uma república, senão dêste mundo, pelo menos neste 

mundo. Não é a Cidade de Deus, nem mesmo pura e

 

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simplesmente a Igreja. Bem que ela deva crescer na luz 

da Igreja e preparar a seu modo o advento da Cidade  de Deus, é um verdadeiro povo temporal, sob a direção da sabedoria cristã, destinada à procura dos bens de que 

o homem pode gozar no tempo. Para imaginar que elafosse somente possível, precisava ter este gcnio particular 

que revela a certos homens a fórmula clara das aspira-ções confusas de seu próprio tempo. O que outros pres-sentem e desejam, êles o sabem e dizem. Tomás de 

 Aquino, Boaventura, Alberto Magno, Duns Escoto fala-

ram admiravelmente da sabedoria cristã; todos mais ou menos sentiram que ela aspirava secretamente a criar 

um povo nôvo que, mesmo no tempo, vivería de sua substância, mas Rogério Bacon foi o único a ver, o único que recebeu a missão pessoal de dizêlo e que o tenha 

ditof1) Basta abrir o Opu Maju  para nele descobrir, desde o primeiro capítulo, o plano de conjunto e as(l)

(l ) O problema pelo qual se interessa S. Boaventura é o de garantira autoridade soberana da Igreja e de seu clicfe: “universalis omniumprincipatus” (Qu. ditsp. De perfectione evangélica,  qu. IV, art. 8, ed.Quaracchi, t. V, págs. 189-198). 0 papa tem a atribuição de assegurar ajustiça em tôdas as ordens, mesmo a justiça civil (pág. 194). Possuipois os dois gládios (pág. 19G). Igualmente, S. Tomás de Aquino:In II Sent.,  dist. 44, expos. tcxtus, ad. 4m (conclusão do II livro). Ver-se-á que Rogério Bacon está inteiramente de acôrdo com êles sôbreêste ponto. Nem êle nem êles falaram do poder “indireto” do papasôbre o temporal, e Bacon chegou mesmo a pedir-llie que usasse desua autoridade para garantir o desenvolvimento científico do povocristão e de seu bem-estar material em tôdas as ordens. Tal é o sentidode sua mensagem; porque possui a sabedoria, o papa é responsávelpor tudo e tem. portanto, poder sôbre tudo em tôda a extensão dodomínio temporal. Sua concepção não é, pois, menos un itár ia do quea de Santo Tomás que, apesar de submeter os poderes temporais àautoridade suprema do papa, deixa os príncipes encarregados dotemporal sob a jurisdição do poder espiritual (Sum. teol.,  Ila-IIae, qu. 10,ar t. 10, resp.). Mas, precisamente por esta razão, Santo Tomás concebeo papa regendo os povos ao reger os príncipes que os governam

quanto ao temporal (De Regim. Princip.  I, 15). Tendo estabelecido ajurisdição suprema do papa, vigário de Cristo-Iiei, e herdeiro de todosos seus poderes ( op . cit.,  I, 14), o puro teólogo, que é Santo Tomás,não procura se representar concretamente o povo cristão que deveresultar desta hierarquia de podêres. Viu cada príncipe governandoseu povo quanto ao temporal segundo as diretrizes espirituais dadaspelos papa; não se vê que tenha conduzido seus olhares sôbre a sociedade temporal cristã cujo nascimento tornava-se desde então inevitável. Nem mesmo uma sociedade dos príncipes cristãos. De fato, nãonos recordamos de haver alguma vez designado o imperador. Em RogérioBacon, ao contrário, o povo cristão está presente por tôda a parte, eseu chefe é o papa, que o governa pela sabedoria. Não se comparaBacon com S. Boaventura nem com Santo Tomás; como teólogo, êle nãoé de sua classe; mas para o sentimento que teve da realidade con

creta do povo cristão, não vemos quem se lhe possa comparar noséculo XIII. Com Dante, êle é insubstituível e está no próprio coraçãode nosso tema.

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intenções finais: “Duas coisas são exigidas para um estudo completo da Sabedoria: primeiramente o que é preciso  para conhecêla o melhor possível, cm seguida suas re-lações com tudo o mais para a dirigir por meios apro-

 priados. Efetivamente, é a luz da sabedoria que ordena a Igreja de Deus, que organiza a República dos crentes,  que opera a conversão dos incréus, enfim, por seu po-

derio, reprime aqueles que se obstinam no mal e os repele das fronteiras da Igreja para longe, apenas derramando o sangue cristão” (2). Tais palavras são claras c, se o zêlo de nosso reformador pode ter aparecido por vezes indis-

creto a seus contemporâneos, não puderam, decente-mente, criticálo por não saber exatamente o que êle queria. Um princípio e um meio: a Sabedoria Cristã; três funções e três fins; dirigir a Igreja de Deus, orga-nizar o povo dos fiéis, proteger suas fronteiras contra  os ataques do inimigo mais eficazmente e de maneira menos sangrenta que não haviam feito as cruzadas. Ja -mais houve quem tivesse concebido um ideal temporal mais completamente cristão (3).

(2) R ogério  B acon, Opus Majus,  ed. J. II. Briges, Oxford, 1897,

t. I, pág. 1. Êste aspecto do pensamento de Bacon, todavia, de importância capital, tem sido pouco estudado até o presente. Por outrolado, aquêle de Bacon reformador da Sabedoria cristã foi objeto demuitos estudos. Ver particularmente o de It. C autox , Uexpé r i en c e   mystique de Vil lwnination intér ieure chez Roger Bacon,  Paris, 1924.Bacon nasceu, provavelmente, entre 1210 e 1214, nos arredores deIlchester, no Dorsetshire. A data exata de sua morte é desconhecida;deve ser situada nos últimos anos do século XIII, após a redação doCompendium studii philosophiae,  que é datado de 1292.

(3) Os grandes teólogos do século XIII encararam o problemaünicamente do ponto de vista da Igreja. Nada mais natural. AIgreja não tinha que ver, então, senão com príncipes cristãos^ exercendo um poder absoluto sôbre povos também cristãos, e_ não somente cristãos, mas católicos. Não havia, pois,_ nenhuma razão para a

Igreja governar os povos de outro modo senão governando os príncipes. O resto iri a naturalmcnte. Mas não há solução definitiva paraos problemas temporais práticos, o que se viu bem no tempo da Reforma, e devido a esta política mesma, a deserção dos príncipesacarretando a dos povos. Hoje, a Igreja enfrenta, no campo políticosobretudo, Estados ateus, cismáticos, infiéis, ou neutros; a neutralidade dêsses últimos não é, aliás, senão um nome para encobrir hostilidade apenas disfarçada. As exceções são pouco numerosas e, por tôdaparte onde reina um regime parlamentar, de uma estabilidade pre-petuamente ameaçada. Pode-se, se se quer, fechar os olhos para não

 ver a realidade. É possível continuar a pensar como se a Igre ja tenhaainda a governar o mesmo temporal que no século XIII. Pessoalmente,não pensamos que os dados medievais do problema estejam irrevogá

 velmente mortos. Pode ser que se reproduzam um dia, ou que ocorramoutros semelhantes. Que sabemos do futuro ? Por outro lado, é

certo que os dados teólogicos do problema da Igreja e de sua autoridade sôbre o temporal são, em si, invariáveis e pertencem a todos os

 

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O que importa sobretudo notar, é que, pela primeira 

 vez, este pensador cristão dava um nome preciso a uma realidade confusa, que seus contemporâneos denomina-

 vam, muitas vezes, como o fazemos agora, a cristandade. Chri tianita :  palavra já espalhada antes do século XIII(4), mas cujo sentido permanecia vago, designando, ora a reli-gião cristã em si mesma, ora a Igreja e o conjunto de 

seus fiéis; por vezes também, posto que de maneira sem- pre um tanto confusa, a sociedade temporal difusa que constituía, fosse qual fosse a sua nacionalidade, sua língua ou sua raça, o conjunto dos homens ligados pela solida-riedade espiritual da mesma fé. Se houvesse feito uso da 

 palavra, Rogério Bacon seria hoje conhecido como o Doutor da Cristandade. Pelo menos concebeu a coisa, esta re publica fidelium   de que fala muitas vêzes e na qual não deixa de pensar. Êle não a quer confundir com a 

Igreja nem a separar dela.É certo que Rogério Bacon distinguia a República 

cristã da Igreja, porque lhes atribuiu expressamente fins distintos. Isto é visto, sem dúvida possível, na maneira 

 pela qual define os serviços que lhes fornece a Sabedoria.t em p o s . O q u e m u d a é o t e m p o r a l a q u e se a p l i c a , e l a p r ó p r i a i m u t á v e l ,a v e r d a d e d a t e o lo g i a . N a si tu a ç ã o p re s e n te , e p a r a u m f u t u r o c u j ad u r a ç ã o n i n g u é m p o d e c a l c u l a r , s ã o os p ov os q u e s u s t e n t a r ã o a I g r e j as em os p r ínc ipe s , po r v êze s con t r a o s p r ínc ipe s , e n ão m a i s o s p r ínc ipe sq u e p e r p e t u a r ã o a f i d e l i d a d e d os p ov os à I g r e j a . A p e s a r d e c a d ac a t ó l i c o e f e t i v á - l a e m s e u p a í s , t o d o s o s c a t ó l i c o s d a t e r r a s ã o s o l i d á r i o s n e s t a lu t a . E é a i n d a a I g r e j a q u e a c o n d u z , m a s em c o n d iç õ e s n o v a s e m q u e s u a a ç ã o s e e x e r c e m a i s e fi c a z m e n t e p e l o s f i é i ssôb re o s gove rnos , do que pe lo s gove rnos sôb re o s povos . D a í po rqueo p r o b l e m a d a o r g a n i z a ç ã o d o po vo c r is t ã o p e l a I g r e j a , a f im d e g a r a n t i r a s l i b e r d a d e s r e l ig i o s a s , a u s e n t e n o h o r iz o n t e t e o ló g i c o d o sé c u loX II I , p a re c e p re s en te ao nos so . R ep i t am o- lo : com pe te ao s teó logos

d e o d e c i d i r , ap ó s o e x a m e d o s f a t o s . R e c u s a r - s e a c o n s i d e r a r a d e m o c r a c i a , s ob p r e t e x t o d e q u e é u m m a l , s e a s s e m e l h a r i a à a t i t u d ed e u m m é d ic o q u e n ã o q u e i r a a d m i t ir a e x i s t ê n c i a d a p e s te , p o r s e ru m a d o en ç a . A I g r e j a n ã o p o d e r á e x e r c e r a s u a a u t o r i d a d e s e n ãos ô b r e a s e s t r u t u r a s t e m p o r a i s r e a i s , n ão s ô b r e a s q u e e x is t e m a p e n a sn o s li v ro s . A R e p ú b l ic a C r i st ã d e R o g é ri o B ac o n n ã o é t o t a lm e n t eu m a q u i m e r a ; sob u m a f o r m a d i v er s a d a q u e p r e v iu , a I g r e j a a i n d ap o d e r á q u e r e r o r g a n i z á - l a .

(4) Sôbre os diversos sentidos e sôbre a história da palavra, ver J . R upp, Uidée d e Chré t i en t é dans la p ensée pon t i f i ca l e d es o r i g in es à   Inno c en t    III, Paris, Les presses Modernes, 1939. A expressão “respublica christiana” era já familiar a S. Agostinho (op. cit. pág. 30-31). A palavra “christianitas”, rica de tons diversos, mas que no princípiodesignou sobretudo o que chamamos “cristianismo”, parece não ter

senão tardiamente assumido o sentido de “cristandade”, isto é, asociedade temporal que formam todos os cristãos, pelo simples fatode serem cristãos. Segundo as pesquisas de  J . Rupp, êste sentido dapalavra alcançaria o século IX e tornar-se-ia claramente visível pos

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Quando ela se empenha no serviço da Igreja, é para ordenála, promovêla e dirigíla “em rodas as ordens do bem espiritual a fim de que os fiéis ganhem a recompensa *da beatitude futura”; mas quando a mesma sabedoria serve à República cristã, é com a finalidade de provêla dos bens temporais que lhe são necessários ( ut disp natur respublica fiaelium cum temp ralibus) . A respeito do que precisa Rogério Bacon: “dar aos indivíduos como aos povos aquilo de que precisam para conservar a saúde, 

 prolongar a vida de um modo surpreendente, adquirir os bens da fortuna, a virtude, a discrição, a paz, a justiça e triunfar magnificamente contra tudo o que se opõe a isto” (5). Tratase, visivelmente, de um povo temporal em-

 penhado na procura de bens temporais em vista de fins temporais que lhe são próprios. Todavia, não é de tal ou tal povo que se trata, mas da República dos cristãos já espalhada sôbre uma larga parte do globo e que a Sabe-doria vai logo dilatar até os confins do mundo habitado. Podemos dizer: República mundial ? Sim, sem dúvida, 

 por que não se vê como um lugar qualquer da terra fi-

caria fora de suas fronteiras. Todavia, duas reservas se impõem sôbre êsse ponto. Primeiramente, por mais mun-dial que seja, a República cristã não é universal. Herdeira da Cidade de Deus de Santo Agostinho, não inclui senão 

 predestinados ou, pelo menos, cristãos. Sem dúvida, se

textos do Papa João VIII ( op.~ cit ., 35-41). “Desde a época de João VIII, tem-se a consciência da existência de uma realidade social denominada christianitas,  que não é nem a Igreja, nem o império, mas istoque se poderia chamar o universo cristão, terra, homens e coisassubmetidos à influência de Cristo” (pág. 47). Sôbre Urbano II e oefeito da idéia de Cruzada, ver cap. IV, principalmente pág. 78,nota 1, o texto de G. Malmesbury. É significativo que os grandes

escolásticos não tenham elaborado uma teologia da cristandade. Nãopensavam senão na Igreja que, pelo fato de incluir os lejgos, istoé, os príncipes e seus povos, dispensava qualquer outra noção. Nãotemos ainda a teologia da cristandade. Pelo que sabemos, RogérioBacon foi o primeiro que, sob o nome de “respublica^ fidelium”,ha ja descrito a realidade de que se tra ta. Suas reflexões sôbre as cruzadas ajudaram-no grandemente a discerni-la. Primeiramente, tornando-lhe evidente a distinção entre povos cristãos e povos não cristãos. Emseguida, colocando sob seus olhos uma comunidade temporal, usandode meios temporais, em vista de um fim próximo tão temporal quantoa guerra e cuja existência, todavia, não se explicava senão pelacomum filiação de seus membros à Igreja. Bem entendido, a repúblicados crentes está na Igreja, que, como a Sabedoria, tudo inclui, masconstitui uma ordem distinta e definível à parte.

(5) Compendium studii philosophiae.  cap. I, ed.  J. S. Brewer,London, 1859, pág. 393.

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abre largamente aos pagãos, mas êles não entrarão nela 

senão com a condição de deixarem de sêlo. Tudo o que 

 pode fazer aqui a Sabedoria cristã é que “os povos infiéis 

 predestinados à vida eterna se convertam efetiva e glorio-samente à fé cristã” (6). Dêste modo, as fronteiras da 

República crista são traçadas pelas da Igreja assim como 

as da Cidade dc Deus eram pelos misteriosos decretos da 

 predestinação divina.Uma segunda diferença, porém, a distingue, mesmo 

no interior de seus limites, da república mundial, na qual  pensam tantos contemporâneos nossos. É que, temporal, ela espera sua fundação, sua organização, e sua prospe-

ridade duma Sabedoria toda espiritual, dispensada por um magistério e um poder também temporais. Tenha-mos presente que estamos no século XIII, num tempo 

em que “clérigo” é sinônimo de “sábio”, como “leigo” 

é de “ignorante” . . . Se há “sábios” e “prudentes”, tais são os clérigos e os homens de igreja. Quando pensa nos cruzados e em seus chefes, Rogério Bacon não sente 

senão piedade pela maneira pela qual êsses simplórios 

fazem a guerra. Tratase do que denomina “guerras civis”, o que não significa, para êle, guerra entre conci-dadãos, mas guerras entre leigos, conduzidas, pois, por ignorantes. Como nada sabem, estes homens se batem 

ao acaso. Se a Igreja detém a Sabedoria, detém, igual-mente, a arte da guerra. A extensão futura da República 

Cristã, principalmente a defesa de suas fronteiras, depen-derá principalmente, na medida em que elas dependem 

disto, de guerras inteligentemente conduzidas por exér-

citos munidos das máquinas necessárias que somente a ciência e a sabedoria podem lhes fornecer: “Porque os empreendimentos da ignorância leiga não conseguem 

êxito senão por acaso, como vemos nas guerras de ambos 

os lados do mar, enquanto que as da sabedoria se apoiam sobre uma lei definida para atingir eficazmente o fim que elas perseguem. Era assim que, outrora, os soberanos agiam inspirados pela sabedoria dos filósofos. A histó-ria narra que, graças à prudência e ao saber de Aristó-

teles, Alexandre Magno destruiu, antes que venceu um(6) Compendium,  c. I, pág. 395.

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milhão de homens, em suas duas primeiras expedições 

contra os reis do Oriente. Seu exército não se compunha senão de trinta e três mil infantes e de quatro mil e qui ' nhentos cavaleiros, de tal modo que lutavam à razão de 

um contra 26. Não perdeu, todavia, senão 409 dos seus, “como se pode verificar sem erro possível em Trogo  Pompeu, Tito Lívio, Justino e na história escrita por 

Orósio para Agostinho” (7). Feliz tempo aquele em que 

era tão fácil escrever a história! Quatrocentos e nove homens de perdas, nem um de mais ou de menos, e esta-mos seguros, pois Trogo Pompeu, Tito Lívio, Justino e 

Paulo Orósio o disseram.Quaisquer que sejam suas outras descobertas, Rogé 

ria Bacon não inventou a crítica histórica, mas tinha outra coisa em mente. Sua missão pessoal era de convencer a 

Igreja, na pessoa de seu chefe o papa Clemente IV, de que 

ela tinha o encargo e o poder de assegurar, com a unidade religiosa da terra, o bemestar e a prosperidade dos povos que a habitam. No caminho que conduzia a êste bem 

tão precioso, um só obstáculo havia: a ignorância, e um 

só guia garantido: a Sabedoria. Não se pode fazer o bem 

sem o conhecer, nem evitar um mal que se desconhece. Quem conhece a verdade, mesmo se erra por negligência, tem que se corrigir, arrependerse de suas faltas e pre-caverse com relação ao futuro. Nada, portanto, é mais 

 precioso do que o estudo da Sabedoria. É ela que dis- persa as trevas da ignorância, e ilumina o espírito e lhe 

 permite escolher o bem e evitar o mal. Útil para si, o sábio não o é menos aos outros. Nunca teremos bas-tante dêles e Bacon fala nisto como se, desde o século  

XIII, houvéssemos entrado na idade dos técnicos e dos administradores. Apenas que, como os clérigos são os únicos a possuir a sabedoria, todos êstes técnicos e admi-nistradores pertencem à Igreja: “São êles que se prefe-rem para governar a Igreja em todos seus graus, e quando  possuem o encargo de dirigir os príncipes (principiem  rect res effecti),

  êles dirigem todo o vulto dos leigos

(7) Compendium,  c ap . I , p ág . 395-396. Rogé r io B acon , i ng l ê s ,n ã o i n v e n t o u t a l v e z , a p ó l v o r a , i n a s e s p e r a v a o s c a n h õ e s e , f a l a n d oe m t ê r m o s g e r a i s , a g u e r r a c i e n t í f i c a , ú n i c a d e f e s a s e g u r a d a s f r o n t e i r a s d a R e p ú b l i c a d o s c r e n t e s .

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(;t tum vulgus dirigunt laic rum ), convertem os hereges e outros infiéis, servem de conselheiros, afinal, para a 

repressão dos endurecidos que se fazem merecedores da morte eterna. Assim, o bem do mundo inteiro depende 

do estudo da Sabedoria e, inversamente, as fraturas que se lhe fazem são uma causa de confusão universal” (8).

Começase a ver a natureza e o alcance do problema ? Se a Sabedoria conduz o universo, o mundo será o que fará a Sabedoria, e se a própria Sabedoria se corrompe, como não se corromperá o mundo com ela ? Eis o mal de que Rogério Bacon não cessou de lamentarse e que incansavelmente denunciou. “Tal qual se está no estudo da Sabedoria, assim se estará na vida. É porque tantos 

homens saem corrompidos de um ensino corrompido, tanto e tão bem que, quando são escolhidos para governar a Igreja, aconselhar aos príncipes e aos povos inteirinhos, uma corrupção infinita se abate sôbre o mundo. A vida 

dos fiéis não é mais conduzida segundo as exigências 

da Fé, os infiéis não se sentem mais convidados a aceitar a 

 verdade cristã; bem ao contrário, a vida culpável dos cristãos lhes é um escândalo indizível e os afasta da re-

cepção da Fé(9). Eis aí coisas que podem ser convenien-tes de dizer, mas que não convém repetir muito, pois, em nenhuma época, aqueles que possuem o encargo de ensinar a Sabedoria apreciam ouvir dizer que êles executam mal sua tarefa. Melhor avisado, Descartes se recordará mais tarde de reformar o ensino é bastante mais peri-goso do que reformar a ciência. Menos prudente, ou mais zeloso do que Descartes, Rogério Bacon multiplica 

as desconfianças e as suspeitas. Condenado em 1277 pelo 

capítulo geral da Ordem, que se reuniu êsse ano em Paris, foi feito prisioneiro, de 1278 a 1292, isto é, quase até sua 

morte, pr pter suspectas n vitates.  De novidades, por certo, a sua obra estava cheia ! Que muitas delas fossem suspeitas, admitese de boa vontade. Elas teriam parecido menos perigosas se, em lugar de dizer somente que tinha 

razão, Bacon houvesse repetido menos vêzes que os outros estavam errados.

(8) Opits tertium,  cap. I, pâg. 11 .(9) Opus tertium,  cap. I, pág. 11.

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Todavia, é bem a Sabedoria, exatamente como a con-cebia, que devia ser o coração e o cérebro da sociedade 

futura. Mas quem a concebia como êle, em seu tempo ? Quando consiaerava seus contemporâneos, Rogério Bacon 

 viase sozinho, no meio de uma multidão de desorientados, surdos à mensagem que repetia sem cessar para salválos. 

Havia Doutores por toda a parte; há quarenta anos as 

ordens mendicantes os vinham multiplicando em todas às 

cidades e, entretanto, nunca o mundo estivera tão cheio 

de ignorância e de erros. Ninguém poderia duvidar disto 

diante da multiplicação de pecados, pois o pecado é incom- patível com a Sabedoria, e quando há mais pecados do 

que antes, é que há menos Sabedoria do que em qualquer 

outro tempo.Podemos duvidar desta multiplicação do mal ? Vede: 

a Cúria Pontifícia, outrora guiada pela Sabedoria de Deus, é atualmente regida pelos códigos jurídicos de soberanos 

leigos e feitos para governar povos de leigos. É o cjue 

se denomina Direito Civil. A Igreja sofre em conseqüen cia disto; seus direitos são violados; a justiça e a paz são 

mergulhadas num mar de escândalos e, em seguimento 

a estas desordens, o orgulho, a avareza, a inveja e a luxúria 

desonram a cúria inteirinha. Todos não pensam aí senão 

em comer. Como se isto não fosse suficiente, recusase 

à Igreja o vigário de Cristo: o mundo permanece sem 

chefe, como se viu durante numerosos anos, nos quais a 

Sé Apostólica permaneceu vacante pela inveja, as ciumei 

ras e a sêde de honras que lavram nessa cúria, cheia de 

 pessoas que não cuidam senão em subir e fazer subir os seus, como o sabem todos aquêles que querem saber a ver-

dade. Se tal a cabeça, que tal podem ser os membros ? Olhai êstes prelados, como são ávidos de dinheiro e descui-

dados das almas! O que lhes interessa, é a carreira de 

seus sobrinhos, de seus amigos e dos legistas crapulosos 

que arruinam tudo por seus maus conselhos. Não contai com êles para encorajar os estudos ! Desprezando igual-mente os teólogos e os filósofos, êles fazem tudo para 

impedir aos dominicanos e aos franciscanos de dedicarse  

livremente à salvação das almas e dedicarse gratuitamente 

ao serviço de Deus.

 

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 Ao menos, dirão, há estas duas Ordens ! Examinemos imparcialmente a ambas. Jovens, elas se acham terrivel-mente decaídas de sua nobreza primitiva. Quanto ao clero, dáse todo inteiro ao orgulho, à luxúria, e à avareza. 

Em qualquer lugar que se reunem os clérigos, em Oxford, em Paris, não vemos senão rixas e desordens que escan-dalizam aos leigos. Príncipes, barões, soldados atacamse mütuamente e se despojam, quando não caem sobre o  pobre povo para esmagálo de exaçÕes sem número. Os duques e os reis não fazem coisa melhor. Ninguém se 

 preocupa com o que vai acontecer; contanto que se obte-nha o desejado, todos os meios são bons. Irritado contra 

seus príncipes, o povo os odeia c não lhes guarda a fé 

jurada senão quando não pode fazer de outra forma. Corrompidos pelos maus exemplos de seus chefes, os sim- ples cidadãos se oprimem uns aos outros, dedicamse à giutoneria e à luxúria mais do que seria possível des-crever. Aliás, basta abrir os olhos para ve r o que acontece. Quanto aos comerciantes e aos operários, o melhor é não 

falar nêles; tudo o que fazem ou dizem não é senão fraude,  mistificação e mentira sem termo ( 10).

Isto não seria nada ainda se não soubéssemos que este mal é, ademais, uma decadência e, o que é pior, uma deca-dência dos cristãos relativamente aos pagãos. Os filósofos de outrora viveram sem a graça santificante, que torna o homem digno da vida eterna e que recebemos no ba-tismo; todavia, viveram de maneira incomparàvelmente 

superior a nós, no desprêzo do século, dos prazeres, das 

riquezas e das honrarias dêste mundo. Para certificarse disto basta ler os livros de Platão, de Aristóteles, de Sênc  

ca, de Cícero, de Avicena, de Alfarrabi, e de outros ainda. Esta alta moralidade, eis exatamente aí o segrêdo de sua 

Sabedoria e das descobertas que fizeram em todas as ciên-cias ! Nós outros cristãos, ao contrário, longe de inventar coisa que valha a pena, não somos nem capazes de com- preender a ciência dêsses filósofos, e a razão é simples: não 

 possuímos os seus costumes. Se tivéssemos seus costumes,

(10) Compedium,  c. l . pdg. 398-400. Aqui se coloca uma das maisbelas páginas escritas na Idade Média sôbre o sacramento da Eucaristia, a mais tocante talvez antes da Imitação de Cristo.

 

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teríamos a sua sabedoria, em lugar de ter esta ilusão de sabedoria que a astúcia do demônio nos ministra, quando 

o saber atinge o termo último de sua decadência e de sua' corrupção( 11). Deus pode retardar algum tempo o dia 

do castigo, mas êste dia virá, a menos que um aconteci mente providencial não venha mudar o curso das coisas: o advento de um papa que reformará o estudo da Sabe-doria e que varrerá esta corrupção.

Rogério Bacon revelase aqui sob seu aspecto mais 

íntimo. É bem o arauto de uma reforma da Igreja pelo 

 papa, sua própria doutrina colocando à disposição do chefe 

da Igreja os meios de efetuála. É, aliás, a razão por que 

seus escritos mais pessoais são menos exposições da Sabe-doria e das ciências que discursos sobre o método de pro-mover a sabedoria, e, por ela, estabelecer a ordem no 

mundo. Outra não é mais claramente a sua intenção no 

comêço do Opu Tert ium, terceiro esforço para convencer ao Papa Clemente IV ; isto é, terceiro apêío ao papa. Já 

escrevera duas outras obras, entre as quais o Opu Maju ,  para sua Santidade, cujo ofício é “assegurar o bem do 

mundo inteiro”(*12). Bacon não cessa de volver a isto: 

“dirigir a República dos crentes” ( 13), e, por isto, contra restar os esforços do demônio que procura arruinar o saber a fim de preparar a vinda do Anticristo. É preciso resis-tirlhe e isto será difícil, mas um papa ao menos o pode 

fazer, porque uma tão alta autoridade deve poder ultra- passar tôdas as dificuldades: seu poderio penetra nos céus, abre o purgatório, vence o inferno e domina o mundo 

inteiro ( 14). Alguma esperança permanece, pois, legítima, sobre-

tudo depois do advento de Clemente IV, que Rogério Bacon conhecera quando ambos estudavam em Paris no 

tempo de sua mocidade e em que nosso reformador colo-cava tôdas as suas esperanças. G uy le Gros, um jurista 

célebre que tinha servido São Luís na qualidade de secre-tário particular, casarase; tornandose viúvo quando já 

erc pai de duas filhas, ordenarase em 1247.

(IX) Loc. cit.,  págs. 401-402.(12) Opus terthim,  c. I, pág. 3.

(13) Op. cit.,  págs. 3-4.(14) Op. cit.,  pág. 8.

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Era ele que a sorte havia elevado à Santa Sé em 1265.  Como não veria Rogério Bacon um desígnio providencial em tamanha série de acontecimentos ? Não podería ser 

 por acaso que um homem de tão alto saber se tornara o 

chefe da Igreja. A felicidade do mundo dependia do 

estudo da sabedoria, Clemente IV o sabia, ou pelo menos, Bacon não lhe permitia ignorar ou esquecer: “Pontífice  

bemaventurado e Senhor sapientíssimo dignese vossa glória considerar isto: que somente vós podeis dar remédio 

a nossos males, porque não houve papa que soubesse o Direito tão bem como vós. E eu não creio que haverá outros, porque, se há outras pessoas que conhecem bem o 

direito, não há esperança de nenhuma chegar a papa. Ora, há quarenta anos, profetas e numerosos visionários anun-ciaram que um papa viria em nossos dias, que purgaria 

o Direito Canônico e a Igreja de Deus dos sofismas e 

das fraudes dos juristas. A justiça será ministrada por 

toda a parte sem o barulho das querelas. Êsse papa será 

tão bom, tão franco e tão justo, que os gregos volverão  

à obediência da Igreja Romana, a maioria dos tártaros  

se converterá à nossa fé, e não haverá mais senão um só 

 pastor e um só redil. Esta palavra ressoou aos ouvidos do profeta. Há um que viu isto pela revelação, que disse e <^ue, ademais, assegurou que, em seu próprio tempo, êle  proprio veria estas maravilhas. E, certamente, se apraz a 

Deus e ao soberano pontífice, isto pode ser feito num ano e, mesmo, em menos. Isto pode ser feito em vosso tempo, e queira Deus vos conservar vivo, para que seja por vosso  intermédio que tal se faça ! ( I5) Nada mais claro do que 

este apelo ao papa reformador, o único capaz de unifi-car o mundo pela sabedoria. Rogério Bacon revelase nêle  por inteiro, ou, ao menos, deixa ver o mais profundo  

de si próprio. Cumpre que o mal seja extirpado e que 

os eleitos de Deus apareçam, ou que um papa três vêzes  abençoado tome a iniciativa, retire tudo o que corrompe os estudos, a Igreja e o resto, para que o mundo seja reno- vado, para que venha a êle a multidão dos gentios e que os restos de Israel se convertam à fé ” (16). O papa tem

(15)  Opus tertium,  cap . XXIV, p ág . 86 -87 .(16)  Compendium,  c . I , pág . 4 02 . C f . P . Duhem , U h   f ra gmen t   

inédit de VOpus Tertium,  pág . 181 .

 

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a Igreja de Deus na mão; é a êle que cabe dirigir o mundo: habetis ecclesiam Dei in p testate vestra et mimdurn t tum

 

habetis dirigere(171.

  Para dizer a verdade, há nisto mais exaltação do que precisão, pois, não se vê muito bem como 

o soberano pontífice, mesmo após haver restaurado os estu-dos e a Sabedoria em sua pureza, pudesse proceder à exter  

minação dos sarracenos e à conversão das tártaros. Ro-gério Bacon faz por vêzes alusão a alguma aliança entre o papa e os príncipes, mas o projeto permanece vago. “Agora, que a malícia humana está em seu auge, importa que a Igreja seja purificada por um papa excelente e 

 por um príncipe excelente, entre o gládio material e o 

gládio espiritual”( ,8). Seria difícil extrair daí qualquer idéia clara sobre a maneira pela qual o nosso reformador  encara esta aliança. Tudo o que sabe, e a única coisa sobre a qual se exprime claramente, é que os tempos são cumpridos, que uma crise decisiva se acha aberta e que  ela não será encerrada senão por um papa salvador, ou 

 pelo Anticristo, ou qualquer conflito universal dos reis 

da terra, talvez mesmo pelos tártaros ou pelos sarracenos.  A Igreja deve ser reformada e ela o será; não é pois ao  papa que pertence primacialmente encarregarse disto ?

Sem dúvida, mas êle não a pode reformar senão por  meio da Sabedoria, e como a própria Sabedoria está cor-rompida, é por aí que deve começar a reforma. Aqui Rogério Bacon está em seu próprio terreno, o único de que se sente pessoalmente responsável e vêse logo que o 

 percorreu cem vêzes em todos os sentidos. Não há avenida ou atalho que não lhe seja familiar. Primeira-mente, afastar os obstáculos naturais que obstruem o ca-

minho da sabedoria. Que o homem tome consciência de sua miséria, da ignorância e do êrro em que se acha mer-gulhado após o pecado original. É por isto que ninguém 

estuda e que ninguém aprende nada antes da idade de 

 vinte anos. Mas há, também, os pecados pessoais, sobre-tudo o pecado mortal que, por sua própria natureza, é contrário à sabedoria. Ora, êle pulula e, mais do que

(17) Opus tert ium ,  c. X X I V , pág. 87.(18) Compendium,  c. I, pág. 403-404. Trata-se do imperador ou

um rei então reinante ; de qual ? Ignoramos.. .

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todos, a luxúria, à qual os animais não cedem senão nas 

estações próprias, e os homens, sempre. Vede os estudan-tes; mas vede seus professores! “Neste ano, mesmo, em 

Paris, muitos teólogos e estudantes de teologia foram ba-nidos da cidade e do reino de França por muitos anos e 

condenados püblicamente por crime de sodomia”. De- pois dos trinta anos, quando, pela graça de Deus, eles 

renunciam à luxúria, caem sob o império dos pecados 

espirituais: a ambição, a avareza, a paixão das riquezas. Como, com tudo isto, poderíam ainda estudar ? ( 19)

 Após esta reforma dos costumes, a da administração 

eclesiástica. Os juristas destruíram o estudo da sabedoria, 

 porque, fraudulentamente, circundaram os prelados e os  príncipes, e tão bem o fizeram que êles canalizam para 

si o seu dinheiro e recebem todos os benefícios. Que fica 

Dara os teólogos e os filósofos ? Nada. Êste infelizes não 

Dossuem com que viver nem mesmo o lugar para traba  

har. Quando falamos nos juristas, não falamos nos cano nistas, que estão albergados com os filósofos. Se chegam 

a viver, é porque conhecem o direito civil, não o direito 

canônico. Ninguém se espante, pois, de ver os mais bem 

aparelhados para a teologia e a filosofia fugir destas dis-ciplinas e passar para o direito civil, quando veem que os 

juristas recebem todas as honras e todas as riquezas da 

 parte dos prelados e dos príncipes.Rogério Bacon não se cala a respeito deste ponto. 

Nada iguala sua animosidade contra o direito civil, he-rança de Roma pagã, feito por leigos para governar leigos, e que, progressivamente, se torna o direito da Igreja. O 

mais curioso é que aqueles que o ensinam procuram efeti- vamente fazerse passar por gente de Igreja. Fazemse cha-mar “clérigos”, mas não o são; são homens casados, sim- ples leigos, que não contribuem pouco a corromper, mis turandose nêle, um clero do qual não são membros. Dão 

lhes ainda o título de mestres. Êles não são mestres, por-que ensinam o erro, enquanto que um mestre digno deste nome ensina a verdade. Evidentemente, o nosso clérigo não considera que o direito civil seja feito para êle.

(19) Opus Majus,  Pars I, inteira — Compendium,  cap. II. pág.404-413. Opus tertium,  c. XXII, pág. 69-73.

 

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Não que sejam as leis do país, porque há, de uma parte,  o povo dos clérigos, e doutra parte, todos os outros. Ora, cada país tem suas próprias leis e seu direito civil' 

 particular e, como nossos clérigos são originários de vinte 

regiões diferentes, se se submetem ao direito civil, eilos submetidos a vinte legislações contraditórias. Que podem 

 pois, fazer os clérigos da Inglaterra, de França, da Ale-manha, da Espanha, ou da Itália senão recusar todas estas 

leis e exigir outra ? Como o diz expressamente Bacon: “Pois que um príncipe leigo rejeitaria as leis de outro 

 príncipe leigo, com muito mais forte razão todo clérigo deve rejeitar as leis dos leigos” (20). Da

Epíst la a Di guet

à Cidade de Deus, depois ao C mpendium   de Rogério 

Bacon, a direção geral permanece constante; como o cris-tão do século IV, o clérigo do século XIII é antes da 

Igreja, e não de seu país.Uma razão mais filosófica vem também justificar esta 

 posição. Se é indecente ver clérigos aplicarse ao estudo 

do direito civil, é que, seja como for, não é uma ciência.  

 Tal qual é ensinado nas escolas e como é praticado pelos 

juristas, o direito não é senão a aplicação particular e con-

tingente de princípios que relevam da filosofia. O direito 

é, pois, uma arte prática para uso dos leigos, não sendo 

assim uma ciência que convenha a filósofos e aos clérigos. 

O direito vulgar está para a filosofia como a arquitetura está para a geometria ou como a arte da ourivesaria está 

 para a química, e assim acontece com todas as artes para 

uso de leigos. Assim, o direito dos leigos é como se 

fôsse “arte mecânica” em face do direito civil dos filóso-fos e dos clérigos, o único a fazer parte da filosofia. Com efeito, êstes leigos aplicam seu direito civil mecani-camente, sem saber porque. Comparados aos filósofos, êles não são senão animais de carga, que não conhecem 

as razoes e as causas das leis que aplicam. Quando os 

clérigos se abaixam a semelhantes estudos, se tornam êles 

também, outros tantos animais e bêstas sem alma. Do 

 ponto de vista da sabedoria, é uma degradação sem nome(21).

( 20 ) Compendium,  c. IV, pág. 420.

(21) Compendium,  c. IV, pág. 420-421.

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Ora, ela não é necessária, e os filósofos da Antigui-dade foram mais prudentes nesta matéria que os clérigos de nosso tempo, porque, pelo menos, ensinam o direito 

como filósofos. Há mais verdade na moral e na política 

de Aristóteles do que em todo o direito civil, precisa-mente pelo fato de que, em lugar de dizer qual é o 

direito, Aristóteles ensinava seus princípios e as suas cau-sas. Mas, para que nos embaraçar com filósofos, mais do 

que com os juristas ? A lei cristã recolhe, no próprio 

direito civil filosófico, tudo o que merece ser recolhido, e lhe acrescenta bastante coisas que ultrapassam infi-nitamente a ciência humana(22). Quem tem a verdade 

cristã tem, ao mesmo tempo, a filosofia do direito e o 

 próprio direito.

É esta a razão pela qual dizíamos ainda há pouco que 

a tarefa mais urgente é a de restaurar a sabedoria. Os antigos não colocavam nada a prêço mais alto do que a 

moral. Nela confiavam a sua salvação, e, para dizer a ver-dade, era ela a sua teologia. Nós, ao contrário, a quem 

a revelação foi feita, sabemos que somente a fé nos pode 

salvar. É pois a doutrina da fé que é nossa teologia. Se 

ela é nossa sabedoria, importa necessàriamente que ela contenha a totalidade do saber. Rogério Bacon é rico 

sempre em fórmulas, sobre êste ponto, de uma densidade surpreendente.

“Não há senão uma Sabedoria perfeita, dada por um 

só Deus a um único gênero humano e por um único 

fim, que é a vida eterna, contida completamente nas 

Santas Escrituras, mas que deve, todavia, ser desenvolvida 

 pelo direito canônico e pela filosofia, porque tudo o que é contrário à Sabedoria de Deus, ou simplesmente estra-nho a ela, é falso e vão e não pode prestar nenhum serviço  

útil ao gênero humano” (23). Nada mais comum, na Idade 

Média, do que esta redução das ciências e das artes à teologia, mas ela se exprime aqui sobre um tom muito pes-soal e num espírito todo particular, por que esta tese clássica vai doravante servir para justificar o ideal de

( 22 ) Compendium,  c. IV, pág. 424.(23) Opus ter tium ,  c. XXIII, pág. 73.

 

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um mundo unido, na medida em que pode sêlo, na uni-dade de uma só e única Sabedoria. A fórmula moderna, One W rld, “Um mundo só”, é familiar a nosso refor-mador, do qual se pode bem dizer que é um profeta;  

somente que, para o mundo tornarse unido, é preciso  que a própria sabedoria se unifique, e que ela seja minis-trada a todos por uma única autoridade: “Toda a sabe-doria foi dada por um só Deus, a um único mundo e 

 para um só fim” (24). Necessárias à sabedoria revelada 

 para desenvolver o seu conteúdo, as outras ciências não são por menos incluídas aí como a mão aberta o é com  

relação ao punho fechado. Ora, o papa possui o depósito 

dela. É, pois, êle, e somente êle quem pode conferir a 

ordem à Igreja e a unidade à República cristã, fazendo aí reinar a unidade da sabedoria; pode haver um mundo   porque há um papa detentor de uma verdade.

Recordemolo, em tempo: este mundo unificado não 

será ainda uma sociedade verdadeiramente universal, por-que, mesmo realizada, a República cristã terá fronteiras, que serão aquelas da fé. Podese fazer bastante para 

 propagar a fé; ela permanece sempre uma fé, isto é, 

uma verdade que não se conseguirá eficazmente impor   por nenhum método e que depende finalmente da aceita-ção livre do próprio crente. Rogério Bacon esbarra aqui na dificuldade que, como já fizemos observar, jaz no  próprio coração de nosso problema: como universali-zar uma fé ? A unidade do mundo não é possível senão na medida em que a fé é universalizável; tratase, pois, de saberse como a Igreja pode conseguir que seja uni-

 versalmente aceita.

Rogério Bacon não se desesperou completamente. De início, já que Deus deseja salvar todos os ho-mens, não pode recusar ao gênero humano o conheci-mento das vias da salvação, ainda mais que, sua bondade  

sendo infinita, êle oferece aos homens alguma luz que lhes mostre as vias da verdade. Além disto, o problema não é tão complexo que lhe não possamos calcular os 

dados. O número das principais nações e de suas reli

(24) Opus Majtts,  P. II, c. I, t. I, pág. 33. Cf. P. II, pág. 66.

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giões respectivas é conhecido. São os sarracenos, os tártaros, os pagãos, os idólatras, os judeus e os cristãos.Há, portanto, seis e não poderá aparecer mais nenhuma 

antes do fim do mundo, senão a sétima, a do Anticristo.   Acrescentemos, todavia, que há seitas compostas de mui-tas outras segundo as combinações diferentes, de duas, três ou mesmo quatro, mas as religiões fundamentais 

 permanecem aquelas que acabamos de nomear. Um  

mundo ateu é uma possibilidade que não parece terse 

oferecido à sua imaginação.

O método mais simples para distinguir as religiões consiste em considerar os fins que elas propõem ao homem.

Os sarracenos tiram o melhor partido possível da vida  presente e da vida futura. Polígamos, ávidos de todos os bens temporais, não pensam que abusar dêles venha 

 priválos da felicidade eterna. Quanto aos tártaros, Bacon os conhece pela carta de Konyouk, que João de Plano Car  

 pino tinha trazido ao papa Inocêncio IV: “Se vós quereis 

guardar a paz comigo, tu, ó papa, e vós, imperadores e 

reis que reinais sobre as cidades c os reinos, não adieis  para mais tarde entrar em entendimento comigo para 

fixar esta paz. Ouvireis então nossa resposta e qual nossa vonta de.. . Vós, habitantes do Ocidente, adorais a Deus e acreditais que sois os únicos cristãos. Isto é 

 porque desprezais os outros. Mas, como sabeis a quem 

Deus se digna conceder a sua graça ? Nós também ado-remos a Deus e, com seu auxílio, destruiremos a terra 

inteira, do oriente ao ocidente” (25). O livro de Carpino 

sobre os tártaros possuía largamente por onde iluminálo.Êsse povo achase, evidentemente, possuído pela l b d

d m nand .  Os puros pagãos, tais como os prussianos eoutros povos limítrofes, procuram os prazeres, as riquezas 

e as honras, persuadidos de que, mais, quanto mais se 

tem nesta vida, mais se terá na outra. Os idólatras não 

esperam senão bens materiais na outra vida e nada sabem dos bens espirituais. Êles, por sua vez, não pensam que seja necessário se privar aqui em baixo para ser recom pensado na vida futura. Não obstante, seus sacerdotes

(25) Opus Majus,  ed. J. H. Bridges, t. II, pág. 368, nota l.

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fazem voto de castidade e abstêmse dos prazeres da 

carne. Vêm, em seguida, os judeus, que esperam bens 

temporais e eternos, mas de dois modos diferentes.'  Aqueles que dão à lei judaica um sentido espiritual aspi-

ram aos bens da alma como àqueles do corpo; aquêles 

dentre eles que a interpretam segundo a letra, não espe-ram da vida futura senão bens corporais. Procuramnos, aliás, por todos os meios nesta vida, mas, quando o fize-ram outrora, isto se deu com a permissão de Deus; não 

os poderiamos recriminar. Sobram os cristãos, que pro-curam os bens espirituais por meios espirituais. Sem dú-

 vida, em razão da fraqueza humana, podem possuir nesta 

 vida os bens temporais exigidos pelo exercício da vida 

espiritual, mas a vida à qual aspiram é uma vida eterna, em que seu corpo se torna espiritual, o homem inteiro  

será glorioso e viverá com Deus c os anjos.Eis pois as principais seitas religiosas. Como classi-

ficálas ? No lugar mais baixo estão os pagãos, que quase 

nada sabem de Deus, não possuem clero e prestam o culto 

que agrada a cada um. Depois temos os idólatras, que 

 possuem padres, templos, e, como os cristãos, grandes 

sinos, para chamálos ao ofício. Isto porque têm preces 

regulares e sacrifícios determinados, mas admitem muitos 

deuses, nenhum dos quais é todopoderoso. Em terceiro 

grau, os tártaros que adoram um Deus todopoderoso e 

lhe prestam culto. É verdade que isto não lhes impede 

de venerar o fogo e a soleira de suas casas. Em quarto 

lugar, estão os judeus, que, segundo sua própria lei, de- viam saber mais sobre Deus e esperar só o verdadeiro 

Messias, que é o Cristo. Por último, os cristãos, que se-guem a lei judaica em seu sentido espiritual e a completam

 

 pela lei do Cristo. Não falemos da seita do Anticristo, que 

não fará senão arruinar as outras por algum tempo, não 

obstante os eleitos se manterem firmes na lei de Cristo, apesar das furiosas perseguições. Poder^seia, também, distinguir as seitas segundo os planêtas de que elas depen-dem. Todas as religiões estão colocadas sob o signo de 

 Júpiter, sua conjunção com cada um dos seis outros pla-

nêtas exerce sobre o coração dos homens, sem atingir seu livrearbítrio, uma influência que favorece o nasci

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mento de novas leis religiosas (26). De qualquer maneira que se conte, volvese sempre ao número seis.

Para constituir, ampliar e assegurar a República cristã, importa, evidentemente, conquistar para ela o maior 

número possível de infiéis. Neste sentido, o problema se reduz ao da propagação da fé. Ora, já o dissemos, é um problema difícil, porque não nos é possível argumen-tar em nome da nossa fé ou da autoridade das escrituras 

contra pessoas que negam a divindade de Cristo e a auto-ridade de sua palavra: “É preciso, pois, procurar argu-mentos noutra direção, a que nos é comum com os infiéis: a filosofia. Ora, a autoridade da filosofia con-corda, aqui, em larga medida, com a Sabedoria de Deus. Melhor ainda, ela é um vestígio da Sabedoria divina dei-xada por Deus aos homens para colocálos no caminho 

das verdades divinas. Estas não são coisas reservadas à filosofia, mas, comuns à teologia e à filosofia, aos fiéis 

e aos infiéis, dadas por Deus aos filósofos e reveladas 

 por eles, a fim de preparar o gênero humano para as  verdades divinas particulares” (27).

Rogério Bacon achase, pois, em presença de uma si-

tuação algo complicada. De uma parte, os incréus estão na posse da filosofia e das ciências, obras da razão. Êste é seu bem próprio: quae etiam própria est infidelibus. 

A   filosofia é de tal modo sua propriedade que é com êles que a devemos aprender, nós os cristãos, e nlo sem causa, porque temos de nosso lado a certeza da fé: ab eis t tam habemus phil s phiam (28) . Bacon não hesita a respeito deste ponto, e sua admiração pelos sábios ou filósofos gregos ou árabes não lhe permitiría, aliás, duvi-

dar disto: tôda a filosofia é de origem pagã, e como é obra da razão, que nos é comum com êles, énos impos-sível recusála: somente, se é verdade que ela seja ao 

mesmo tempo um convite divino a procurar a Sabedoria cristã, devíamos poder usála nós mesmos para conduzir

(26) Para o detalhe desta astrologia religiosa, ver Opus Majus, P. IV ; t. I, póg. 254 e seguintes. A reserva relativa ao livre arbítrioacha-se cm P. VII, t. II, pâg. 371; “anima excitatur, in quantum estactus corporis et inducitur ad actus públicos et privatos per coelestemconstellationem, salva in omnibus, arbitrii libertate”.

(27) Opus Majus,  P. VII, t. II, pág. 373.

(28)  Jb id ,

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os infiéis a esta Sabedoria. Mais ainda: não devíamos 

 poder fazêlo sem recorrer a princípios estranhos ou exte-riores a esta fé, mas, ao contrário, tirados de suas pró' 

 prias raízes.

Como proceder ? Dirigirse diretamente ao povo seria possível, mas o vulgo é de uma ignorância tal que os argumentos que lhe convêm seriam indignos dos sábios. Podese fazer coisa melhor, porque há por toda 

 parte pessoas cultivadas e aptas à Sabedoria. Persuada 

molas de início e será mais fácil, em seguida, conven-cer o povo. Começarseá, pois, por fazer apelo aos co-

nhecimentos naturais, que pertencem a todos os homens, em virtude de sua própria natureza. Ora, um há que é 

efetivamente comum a todas as seitas, o conhecimento de Deus. Tão obscurecido que possa estar pelo pecado, achase em todos os povos. Por outro lado, a unidade de Deus não é naturalmente conhecida, nem sua natu-reza^9). De modo semelhante ao geômetra, que traça 

suas figuras antes de proceder às demonstrações, o “per 

suasor” deverá começar por descrever a natureza de 

Deus em geral. Causa primeira, antes da qual outra não 

existe, incriada, necessariamente existente, infinita em  poder, sabedoria e bondade, criador do universo e gover-nador de cada ser que dirige segundo a sua natureza.

Os tártaros, os sarracenos, os judeus e os cristãos estão de acordo a respeito. Restam os idólatras e os pagãos, mas, quando lhes der a razão, não a poderão contradizer, nem conseqüentemente seus povos, de que estão encar-regados e que lhes pertence dirigir. Quando idólatras e 

 pagãos se virem em minoria em relação a outros povos 

que êles sabem mais instruídos do que êles, se enfilei rarão com a maioria. Se isto não bastar, poderemos re r correr à metafísica: impossibilidade de ir ao infinito na 

ordem das causas, necessidade de uma causa primeira  eterna, causa de tudo o mais e afinal única, porque não há senão um mundo e, para um mundo, um Deus apenas é bastante; igualmente um Deus seria suficiente se fossem29

(29) “Sed cognitio de unitate Dei et quid sit Deus et qualis etcuiusmodi non est nota naturalitcr”. Opus Majus,  P. VII, t. II,

pág. 375-376.

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muitos mundos, porque, fosse qual fosse o seu numero, êstes mundos finitos jamais fariam um infinito^30). Isto 

 posto, ninguém contestará que a criatura deva obedecer 

a seu criador e servilo. Mais exatamente, já que somente um poder infinito pode criar do nada, o bem trazido pela 

criação é infinito como a distância entre o que vai do 

nada ao ser. É, pois, uma reverência infinita que a criatura 

deve sentir para com seu criador. Mas, isto não é tudo,  pois a alma é imortal: Aristóteles, Avicena e todos os grandes filósofos o ensinam, Cícero e Sêneca muitas 

 vezes o afirmaram em seus escritos e todas as seitas reli-giosas aguardam uma vida futura. Os pagãos mesmos, 

nós o dissemos, criam que viveríam após a morte, corpo  e alma, e os sarracenos afirmam a ressurreição dos mor-tos. Se pagãos e cristãos, que são os dois extremos, estão 

de acordo neste ponto, é bem justo que todos os que se 

acham entre os dois estejam igualmente de acordo. Não 

o podemos recusar. Uma vez de acordo sobre a vida 

futura, não se poderá negar igualmente que um Deus 

justo não queira por esse meio recompensar os bons e 

 punir os maus. Todo homem deve, portanto, fazer todo 

o possível para efetivar a vontade de Deus e o servir, a fim de evitar uma desgraça sem nome e obter uma beati 

tude infinita. Sobre todos êstes pontos, o que os homens 

aceitam deve permitir à razão de colocálos completa-mente de acordo.

É fato que não o estão sobre o resto, mas, por que ? É que, para sabcIo, seria necessário saber, também, o 

que devessem fazer para alcançar a beatitude. Mas, como 

o saberíam ? O homem por si é incapaz de saber o que Deus quer que faça para obter a salvação. A prova 

está na divisão de seitas a êste respeito e na que divide  

os próprios cristãos entre si, pois há hereges, cismáticos 

e cristãos verdadeiros e a variedade de heresias é infi-nita. Acrescentemos que as outras religiões não são 

menos divididas contra si próprias e nada surpreende menos, porque se trata aqui de problemas a que o caráter 

limitado da razão natural não permite solução. Nin-

(30) Opus Majits,  P. VII; t. II, pág. 380.

 

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guém conhece perfeitamente a natureza do mais modesto 

dos seres materiais, seja um fiapo de capim ou de uma 

môsca, e, com maior razão, o homem é incapaz de conhe *

cer exatamente a natureza dos incorpóreos, tais os anjos 

ou o que concerne ao estado espiritual de nossa vida futura, e mais ainda o que se relaciona com Deus ou a 

 vontade de Deus. O próprio Avicena o reconhecia quando 

falava nas fontes da moral; importa um conhecimento re-

 velado de Deus. Todas as religiões, por sinal, asseguram 

 possuir uma. O caso é claro para os judeus e os cristãos: os sarracenos creem igualmente que Maomé haja sido 

beneficiado por uma revelação e êle próprio o pretendeu, 

a fim de se fazer acreditado; de qualquer modo, se não 

é Deus que lhe revelou a doutrina, é o demônio. Tár-taros, idólatras, pagãos, todos acreditam que Deus revela 

a verdade sobre êstes problemas; o fato de que acre-ditam nisto, prova que, nestas matérias, somente Deus 

lhes parece digno de crédito.

Chegamos agora ao último problema: destas reve-

lações, qual a verdadeira ? Três somente merecem ser 

tomadas em consideração, por serem as mais racionais: a 

dos judeus, a dos sarracenos, a dos cristãos. Está claro 

que, para Rogério Bacon, a escolha se impõe, mas, ao ler-mos as razoes que oferece, temos alguma hesitação sobre 

sua capacidade para persuadir aos muçulmanos c aos 

judeus. Sem dúvida, mesmo os filósofos cristãos de nosso 

tempo teriam dificuldade em aceitálas. Seu argumento 

 principal, e o decisivo a seus olhos como se vê logo, é 

 precisamente que a filosofia deixa entrever, por tôda a 

 parte, vestígios da sabedoria cristã e dela somente. Não há necessidade de passar em revista a longa série de 

textos em que, por meio de exegeses engenhosas, mas aventurosas, êle tenta estabelecer que, aplicando à 

doutrina da Igreja certas conclusões dos matemáticos e 

do ensino dos moralistas antigos(31), acharemos, nesta 

ciência e nestes autores nobres, testemunhos em favor 

da fé cristã. Tratase, para êle, de pontos preciosos,

(31) Opits Majus,  P.  V I I , t. II , pág. 389. Cf. para as matemáticas, P . I V , t. I , pág. 173 e seguintes; para a moral, P . V I I , t. II ,pág. 228-249.

 

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e, para falar a verdade, quase todos, porque a lista 

dos artigos de fé que êle crê assim encontrar inclui 

a Santíssima Trindade, o Cristo, a Virgem Maria, a 

criação do mundo, os anjos, a imortalidade das almas, 

o juízo final, a vida eterna, a ressurreição dos corpos, 

as penas do purgatório e as do inferno e de outras coisas ainda que a fé cristã ensina. Ademais, Bacon mostrase 

satisfeito com a certeza de que a filosofia não presta teste-munho algum dêste gênero em favor das outras religiões, o que é assaz estranho, ao menos para a religião judaica e 

nas partes que lhe são comuns com a religião cristã. Seja 

como fôr, tal é a sua firme convicção e ela é suficiente  

 para dar a causa como ganha: “Não se acha esta con-

formidade entre a filosofia e as seitas dos Judeus nem 

a dos sarracenos; os filósofos não dão testemunho em seu favor. Já que a filosofia é o vestíbulo da religião 

e nos encaminha para ela, é, pois, manifesto que a religião 

cristã é a única que se deve aceitar.” Como se isto não 

fosse suficiente, Bacon invoca o testemunho de Albu 

mazar, que ensina, no livro I de suasC njunções

, que o 

Islã não viverá mais de 693 anos. Ora, observa o nosso 

 profeta, que escreve em 1267, já se passaram 665 anos. 

O Islã não tem pois muito tempo para viver, e quem sabe se vai esperar os 28 anos para desaparecer ? De 

resto, as Sibilas proclamaram a divindade de Cristo “e 

todos os principais artigos da fé cristã” (32). Que se 

quer a mais ? A escolha se impõe — está feita.Não seguiremos Rogério Bacon no detalhe das pro-

 vas que acrescentaad abundantiam.

  Todavia, quando 

tudo já foi dito, mesmo a República cristã de seus so-nhos, não é um êxito total. Será sem dúvida magnífica, incomparavelmente mais sábia, mais civilizada e mais feliz 

do que os reinos ou principados do século XIII. Avançado 

de muito sobre o seu tempo, Rogério Bacon prevê, anun-cia, antecipa a idade da ciência experimental, dos ins-trumentos de observação, das máquinas e de uma me-dicina fundada sobre uma biologia verdadeiramente cien-tífica. Vemos nêle traços que o aparentam, por anteci-

 pação, a Francis Bacon e a Descartes. Se pudesse volver

(32) Opus Mctjiis,  P. VII, t. II, pág. 390.

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 para o meio de nós, o maquinismo moderno darlheia 

ampla satisfação, pois êle o previu, anunciou, desejou. Certas de suas antecipações continuam, mesmo, adian ' tadas sobre nós. Rogério Bacon previu um astrolábio 

 posto em movimento pela própria força das esferas celes-tes; êle tem certeza de que se podería prolongar a vida 

humana além de todo o limite previsível aplicando cer-tas regras de higiene, retardando a velhice e pedindo à 

ciência experimental o segrêdo de uma medicina melhor do 

que a vulgar; êle não duvida de que a química permitirá 

um dia a transmutação dos metais, que se possa um dia 

fabricar lâmpadas perpétuas, explosivos terrificantes uti-lizáveis nas peças de artilharia, em resumo, que inúmeras  

invenções sejam possíveis, graças às quais a República 

cristã gozará dos benefícios da paz e se assegurará a vi-tória em tempo de guerra. Não obstante, mesmo então, seu triunfo não será completo.

Permanecerá, sempre, Bacon o sabe, um irredutível resíduo de infiéis. Perguntarselheá em vão porque, mas, poderseá fàcilmente adivinhar onde seu engenho 

 procuraria resposta a esta questão: no segrêdo da predes-

tinação divina. A República cristã deve estenderse e crescer até os limites do mundo, mas, enquanto espera 

que o Islã desapareça por si, nosso reformador confia  

menos na ciência experimental para convertêlos do que 

 para exterminálos. É o que denomina delicadamente 

“conversão dos infiéis e reprovação daqueles que não 

 podem ser convertidos”, fórmula um pouco vaga, mas, cujo sentido se torna claro quando fala em “converter os 

tártaros e destruir os sarracenos”. Seguramente, é um 

método concebível para fazer que não haja mais senão um só rebanho e um só pastor, mas não é exatamente 

aquêle que o Evangelho anunciara. É, talvez, todavia, o 

único que possam imaginar aquêles que, como Rogério 

Bacon, sonham fazer descer a Cidade de Deus do céu 

à terra e da eternidade para o tempo. Já que ambos os 

mundos possuem seus eleitos, hão de ter seus réprobos. A doutrina de Bacon marca a primeira metamorfose 

caracterizada e dificilmente contestável da noção de Ci-

dade de Deus. Ela conclui uma evolução, sensível desde

 

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o século XII, mas cujas origens eram ainda mais antigas. Na sua crô ca,  o cisterciense Oto de Freising regis-

trava que, pelas alturas do ano 1150, o Império Romano durava ainda e anunciava a sua perenidade até o juízo

 final. A isto acrescentava, no prólogo do livro V , que, desde Constantino, “já que não somente todos os povos, mas também todos os imperadores, salvo um pequeno número, hão sido católicos e submetidos à ortodoxia, me 

 parece ter escrito a história não de duas cidades, mas, vir-

tualmente, de uma só, que denomino a Igreja. Porque, bem que os eleitos e os réprobos estejam na mesma casa, eu não posso mais dizer que estas cidades sejam duas, 

como fiz precedentemente; eu devo dizer que elas não fazem propriamente senão uma, bem que o grão esteja misturado com a palha”. Oto reafirma esta tese no pró-

logo do livro VII, e do livro VIII. Em seu espírito, a identificação da Cidade de Deus com o povo da Igreja, é, doravante, um fato consumado (33).

Ela o é, também, no espírito de Rogério Bacon, a tal  ponto que ele não fala mais senão da Igreja; somente, que

(33) Esta posição concorda com a do canonista Étienne de Tour-nay, no prefácio de sua S timma d e e r e t om m :    “In eaden civitate subeodem rege duo populi sunt, et secundum duos populos duae vitae,secundum duas vitas duo principatus, secundum duos principatusduplex jurisdictionis ordo procedit. Civitas ecclesia; civitatis rexCliristus; duo populi; duo in ecclesia ordines, clericorum et laieorum;duae vitae, spiritualis et carnalis; duo principatus, sacerdotium etregnuin; duplex jurisdictio, divinum jus et humanum. Itedde singulasingulis et conveniunt universa”. Citado por C aiu. yi.k , op. cit.,  t. II,pág. 198, nota. A interpretação dêste texto por Carlyle não nos parece evidente (t. II, pág. 225). Podemos entendê-lo como afirmandouma simples justaposição dos podêres, mas isto não é certo. De -qualquer maneira, e para ficarmos em nosso próprio problema, Étiennede Tournay não podia afirmar mais fortemente a redução das duas

cidades a uma só, pela substituição da cidade temporal e histórica, àc ivi tas terrena,  eterna e mística, de Santo Agostinho, Cf. op. cit.,  t. II,pág. 207, nota 1, o texto, do canonista Rufino. O perigo latente sobesta redução se descobre na leitura dos tratados atribuídos a Gerardo,bispo de Ruão, mas que é melhor considerar de autor desconhecido.Se não há senão uma cidade, por que a autoridade suprema do inundonão pertencería antes ao príncipe do que ao papa ? Por que o mundoé, doravante, a Igre ja :” Mundum liic appeliat (Gelasius) sanctamecclesiam quae in hoc mundo peregrinatur”; ora, a natureza humanasendo uma, quem governa bem os corpos governa bem as almas (Deconse c ra t ione pon t i f i cum e t r egum,  em M. G. II. Libelli de lite,  vol.III, pág. 663). Nesta concepção unitária em que a Igreja e o reino seconfundem, o rei não é mais um leigo, mas o ungido do Senhor (pág.679). O sistema pode desaguar totalmente no césaro-papismo ou também no papa-cesarismo. Sôbre estes problemas v. II. Boehmkr , Kirche  ■und Staat in England und in der Normandie im XI und XII Jahrhun-  d e r t ,  Leipzig, 1899; e Z. N. Brocke, The English Church and the Papacy  

 fr om th e Conques t to th e K eign o f John ,  C a m b r i d g e Univ. Press, 1931.

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êle se acha diante de uma terra bastante mais vasta que 

a do século XII e do fantasma de um Santo Império 

Romano ameaçado de longe, mas efetivamente, por impé *rios reais, poderosos e pagãos. Por ocasião da morte de 

Mangu Cã, em 1259, seu império se estende da China ao 

Danúbio. É necessário pois, ou resignarse a ve r reapa-recer o dualismo das Cidades, ou, por um esforço su- premo, manter sua coincidência absorvendo 11a Igreja a

 

imensidade das cidades terrestres que Marco Polo e João 

Plano Carpino acabavam de descobrir. Entre estes dois 

 partidos, Bacon não hesita; êle escolhe o segundo, mas 

esta escolha o envolve num grave problema.Se a Cidade de Deus se transforma na Igreja, os 

Estados passam a ser a Cidade terrestre; é preciso, pois, 

que a Igreja absorva ou assimile os Estados a fim de man-ter a unidade de uma única Cidade. Para eliminar esta

 

dificuldade, Rogério Bacon parece ter sentido a necessi-dade de incluir efetivamente todo o saber humano na sa-bedoria cristã, a fim de garantir o triunfo universal da 

fé. A imensidade, subitamente revelada, do campo que 

se oferecia doravante ao zêlo apostólico da Igreja, o 

 poderio das forças adversas que ela tinha que vencer, a 

natureza temporal dos fins, mesmo a paz entre os povos, 

que ela devia doravante se propor, tudo convidava Bacon 

a multiplicar as vias de acesso à fé pela razão natural e, ao mesmo tempo, incluir a fé e razão numa revelação  

ampliada tanto quanto possível para as conter. Porque 

não visava nenhum fim temporal, a Cidade de Deus não 

tinha conhecido nenhuma dificuldade dêste gênero; mas, como a República dos crentes queria apoderarse da 

terra, ela não podia evitála. Não é, pois, surpreendente 

 perceber na obra de Rogério Bacon, os primeiros sin-tomas de uma tendência a contar com a filosofia e

 

com a ciência para ganhar o mundo para esta fé, que 

São Paulo havia antes pregado como uma loucura para 

os gregos. O menos que se pode dizer desta solução do 

 problema é que o seu equilíbrio era instável. O momento  

havia chegado para a magistral simplificação que vai pro- por Dante: deixar o céu, a teologia, e a fé para a Igreja;

 

a razão para os filósofos e a Terra para o imperador.

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C apítulo I V

O Império Universal

Emumadata que não nos é exatamente 

conhecida, mas, certamente, pelas alturas dos primeiros 

anos do século XIV, Dante abordava, por sua vez, o 

 píoblema de uma sociedade universal, com um espírito, aliás, totalmente diverso do de Rogério Bacon. Nada nos leva a pensar que ele haja conhecido a obra do refor-mador franciscano, mas o problema se oferecia espon-taneamente ao espírito de muitas pessoas, num tempo em 

que cada reino devia tomar posição em relação ao impé-rio e o próprio império com relação ao papado. Filho 

de uma cidade tràgicamente dividida por dissensões sem 

número, banido de Florença em conseqüência de um 

malogro político para êle decisivo, Dante, pelo menos, não podia ignorar a urgência do problema. Vítima da 

divisão, esperava ardentemente a unidade. SuaM nar-

 

chia

  é a prova disto, e, se bem que esse tratado passa com 

razão como secundário em relação à Divina C média,  podese dizer, sem nenhum exagero, que não é indigno

 

dela. Quando não em beleza literária, ao menos pela 

grandeza e pela espantosa originalidade de vistas, a M - 

narchia  faz honra ao gênio de Dante; seria, sem dúvida, difícil fazerlhe mais alto elogio.

 Já se disse que êste escrito encontra naturalmente o 

seu lugar entre muitos outros que datam pouco mais 

ou menos da mesma época. É exato, mas não deixa de 

ser, todavia, único pela tese que sustenta e o próprio 

Dante o sabia. Todos os homens, diz no princípio de

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seu tratado, amam naturalmente a verdade. E, da mesma forma pela qual o trabalho dos antigos nos enriqueceu de 

 verdades que suas obras nos transmitiram, é justo que cada' um de nós trabalhe por sua vez para legar à posteridade 

riquezas novas. Quem pensa de outro modo falha a seu dever. Não se trata de uma árvore que, alimentada pelo solo e pela água, frutifica no outono, mas de um abismo devorador que engole sempre e não restitui nunca. “Pen-sei nisto muitas vêzes, acrescenta, e para evitar a crítica de ter escondido o talento que me foi confiado, eu quere-

ría não somente exibir promessas ao bem comum, mas  produzir frutos e fazer ver as verdades que os outros ja-mais atingiram. Que fruto daria aquele que demonstrasse 

de novo um teorema demonstrado por Euclides, ou tra-balhasse para indicar o que é a felicidade, que Aristóteles já mostrou o que é, ou retomasse, depois de Cícero, a defesa da velhice ? Ningucm, seguramente; êste traba-lho fastidioso não traria senão o tédio”(x).

Entre as verdades ainda ocultas e, porém, úteis a descobrir, a mais escondida e mais útil diz respeito à mo-narquia temporal. Se ninguém se interessa por isto, é que sua descoberta nada traz a ninguém, senão a glória. A  

emprêsa é árdua, mas, é ela que Dante delibera tentar. Menos confiante em suas próprias forças, que na luz di- vina, ele vai procurar revelar ao mundo a natureza, a ne-cessidade e a função da monarquia universal.

Que é a monarquia temporal ? Para definila em linhas gerais, denominaremos monarquia temporal, ou como se diz, geralmente, o império, o domínio de um só chefe sobre todas as coisas que vivem no tempo e sobre todas as coisas que são medidas pelo tempo. Ela 

atinge, pois, os bens como as pessoas, contanto somente que sua condição seja “temporal”, isto é, que sejam “no1

( 1 )  M onarchia .  I, 1. Citaremos êste tratado de acôrdo com aedição de W. H. V. Reade, que reproduz aliás o texto de E. Moore, Dante, De Monarchia,  Oxford, Clarendon Press, 1916. É supérfluo assinalar quanto o estado de espírito de Dante, inteiramente medievalnisto e impulsionado, como Bacon, no sentido da descoberta de verdades novas, difere daquele de um filólogo como Petrarca, que não vê qualquer incoveniente em repetir 20 vêzes o que já disseram osantigos. Seria um paradoxo dizer-se que o humanismo era umretôrno ao passado em vista do presente, e a “escolástica” um retornoao passado em vista do futuro ? Talvez haja a í um grão de verdade.

 

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tempo”. Três questões capitais colocamse a êste res- peito, que vamos considerar sucessivamente: se a monar-quia assim entendida é necessária para o mundo; se o 

 povo romano pretende, com direito certo, o ofício; se a 

autoridade do monarca, chefe da monarquia assim enten-dida, depende imediatamente de Deus ou do vigário de 

Deus sobre a terra.Com relação ao primeiro problema, notemos de iní-

cio que se trata aqui de política, isto é, de uma questão 

na qual a especulação não tem outro objeto senão con-duzir à ação. Não podemos mudar coisa alguma no 

objeto da metafísica. É ela, pois, uma ciência puramente 

especulativa; possuímos algum poder sobre o objeto da  política e se desejamos conhecêlo, é exatamente para 

agir sobre êle. É preciso especular primeiro para escla cer a nossa questão, porque de sua resposta depende a solução correta de qualquer outro problema político, mas tratarseá de uma especulação inteiramente orde-nada à ação. Ora, toda ação se propõe a um certo fim, em vista do qual ela é efetuada. O fim é, pois, a causa 

 verdadeira da ação e é por seu fim que a explicamos. 

Quando muitas ações são ordenadas umas em vista das outras, porque todas são necessárias para atingir um certo 

fim, êste é denominado o “fim ultimo” e é êste fim  

último que as explica todas. Que haja um fim último 

 para todas as atividades políticas, ninguém porá em dú- vida. Cada cidade, cada unidade política, persegue seu 

fim próprio, mas seria absurdo pensar que nenhum fim  

lhes seria comum. Que fim é êste ? Eis o que nos importa 

conhecer, porque é evidentemente êste fim último de 

todas as atividades políticas humanas que servirá de prin-cípio para todas nossas demonstrações.

Tratase, indiscutivelmente, desta vez, de uma socie-dade humana, temporal e universal. H um ana civilita , civilita hw nani generi ,  são outras tantas expressões que designam o povo que forma, ou poderíam formar, todos os homens unidos sob a autoridade de um só chefe. Pois que temos dito que o fim de uma sociedade élhe também 

a causa, podese admitir que, distinta das outras socie-dades, esta persegue um fim distinto, que é sua razão de

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ser. Ocorre nos grupos sociais o mesmo que em nossos membros. A natureza faz o polegar em vista de um certo

 

fim, a mão em vista de outro, o braço de um terceiro 

e nenhum dêstes fins é o mesmo que o do homem por 

inteiro. Igualmente, o indivíduo persegue um certo fim, a família outro, e assim por diante para a aldeia, a cidade,  

o reino até o fim último em vista do qual, graças à na-tureza, que não é senão a sua arte, Deus criou o gênero  

humano em sua totalidade.

 Aqui, Dante se recorda de uma doutrina aristotélica 

bem importante, e, todavia, tantas vezes desconhecida por 

aqueles que se arrogam o direito de citar Aristóteles, e é 

motivo para que se deva admirar a penetração filosófica 

do poeta: é a doutrina pela qual toda essência existe em 

 vista de sua operação. Nenhuma essência criada pode,  pois, ser a intenção última do Criador. Já que a essência 

está aí em vista de sua operação, é, pois, na sua operação  

que importa procurarlhe o fim. Assim posto, o pro-blema consiste em saber se existe um fim próprio do gê-nero humano, isto é, uma operação que, nem o indivíduo, nem a família, nem uma aldeia, nem uma cidade, nem um

 

reino particular possam realizar, mas, que possa ser reali-zado pelo gênero humano inteiro. Qual é, pois, a opera-ção que marca o limite extremo do que pode fazer o 

gênero humano ? É evidentemente aquela que apenas o homem é capaz de realizar: não é ser, nem viver, nem 

sentir, porque outros além do homem podem fazêlo, 

mas, conhecer pelo intelecto. Precisemos: conhecer pelo 

intelecto “possível”, porque, se há abaixo dêle sêres des- providos de entendimento, há, acima dêle, outros que 

são puras inteligências cujo ato de conhecer é ininter-rupto, uma vez que ser, para êles, não é senão conhecer.

 

 Adquirir o conhecimento graças ao intelecto possível é,  pois, a operação que caracteriza o homem enquanto

 

homem, porque ela não pertence a nada que esteja abaixo 

ou acima dêle(2).É uma operação de um gênero particular. O inte-

lecto possível, esta faculdade de conhecer da qual disse-

( 2 )  M o n a r c h ia ,   I , 3 .

  3

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mos que é própria do homem, tem necessidade de ser atualizada pelo intelecto agente; nenhum intelecto indivi-dual, por mais completamente atualizado que seja, não 

conhece tudo o que um intelecto agente pode conhecer. 

Nenhuma das comunidades que discriminamos é capaz 

de fazêlo. A única comunidade humana, onde, uma vez 

atualizados, todos os entendimentos tomados em conjunto 

atingem à totalidade do que o intelecto humano pode 

conhecer, é o gênero humano completo. É mesmo por 

esta razão que o gênero humano existe: toda esta multi-dão de sêres pensantes é necessária como requisito para 

atualizar a possibilidade total do intelecto humano, no 

 princípio pela especulação, em seguida pela ação, que não é senão uma espécie de prolongamento da especula-

ção.Ninguém é mais grego, mais cristão e menos pragma 

tista do que Dante aqui. Agir não é, a seus olhos, senão 

uma extensão de conhecer, e a existência de uma tão 

imensa multidão de homens não se justifica senão em vir-tude de seu número ser necessário para que seja sempre 

completamente atualizada a possibilidade total do enten-dimento humano: pr prium pus hum ani gen eris t taliter

 

accepti, est actuare semper p tentiam intellectus p ssi-

 

bilis(3).   O que um homem ignora, outro o conhece. O 

que não é conhecido num país, o é em outro e todo o 

conhecimento acessível ao homem seria simultaneamente 

conhecido, se todos os intelectos humanos fossem livres 

de darse simultaneamente à especulação, ou de agir sob 

a luz. Mas uma condição seria requerida para que tal 

ideal se realizasse: a paz. É na calma e no repouso que um homem adquire a sabedoria e a prudência, não na 

agitação ou na luta. O mesmo se dá com a humanidade. Sem uma paz tranqüila, é ela incapaz de realizar sua 

obra própria, que se pode dizer quase divina. É, pois, 

manifesto que a paz universal é a condição mais alta de 

nossa beatitude e, se pode dizer, o meio mais excelente 

 para tal fim. Aliás, que prometeram aos pastores os anjos 

do Senhor ? Nem riquezas, nem voluptuosidades, nem 

honrarias, nem uma longa vida, nem a saúde, nem a força,

( 8 )  M o n a r c h ia ,  I , 4 .

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nem mesmo a beleza, mas a paz. ax vo bis,  a paz seja 

convosco, assim saudava os homens aquele que é a sal- vação dos homens. É que o Salvador supremo devia, natu ' ralmente, dirigir aos homens a saudação mais perfeita. 

 Assim, a paz universal é o meio requerido de maneira mais imediata para atingir o fim ao qual tendem todos 

nossos atos. Temos, pois, o direito de exigir que a socie-dade do gênero humano satisfaça a todas as condições 

requeridas para que a paz reine afinal no mundo inteiro (4). A partir dêsse princípio, podese estabelecer por indu-

ção a necessidade de um monarca único reinando sobre  

todos os homens. No indivíduo, todas as faculdades são 

ordenadas em vista da felicidade sob a conduta do inte-

lecto, chefe e guia dos outros. Em cada família, o pai de família representa o mesmo papel; cada aldeia, cada 

reino tem o seu chefe, sem o qual tudo seria entregue  

à desordem e prêsa de incessantes querelas. Se se admite 

que o gênero humano forma também uma sociedade, que 

 persegue um fim determinado e ordenado integralmente 

 para êle, deve ter, também, um chefe próprio que lhe 

imponha leis e o governe, isto é, um monarca ou impera-dor. A monarquia, ou império, é, pois, necessária ao bem 

comum do mundo (5).Dante é rico de provas a respeito deste ponto. Êle 

estabelece que a ordem de cada parte está para a ordem 

total na mesma relação que a parte para o todo; se, pois, a 

ordem de cada parte requer um chefe único, um único  

chefe é igualmente necessário ao conjunto do gênero 

humano. Mas, o gênero humano em si não é a totalidade 

mais universal que existe, porque é incluído no universo,  cujo monarca único é Deus. Assim como os grupos mais 

restritos incluídos no gênero humano são pequenas mo-narquias inclusas numa de maior amplitude, assim o gê-nero humano deve ser uma monarquia inclusa numa ainda 

mais ampla, que é o universo. Para negálo, precisaria 

constatar que tudo esteja submetido a uma ordem, quan-do tudo se passa segundo a vontade da causa primeira do

(4)  M on ar ch ia ,  I, 4.(5)  M on archia ,  I, 5.

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mundo, que é Deus. Ora, isto será evidente, se, ao menos, admitirmos que a vontade divina é perfeita, por que está 

na intenção de Deus que cada coisa traga sua semelhança  

na medida em que a sua natureza o permita. É, pois, tor-

nandose assim tão semelhante a Deus como o possa ser, que o gênero humano atingirá toda a perfeição de que 

seja capaz. Ora, Deus é uno; importa que o gênero 

humano seja uno e o será somente se se unir em em sua 

totalidade sob o único príncipe (6). Assim concedida, a 

sociedade universal será semelhante ao mundo de que 

faz parte e o qual sabemos que Deus, seu chefe supremo, move por inteiro num só idêntico movimento.

Êstes princípios metafísicos possuem conseqüências 

não somente físicas, mas também políticas, e não é sem razão que a paz se apresenta como ligada à unidade de 

comando. Onde há litígio, deve haver julgamento, se se 

quer que, ao menos, o mal tenha remédio. Ora, seja por 

sua própria falta, seja pela de seus súditos, pode haver 

litígio entre dois príncipes, sem que nenhum seja súdito 

do outro. Se se quer evitar uma guerra, o único meio de 

 pôr têrmo ao desacordo é o recurso a um terceiro prín-cipe, de jurisdição mais ampla e que tenha autoridade 

 para arbitrar o conflito.Se êste príncipe é o monarca universal, está justifi-cada nossa conclusão; se não o é, êle mesmo poderá  

entrar em conflito com um outro príncipe cuja autoridade  

seja igual à sua, o que tornará necessário fazer o apêlo a 

uma outra autoridade mais alta ainda, e como não se po-derá ir assim ao infinito, não há dúvida que finalmente, de maneira direta ou indireta, se chegue a um juiz pri-meiro e mais alto, cujo julgamento decida todos os con-

flitos seja em qualquer grau que se produzam. Tal é o monarca ou o imperador. A monarquia universal é, pois, necessária ao mundo como requerida pela paz do gênero  

humano (7).Somos assim conduzidos a uma das noções mais fa-

miliares e mais caras a Dante, a da Justiça. Tomada em si mesma e em sua natureza própria, a justiça é, para êle,

(6)  M onarchia ,  I, 8.(7)  Monarchia ,  I, 10.

  6

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uma essência abstrata, um absoluto, pois que não é sus-ceptível de mais nem de menos, uma linha perfeitamente 

reta e incapaz de inclinarse para a direita ou para a esquerda. Eis aí, dizíamos, o que é em si mesma e na 

 pureza de sua abstração. Todavia, na realidade, essas 

formas puras entram em composição com outras e, parti-cipando em graus diversos de sujeitos concretos, tor-namse susceptíveis de mais ou menos. A justiça é toda 

a justiça, um homem pode ser mais ou menos justo. Ela 

se acha, pois, sob sua forma a mais perfeita onde é menos  

misturada a seu contrário, seja em sua natureza, seja em 

suas operações. Sua beleza é então tal que nenhum astro 

lhe é comparável; dirseia Febe, mirando seu irmão 

através do céu, na púrpura da serenidade matinal. É ne-cessário, ainda para isto, que nada turve a pureza; ne-nhuma dessas contrariedades interiores que, colocando a 

 vontade em luta consigo própria, permite à cupidez de 

fraudar a justiça; nada, ainda mais, destas fraquezas que 

tornam tantas vezes o homem incapaz de fazer justiça 

aos outros, desde que, por mais que o deseje fazer, êle  

não tem o poder para isto. Se assim o é, a justiça reinará 

de maneira mais perfeita no mundo, se êle fôr sujeito a 

um chefe mais poderoso e mais justo. Ora, vamos ver que um chefe único do gênero humano pode somente res-

 ponder a estas condições e é por isto que o consideramos 

necessário à felicidade dos homens.Dante pensa manifestamente aqui em qualquer auto-

ridade suprema que, transcendendo aos interêsses par-ticulares de todos os Estados, seja capaz de arbitrar seus

 

conflitos. Esta noção nos é hoje familiar, bem que não 

se haja encontrado o meio de fazêla passar para os fatos.  A dificuldade principal não éque, para estabelecer êste

 

 poder supremo, seria preciso que cada Estado abando-nasse uma parte de sua própria soberania. Pelo simples 

motivo de não ser único no mundo, nenhum Estado se 

acha, mesmo interiormente, totalmente livre e, ainda que 

lhe possa agradar manter a ficção contrária, poderseia, sem dúvida, obter que reconheça claramente o fato. A di-ficuldade principal é, antes, a de áchar um árbitro cuja jus-

tiça e cuja imparcialidade sejam assaz seguras, para que os

  7

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Estados particulares aceitem de se submeter à sua decisão. Não se trata, aqui, de orgulho nacional, de ambição ou de 

cupidez, mas, muito precisamente, de justiça, porque não 

é justo que um Estado sacrifique o que quer que seja  

de sua própria soberania, se o sacrifício assim consentido 

corre o risco de trazer qualquer injustiça a seus membros. 

É por isto que Dante se esforça em precisar que o sobe-rano único do universo será, certamente, também o mais 

justo. Êle será tal em virtude de sua unicidade mesma,  porque, tendo tudo, nada terá que desejar. Onde seus 

objetos fazem falta, as paixões são desconhecidas. Que 

 podería querer ainda um soberano cuja jurisdição não seria 

limitada por aquela de um outro, como a do rei de Cas tela o é pela do rei de Aragão, mas somente pelo oceano ? Não somente a justiça de um tal príncipe estaria ao abrigo

 

de tôda suspeita, mas, seria igualmente certo o amor que 

sentiría por seus súditos. O que Dante escreve a res- peito lança uma luz muito viva sobre a maneira pela qual concebe a relação entre o monarca universal e o gênero 

humano, porque se vê bem que não pensa em eliminar os 

outros príncipes, mas, não admite menos que o monarca  

supremo esteja mais próximo que os príncipes de seus 

 próprios súditos. Êsse monarca não governa os homens 

 por intermédio de seus príncipes, são os príncipes que 

governam os homens pelo monarca, porque é por êle 

mesmo que os homens são confiados. Devido a estar mais 

 próximo dos homens do que estão os príncipes, o monarca 

é aquele que mais os ama. Quanto a seu poderio, quem 

o pode pôr em dúvida ? Precisaria, para isto, nem mesmo 

compreender o que seu nome significa. Quem possui sozinho o poder supremo, não poderá ter inimigos. Em 

suma: nada falta ao soberano do gênero humano para 

 possuir a justiça, para querer aplicála, para ser capaz de 

impôla(1).

 Vêse como Dante procede e seria tempo perdido 

 pedirlhe detalhes que não lhe interessam. Quais são, ju-rídica e politicamente, as relações entre os príncipes e os 

reis e o monarca ? Êle não o diz e não se pode saber se

( 8 )  M o n a r c h ia ,  I , 1 1 .

§

&■

  8

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as concebe segundo o modo ainda feudal que sobrevivia 

em seu tempo, ou porque não lhe concede nenhum pen-samento. Que se deve entender por “gênero humano” ?' Parece bem que se trata da totalidade dos homens vivendo

 

sobre a terra numa determinada época. Toda a sua argu-mentação implica êste sentido. Todavia, Dante silencia

 

a respeito do problema que alarmava o pensamento de 

Rogério Bacon: como, por meio de quais argumentos ou 

quais pressões, unir os povos da África e da Ásia àqueles 

da Europa sob a autoridade de um mesmo chefe ? A demonstração de Dante é aquela do puro filósofo, 

como a de Bacon fora a de um puro teólogo. Quando 

atinge algum ponto decisivo, nós o vemos parar por um 

instante para verificar a solidez lógica do edifício, depois 

continua como se o problema estivesse definitivamente re-solvido. Tomemos, a títu lo de exemplo, nossa última con-clusão. A justiça universal é a mais garantida, quando o

 

mundo se acha submetido a um homem supremamente 

justo, supremamente desejoso de a aplicar, e supremamente 

 poderoso para o fazer. Nada é mais certo, porque é um 

silogismo da segunda figura, como negação intrínseca, do 

tipo seguinte: todo B é A . C apenas é A, logo C apenas 

é B; o que quer dizer: todo B é A, nada além que C é A,  

logo nada além de C é B. Eis porque o mundo inteiro 

deve obedecer a um só chefe.Seja c|ual fôr a razão pela qual se deseja êste chefe,

 

uma vez la, os homens gozarão afinal de um bem precioso  

entre todos — a liberdade. Os filósofos falam bastante 

nisto: definem mesmo corretamente seu princípio, o 

livro arbítrio, como um “livre juízo sôbre a vontade”, 

mas, sabem sempre o que estas palavras significam ? Um 

juízo é livre quando move inteiramente o desejo, sem 

ser de modo algum movido por êle. Tal é a raiz de nossa 

liberdade e o meio de atingir a felicidade nesta, como na 

outra vida. Pelo livre arbítrio, podemos atingir aqui a 

felicidade humana e na outra vida, a felicidade divina, 

isto é, ser plenamente homens e, em seguida, deuses. O 

melhor estado do gênero humano que se pode conceber é, 

 pois, aquêle em que o homem pode, de maneira mais com- pleta, fazer uso de seu livre arbítrio, isto é, de se possuir

  9

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 plenamente a si próprio, de existir para si próprio e não 

em vista de outrem. A idéia de que um homem é livre  

quando, para empregar a linguagem kantiana, é tratado 

como fim e não meio, é familiar a Dante, mas ela evoca  

 primeiro em seu pensamento estas pequenas repúblicas, oligarquias ou tiranias italianas, a respeito das quais diz 

cie que elas e seus semelhantes “reduzem o gênero humano 

à servidão”. O ardente desejo que sente de liberar os homens dos Estados que os reduzem em servidão, é mani-festamente a razão principal que o incita a reclamar um 

superestado, somente cuja autoridade é capaz de impedir 

os diversos Estados particulares de se servir de seus súdi-tos, em lugar de os servir. Porque tal, precisamente, será 

o papel do monarca supremo de que sente a necessidade.  Encarnação viva da vontade de justiça e cheio de amor 

 por seus súditos, êle queria, somente, que os homens 

fossem bons para se tornarem felizes. Um só regime polí-tico pode alcançar êste fim, aquêle cujo fim é a perfeição  

do homem. É isto o que significa a fórmula: querer que 

os homens existam para si próprios. Não os cidadãos para 

os cônsules, nem os povos para os reis, mas os cônsules para  

os cidadãos e os reis para os seus povos. Havíamos esque-cido o verdadeiro sentido da palavra “ministro” que quer 

dizer “servidor”; é por isto que, num regime em que o 

govêrno se serve do povo em lugar de servilo, o homem  

de bem é um mau cidadão. Sob um monarca capaz de pôr têrmo a esta desordem, o homem de bem e o bom cidadão  

se confundem, já que seu govêrno não tem outro objetivo 

senão fazer homens de bem. Neste sentido, como é o 

chefe deles, o monarca é o ministro de todos os homens e 

é por isto que a monarquia é necessária à sua felicidade(9).

Se Dante não se considera obrigado a propor uma 

constituição universal ou qualquer espécie de Carta das 

Nações Unidas, indica, pelo menos, em grandes pincela-das, como deveríam ser as relações entre o monarca e os 

outros príncipes e, por conseguinte, entre êle e os respecti- vos povos. A sociedade universal que prevê, será pluralista, no sentido em que a mesma se comporá de povos diversos

(9) Honarchia,  I, 12.

 

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e submetidos a autoridades diversas e seguindo constitui-ções e costumes diferentes. A união que deseja o poeta 

seria, pois, o contrário de uma unificação. Cada nação, cada reino, cada cidade se distingue dos demais por carac-

teres próprios, que exigem regulamentações diferentes, por-que a lei é a regra que dirige a vida. Não se trata aqui 

simplesmente de costumes sem outro fundamento além da 

antigüidade e a força da tradição. Tais costumes possuem 

causas na natureza das coisas. Os citas não vivem como 

os hindus, porque vivem em climas diferentes. Seja qual fôr seu habitat, porém, todos os homens são homens e 

existem necessidades comuns ao gênero humano por intei-ro. É dêles que se encarrega o monarca e é a eles que deve 

satisfazer estabelecendo uma lei comum em vista da paz. 

Êle a estabelece, pois, e a transmite aos reis ou príncipes, a 

quem cabe a tarefa de aplicála, como a razão teórica for-nece à razão prática os princípios que esta última deve 

 pôr em execução em cada caso particular. Um único o 

 pode fazer, e importa que o faça, se se quer evitar toda 

confusão. Assim reinará no mundo a unidade, atributo 

do ser que precede o bem. Mais se distancia da unidade, mais se distancia do ser e, portanto, do bem. Onde, porém, 

reina a unidade, reina também o bem. A concórdia é 

um bem porque é uma unidade. Não sendo, de sua natu-reza, senão a obra uniforme de muitas vontades, é a uni-dade mesma destas vontades que a constitui, como esta 

unidade se estabelecería sem a unidade de um único chefe,  cuja vontade domine e regule a todos os outros ? Eis 

 porque o mundo tem necessidade de um príncipe único;  só êle é capaz de fazer reinar aí a concórdia e a paz(10).

Se espera esta felicidade do futuro, é que Dante  

acredita que o mundo já gozou dela ao menos uma 

 vez no passado, quando Roma obedecia a Augusto e o 

mundo a Roma. Tal a razão que fêz o mundo, naquele 

século, ter conhecido a paz. O temporal atingia, então, sua plenitude, pois, nada do que exige a felicidade hu-mana ficará insatisfeito. Tal foi, também, o tempo que 

o Filho de Deus quis esperar para se fazer homem para

( 1 0 )  M o n a r c h ia ,   I , 1 5 .

 

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salvar o homem. Sem dúvida, ele não apenas o esperou, 

mas o quis e preparou(n ). Quem acreditaria que tal 

encontro fosse efeito do acaso ? Ninguém, mas então é 

necessário ir mais longe, porque não se trata de um racio-

cínio, mas de um fato, e, por assim dizer, de uma expe-

riência digna de memória. Tudo se passa como se Roma 

fora predestinada pelo próprio Deus para o império do 

mundo e é isto que Dante vai demonstrar.

 Tentamos primeiro ver o problema tal como êle  próprio o vê. O império universal não é uma quimera,  porque já existiu, mas fo i arruinado por uma espécie de 

insurreição dos povos e este fato é um daqueles sobre os quais Dante durante mais tempo meditou. Qual po-

dería ter sido a causa disto ? Primeiramente: como acon-teceu que o povo romano haja obtido outrora, quase 

sem resistência, o império do mundo ? Antes de haver maduramente refletido sobre isto, Dante pensava que tal 

se dera pela força das armas, mas sabe presentemente 

que êsse triunfo foi obra da Providência. Estamos aqui 

no coração da questão, porque, se o império romano não 

se devera senão à violência, seu triunfo no passado não criaria nenhum título para o futuro, mas, se foi obra da 

Providência, êste fato lhe confere um direito.

Ora, é êste direito que Dante se propõe a justificar,  pois, em caso contrário, a desordem política do mundo  permanecerá sem remédio. Falase de uma rebelião dos  povos contra o império, mas, tratase realmente de uma 

rebelião dos príncipes e dos reis, cuja astúcia mobilizou 

os povos contra o império sem outro objetivo que de  volver a sujeitálos(1112). O imperador é aqui o único pro-tetor dos povos contra seus príncipes, como os tzares  

 passam como protetores, contra os boiardos, de seu pró-

 prio povo. Tal como Dante a concebe, a restauração do Império terá, pois, por efeito, liberar o gênero humano do 

jugo que os reis e os príncipes fazem pesar sobre êle. Em linguagem moderna, dirseia que o monarca univer

(11)  M on arc hia ,  I, 16.(12) “Ad dirumpendum vincula ignorantiae Regum atque Principum

taliun i, ad ostendendum genus liumanum liberum a jugo ipsorum”. . . M on arc hia ,  II, 1.

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sai é, para os povos, o único recurso concebível contra o totalitarismo dos Estados particulares. Cumpre, ainda, 

 poder mostrar que a autoridade do monarca é legítima, ou, em outras palavras, que é de direito.

Mas, onde está o direito ? Inicialmente, no pensa-mento de Deus, e como tudo que está no pensamento de Deus é Deus, e que Deus se quer antes de tudo êle próprio, seguese daí que, enquanto Deus, o direito é querido por Deus. Mais ainda: pois que em Deus o querer e o que-rido, o sujeito e o objeto da vontade são uma só e mesma coisa, seguese ainda daí que a vontade divina é o próprio  

direito. Donde resulta, afinal, que, nas coisas, o direito não é senão uma semelhança da vontade de Deus. Em 

conseqüência: o que nas coisas não se conforma com a  vontade divina, não podería ser o Direito, se bem que se  perguntar se o que se faz é conforme ao direito, é per-guntar, em outros termos, se isto que se faz está em con-formidade com a vontade de Deus. Coloquemos, pois, em princípio, que, o que Deus quer para a sociedade dos  homens, é exatamente o direito. É verdade que, tomada nela mesma, a vontade de Deus nos permanece desco-nhecida, mas, se nos manifesta por meio de sinais, exata-

mente, aliás, como manifestamos a nossa, e é pois, a par-tir destes sinais, que a podemos determinar. Todos estes sinais designam o povo romano.

O primeiro é a nobreza dêste povo, porque é ao  povo mais nobre que pertence por direito o império do mundo, se é verdade que a honra deve reverter ao mérito.  É necessário demorarse sobre as provas da nobreza ro-mana que Dante nos traz ? Tudo o que disse a respeito 

 Virgílio, na E e da, lhe parece estabelecêlo sem contes-

tação, como se qualquer francês, qualquer inglês ou 

qualquer alemão empreendesse provocar, compilando uma coleção de bravatas nacionais tiradas dos melhores auto-res, que seu país tem direito ao império universal, o que  não seria difícil e seria também pouco convincente. Nem  

tudo é vão nos testemunhos que um povo dá de si pró- prio, mas, para fazer dêles, como Dante, a menor de um 

silogismo, é necessário ter uma convicção na qual a ló-gica tem pouca parte. Compreendese, sem esforço, o

1

113

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ilustre posta, quando escreve, como sendo óbvio, que La  vínia, nascida na Itália, era do país mais nobre da Euro- pa^13) mas a Grécia, todavia, não possuía menores títulos a apresentar e Dante não faz aqui senão afirmar o que 

lhe competiría demonstrar.Seria o caso de não se retardar também na prova 

seguinte, se ela não colocasse um curioso problema. Dante 

intenta, com efeito, estabelecer que o próprio Deus con-firma, por milagres, a vocação imperial de Roma. Um mi-lagre, diz Santo Tomás, é o que Deus faz fora da ordem  

comum estabelecida na natureza, ( 14) maior incontestável na verdade mas a que se segue mais de uma vez, uma 

menor muito menos segura, porque significa o seguinte: 

ora, sabemos graças aos ilustres escritores da Antigüidade, que Deus fêz para Roma muitos milages. Sob Numa Pom 

 pílio, um escudo cai do céu na cidade escolhida pela Pro- vidência para dominar mais tarde o mundo: T i to Lívio 

o afirma e Lucano o confirma, quando os gauleses ata-cam Roma, uma pata, “que nunca se vira antes”, salva a 

cidade dando alarma; testemunho de Tito Lívio, ainda, confirmado por Virgílio, desta vez. Passemos sobre a sa-raivada milagrosa que salvou Roma de Aníbal, sobre a 

evasão não menos miraculosa de Clélia e assim por diante. O que é verdadeiramente interessante é a atitude geral de Dante em presença do que considera como fatos. 

 A o invés de ver nisto tantas outras intervenções demo-níacas na história de Roma pagã, não duvida um só ins-tante que não sejam milagres divinos, incluídos no plano 

geral da Providência, para assegurar o bem do mundo.  Assim, era conveniente agir da parte daquele que tudo 

submeteu, desde a eternidade, à beleza da ordem; Êle que, tornado visível, devia fazer outros milagres para revelar 

o invisível, quis, sendo ainda invisível, fazer êstes aqui em favor do visível ( 15). Houve, pois, segundo Dante,

(13) “Quae ultima uxor (sc. Laviania) de Ital ia fuit, Europae na-tione nobilissima”. De Monarchia,  II, 3.

(14)  Tomás  de  Aquino, Contra G entües,  III, 101. Alegado por Dante,De Monarchia   II, 4.

(15) “Sic Illum prorsus operari decebat, qui cuncta sub ordinispulchritudine ab aeterno providit; ut qui visibilis erat miracula proinvisibilibus ostensurus, Idem invisibilis pro visibilibus illa ostenderet.”De  Monarchia ,  II, 5.

 

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milagres autênticos feitos por Deus para a Roma paga, exatamente como Deus os fêz para o povo de Israel. Encontrarseiam, na Idade Média, poucos teólogos para sustentar a mesma tese, que não se desdobra menos aqui 

em sua perfeita pureza (1°).O império tem, aliás, por onde se justificar a si pró-

 prio porque, submetendo o mundo, o povo romano nada teve em vista senão garantir o bem comum e fazer rei-nar o direito. Seus atos mostram suficientemente que tal foi, com efeito, sua intenção: “Repudiando toda cupidez, que é sempre o contrário ao interesse público, desejando a paz universal e a liberdade, êste povo santo, pio e glo-rioso parece ter desprezado seus próprios interesses para garantir o interesse público e a salvação do gênero hu-mano. É justo pois escrever: a fonte donde promana o Império Romano é a piedade” (17). Estamos, aqui, bem longe dum Santo Agostinho, recolhendo com o maior cuidado entre os historiadores da Antigüidade, as denún-cias mais cruéis da decadência romana. Ao contrário, Dante não se recorda aqui senão dos louvores dados à república, como se Cincinato, Público Décio e Catão 

fossem suficientes para justificar as pretensões de Roma ao império universal. Porque só a conclusão lhe inte-ressa e êle faz flecha com tôdas as madeiras para atingila: “Submetendo o mundo a si, o povo romano não se pro-

 pusera outro fim senão o do direito; logo, quando subme-teu a si o mundo, o povo romano o fêz em seu melhor direito, e, por conseguinte, é dentro de seu melhor direito que se atribuiu a dignidade de império” (10******1718). Resumindo,

(10) O fato de que ninguém pode ser salvo sem a fé, mesmo seêle não pôde tê-la porque jamais ouviu falar em Cristo, é algo que arazão sòzinha não pode chegar a achar justo, bem que o possa com ajudada fé (  M on arc hia ,  II, 8). Sem a palavra de São Pau lo: “Impossibile estsine fide placere Deo” (Heb.  II, o), Dante não hesitaria em colocar nocéu um grande número de romanos. Observamos, ademais, que os êxitosmilitares de Roma lhe pareciam um verdadeiro “juízo de Deus” (Mo- narchia,  II, 9). Dante vê a história universal como um grande torneiono qual se enfrentam sucessivamente os países candidatos ao império: Assíria, Egito, Pérsia, Macedônia, que falharam, e Roma, enfim, que oconseguiu. Êle se encarrega mesmo de estabelecer sua tese para o casode que alguém quisesse interpretar esta história como a de um “duelo judiciário” (  M onarc hia ,  II, 10). Os argumentos, que alguns juristas presunçosos dirigem contra o império, lhe parecem refutados por êste único fato.

(17)  M onarc hia ,  II, 0.(18)  M onarc hia ,  II, 6,

 

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 porque Deus o quis, assim ficou disposta a natureza que 

não é outra senão arte de Deus. Não podia ser de ma-neira diferente, porque se o império universal é exigido

 

 para o bem dos homens, a natureza deve trabalhar para 

o estabelecer e, por conseguinte, preparar os meios para isto. É esta a razão pela qual a vemos produzir povos 

feitos para obedecer e outros feitos para mandar. Como 

não poderia ela ter produzido um para exercer o impé-rio universal, exigido pelo bem comum do gênero huma-no ? Não sabemos, pois, que houve um e se não se

 

trata mais senão de saber onde êle está; tudo o que pre-cede assegura que está em Roma. O domínio do povo 

romano sobre o universo, sendo querido pela natureza, 

aparece, mais uma vez, conforme o direito ( 19).Semelhante tese não podia satisfazer nem aos legistas 

franceses, que não admitiam absolutamente que a França 

fosse incluída no império, nem aos teólogos, só preocupa-dos em garantir a autoridade do papa sobre o império.

 

Pois, é exatamente isto que Dante põe aqui em debate. 

Se Roma deve à natureza e a Deus o ter conquistado 

o império do mundo, não se vê bem por qual direito o 

 papa teria jurisdição sobre o império. De direito natu-ral como de direito divino, ela existia antes dos papas, 

e tão bem que, antes mesmo de haver tentado a demons-tração dialética, Dante já pode afirmar que, de fato, o

 

império depende diretamente de Deus, apenas.Êle não se mostra menos indignado de ver cristãos,

 

clérigos e defensores da fé cristã combater os direitos 

do imperador. A miséria dos pobres de Cristo, por todos 

os lados oprimidos pelos príncipes, deixálosia insensí-

 veis ? Mas, o próprio patrimônio da Igreja, quotidiana 

mente pilhado e confiscado pelos mesmos tiranos, deveria 

ao menos interessarlhes ! Estas pessoas pretendem que-rer a justiça e recusam o chefe que, só êle, a pode asse-gurar.

Êste empobrecimento da Igreja não se faz, aliás, sem 

um juízo de Deus, pois ela não coloca os recursos de seu 

 patrimônio à disposição dos pobres aos quais pertence e, 

se bem que lhe venha do império, não lhe mostra qualquer(  1 9 )  M onarch ia ,  I I , 7 .

 

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gratidão. Que estas riquezas voltem, pois, para a sua ori-gem ! Bem doadas, mas mal possuídas, vieram por bem, que retornem por m a l! Que importa a tais pastores ?• Em que lhes importa que os bens da Igreja se percam,  

se são para enriquecer os seus ? Eis, porém, coisas dema-siadas sobre êste ponto; aguardemos o socorro de Deus e 

concluamos nossas considerações. Nada, aliás, é mais sim- ples, ao menos se falamos a cristãos, porque é certo que ao obedecer livremente a um édito, todo homem atesta 

que reconhece a justiça. Ora, Cristo quis nascer no impé-rio de Augusto e se submeter ao édito de recenseamento 

 proclamado pelo imperador. Êle reconhece, ao mesmo tempo, a justiça do édito e a autoridade do imperador. 

Digamos antes que êste decreto foi baixado por Deus, por meio de César. Nada é mais certo: a legitimidade da autoridade imperial é aqui confirmada pela do próprio  Deus(20). Esta razão não vale senão para os cristãos, mas não se poderá ser cristão e recusála.

Dito isto, resta um só concorrente que possa disputar com o imperador o título de senhor do mundo temporal: o 

 papa. Cumpre escolher entre dois grandes luzeiros, mas qual se deve escolher ? O problema é tanto mais difí-

cil que, num e noutro caso, Roma permanece o único candidato: duma parte o

Romanus ontifex,  doutra parte o Romanus rinceps.  Qualquer deles achase subordinado 

ao outro quanto ao temporal ? Volvamos ao princípio que já nos serviu: já que a 

natureza é a arte de Deus, Deus não quer o que contradiz  

a intenção da natureza. Quanto ao que não contradiz esta intenção, Deus pode, ou amálo, ou não, sem no entanto o odiar; mas, o que a contradiz, Deus não pode 

senão odiar, e o que está de acordo com ela, Êle não pode senão amar. É, pois, manifesto que Deus quer a finalidade 

da natureza. Se Êle a quer, Êle quer também os meios 

exigidos em vista desta finalidade e a eliminação de tudo

(20)  Monarchia,  II, 12. Dante pretende mesmo provar (II, 13)que, se a autoridade do imperador, sob o qual Jesus-Cristo sofreu amorte para nos salvar, não fôsse legítima, o autor do castigo não tendojurisdição regular, o suplício de Cristo, juridicamente falando, teriasido uma injustiça, não uma pena. O pecado de Adão não teria, pois,sido “punido” em Cristo e a obra da Redenção não teria sido consu

mada.

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quanto possa impedir a natureza de alcançála. De outro 

modo, Êle não querería isto que quer, o que é absurdo(2i). Tratase, pois, para nós de saber qual é a intenção da natu-reza e o problema seria simples se não fosse obscurecido 

 pelas paixões políticas. Porque há casos em que a ignorân-cia provoca conflitos, mas outros há em que o conflito 

 provoca a ignorância e êste é um deles. A vontade pre-cede aqui a razão, em lugar de a seguir, e a maioria se 

comporta como cegos que desconhecem sua própria ce-gueira. Ê porque nós os vemos, sair de seu território sem 

o saber, penetrar sobre os alheios sem se aperceberem disto, e uma vez lá, não mais compreender nem ser com-

 preendido, o que por vezes provoca a cólera dos demais, ou então seu desprezo, ou, algumas vêzes, seu riso.Os adversários da verdade que procuramos são de 

três espécies. Em primeiro lugar, o soberano pontífice, o vigário de Nosso Senhor Jesus Cristo e sucessor de Pedro, “a quem não devemos tudo que devemos a Cristo, mas tudo o que devemos a Pedro”(22). Observese cui-dadosamente esta fórmula, que Dante escreve como que de passagem, mas que não deixa de enfrentar, por isto, 

o nó do problema teológico. Se o papa é o vigário de Cristo sôbre a "terra, é lícito sustentar, como o fazem tantos teólogos, que nós lhe devemos tudo o que devemos a Cristo, o que tornaria impossível recusarlhe um poder de jurisdição sôbre o temporal. Dante acaba, todavia, de recusar esta conseqüência. Já que Pedro é o primeiro em data dos vigários de Cristo, os sucessores de Pedro não possuem direito a nenhum outro poder além do que 

Cristo outrora investiu ao primeiro de seus vigários. Um zêlo mal avisado da Igreja e do poder das chaves é, sem dúvida mais do que o orgulho o que desvia aqui os 

 papas e seus partidários. Êles não se enganam igualmente 

menos, como se verá. Vêem em seguida os que, cegos 

 pela cupidez, negam a independência temporal do impé-rio sem outra razão além de seu amor ao lucro. Dizemse filhos da Igreja, mas seu pai é o diabo. O terceiro grupo 

é aquele dos decretalistas, aos quais Dante não deseja

(21)  M onar ch ia ,  III, 2.(22) “cui non quidquid Christo sed quidquid Petro debem us ...”

(  M on arc hia ,  III, 3).

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bem algum. Nada tem contra as decretais em si mes-mas (23), cuja autoridade dentro da Igreja considera in-discutível. Mas, tais pessoas fazem coisa completamente, diversa. Ignorantes completos em teologia como em fi-losofia, se apoiam unicamente sôbre as decretais para aten-tar contra os direitos do império. Cometem muitos outros 

atentados ainda, pois Dante assegura ouvir um deles sus-tentar que as tradições da Igreja são o fundamento da fé,  como se não houvesse um salvador dos homens, antes de 

haver tradições da Ig re ja ! Antes da Igreja, há a Escri-tura Santa; com a Igreja há concílios ecumênicos, nos 

quais ninguém duvida de que Cristo tenha tido parte, êle 

que prometera aos discípulos que estaria com êles até a consumação dos séculos; depois da Igreja, há estas tra-dições da Igreja que se chamam as decretais, e que mere-cem seguramente o respeito devido à autoridade da Santa Sé, mas que não tomam a dianteira em nada à Escritura. Para resolver o problema em questão, é, pois, à Escritura 

e não às decretais que devemos nos dirigir, e como seria   vao procurar apoio naqueles que uma cupidez cega se 

levanta contra a razão, não teremos controvérsia senão 

com aqueles cuja ignorância desvia seu zelo relativamente à Igreja. É dizer que um filho da Igreja, mesmo comba-tendo, observará a piedade filial que convém.

Seus argumentos são por sinal curiosos. Dizem pri-meiramente que, segundo a narração do Gênesis, Deus criou dois grandes luzeiros, um dos quais, o sol, é todavia  maior do que o outro, a lua, que recebe a sua luz. Inter- pretando esta narrativa no sentido alegórico, os luzeiros 

significam, então, os dois governos, o espiritual e o tempo-ral. Assim, dizem êles, a única luz da lua é a que êste astro recebe do sol, igualmente o govêrno temporal não 

goza de outra autoridade do que a recebida do govêrno  

espiritual.É abusar do sentido alegórico. Nem tudo o que diz 

a Escritura comporta semelhante sentido e, mesmo onde o comporta, devese ter a garantia de que o sentido ale-górico adotado é exatamente aquêle que o texto comporta.

(23) Uma Decretai é uma resposta dada por um papa em forma decarta , à questão posta. Esta resposta vale para todos os casos domesmo gênero.

 

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 Alguns se enganam a respeito por simples ignorância, o 

que é perdoável, mas não faltam pessoas para tirar alegò 

ricamente da Escritura tudo o que desejam encontrar nela, 

e que nela colocam para justificar seus interesses ou suas 

 paixões. São tiranos, que devemos tratar como tais, crimi-nosos que falsificam a intenção do Espírito Santo.Seja o que fôr, a comparação que se estabelece aqui

 

não tem sentido. A autoridade espiritual e autoridade  

temporal não podem pertencer senão ao homem, que não 

estava ainda criado quando Deus criou o Sol e a Lua. 

Sustentar que haja criado estas duas autoridades desde 

o quarto dia, c querer que os acidentes hajam sido criados 

antes de seu sujeito, o que é absurdo. Além disto, sem 

o pecado original o homem não teria necessidade de nenhum govêrno, nem temporal, nem espiritual. E quem 

afirmaria que, não pecando Adão, não haveria nem Sol  nem Lua ? Não havia ainda o homem no quarto dia, e o

 

sol e a lua não deixariam de estar aí, mesmo que o pecado 

não fôsse possível.

Tentemos, todavia, dar a esta comparação o sentido 

mais favorável que ela possa receber. É de qualquer 

modo certo que, mesmo se recebe de empréstimo a sua 

luz, a Lua não deve ao Sol sua existência. Ademais, êle não lhe empresta toda a sua luz; ao menos Dante está 

certo disto, por que chama a atenção para o fato de que, 

mesmo durante um eclipse, a Lua permanece visível, o que 

 prova que não deixa de ter alguma luz própria. Verda-deiro é que a luz que recebe do Sol lhe permite agir

 

melhor e mais enèrgicamente. O mesmo acontece no que 

concerne às duas autoridades. Não é ao govêrno espi-ritual que o govêrno temporal deve a sua existência; não 

deve, mesmo, seu poder próprio, pois como a Lua tem a 

sua luz, êle tem a dêle; mas, o imperador, ou monarca 

universal, deve agir melhor e mais eficazmente à luz da 

graça, já que no céu e sobre a terra, influi sobre êle a 

bênção do soberano pontífice. O silogismo de nossos 

adversários é incorreto, porque do fato de receber a lua 

alu z

  do Sol, concluem que o imperador recebe do sobe-rano pontífice a

aut r dade.

  Não; êle recebe somente 

uma luz que o ajuda espiritualmente no exercício de sua

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autoridade (24). Notemos que Dante achase, aqui, no co-

ração de seu problema. Toda a questão parece consistir 

realmente em saber se a fonte da luz pode não ser, aô 

mesmo tempo, a fonte da autoridade. Aos defensores do primado temporal do papa não 

faltam outros documentos igualmente tirados da Escritura. 

Dante discuteos um após o outro, inspirandose no mesmo 

 princípio e sempre explicitando, como um bom lógico, o gênero de sofisma latente em cada silogismo. No fundo, 

a maioria raciocina assim: Deus é o soberano do tempo-ral como do espiritual; ora, o soberano pontífice é o vigá-

rio de Deus; logo, o soberano pontífice é o senhor do 

temporal como do espiritual, o que seria muito bom se o 

 vigário de Deus fosse Deus. Nenhum vigário, seja divino 

seja humano, é igual àquele de quem é o vigário. A prova 

está em que pode receber dêle tôda a autoridade, mas 

não a pode dar por sua vez. Ajuntemos que não pode 

nunca tudo o que pode seu chefe, como se vê, de ma-

neira evidente, no caso do papa, cuja autoridade vem de 

Deus, não comporta o poder de fazer milagres nem o de 

criar. Nenhum chefe pode se fazer substituir por um  vigário que seja seu igual e, a própria idéia é absurda, 

 porque um vigário nada pode senão em virtude do poder 

de seu chefe (25).Cumpre, pois, distinguir com cuidado, segundo os 

casos. Cristo disse a Pedro: “Tudo que ligares na terra 

será ligado no céu e tudo o que desligares na terra será 

desligado no céu.” O fato é incontestável, mas resta 

saber o que “tudo” quer dizer. Ora, vêse isto pela se-quência: “Eu te darei as chaves do reino dos céus”. Em 

resumo: Pedro terá poder de fazer “tudo” o que releva  

de seu ofício e, mesmo aí, não pode fazer não importa  

o que. Para não tomar senão um exemplo, não poderá 

dissolver um casamento regularmente consumado, nem 

tornar a casar aquela cujo primeiro marido é vivo. O 

 poder das chaves não foi dado a Pedro de modo abso-luto, mas relativamente à sua função pontificial. Não se 

 pode deduzir disto que o sucessor de Pedro tenha o di-

(24)  M on ar chict,  III, 4.(25)  M on arc hia ,  III, 7.

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reito de estabelecer ou revogar as leis do Império, porque, assim como se verá, o poder de o fazer não tem qualquer 

relação com o poder das chaves (26).

O mesmo acontece com o famoso argumento dos 

“dois gládios”(27), a respeito do qual se diz que, como Pedro os tinha ambos e que um representa o poder tem- poral e o outro o poder espiritual, o sucessor de Pedro 

deve possuir um e outro. Mas, de onde se tira que os 

dois gládios de Pedro hajam representado algum dia os 

dois poderes ? Primeiramente: donde se tira que Pedro 

tinha dois gládios ? Lêse no Evangelho de Lucas: “Mas, êles disseram: Senhor eis aqui duas espadas; e êle lhes 

disse: é o bastante”; mas, Êle acabara de dizer um pouco 

antes “e aquele que o não tem, vende seu manto e com- pra um gládio” (28) . Um gládio para cada um, isto não 

faz dois gládios, mas doze. Assim, pois, Jesus aconselha 

antes aos apóstolos ter cada qual um gládio, mas, quando 

Pedro lhe responde: nós temos dois ao todo, Jesus lhes 

diz simplesmente: se cada um não pode ter um, dois 

bastarão. Pedro, aliás, não era homem de procurar alego-rias; empregava as palavras em seu sentido literal e tôdas  

suas respostas ao Senhor o testemunham(29). Fiquemos 

seguros disto, os gládios de que falava eram literalmente  

gládios e não a autoridade do papa ou do imperador.Resta, bem entendido, a doação de Roma ao Papa 

Silvestre, pelo imperador Constantino. Dante não lhe 

contesta abertamente a autenticidade. Não nega direta-mente que Silvestre tenha recebido de Constantino a doa-ção de Roma, sede da ígreja, com muitos outras digni 

dades imperiais, mas contesta as conseqüências que se pre-tendem tirar dêsse fato.

Não se trata mais aqui da Escritura, apenas de um simples acontecimento da história romana e de raciocí-nios fundados sobre estas conclusões: ninguém pode ter, a justo título, o que é da Igreja senão se o tem da Igreja;  ora, o poder romano pertence à Igreja, logo, ninguém

(26)  M onar ch ia ,  III, 8.(27) Luc.  22, 88.(28) Luc..  22, 36.(29)  M onarchia ,  III, 9.

 

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mesma maneira; a usurpação do direito não cria jamais 

o direito (31).Mais sutil é o argumento que se pretende tirar unica-

mente da razão. Apoiandose em Aristóteles, os partidá-rios do primado temporal do papa argumentam assim: 

tudo o que se inclui num único gênero depende de um 

termo único, medida do que pertence a esse gênero. Ora, o soberano pontífice e o imperador são homens; êles

 

devem, pois, como incluídos no gênero humano, depender 

de um só e mesmo homem; mas, como o soberano pon-tífice não podería depender de outro homem, importa,  pois, que o imperador dependa dêle como todos os de-mais.

 Aqui, ainda, Dante desmascara um sofisma no silo-

gismo, porque nêle se passa da substância para o acidente 

 para atribuir ao acidente o que não é verdadeiro senão 

da substância. É verdade que todos os homens, enquanto 

homens, devam se reduzir a um só homem, mas, enga-namse ao concluir que êste homem deva ser o papa, por-que ser papa é acidental ao homem, como afinal é, aliás, acidental ao homem ser imperador, senhor ou pai. Um

 

homem é homem em virtude de sua forma substancial; 

êle não é papa, imperador, senhor ou pai senão em virtude 

de alguma forma acidental, porque êle permanecería homem, mesmo se não fôsse nada disto. Exatamente, o 

 papa e o imperador não são tais coisas senão em virtude 

de certas relações. O papa é papa em virtude de sua pa-ternidade espiritual, como o imperador é imperador em

 

 virtude de seu poder temporal. Não caem sob nenhum  

gênero comum; como imperador e como papa não se 

reduzem a nenhuma unidade.Para dizer a verdade, estamos aqui em presença de

 

três ordens distintas, nenhuma das quais se reduz à outra. Enquanto que tais, todos os homens devem se reduzir a 

um só, que é por assim dizer sua medida, sua Idéia. Êste 

homem, que é eminentemente homem, é “o melhor”. Enquanto homens, o papa e o imperador se medem pois,

 

um e outro por êste padrão de excelência humana que 

nós denominamos o homem de bem. É evidente, mesmo

( 3 1 )  M onarchia ,  I I I , 1 1 .

  4

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que os consideremos um como papa e o outro como 

imperador. Do ponto de vista dessas relações, um não 

 pode ser subalterno ao outro, porque ser imperador não ' é ser mais papa do que um outro homem, e ser papa não

 

é ser mais imperador. De fato, não há gênero comum aos dois, pois não se diz que um imperador é um papa ou 

inversamente. O único meio de unilos consiste em redu-zilos a um terceiro termo, e como nada possuem de 

comum, para colocar um e outro numa relação de supe-rioridade, importanos achar um termo mais elevado ainda, do qual estas duas relações de superioridade derivariam. Em suma, o papa e o imperador se medem por um certo  

termo enquanto homens e por outro termo enquanto papa 

e imperador (32). Êste último termo, ápice de tudo quanto 

existe, é Deus. Atingimos assim a resposta à última das três questões 

colocadas: na ordem de relações a que cada um preside,  o papa e o imperador dependem unicamente de Deus.

É claro que a autoridade da Igreja não pode ser causa da autoridade imperial. Havia um império uni-

 versal e um imperador antes que houvesse uma Igreja, 

e como não é à Igreja que êle deve sua existência, não 

é também dela que tem a sua autoridade. Isto se demons-tra em forma de silogismo: “Seja A a Igreja, B o império, C a autoridade imperial. Se, não existindo A, C pertence

 

a B, A não pode ser a causa de que C pertença a B.  A anterioridade da causa relativamente ao efeito é mani-festamente necessária, sobretudo na ordem da causa efi-ciente de que é questão aqui’^ 33).

Quanto mais pensa nisto, menos Dante vê por qual 

fresta, por estreita que seja, o poder de conferir ao impe-rador a sua autoridade temporal teria podido penetrar 

na Igreja. Viria de Deus ? Isto não podería ser senão 

em virtude da lei natural ou da lei divina. Ora, não é em 

 virtude da lei natural, pois a Igreja não sendo um efeito 

da natureza, mas de Deus, a lei natural não pode lhe con-fe rir nenhum poder. E também não é em virtude da lei divina, porque esta lei vem integralmente contida nos dois

( 8 2 )  M onarchia ,  I I I , 1 2 .

( 3 8 )  M onarch ia ,  I I I . 1 8 .

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Testamentos, nenhum dos quais confia qualquer cargo 

temporal à Igreja. Teria êste poder dela mesma ? Mas, se o não tem, como podería darse a si própria ? É ade-mais certo, como já o vimos, que ela não podería ter 

recebido do imperador. Restaria, como última possibili-dade, que tenha a Igreja êste poder do consentimento 

universal dos povos, mas os asiáticos, os africanos e 

mesmo a maioria dos europeus se recusam a reconhecêlo. Se ela não o tem de Deus, nem dela própria, nem do 

imperador, nem do consentimento universal dos povos, não se vê absolutamente de onde ela podería têlo (34). Seria isto, aliás, contrário à sua natureza, porque toda a 

natureza se define principalmente por sua forma; ora, a forma da Igreja não é outra senão a vida de Cristo to-mada em suas palavras e em seus atos, e se sabe em 

C[ue palavra se resume aqui a sua vida: “Meu reino não 

e deste mundo”. Bem entendido: isto não cjuer dizer que Cristo, que é Deus, não seja o Senhor deste reino; isto quer dizer simplesmente, que, como modelo divino 

da Igreja, Cristo não assume a responsabilidade deste 

mundo. É como Êle é a forma da Igreja, esta não podería 

assumir esta responsabilidade sem contradizer a sua na-tureza (35). A Igreja não só não assumiu esta responsabi-lidade, como lhe seria impossível recebêla.

Se o imperador não tem a sua autoridade da Igreja, não a pode ter senão de Deus. Ora, há duas razões po-sitivas para admitir esta conclusão. De todos os sêres, o 

homem é o único que está no meio entre os corruptíveis 

e os incorruptíveis e é esta a razão que leva os filósofos  

a comparálo ao horizonte que marca o limite comum aos dois hemisférios. Corruptível em seu corpo, o homem é 

incorruptível em sua alma. É o mesmo que dizer que a 

sua natureza é dupla, e como toda natureza tem seu fim  

 próprio, importa necessariamente que o homem tenha 

dois fins últimos, um que é o de seu corpo, outro que é o de sua alma. O de seu corpo é a felicidade nesta vida, da qual o Paraíso Terrestre é a imagem; a de sua alma 

é a felicidade da vida eterna, que consiste em ver Deus

(34)  M on arc hia ,  III, 14.(35)  M onarc hia ,  III, 15.

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face a face no Paraíso Celeste e que o homem não poderá  

atingir por suas próprias forças.

Estas duas beatitudes, sendo fins diferentes, não as 

 podemos atingir senão por meios diferentes. Atingimos 

a primeira sob a direção da filosofia, contanto que siga-mos seus ensinamentos praticando as virtudes intelectuais 

e morais. Atingimos a segunda sob a direção da Revelação, 

que transcende a razão humana, contanto que sigamos seus 

ensinamentos praticando as virtudes teologais, a Fé, a 

Esperança e a Caridade. Há, pois, aí como que duas 

conclusões distintas às quais conduzem meiostêrmos 

igualmente distintos. De uma parte, a beatitude temporal, que nos é dada a conhecer pela razão, que os filósofos 

nos desvendaram por inteiro (quae per phil s ph s t ta

 

n bis inn tuit); de outra parte, a beatitude eterna, que o 

Espírito Santo nos faz conhecida, quando nos revela a 

 verdade sobrenatural necessária, seja ao inspirar os profe-

tas ou autores sagrados, seja pela boca de Jesus Cristo, 

Filho de Deus, coeterno ao Pai e ao Espírito, assim como 

 pelo ensinamento de seus discípulos. Sabemos, pois, tudo 

o que temos necessidade de saber para atingir êstes 

dois fins; mas a cupidez dos homens os arrastará, como 

cavalos disparados, bem longe de seu caminho, se o freio 

e o cabresto, dominando a sua bestialidade, não os man-

tivessem em seu reto caminho.

O homem tinha, pois, necessidade de uma dupla auto-

ridade para conduzilo a esta dupla finalidade: a do so-berano pontífice que, graças aos ensinamentos da reve-lação, o conduziría à vida eterna, e a do imperador, que, à luz da filosofia, conduziría o gênero humano à feli-cidade temporal. Ninguém a atingiría, ou antes, muito 

 poucos e a duras penas, se, aplacadas as ondas de cupidez, 

o gênero humano não repousasse livre, na tranqüiladade 

da paz. Pois tal é o objetivo a que se deve propor o impe-

rador romano que traz a responsabilidade do globo; pois, 

neste cantão do mundo em que habitam, os homens vivem  

livres e em paz. O que o imperador tem poder e meios 

de fazer, somente de Deus lhe advém a imposição do 

mesmo, unicamente Deus o elege, e Deus unicamente lhe 

confirma a autoridade, tão bem que ninguém está sobre

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ele. Não nos enganemos a respeito: aqueles que se cha-mam seus eleitores não merecem seu título, pois êles não 

o escolhem, nada mais fazem que designar o eleito da 

Providência. O fato de que êstes chamados eleitores não 

estão sempre de acordo em sua designação é devido à 

cupidez que os cega e os torna incapazes de discernir 

os desígnios de Deus.Concluamos. A autoridade do monarca temporal 

desce nêle, diretamente e sem qualquer intermediário, da 

fonte universal de toda autoridade. Una na simplicidade 

desta fonte, a autoridade flui em canais diversos, plenos 

da abundância de sua bondade. Duma parte, o papa é 

autoridade espiritual; doutra parte, o imperador é a auto-

ridade temporal. Seguramente, não se poderia sustentar que o imperador romano não seja em nada submisso ao 

 pontífice romano, porque a felicidade mortal desta vida 

é, de algum modo, ordenada à felicidade da vida imor-tal. Que César testemunhe, pois, a Pedro o respeito que 

um filho primogênito deve a seu pai, a fim de que, ilumi-nado pela luz da graça paternal, projete por sua vez raios 

mais poderosos sobre esta terra, ao govêrno da qual so-mente foi preposto por Aquêle ao qual todas as coisas

 

obedecem, temporais ou espirituais(36). Apesar de todas as nuanças, a doutrina política de 

Dante permanece de uma coerência, de uma solidez per-feitas. À primeira vista, seu princípio diretor se parece 

bastante com o adágio tomista bem conhecido “jus autem  

divinum qu d est ex gra tia, n n t llit jus humanum qu d 

est ex n atu ra li rati ne” (S . Th.  IIIIae, q. 10. a. 10, Resp.). É, pelo menos, certo que Dante aceita êsse princípio to-mista, não obstante, cedendo a esta preocupação do-minante de manter a autonomia da natureza, pretenda

 

assegurarlhe todas as vantagens da Graça. O soberano 

 pontífice pode fazer bastante para o imperador, e, porque 

o imperador espera bastante de sua parte, êle lhe deve 

um respeito filial, mas, precisamente pelo fato de que o 

 papa tem o poder de ajudar o imperador a se desempenhar 

de sua função de imperador, não a poderia conferir. A  autoridade espiritual suprema pode ajudar o temporal a

( 8 6 )  M o n a rc h ia ,   I I I , 1 6 .

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atingir seu fim temporal, a autoridade sobrenatural pode 

ajudar à natureza a realizarse como tal, mas ela o pres-supõe e não lhe seria possível, pois, substituirse a êle. A  

lua não brilha melhor senão devido ao sol que a ilumina; 

não lhe deve, todavia, o fato de ser lua, nem mesmo de brilhar.

Esta autonomia plena do temporal, permite a Dante 

formular, pela primeira vez, parece, o ideal de uma socie-dade do gênero humano, verdadeiramente universal, que,

 

ao inverso da república cristã de Rogério Bacon, devia 

a sua universalidade à sua temporalidade mesma. Dante 

considera a Igreja uma monarquia universal, mas cuja 

universalidade vem precisamente de sua espiritualidade.  Tal como o concebe, o Império Romano, é, ao con-trário, uma sociedade propriamente política, coextensiva 

à totalidade do gênero humano e, por isto, duplamente  

estranha à Cidade de Deus. Na gíria política da III República francesa, dirseia que o Império Universal de Dante é “neutro” e que sua laicidade mesma 

funda a sua universalidade. Todos os homens são cha-mados a fazer parte dêle sem distinção de raça, nem

 

de religião. Um de seus argumentos contra a primazia 

temporal dos papas não reside no fato de que contihentes 

inteiros recusam conhecer a sua autoridade espiritual ? Devem, não obstante, reconhecer a autoridade temporal do imperador. Em outros têrmos, se bem que o imperador 

 pessoalmente deva reconhecer a autoridade espiritual do papa, não é necessário que um povo pertença à Igreja 

 para que pertença ao Império. Não se trata mais de 

Igreja, nem de Cristandade, nem de Cidade de Deus: 

todos são chamados, todos são eleitos. A monarquia ro-mana de Dante é a primeira fórmula moderna ae uma 

sociedade temporal única, do gênero humano inteiro.

 Já que se trata de Dante, ninguém se surpreenderá de 

haver seu gênio descoberto, com uma das soluções pos-síveis do problema, o único dado que a permite resolver. Para que o império possa se constituir livremente, em 

 vista de seu'fim temporal próprio, deve dispor de meios 

temporais apropriados. Daí porque a distinção entre o 

império e a Igreja se desdobra aqui na distinção corres

  9

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W --

 pondente entre a filosofia e teologia, razão e revelação.Seu “laicismo” se desdobra num “racionalismo”, que é sua

condição mesma. Convém pôr em relevo estas duas cons-

tantes do problema, sem esquecer, todavia, que, no pensa-mento de Dante, sua distinção não implica nem oposição, nem mesmo, falando de maneira absoluta, separação. O temporal, o leigo, o racional são autônomos em sua ordem 

 própria, como a natureza o é relativamente à Graça, se bem que seja do interêsse da natureza utilizar os benefícios da Graça, como o é, para o temporal, de se beneficiar do espiritual. A complexidade destas relações tornase, na sua teoria, possível graças à distinção que introduz

entre as ordens. A perfeita autonomia de cada uma delas  protegeo contra tôda intrusão da parte de outras ordens, 

ao mesmo tempo que lhes proíbe invadilas. Permite, 

 pois, ao soberano de cada ordem, reconhecer a autoridade 

dos outros sem diminuir de nada a sua. O sábio é a me-dida do homem, o imperador, a do cidadão, o papa a do 

cristão e, para que um deles detenha sozinho as chaves de seu reino, importa reconhecer que o outro é, igualmente, 

o único a possuir as chaves do seu. Assim, o papa não

 pode ter autoridade temporal que não lhe seja delegada  pelo imperador, nem o imperador nenhuma jurisdição espiritual que não lhe seja concedida pelo papa; a teologia não pode ter autoridade sôbre a filosofia nem a razão sôbre a Revelação, se bem que uma possa sempre livre-

mente apelar para a luz da outra; em suma, apesar de alguns serviços mútuos que se prestam, o império nem 

 por isto deixa de conduzir os homens à felicidade tem-

 poral pela razão, como a Igreja os conduz à felicidade eterna pela Revelação (37).

Se isto não é a boa solução teórica do problema, é,  pelo menos, uma de suas possíveis respostas. Fazendo da razão filosófica a luz própria do temporal, Dante afasta ia dificuldade que opõe à constituição de uma sociedade ;universal do gênero humano, o particularismo das religiões.

(37) Sôbre êste problema em si mesmo, v. E. Gilson, Dante et la  -Phüosophie,  Paris, J . Vrin, 1939, pág. 167-200. V. também, além dos

trabalhos citados neste livro, J. J. R olbiecki, The Political Philosophy  of Dante Alighieri,  Cath. Univ. of America, Washington, D. C. 1921 (bibliografia pág. 151-156).

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Nada nos faz pensar que não considerasse a fé como final-mente universalizável, mas não deseja aguardar que o papa haja conquistado todos os povos para a Igreja para os submeter todos ao império — é por isto que o univer-salismo do império parece imediatamente ligado àquele da razão. Um ideal cristão procura, pois, aqui, realizar se por meios inteiramente humanos, e num plano pro- priamente humano, não recusando à autoridade da Igreja senão o que retardaria o nascimento da sociedade do gê-nero humano. Dante elaborou, pela primeira vez, pa-rece, a noção de um temporal autônomo e suficiente em sua ordem, dotado de sua natureza própria, de seu fim  último próprio e de meios de atingilo que lhe são natu-

ralmente apropriados.Tão perfeita como uma épura de arquiteto, a solução 

que propõe Dante permanece assaz vaga, já o dissemos, quando se chega a seus meios de aplicação. Não o criti-quemos por isto, pois respondería certamente que, filósofo, resolvendo um problema filosófico, não era responsável  pelas condições práticas requeridas para aplicar a solu-ção. É ao imperador que compete organizar o império. Tudo que Dante pode fazer para êle, é converter à 

sua causa aqueles de seus adversários que deveríam ser seus aliados naturais, e depois fazêlo consciente de si 

 próprio e de sua natureza, assim como dos meios de que dispõe para atingir seu fim.

Estamos no século XX, não há mais “monarquia” e os povos estão ainda procurando como se unir. Não 

 podemos lançar em rosto ao altíssimo poeta o fato de não ter achado, no século XIV, resposta às nossas ques-tões (38).

(38) Está fora de dúvida que, subordinando diretamente a autoridadepolítica do imperador à de Deus, Dante não tenha encarado umimpério religioso em sua própria raiz, e, por sua associação com a Igrejauniversal, um império finalmente cristão. Todavia, o fervor que certospartidários da fusão das ordens dedicam à doutrina de Dante se explicadificilmente. Repousa, de fato, num contra-senso. Dante não querum imperador de tôda a terra para o submeter ao chefe da Igreja uni

 versal, mas um império universal temporalmente independente da Igrejauniversal, bem que, de fato, de acordo com ela. De passagem, notemosque êstes pretensos discípulos de Dante são geralmente nacionalistas fanáticos. Não querem de modo nenhum um império universal, a menosbem entendido, que seu próprio país tome o govêrno do império. Ouniversalismo político de Dante exclui todo imperialismo nacionalista;

 

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Sua filosofia política não deixa de marcar por isto uma nova etapa na história de nosso problema. Muito embora apelando para Roma de Augusto, a monarquia 

universal de Dante é um decalque temporal da sociedade espiritual que é a Igreja. Seu imperador, cuja autoridade se exerce segundo a verdade da filosofia, é o equivalente exato do papa, cuja autoridade se exerce segundo a ver-dade da teologia; o imperador consulta Augusto, o papa consulta Santo Tomás de A quino. A sociedade do gênero humano é, pois, uma Igreja temporal, encarregada da bea titude temporal dos homens, e que conduz a tal pela na-tureza. Tomando esta decisão, Dante aceitava implicita-

mente dois postulados dos quais, como costuma aconte-cer muitas vêzes em casos semelhantes, não tinha, sem dúvida, consciência clara. O primeiro, de que a razão natural era capaz, sozinha e deixada a si própria, de rea-lizar o acordo entre os homens sobre a verdade de uma única filosofia. O triunfo de Aristóteles nas escolas da Idade Média favorecia esta ilusão. O menos que se pode 

dizer a respeito é que ela se tornou difícil para nós. Mesmo na Idade Média, o acordo em torno do nome de 

 Aristóteles não ia sem desacordos, por vêzes profundos, sobre o sentido de sua doutrina. Qual era a verdade do Filósofo ? A de Santo Tomás de Aquino, a de Sigério de Brabante, a de Duns Escotus, a de Guilherme de Ockam ? E sabemos, entre outros nomes que podemos citar, Avi  cena e Averróis, por exemplo, o que era do próprio Aris-tóteles ou dêles ? Evitemos prudentemente esta outra questão disputada: é certo que o triunfo de Aristóteles

mas não repousa também sôbre o universalismo da fé;... seu verdadeiro fundamento é uma confiança ilimitada no poder que a razão e

 verdade naturais têm de universalizar-se a si próprias. Ilusão bemexplicável no fim do séc. XIII, e que permanece em muitos espíritos.0 acôrdo global sôbre uma nova interpretação de Aristotéles, realizadopelos teólogos à luz unificadora da fé, apresentava-se como o efeitode um acôrdo espontâneo entre razões puramente naturais. De fato,desde o século XIII. e mais ainda no XIV, houve desacôrdo entre a filosofia dos filósofos e a filosofia dos teólogos. A fraqueza da posiçãode Dante vem de sua confiança absoluta na unidade da sabedoriafilosófica, trabalhando sòzinha, sob a direção de Aristóteles, a fornecerao imperador uma moral e uma política universalmente válidas. Fundava a suficiência da filosofia no fato de guiar 0 império na união dasrazões que era a obra da teologia e da Igreja. A natureza esquece-se

éonstantemente que deve à opus re creat ionis    da Graça o privilégio dereconquistar sua naturalidade. Recriar a natureza é exatamente o contrário de suprimi-la.

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de fundála, de perfazêla, em suma, de assegurarlhe a 

integridade e mantêla. A natureza não é mais perfeita mente natureza senão para ser informada pela Graça. 

 A razão natural não se torna mais integralmente racional 

senão para ser iluminada pela fé. A ordem temporal e 

 política não é mais temporal, feliz e justa senão para 

aceitar a jurisdição espiritual e religiosa da Igreja. Por  

mais direta que seja, e apesar de estenderse a política,  a autoridade dos papas sobre o temporal não é de si mesma 

temporal nem política no sentido temporal do têrmo. Ela não usa de meios de mesma natureza, não visa o 

mesmo fim. Desculpase Dante de se haver enganado.  As lutas políticas de seu tempo punham as cidades italia-

nas em luta com Roma e tornavam bastante mais difícil 

do que é para nós, discernir com a sua verdadeira na-tureza a hierarquia dos podêres em causa. Mas, nem as confusões passadas, nem as que se poderão reproduzir efetivamente no futuro, serão capazes doravante de escon-der a nossos olhos os dados exatos do problema. Será 

 possível um império universal, pouco importando a forma 

 política, a menos que êle se subordine a Deus, pela juris-dição da Igreja, na qual, longe de perder a sua autonomia, êle encontraria seu ser ? É possível uma Igreja sem que

 

haja unidade política da terra; mas poderá haver uni-dade política da terra sem que haja reconhecimento,  pelo temporal, da autoridade direta do espiritual, não so-mente sobre o moral, mas sobre o político ? A partir 

de Dante, ninguém mais poderá ignorar que tal é, com 

efeito, a questão.

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C apítulo  V

A Paz da Fé

 A solução do problema  proposto por Dante 

consistia em justapor uma sociedade temporal universal e uma sociedade religiosa universal, mas, o objeto ime-diato da De M narchia  não era fundar esta última. Con-tentavase em têla como dada, ou melhor, de aceitarlhe 

a idéia tal como se oferecia na Igreja de Roma. Sôbre 

a universalidade de fato da Igreja católica, apostólica, 

rofnana, Dante não alimentava qualquer ilusão. Sabia 

muito bem que, rejeitada em certas regiões da própria 

Europa, era desconhecida em quase tôda a Ásia e em 

quase tôda a África, isto é, numa vasta parte do mundo  

habitado. Todavia, se desejou fixar a natureza e os di-reitos do império universal, nunca pareceu duvidar de que 

a Igreja de Roma, tal como a conhecia, não devesse ser 

um dia a Igreja universal. A única reforma que desejava 

que nela se efetuasse, consistia em que deixasse de investir 

sôbre os direitos do império. Associada a um império livre, quanto ao temporal, uma Igreja livre também no espiritual 

não lhe surgia, sem dúvida, senão como destinada mais 

seguramente a tornarse o reino universal dos filhos de 

Deus. Justificavase esta esperança ? Um eclesiástico levan-

tou para si próprio a questão no século X V e sua res- posta é tanto mais surpreendente pelo fato de não vir de 

um aventureiro sem martdato, menos ainda de um heré-

tico ou de um cismático banido pela Igreja por novida

m

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des suspeitas, mas, ao contrário, de um de seus prínci- pes. Nicolau de Cusa, nascido em 1401, perto de Treves, ordenado sacerdote em 1428, foi, em 1448, sagrado car-deal da Igreja romana com o título de São Pedro

ad v ncula

, honra a respeito da qual um historiador contemporâneo observou que, para um alemão, era mais rara do que um corvo branco. Não houvera até então figura mais res-

 peitada na Igreja c nunca depois. Sua memória não cessou de sêlo. Quando se sabe como ele concebia a universa-lidade da religião cristã, não se pode ficar senão muito surpreendido por uma tão maravilhosa imunidade(1).

 A mensagem de Nicolau de Cusa é simples(2). A re-

ligião é um fator de unidade, mas as religiões são fatores de divisão. Importa, então, que não haja senão uma reli-

gião e o cardeal não duvida um só instante de que tal  deva ser a religião católica, apostólica e romana, mas não

(1)  Sôbre Nicolau de Cusa: E.  V  ansteenberghe, Le cardinal Nicolas  ãe Cues   ( lhOl-USh  ). L’action, la pensée,  Paris, 1920. M. de  G an dili . ac , La PMlosophie de Nicolas de Cues,  Paris, 1941. Do mesmo, Oeuvres  choisies ãe Nicolas de Cues,  trad. e pref., Paris 1942. Sôbre suas idéiaspolíticas v. Elis. Bohnenstadt, Kirche und Reich im Schri f t tum des  ■NicTcolam von Cues,  in Cusanus-Studien,  atas das sessões da Academia

das Ciências, Seção de Filosofia e de História, XXIX-1, Heidelberg,1939.Nossa análise do De pace f idei   está longe de ser completa; mesmo as

passagens entre aspas não são por vêzes senão resumos assaz livres,em vista de uma leitura pública, ao invés de tradução literais . Esperamos, todavia, não ter jamais traído o sentido do autor. Sôbre as ediçõesantigas do original latino, ver Überwegs-Grundriss,   vol. III, 12.» ed.,Berlim, 1924, pág. 72. Uma tradução alemã acha-se em F. A. Scharpff, Des Cardinais und Bisschofs Nic. von Cusa wichtigste Schriften,   Fri-burgo i. Br., 1862.

(2) O laço que une tôda noção da sociedade universal a uma filosofia que a legitima, se verifica em Nicolau de Cusa. Seu irenismo acomoda-se espontâncamcnte com sua noção de Deus como coincidência dosopostos e dos extremos. Pois que é infinito, Deus é, ao mesmo tempo, o

maximum e o minimum (De do cta ignorantia,   I, 4). Êle é ser e não-ser,luz e trevas, etc. (ibid.). Daí uma “teologia circular”, que, em prosseguimento à de Dionísio, conduz a esta ignorância douta que é ointel lectus   mistico. Donde também uma noção da Igreja como união dasalmas na fé em Jesus-Cristo (De docta ignorantia,  III, 11 e 12). A“douta ignorância”, que é a intelecção da fé, torna evidentemente maisfácil a conciliação das religiões diferentes, mas essa não é possível senãodo ponto de vista do cristianismo e por êle. Mais precisamente: pelateologia cusana do Verbo cristão e pela filosofia que ela implica. Estanão podia satisfazer os dialéticos que o acusaram de heresia porhaver ousado pôr em causa o princípio de contradição. Sim, respondeNicolau em sua  Apo logia pro d o cta ignoranti a ,  esta é uma heresia na

' seita de Aristóteles “que considera a coincidência dos opostos como umaheresia”; e todavia, é necessário muito bem admiti-lo, porque reconhecer é o ponto de partida da ascensão para os vértices da douta igno

rância; in cuius admissione est initium ascensus in tnystícam theologiam.

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duvida menos que certas acomodações são necessárias para que possa chamar a si as outras religiões do mundo (3). É esta precisamente a tese que sustenta em seu De Face F de

(1454).Desde o começo desse curioso apólogo, sentese qual 

o dado principal do problema. Nicolau vêse dolorosa-mente preocupado por um fato, trágico entre todos para uma alma sinceramente religiosa; as guerras de religião.  A notícia das crueldades recentemente cometidas pelo sultão da Turquia perto de Constantinopla fere profun-damente o coração de um homem piedoso que visitara outrora a Turquia(4). Roga ardentemente ao Criador 

 para que se digne pôr um fim à feroz perseguição que assola êste país em conseqüência da diversidade de crenças e de confissões religiosas.

(3) A experiência pessoal do cisma adquirida por Nicolau de Cusano Concilio de Basiléia, e que lhe inspirou seu De Concordantia Catholica  (fim de 1433), deve entrar em linhas de conta para quem quer compreender sua atitude. A lista de acontecimentos que se haviam desenroladodesde um século não convidava os amigos da unidade a um excessode otimismo. Wicliff (1324-1384) e João Huss (1360-1415) preludiam areforma. Em 1339, comêço da guerra dos Cem Anos, entre povos dacristandade. Em 1378, o grande cisma. Em 1380, derrota dos sérvios

pelos turcos em Cossovo. Em 1396, os turcos, comandados por Bajazé,derrotam uma cruzada francesa em Nicópolis. Em 1415, rebelião doshussitas, contra os quais o Papa Martinho V prega uma cruzada (umacruzada contra cristãos). Em 1415, o Concilio de Constança proclama asuperioridade do Concilio sôbre o papa. Em 1417, deposição de Bento XIII.Em 1430, os turcos, comandados por Amurat II tomam Salônica. Em 1440,o cisma da Igreja grega torna-se definitivo. Em 1453, conduzidos porMaomé II. os turcos tomam Constantinopla. É a data escolhida peloshistoriadores para simbolizar o fim da Idade Média. Nascido em 1401,antes da revolta liussita, morto em 1467, após a queda de Constantinopla,Nicolau viveu a desintegração da cristandade medieval. Era-lhe necessário ter uma grande fé na unidade para tentar mantê-la, e mesmoestendê-la, fôsse em estado solúvel, num tempo em que tudo a ameaçava.

(4) A importância dos problemas levantados pelas cruzadas contra

o Islã não deve ser esquecida se se pretende conhecer certos aspectosda posição de N. de Cusa. V. sôbre êste ponto, R udolf  H aubst,  Johann es von S egov ia im Gesprü ch m it Nikolaus von K ues und J ean  Germain über die Gõttliche Dreieinigkeit und ihre Verkündigung vor den  

 M ohammedanern,  em  M ünchener Theologisch e Z eit schrif t,   II (1951), pág.115-129. Sôbre Nicolau de Cusa e seu De pace fidei,   v. pág. 119: “Otratado De pace f idei    recebe, pois, aqui, uma interpretação autêntica.Nicolau não queria sòmente pôr aí em cena, num congresso celeste dospovos em presença do Verbo divino, a relação ideal entre a revelaçãode Cristo e a verdade parcial do conteúdo das outras religiões; queria,igualmente, definir a paz religiosa como uma exigência do direito humanoe divino, com esta conseqüência dirigida contra a guerra de religião;Sola defensio s ine pericu lo christ iano”.  E o que se segue, pág. 119,sôbre o projeto de uma conferência real com muçulmanos do Cairo, Alexandria ou Jafa, referente ao dogma da Trindade. Tivemos conhecimento da existência dêste trabalho recente pelo Dr. Jos. Koch, e lhesomos reconhecidos por no-lo haver assinalado.

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 Assombrado por esta idéia durante vários dias, ter-mina por ter uma visão, que lhe revela o meio de pôr 

um termo a essas dissensoes religiosas. Se se reunissem 

num congresso alguns homens inteligentes e bem infor-mados das diferentes religiões que se encontram no mundo

 

inteiro, não descobriríam um mínimo de acordo real, 

sôbre o qual uma paz religiosa duradoura pudesse final-mente estabelecerse ? O trabalho de Nicolau de Cusa

 

é uma espécie de ata oficial deste congresso celeste das 

religiões.

"No auge de sua contemplação espiritual, nosso homem 

se acha subitamente transportado ao céu, onde se realiza 

um conselho, sob a presidência do Onipotente. O Rei 

do céu e da terra toma a palavra. As notícias da terra 

são más. De todos os lados sobem para o céu os suspiros 

dos oprimidos. Homens sem número tomam as armas e 

se combatem para se constranger, mütuamente, sob a 

ameaça da morte, a abjurar sua religião tradicional. 

Inúmeros mensageiros trazem de todas as regiões da 

terra estes gemidos que o Rei do céu submete a assem-bléia dos santos. Os mensageiros parecem, aliás, conhe-

cidos de todos, pois, é o próprio rei do universo que os colocou, desde o comêço, à frente das diversas províncias 

e das diversas religiões.

 Tomando a palavra em nome dêles, um arcanjo se 

dirige a Deus nestes têrmos: “Senhor e Rei do universo ! Que possui tua criatura, que tu não lhe deste ? Tu for-maste seu corpo do limo da terra e Tu o animaste de 

uma alma racional a fim de que brilhe nele a imagem 

de teu poder inefável. Uma única delas tornouse a 

origem de um grande povo que cobre a superfície do 

globo. Imerso no limo da terra e envolvido de sombras, 

este espírito racional não podia ver a luz, nem adivinhar 

sua origem, mas Tu criaste, ainda, o que lhe faltava,  para que, deslumbrado pelo que viam seus olhares, fôsse 

convidado a dirigir os olhos de seu espírito para Ti,  criador do mundo, e unirse a Ti pelo amor mais alto, a fim de que, enriquecido por este mérito, pudesse volver

 

àsua origem. Tu sabes, todavia, Senhor, que semelhante 

multidão não pode ir sem diversidade. Tu sabes que

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todos os homens são condenados a levar uma vida de 

trabalho, de cuidados e de sofrimentos na escravidão 

que lhes impõem os reis. Pouquíssimos entre êles dis- põem de lazer suficiente para chegarem sozinhos e livre-

mente a se conhecer mutuàmente. A braços com mil cuidados e trabalhos da terra, são incapazes de Te pro-

curar, ó Deus oculto. Tu deste, pois, a teu povo, reis e 

 profetas que, a maioria em teu nome e debaixo de tuas 

ordens, instruíram uma multidão ignorante, regularam 

o culto divino e estabeleceram as leis. Receberam essas leis, como se Tu lhes houvesses falado face a face, e em

 

Teus servidores êles ouviram a Tua voz. No meio das 

nações enviaste, em diversos tempos, vários profetas. Ora, 

está na natureza do homem que o hábito se lhe torne uma segunda natureza e que êle acabe por considerálo uma 

 verdade. Daí, a falta de unidade e que cada sociedade 

religiosa prefira a sua fé àquela dos outros. ApressaTe 

a socorrêlos, Tu que és o único a poder fazêlo. Pois, é por Ti que todos venceram em suas preces, que esta

 

luta prossegue. Em tudo o que cada um parece perseguir 

não se visa senão o Bem que Tu és, em todas as operações  

do intelecto, ninguém procura algo senão a Verdade que 

és Tu. Que quer o vivo senão viver ? Que quer o exis-tente senão ser ? É, pois, a Ti, de onde promanam o ser 

e a vida, que as diferentes religiões procuram de maneiras 

diferentes; Tu, que elas nomeiam por nomes diferentes, muito embora em Teu ser verdadeiro Tu permaneças des-conhecido de todos e completamente inefável. A cria-tura não pode fazer a menor idéia de Tua infinitude, por-que do finito ao infinito nenhuma relação é possível. T o-davia, Deus onipotente, Tu podes Te revelar a todo espí-

rito de maneira compreensível. Não Te escondas mais 

tempo, ó Senhor! Sê clemente ! Deixa ver Tua face, 

leva a salvação a todos os povos, a fim de que êles não 

 possam nunca olvidar a fonte de uma vida de que apenas 

 provaram a doçura, pois, somente aquêle que não Te co-nhece Te abandona. Cessarão, então, o ódio, o sofrimento

 

e a guerra, e todos conhecerão que não há senão religião 

na diversidade de ritos. Se esta multiplicidade de ritos não 

 pode ser suprimida, ou se vale antes que ela subsista a fim

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de que a rivalidade dos povos aproveite ao culto de Deus, 

 possa, ao menos, haver uma só religião e um só culto 

divino, uma vez que Tu és único. Senhor: sê indulgente ! 

Tua cólera é amor e Tua justiça é compaixão. Toma à Tua 

misericórdia Tua frágil criatura ! Assim imploram, com 

toda a humildade, aquêles a quem entregaste a guarda de 

Teu povo”.Há frases de um tom nôvo, até esta data, literal-

mente inaudito. De início, aquela em que se exprime o 

sentimento ecumênico de Nicolau de Cusa: há um só e 

mesmo Deus que as diferentes religiões servem de diferen-tes maneiras e que elas designam por nomes diferentes. Em 

seguida, aquela onde se afirma tão enèrgicamente a tese 

fundamental: a despeito da diferença das confissões reli-giosas, não há senão uma religião. É verdade que, em seme-lhante matéria, as intenções contam menos que a maneira

 

 pela qual se realizam. Nicolau de Cusa fala sinceramente, ou suas palavras são apenas o engodo para uma operação 

na qual todas as confissões seriam afinal convidadas a 

 pagar as despesas em benefício da religião católica ? Para 

sabêlo, vejamos como concebe sua execução. Após esta prece do arcanjo, todos os habitantes do 

céu se inclinam diante do trono do Altíssimo, cuja resposta 

foi que criara o homem livre e, por sua liberdade, capaz de 

 viver em sociedade com Êle. Desgraçadamente, o prín-cipe das trevas mergulhou na ignorância o homem animal

 

e terrestre, que erra, doravante, no mundo sensível e não 

 vive mais, segundo o homem espiritual, em seu país natal. 

Por êste motivo, disse Deus, tomei o cuidado de enviar 

 profetas ao homem para mostrarlhe seu êrro. Os profetas não bastando, enviei o meu Verbo, pelo qual o mundo 

fora criado. Êle se revestiu da carne para melhor iluminar os homens, lhes ensinar a viver segundo o homem interior 

e a saborear a doçura da vida eterna. Ao assumir a natu-reza humana, o Verbo atestou manifestamente que o

 

homem pode receber a vida eterna e que ela é o único 

desejo do homem interior. De tudo o que Deus poderia 

fazer para salvar o homem, que é que não tem feito ?' A estas palavras do Rei dos reis, o Verbo, por sua vez,

 

começou a falar. Certamente a obra do Pai era perfeita,

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não havia por onde perfazêla. Todavia, o homem fora 

criado livre e como tudo muda nêste mundo das coisas 

sensíveis, os pontos de vista não cessam de variar com o 

tempo, e não somente os pontos de vista, mas também 

as línguas e os meios de expressão. Eis porque freqüentes 

reformas são necessárias para dissipar os erros que se pro-duzem e trazer os homens ao caminho da verdade. Ora,

 

a verdade é uma e pois que os espíritos são livres, todos 

devem scr capazes de vêla. Se todos a vêem, a multipli-cidade de religiões se verá na mesma ocasião reconduzida

 

à unidade de uma só e mesma fé.

O Rei dos reis aprovando esse discurso, os anjos que 

 presidem às nações e às diversas línguas do mundo são 

imediatamente convocados, com ordem de trazer perante 

o Verbo um representante particularmente qualificado de 

cada povo. Uma espécie de arroubo faz comparecer êstes 

homens eminentes diante do Verbo, que lhes dirige essas 

 palavras: “O Senhor do céu e da terra escutou os suspiros 

dos homens assassinados ou postos a ferros, assim como de 

todos aquêles que sofrem devido às diferenças de religião. 

Ora, todos aquêles que efetuam essas perseguições, como 

aquêles que as sofrem, estão convencidos de que assim o 

exige a salvação de sua alma e que assim o quer seu Cria-dor. O Senhor teve, pois, piedade de seu povo e decidiu 

reduzir, por uma espécie de acordo pacífico, todas as reli-

giões numa só, cuja unidade não seria jamais rompida. Foi a vós, delegados, que êle encarregou de executar êste de-sígnio. Para vos ajudar, atribuiu a anjos de sua côrte 

 vossa proteção e vossa direção. Como lugar mais conve-niente para essa reunião, designou Jerusalém.”

Neste momento intervém o primeiro portavoz dos 

homens, aquêle que Nicolau de Cusa denomina simples-mente “o Grego”. Sua intervenção oferece êsse interes-sante particular de ser menos religiosa, no sentido con-fessional do têrmo, que filosófica. O horizonte de Nicolau

 

de Cusa, é, pois, mais vasto ainda que aquêle de um simples 

ecumenismo, o que seria, todavia, já bastante. A sabedo-ria grega, isto é, aquela do homem enquanto homem, não

 

lhe parece ter sido a simples procura de uma verdade 

abstrata, tal como seria a de um sistema. O que chama, de

 

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 preferência, sua atenção, nos antigos, é que tenham sem-

 pre procurado a verdade junto de algum mestre, como 

se houvessem pressentido que a sabedoria deva encarnarse 

 para nos ser acessível. Assim, a própria filosofia se inte-grará, graças ao grego, na religião universal que é, bem

 

entendido, o cristianismo.

Para dizer a verdade, o próprio grego duvida, de 

início, que a assembléia geral das religiões possa conduzir 

ao estabelecimento de um acordo entre elas. Como um 

 povo aceitaria uma religião diferente daquela pela qual 

derramou o seu sangue ? A isto responde o Verbo que não 

se trata, para nenhum povo, de aderir a uma fé nova, mas, 

de tomar consciência da fé comum que já os une. Já que 

todos os filósofos amam a Sabedoria, têm necessàriamente 

 por admitido que não há senão uma. Mesmo se fossem 

muitas, todas proviriam de uma só, pois, toda a multiplici-dade pressupõe a unidade, da qual participa. Ora, o espe-

táculo do mundo sensível o atesta, esta Sabedoria única é, 

também, de um poder infinito. Invisível, ela transcende a 

todas as suas obras visíveis. O Verbo Divino o afirma, 

como já o afirmaram os livros sapienciais e o Grego não o 

contradiz, porque reconhece que os filósofos também não foram outrora conduzidos à Sabedoria senão por lhe haver 

sentido e admirado a doçura no mundo sensível de que ela 

é a obreira. Quem não daria a sua vida para atingir esta 

fonte de toda doçura e toda beleza ? Neste ponto, o 

Grego, arrebatado por seu aidor, lançase num elogio da 

Sabedoria, cujo poderio brilha no corpo, do homem, na har-

monia de seus orgãos, na forma e no movimento de seus 

membros, na vida que os anima, no espírito capaz das 

artes mais surpreendentes e duma sabedoria onde brilha a imagem de Sua causa, da qual se alimenta e se aproxima 

sem cessar, bem que não a possa atingir em outra coisa di-

ferente de si mesma. “Vós estais na boa via, que conduz 

ao fim que procuramos, responde o Verbo. Mesmo se 

 professais religiões diferentes, vós colocais todos, acima 

de vossas divergências, algo que denominais a sabedoria. 

Dizei pois: esta sabedoria única, abarca tudo que se possa 

exprimir ?”

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 Ao Italiano, que tomando a palavra após o Grego, observa que não há “verbo” fora da sabedoria, o Verbo

 

em pessoa responde que é indiferente dizer que tudo é 

criado na sabedoria, ou tudo é criado no Verbo. Com efeito, admite o Italiano, o Verbo do Criador, no qual 

tudo foi criado, não pode ser senão a sua sabedoria, e não 

uma criatura, mas sabedoria incriada, pela qual toda a 

criatura é o que é. Eterna, princípio de tudo, absoluta-mente simples como o é tudo o que não tem causa, ela 

é, por conseqüência, eterna. Ora, não pode haver muitas 

eternidades, porque ela é o princípio de tudo e a unidade 

tem preferência sobre a multiplicidade. A sabedoria é, 

 pois, Deus, o Uno, o Deus simples e eterno que é o prin-cípio de todas as coisas. Neste ponto, o Verbo conclui que, vindos de tantas escolas diferentes, todos esses filó-sofos aceitam, todavia, confessar a existência de um só

 

Deus.Com isto, o Árabe está de acordo. Reconhece que 

todos os homens desejam naturalmente a sabedoria, que é 

a vida do espírito, e que existe uma sabedoria absoluta, 

que é o Deus único, mas, como o Verbo lhe pede de con-cluir daí que não há senão uma religião e um só culto, 

anterior a toda distinção de práticas religiosas, o Árabe 

hesita. Êste representante do monoteísmo inquietase por 

causa do politeísmo. “Tu és a sabedoria, diz êle a seu 

divino interlocutor, pois que és o Verbo de Deus. Eu 

Te pergunto, pois, como os adoradores de muitos deuses 

 podem entrar em acordo com os filósofos em torno de 

um só Deus ?” A isto responde o Verbo que aquêles que 

adoram muitos deuses sempre supuseram a existência de uma divindade única. A ela dirigiam suas preces em todos 

seus deuses, como se participassem êles de sua Divindade.  Assim, como nada pode ser sábio sem a Sabedoria, não po-dería haver deuses sem uma divindidade. Falar de muitos 

deuses é supor um princípio divino que lhes é anterior, 

como admitir que há muitos santos pressupõe que há um 

santo dos santos, ao qual os outros participam e graças ao 

qual são santos. Nunca houve povo assaz estúpido para 

acreditar em muitos deuses, cada um dêles sendo a causa  primeira e o criador do universo. O Árabe concorda sem

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esforço, porque consideraria contraditório fossem muitas 

as causas primeiras. O primeiro princípio não poderia 

ter uma causa, fosse ele próprio, porque eralhe necessário 

existir antes de se acusar, o que seria absurdo. Êle é, pois, 

eterno, único e a causa do universo, do que nenhum povo 

seria capaz de duvidar. O Verbo nada pede a mais, por-que, se os politeístas dirigissem simplesmente seu culto a 

esta divindade que êles adoram verdadeiramente em todos 

seus falsos deuses; se, como a razão o exige, tomassem 

explicitamente por objeto de sua religião esta divindade à 

qual êles dedicam um culto implícito, o desacordo seria 

reduzido. O Árabe duvida, todavia, que aqueles que ado-

ram muitos deuses se deixem fàcilmente persuadir de re-nunciar a lhes prestar culto. Como convencer a um povo 

de não mais se dirigir às divindades que lhe são familiares e às quais tem o costume de pedir socorro ? Isto não é im-

 possível, responde o Verbo, porque se se ensina ao povo 

que todas as suas divindades pressupõem uma só e única, 

será fácil persuadilo, sem dúvida, de que é de seu interêsse 

 pedir socorro ao Autor do ser, que é o Salvador supremo, em lugar de pedilo àqueles que nada possuem de próprio  

que não tenham recebido dêle. Aliás, que o povo, na 

doença ou nas adversidades, invoque, como intercesso res, homens recomendáveis por sua santidade, que os ve-nere, mesmo a título de amigos de Deus ou como exem-

 plos dignos de ser imitados, eis o que não tem inconve-niente. Contanto que o culto divino vá todo inteiro ao 

Deus único, não haveria aí nenhuma contradição com a 

religião única de que falamos. Em suma, o Verbo propõe 

o culto de dulia prestado aos santos como um sucedâneo 

do culto de latria prestado pelos politeístas às divindades 

que adoram. Assim, assegura êle, o povo ficará satisfeito.Seja, disse então o Hindu, mas, que faremos das está-

tuas e das imagens ? O Verbo não vê o menor incon- veniente em seu uso, contanto que representem coisas compatíveis com o culto de um só Deus. Seria o caso 

contrário se desviassem dêsse culto, deixando crer que as  pedras contenham alguma coisa de divino. Tal seria difí-

cil, responde o Hindu, porque o culto das estátuas está enraizado no coração do povo, sobretudo em razão dos

 

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oráculos que ministram. Mas, este é um mal cujo remé-dio o Verbo conhece. Em princípio, os oráculos vêm

 

dos sacerdotes, que os fazem passar como palavras da di- vindade. Vêse isto pela ambigüidade de suas prediçÕes, 

que torna difícil muitas vêzes demonstrar a mentira ou  provar que, se não enganaram completamente, que não 

disseram a verdade senão por acaso. Ao que objeta o 

Hindu, com fato de experiência, que um espírito que 

habita a estátua responde por vêzes em nome dela; mas, o Verbo replica que se trata, então, do Espírito Mau

 

em pessoa e não aquêle de um homem como Esculápio, ou Apoio. O Inimigo do gênero humano procurou pri-meiramente esta forma de engano, mas renunciou; depois 

que isto foi descoberto, as estatuas deixaram de falar. Não será, assim, difícil obter do Oriente cjue renuncie ao 

culto dos ídolos e que seus povos se reunam aos outroshomens na adoração de um só Deus.  ____ 

O Hindu concede êste ponto. Já que os gregos, os 

romanos e os árabes renunciaram ao culto dos ídolos, por-que os orientais não o fariam por sua vez ? O difícil não

 

seria convertêlos ao culto de um só Deus, mas àquele 

da Trindade. Quem diz Trindade na essência divina, 

diz, por isto mesmo, multiplicidade. Como podería ser 

simultaneamente verdadeiro dizer que não existe senão 

uma só divindade e que ela comporta não obstante uma 

certa multiplicidade ? Mas, o Verbo, que parece ter lido 

Nicolau de Cusa, tem sua resposta pronta. Deus, enquanto 

Criador, é uno e trino, mas, enquanto infinito, não é trino, nem uno, nem é qualquer dos atributos que lhe podemos

 

conceber a seu respeito. Todos os nomes que atribuímos 

a Deus são tomados de empréstimo às criaturas; ora, Êle 

em Si mesmo é inefável e superior a tôda a perfeição que 

lhe possamos atribuir. O mundo é sua obra e é verda-deiro que suas partes são múltiplas, mas, fonte desta mul-tiplicidade de partes não pode ser senão unidade de sua 

causa. Assim como há dissemelhança entre as jpartes do 

universo, nenhuma se assemelhando a outra, e que ela 

brota da Igualdade da Unidade. Antes de tôda diversi-dade coloquemos, pois, a Igualdade eterna. Observase,

 

além disto, no universo, uma distinção ou separação de

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 partes; todavia, antes de toda distinção achase a ligação 

entre a Unidade e a Igualdade. Ora, esta ligação é eterna 

e, como não seria possível haver muitos seres eternos, 

encontramos necessariamente na Eternidade, a Unidade, a 

Igualdade da Unidade e o nexo entre a Igualdade e a 

Semelhança. Assim, o princípio único e simples do uni- verso é uno e trino. Deixemos aos especialistas o cuidado

 

de apreciar esta teologia em que Deus não é Trindade 

senão enquanto que Criador e que não parece inquietarse 

muito da distinção entre as pessoas divinas. É, todavia, le-gítimo perguntar se, em seu zêlo pelo estabelecimento de

 

uma paz universal entre as religiões, Nicolau de Cusa não 

 procede a uma conciliação na qual o dogma católico 

assume os encargos e na qual se arrisca finalmente a se 

 volatilizar.

Seja lá como fôr, nada respondendo o Hindu, coube 

ao Caldeu tomar a palavra por sua vez. O Verbo tendo 

dito que a marca da Trindade se encontra em todos os 

efeitos de Deus, êste sábio lhe pede para se explicar mais 

claramente sôbre êste ponto. Já que não há três deuses, 

mas um só, que é trino, o Verbo não quer simplesmente 

dizer que êsse Deus uno é trino em sua ação ? A isto o 

 Verbo respondeu dizendo que, todopoderoso, Deus é su- premo em todas as ordens de eficácia causai, mas, como

 

sua eficácia e sua essência não são senão o mesmo, falar de 

uma trindade de sua eficácia é falar da trindade de sua 

essência. O mesmo acontece com seu poder. Não havería 

nada de absurdo em dizerse que a onipotência divina, que 

é Deus, contém em si a unidade, que é a Essência, mais 

a Igualdade e o Nexo. Por conseguinte, o poder da Uni-dade confere a todo o que possui o ser, ao mesmo tempo

 

o ser e a unidade. Porque uma coisa não existe senão 

enquanto é una. Da mesma forma, a potência da Igual-dade confere a tudo o que existe a igualdade e a forma,

 

 porque não ser mais nem menos o que é, eis, para uma 

coisa, em que consiste a sua igualdade. Sem esta igual-dade relativamente a si, ela não seria nada. É a potência

 

do Nexo, enfim, que liga a Unidade à Igualdade. Assim, a 

* onipotência da Unidade tira o ser do nada, a eficácia da 

igualdade o informa, e a eficácia do Nexo o une. Uni-

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dade, igualdade e sua ligação aparecem, pois, nessa ordem 

quando Deus cria o ser, o que consiste em dizer que, nada podendo ser a não ser que seja um, o que existe deve 

ser primeiramente uno.O Verbo empenhase, aqui, num longo desenvol-

 vimento metafísico adequado para garantirnos que é 

bem o portavoz de Nicolau de Cusa. A igualdade 

da criatura, precisa ele, é sua essência mesma, porque a 

igualdade é o desenvolvimento da forma na unidade, em 

conseqüência da qual é a unidade do homem, não de um 

leão ou de qualquer outra essência, que se acha reduzida. Ora, a igualdade não pode nascer senão da unidade de uma 

essência com ela própria e do amor mútuo, ou nexo que as une. Subindo dos sêres à sua fonte, o Verbo estabe-

lece enfim, por uma sábia metafísica do número, que a 

trindade divina não é uma pluralidade numérica, mas a 

mais simples das unidades. Crer num só Deus não é, pois, rejeitar a Trindade, que é o próprio Deus, princípio

 

todopoderoso da criação do universo. Notemos com que 

cuidado o Verbo, segundo Nicolau de Cusa, mantém a 

relação entre a Trindade divina e a obra criadora: se 

não fosse a Trindade, o princípio primeiro não seria como de fato o é, o princípio mais simples, o mais eficaz, o mais 

 poderoso.

O Caldeu confessase convencido, mas lhe resta um 

escrúpulo, porque, êle, pelo menos, recordase de que a 

linguagem da Igreja Católica é um tanto menos vaga 

que aquela de que usa aqui o Verbo. Que Deus tenha 

um Filho e compartilhe com êle de sua divindade, objeta 

êle, eis o que contestam os árabes e muitos outros com 

êles. A isto responde o Verbo que, efetivamente, alguns 

dão à Unidade o nome de Pai, à Igualdade o de Filho, e a seu Nexo o de Espírito Santo. Estas expressões não 

se devem tomar ao pé da lêtra, mas expressam conve-nientemente a Trindade, porque a Igualdade nasce da Uni-

dade como o Filho nasce do Pai, e da Unidade do Pai e da 

Igualdade do Filho procede o Amor, ou Espírito Santo.  Todavia, acrescenta o Verbo, se pudéssemos encontrar 

expressões mais simples, elas conviríam ainda mais adequa-damente. Impossível mostrarse mais acomodatício com

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sendo êste um ponto a respeito do qual o acordo será 

difícil. Entrementes, o Verbo anuncia que o apóstolo 

Pedro está encarregado de esclarecer a questão. Aquele, de fato, aparece e toma por sua vez a palavra, mas se 

contenta antes em estabelecer, o que não é difícil, que se 

todos concordam que o Verbo se fêz homem, êste 

homem, que se chama o Verbo de Deus, é também Deus. Mas, aqui, o Persa protesta, porque a dificuldade que o 

 prende é toda outra. Trata-se, com efeito, para êle, de 

saber como Deus, que é imutável, possa ter-se tornado 

homem, isto é, em suma, não-Deus. Eis, disse êle, o que 

concordamos todos em negar; com efeito, mesmo alguns 

dentre nós que trazem o nome de cristãos, reconhecem, 

como nós, que é impossível que o infinito seja finito, 

que o eterno seja temporal.

Pedro não o contesta. Pelo contrário, reconhece 

expressamente que tais proposições devam ser negadas; mas, como aquêles entre os persas que professam o Isla- mismo reconhecem que Cristo é o Verbo de Deus, no que 

têm razão, devem admitir, também, que Cristo seja Deus; e não apenas um homem inspirado pelo Verbo de Deus 

como ninguém o fôra antes dêle, mas o próprio Deus. O Persa não podería, ao menos, contestar que Cristo haja 

tido uma natureza humana, o que os cristãos admitem 

igualmente, porque foi verdadeiramente um homem como 

outros homens e mortal como êles. Mas, não era segundo 

essa natureza que era o Verbo de Deus. Se os próprios 

 persas o reconhecem, de que modo podería Êle ter sido ? Não pela natureza, dizem êles, mas pela Graça, isto é, como um profeta e, mesmo, se querem, como o maior 

dos profetas. Pedro considera todavia, que isto não basta. 

Cristo não foi simplesmente um enviado de Deus, mas 

Seu Filho, o Verbo nascido do Pai e o herdeiro de sua 

dignidade como de seu poder. Assim, se bem que o Filho 

não seja o Pai, êle não é menos rei do que êle. Quanto 

a dizer que Deus não possa ter um Filho, nada mais 

certo, se, ao menos, se deseja tomar ao pé da lêtra uma tal  comparação, porque chegar-se-ia então a dizer que o Filho 

é um Deus diferente do Pai, como o filho do rei é um  

homem diverso do rei. Mas, deixemos de lado as pessoas,

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e não consideremos senão o poder que se funda sôbre a 

dignidade régia do Pai e do Filho, seu herdeiro. Como, então, não ver que esta dignidade régia é uma e a mesma 

no Pai, que é iningendrado, e no Filho que o Pai engen-

dra como seu Verbo ? Se se concorda nisto, porque não 

admitir que esta realeza engendrada possa assumir uma na-tureza estranha para associála indivisamente à sua pró- pria autoridade régia, de modo que, a herança que um 

 possua por natureza, o outro possua por adoção ? Ora, adoção não é aqui inseparável da filiação, que apenas a 

torna possível; é preciso, pois, que o herdeiro adotivo seja 

o mesmo que o herdeiro natural. Com efeito, se o adotado 

não fosse a mesma pessoa que o verdadeiro filho, como 

 poderia ter parte nesta herança indivisível ? Concluamos, 

 pois: a natureza humana achase ligada à natureza divina 

do Verbo por uma união indivisível que, sempre res- peitando sua distinção, uneas na Divindade de uma só 

Pessoa. , >.

 Apesar de sua boa vontade, porque começa a achar 

isto muito claro, o Persa pede que lhe expliquem o ponto,  graças a um exemplo, e Pedro empenhase logo em satis-fazêlo, não sem o ter prevenido que nenhum exemplo 

 verdadeiramente apropriado é, aqui, concebível. Imagi-nemos um homem dotado da maior sabedoria possível; 

a natureza humana seria nêle unida da maneira a mais 

imediata possível com a natureza divina, pois que êle o 

seria, pela sabedoria, unido com o Verbo da Sabedoria 

eterna. Para que esta união fosse a mais estreita possível, 

seria necessário que, por uma graça tal como não podemos 

conceber maior, a natureza humana fosse então, pessoal-

mente unida à natureza divina. Certamente, mesmo que 

se admita, como é devido, que esta graça seja ela própria 

incluída na natureza de tal homem, êle permanecería ainda 

um homem e não seria Deus. O que distingue Cristo de 

todos os outros homens, mesmo dos maiores profetas, é 

a grandeza única de sua pessoa, que unicamente permitiu 

sua união com a natureza divina. Somente em Cristo a 

natureza humana achase unida à natureza divina na uni-dade de um mesmo suposto. Talvez os árabes, que reco-nhecem que Cristo é o Verbo de Deus e o Altíssimo,

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serão encorajados, por esta imagem, a reconhecer que 

Cristo é Deus, sem que a unidade de Deus seja rompida. O Persa não se acha ainda, porém, totalmente satisfeito, 

 porque doravante tranqüilizado sobre a integridade da 

 pessoa divina na Encarnação, é pela pessoa humana que 

se inquieta. Para acabar de convencêlo, Pedro convidao 

a imaginar um pedaço de ferro atraído por um ímã. O ferro perde seu pêso, mas, conserva a sua natureza.  Assim, em sua inseparável união com a natureza divina, a natureza humana de Cristo permanece o que ela é. A  comparação passa um pouco longe, o próprio Pedro o 

confessa, mas o Persa declara que compreende e parece 

darse desta vez por satisfeito. Aliás, aqueles árabes que 

admitem que Cristo ressuscitou dentre os mortos e rea-lizou outros milagres, devem bem compreender que não 

 podería ter feito isto senão pelo poderio de sua natureza 

divina. Com os judeus, isto será mais difícil porque nada 

querem ceder neste ponto. Êles bem que possuem as suas Escrituras, onde tudo se acha dito sobre Cristo, mas, afer  

rados à lêtra, se recusam a ver o sentido. Sua resistência 

não impedirá, todavia, um acordo religioso, porque não 

são senão uma minoria e não poderão jamais perturbar 

a paz do mundo pela força das armas. Não há, pois, mo-tivo de inquietação.

O Sírio, que sucedeu ao Persa, coloca uma questão 

inteiramente prática: como, de fato, será possível realizar 

o acordo das religiões em torno dêste ponto precioso ?  A que Pedro responde: da maneira seguinte. Todas as religiões, a dos judeus, dos cristãos, dos árabes e de 

muitos outros povos não estão de acordo que, após a 

morte, a natureza mortal dos homens ressuscitará para a  vida eterna ? Se é bem assim, elas devem igualmente admi-

tir a união da natureza humana e da natureza divina na 

 pessoa de Cristo, que é a garantia de nossa ressurreição e 

de nossa imortalidade. De saída, os judeus criarão difi-culdades, pois objetarão que o Messias ainda não veio; mas, os árabes, os cristãos e todos aquêles que assinalaram seu 

testemunho com seu sangue, se unirão para atentar que já 

 veio; êles o afirmam pela fé de seus milagres e dos profe-

tas, quem lhes poderá resistir ?

 

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Pedro se desvencilha com a mesma facilidade de mui-tas outras objeçÕes. O Espanhol teme que muitos não se

 

deixem prender pela Concepção Virginal, mas se Cristo 

é o ápice da perfeição, de que pai seria filho senão de 

Deus ? Êle não pode ter nascido senão de uma virgem. 

O Turco faz observar que, segundo os cristãos, Cristo 

teria sido crucificado pelos judeus, e que os árabes 

recusam admitir, mas, os árabes não o recusariam mais se 

compreendessem que Cristo quis morrer para selar com 

seu sangue a promessa do Reino dos Céus e da bemaven 

turança que traria aos homens. A isto o Alemão objeta 

que, precisamente, é sobre a natureza desta beatitude que 

as religiões menos se entendem. Os judeus contam sôbre 

bens sensíveis, mais puramente temporais; os árabes espe-ram prazeres carnais, mas eternos; os cristãos esperam 

alegrias espirituais semelhantes à dos anjos. Como esta-belecer acordo entre êles ? Simplesmente lhes dando a

 

entender que as descrições do Alcorão não passam de ma-neiras de falar. Tratavase de fazer compreender a um

 

 povo grosseiro e usando imagens grosseiras que Deus 

nos prometeu a felicidade suprema, que seja accessível à natureza humana. É o que seus sábios muito bem viram. 

 Avicena, por exemplo, não diz que a felicidade de ver a 

Deus ultrapassa infinitamente os prazeres que o Alcorão  

anuncia ao povo ? Que prazeres, por sinal ! . . . As more-nas de olhos grandes que nos promete nada representam ao

 

 Alemão, interessado nestas coisas, mesmo se as oferecermos 

nesta vida. Não será, pois, difícil fazer acordo entre todas as religiões sôbre êste ponto. Dirseá simplesmente, desta

 

beatitude, que ela ultrapassa tudo o que dela se pode 

dizer, porque consiste na satisfação de todos os desejos, na 

fruição da própria fonte do bem durante a vida eterna. 

É verdade que, uma vez mais, os judeus serão recalci 

trantes. Pretenderão não atingir a felicidade senão nesta 

 vida; mas aceitariam morrer por sua fé se não esperassem 

qualquer beatitude futura ? De fato, não dizem que não 

há vida eterna; não é nem sôbre suas obras que êles con-

tam, mas sôbre sua fé, e já dissemos bastante que a fé  pressupõe o Cristo.

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Com o Tártaro surge a questão dos sacramentos. Seus compatriotas professam a existência de um só Deus e

 

o que lhes causa surprêsa, nas outras religiões, é a multi- plicidade e a diversidade de seus ritos. Divertemse, ainda 

mais com isto pois que, para honrar um só e mesmo Deus, uns se fazem batizar e enquanto que outros se fazem 

circuncizar. E se considerarmos o casamento ? Certos 

 povos não admitem senão a monogamia, outros uma 

mulher legítima e muitas concubinas, outros ainda mui-tas mulheres legítimas. Semelhante diversidade observase 

nos sacrifícios, o que não ocorre sem engendrar oposi 

ções, inimizades, ódios e guerras.

Desta vez, Pedro, guardião da verdade divina, cede 

a palavra a Paulo, o Apóstolo dos gentios, que irá ver-dadeiramente muito longe na estrada da conciliação.

 

Nada lhe será mais fácil, porque sabemos que, segundo 

êle, não são as obras, mas a fé que salva. Quem a re jus-tifica, viverá eternamente. Concordandose com isto, 

os ritos não serão um obstáculo, porque não são senão 

sinais sensíveis da verdade mesma da fé. Os sinais podem 

 variar, mas não as verdades que significam. Após haver 

explicado ao Tártaro, que lhe levantou a questão, em que 

consiste a justificação pela fé em Cristo e que é bastante 

 para obter a vida eterna, Paulo procede a uma breve expo-sição dos mandamentos de Deus, dos quais o amor é a 

consumação e ao qual todos se relacionam. Dito isto, 

a questão dos sacramentos não oferece mais dificuldades 

insuperáveis. O batismo é seguramente necessário, mas, é 

um sacramento de fé. Repousa sôbre o fato de que, se 

 JesusCristo pode justificar o homem, deve poder laválo 

de seus pecados. Por isto, a fé é necessária nos adultos, 

que não podem ser salvos sem haver recebido êsse sacra-mento, a menos que lhes seja impossível recebêlo. Quanto

 

às crianças, admitirseá mais fàcilmente, tanto mais que os 

judeus as circuncidam aos oito dias de nascidas. Serlhesá, sem dúvida, agradável substituir a circuncisão pelo ba-

tismo. Aliás, se o batismo não lhes agrada, é deixálos 

escolher.

O Boêmio coloca, então, o problema do sacramento 

da Eucaristia a respeito do qual, como é sabido, tantas

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controvérsias agitaram outrora seu país. Como, pergunta 

êle, se conseguirá a aceitação da transubstanciação por todos os povos ? Paulo procura explicarlhe, mas êle 

a acha difícil de compreender. Não, replica Paulo, ela 

é fácil para a fé, porque esse sacramento é um sinal sen-sível que significa o alimento da vida eterna. É mesmo

 

 porque, se a fé está aí, não é de uma necessidade tal que 

não se possa atingir sem êle a beatitude, pois, para obtêla 

basta crer e alimentarse assim do pão da vida. Vêse, tam-bém, porque nenhuma lei coercitiva determina a quem, nem quantas vezes êsse sacramento deve ser dado ao povo.

 

Quando alguém tem a fé, mas se julga indigno da mesa 

do Soberano Rei, é uma louvável humildade a abstenção. Como as autoridades eclesiásticas possuem todo o poder 

de regular estas questões segundo os lugares, os tempos, e as circunstâncias, é possível, pois, num respeito comum

 

 pela fé, cuja lei permanece necessária, estabelecer um 

acordo de paz entre os povos. Encorajado, sem dúvida, 

 por esta extraordinária largueza de vistas, o Inglês per-gunta afinal o que se fará dos demais sacramentos: casa-mento, ordenação sacerdotal, confirmação e extrema

 

unção. Sua expectativa não é desapontada, porque o 

 Apóstolo Paulo lhe responde que é preciso considerar 

em todas as coisas a sabedoria humana, enquanto não apre-senta obstáculo à salvação. Querer uma perfeita confor-midade nessas matérias seria, antes, nociva à paz. Podese,

 

não obstante, esperar que um acordo se faça a respeito 

do casamento e da ordenação, pois, todos os povos pare-cem tender espontaneamente para a monogamia, e o sa-cerdócio é uma instituição comum a todas as religiões. Êstes sacramentos são, aliás, de tal pureza no cristianismo,

 

que, sem dúvida, será fácil o entendimento a respeito. 

Ninguém diz uma palavra a respeito do sacramento da 

 penitência, o que simplifica certamente o problema, e 

quanto aos jejuns, abstinências, fórmulas de oração, fun-ções eclesiásticas e outras instituições análogas, São Paulo

 

atribui liberalmente a todas as nações o direito de seguir 

nisto suas práticas de piedade e suas cerimônias costu-meiras, contanto, somente, que a paz e a fé sejam salvas.

 

Talvez, aliás, a piedade religiosa tenha mais a ganhar do

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que a perder do fato de haver alguma diversidade, cada 

nação desejando tomar a dianteira sobre as demais em pie-dade e em zêlo, para assegurarse mais glória aos olhos do 

mundo e mais mérito aos olhos de Deus. __ 

Não se pode ser mais otimista."A discussão termi-nada, preparase um certo número de obras sobre os cos-tumes dos antigos. A redação delas foi confiada a escri-tores eminentes em cada língua, escolhidos entre aqueles 

que, como Varrão entre os latinos, e Eusébio entre os 

gregos, haviam comparado entre elas as diversas religiões. Seu exame revela que tôdas suas diferenças se referiam  

antes aos costumes religiosos que ao culto de um só Deus,  pois, tôdas as religiões o pressupõem e lhe prestam culto, 

apesar de que, seduzido pelo Espírito das Trevas, o sim- ples povo o tenha feito, por vezes, sem o saber. Assim, firmouse no céu o acordo entre tôdas as religiões do 

mundo. Uns anjos foram encarregados de comunicálo 

aos homens, enquanto se esperava que um concilio uni- versal se reunisse em Jerusalém, a fim de que uma fé 

única fôsse adotada em nome de todos e que, sôbre esta 

fé comum, se estabelecesse uma paz eterna e que, graças 

a esta paz, o Criador de todos recebesse o louvor e a honra 

que lhes são devidas por toda a eternidade. Amém. Aqui termina o livro sôbre A az da Fé   pelo cardeal Nicolau de Cusa, que ninguém acusará de timidez ou de 

estreiteza de visão. Êsse livrinho é duplamente supreen dente, pelo fato de ter sido escrito e de que a Igreja não 

o haja condenado, mas é à iniciativa que nós devemos 

reservar tôda a nossa atenção.Em primeiro lugar, não se poderá ver aí uma exposi-

ção do que Nicolau de Cusa pessoalmente considerava a re-

ligião católica. Pessoalmente, êle não possuía fé diferente 

da Igreja. O centro de seu interesse não é aqui a fé 

cristã, que não está em jôgo, mas, a paz religiosa da terra, que espera poder obter por uma espécie de concordata 

entre as crenças as mais diferentes. Em segundo lugar, seu irenismo não consiste em sacrificar o cristianismo às 

outras religiões para obter seu acordo, mas, ao contrário, a lhes fazer tomar consciência dos acordos de fato que 

as unem ao cristianismo e dos progressos espirituais que

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realizarão se, por um esforço de purificação no sentido 

de sua própria verdade, elas se aproximassem dele. Não 

se porá cm dúvida nem por um instante que o cardeal 

de Cusa deseje ardentemente a cristianização total do 

globo; é mesmo provável que a paz da fé se haja apresen-tado ao seu espírito como um meio necessário de chegar a 

isto, somente que, ao contrário de Rogério Bacon, não 

a espera dentro de nenhum prazo previsível. Daí porque, em lugar de eliminar as seitas e as religiões adversas, as 

concilia. A república dos crentes não se compõe exclusi- vamente de cristãos, ligados pela unidade de uma só e 

mesma sabedoria: ou melhor, a fim de legitimar a coexis-

tência de religiões diferentes no seio de uma paz comum, 

recorre à sua noção pessoal de uma sabedoria aberta à 

coincidência dos opostos e à união dos contrários. Depois 

de tudo dizer, uma coisa perdura — a partir do Cardeal de Cusa, é a intenção da fé que une o que a fé divide. Êle próprio não teria, talvez, aceito esta fórmula. Vista  

do alto de sua contemplação mística e de sua teologia 

metafísica do Verbo, nossas distinções tendem a apagar 

se e nossas ordens a confundiremse. Sem nada perder 

de sua unidade, a fé cristã absorve progressivamente tôdas as oposições superficiais à medida que penetramos melhor 

em sua profundidade. Mas, precisamente, não se univer-saliza mais diretamente tal e qual, com a lêtra de seus 

dogmas, as determinações conceituais de sua teologia, o sistema já muitas vêzes secular de seus sacramentos, de 

suas instituições e de seus ritos. A inteligência da fé, mais 

do que a própria fé, tende a tornarse o princípio da paz 

e da organização religiosa da terra. Aproximase o mo-

mento em que o universalismo da razão oferecerá seus serviços aos arquitetos da humanidade futura. A teologia 

 vai tornarse metafísica no sonho de Campanella.

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C apítulo

 V I

A Cidade do Sol

Discutia -se   muito  

sobre o sentido daCi-

dade d S l.  É permitido fazêlo, porque não se vê ime-diatamente se Campanella(1) se contenta em imaginar o 

modêlo utópico de uma sociedade de extensão restrita ou se a reforma que êle considerou deve se estender, pro-gressivamente, à terra inteira. Com efeito, os solarianos são um pequeno povo, estabelecido em uma ilha onde  vivem quatro outros povos, com os quais acontece esta-rem em guerra. Em oposição, o título completo do texto

(l) Campanella, nascido em Estilo (Calábria) em 1568, entra noconvento dominicano de Placanica (1582); continua seus estudos no con

 vento de Nicastro (1586-1588), depois em Cosenza. Entusiasma-se peloanimismo universal de Telésio, a respeito do qual publica um livro.Primeiro processo de heresia, seguido de abjuração (1591-1592). A partirdêste momento êle, pràticamente, não sai de semelhantes processos,muitos dos quais ligados a projetos de reforma da Igreja. Nesta ordemassinalemos os seguintes escritos: Comentário sôbre a monarquia dos  cristãos   (1593-1594); Discurso aos príncipes da Itália   (1595); O  gov êrn o  ec l es iást i co  (1595) em que reivindica para o papa o direito à monarqyiauniversal. Em 1599, implicado na revolta anti-espanhola de Calábria, éprêso e encarcerado de 8 de novembro de 1599 a 23 de maio de 1626.Libertado, é prêso de nôvo e condenado pelo Santo-Ofício à reclusão perpétua. Agraciado em 6 de abril de 1629 porque o consideram louco,

dirige-se a Roma, onde entra em relações com os meios franceses, queo fazem passar para a França em outubro de 1634. Em 1635, na sua M onarchie d e lle Nazioni,  oferece ao rei de França o cetro da monarquiauniversal. Em 1638, por ocasião do nascimento do futuro Luís XIVtira-lhe o horóscopo. Ler-se-á mais adiante uma pretensa narrativadêste acontecimento. Morre em Paris, a 21  de maio de 1639, com a idadede 71 anos.

Sôbre a vida e as obras de Campanella, ver os excelentes trabalhosde Luigi   A mabile, Fra Tommaso Campanella, la sua congiura, i suoi   p ro ce ssi e la sua pazzia,   Nápoles, 3 vols, 1882. Continua sendo a biografiaclássica de Campanella. Sôbre a doutrina, Leon  B lanchkt, Campanella, Paris, 1920. Para a Cidade do Sol,  seguimos o texto italiano, que parece ooriginal, Città dei Sole, Testo critico, introduzione e note,   ed. GiuseppePaladino, Nápoles, 1920. Nós o completamos, ao ensejo, pela traduçãolatina muitas vêzes mais explícita: F. Thomae Campanellae Civitas Solis, Poét i ca idea re ipubl i cae phi losophicae ,   Utrecht, 1643.

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italiano apresenta êste opúsculo como “um diálogo sobre a república”, onde se propõe “a idéia de uma reforma da república cristã” e isto faz supor um projeto muito mais 

amplo. Campanella mesmo sugeriu diferentes interpreta-ções de sua obra, conforme as circunstâncias o convidas-sem a fazêlo (2) e o mais sábio é, sem dúvida, deixála 

apresentarse sob sua verdadeira aparência.No comêço do diálogo, um cavalheiro da Ordem do 

Hospital pede a um marinheiro genovês que lhe conte toda sua viagem. Êste marinheiro recordalhe como, ao 

fazer a volta ao mundo, atingiu o Ceilão, sendo forçado a descer à terra e, por temer a ferocidade dos selvagens, 

 procurou abrigo em uma floresta, de onde terminou por sair em uma vasta planície, situada, nos assegura êle, jus-tamente sobre o Equinócio. Esta maravilha geográfica não é senão o prelúdio de muitas outras, porque nosso 

navegador genovês se vê subitamente cercado por um exército de homens e mulheres, muitos dos quais, com-

 preendendo sua língua, o conduziram à Cidade do Sol. A maior parte da cidade está construída em colinas, 

no seio de uma vasta planície, onde se espalham seus 

bairros exteriores. A cidade propriamente dita tem mais de duas milhas de diâmetro e 7 milhas de circunferência, mas, como foi construída numa elevação, possui mais 

casas do que se fôsse numa planície. Dividida em sete círculos imensos, cada um trazendo o nome de um dos sete planêtas, nela se entra por quatro portas e quatro ca-minhos correspondentes aos quatro pontos cardeais. Êstes sete círculos são, antes de tudo, fortificações, porque suas 

muralhas são cada vez mais difíceis de conquistar, de modo 

que é necessário tomar sete vêzes a cidade de assalto  para submetêla; ora, a primeira apenas, é de tal modo 

defendida que parece inexpugnável. Passemos sobre os detalhes pitorescos que, aqui, deleitam Campanella, atra

(2) Città dei Sole,  pág. 30.  A Civitas Sólis,  escrita em 1602, retocada em 1613, foi publicada como apêndice aos Realis philosophiae  epi logis t i cae partes quatuor.  Francfort, 1623. Seu título era então,

, Civitas Solis, appendix Politiae, Idea reipublicae philosophiae.  0 projetodestinado a submeter as Flandres à Espanha data também de 1602;será publicado na  M o n a r ch ia d i S p a g n a ,  em j 620. A  M onarchia e   M essiae,  escrita em 1605, foi publicada em 1633. Sôbre as idéias deCampanella relativas à monarquia universal v. L . Blanchet, págs. 515-521.

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as ciências, a todos os mestres e regentes das artes liberais e mecânicas e tem sob suas ordens tantos funcionários 

quantos são as ciências: o astrônomo, o cosmógrafo, o 

geômetra, o retórico, o gramático, o médico, o físico, o 

 político e o moralista. Um livro único contém todas as 

ciências e é lido a todas as pessoas, como o faziam os 

 pitagóricos. — Ademais, a Sabedoria fêz pintar todas as ciências em tôdas as muralhas disponíveis. As armações, que se abaixam entre as colunas dos templos para impedir que as vozes dos padres se percam quando pregam, re-

 presentam as estrelas, seus nomes, grandezas e movimen-tos. No interior do primeiro círculo, as figuras de geome-

tria, em muito maior número do que as desenhadas por Euclides e Arquimedes; no exterior, uma carta em con-

junto da terra e as cartas particulares dos diversos países 

com seus ritos, leis, usos e costumes e os alfabetos que 

utilizam, comparados aos da Cidade do Sol. O interior do 

segundo círculo ensina a mineralogia e a petrografia. Tudo se acha aí pintado em forma de imagens, com dois 

 versos de explicação para cada uma delas. O exterior en-sina tudo o que diz respeito aos líquidos: lagos, mares, 

rios, vinhos, óleos e licores de tôdas as espécies, com suas 

 virtudes, origens e qualidades. Conservamse lá frascos 

cheios de diversos licores, com 100 a 300 anos, os quais 

curam tôdas as doenças. É ainda ali que estão representa-dos os fenômenos metereológicos, ventos, chuvas, gra nizos, tempestades, arcoíris, não somente representados, mas, reproduzidos à vontade em laboratórios apropriados. Percorramos mais ràpidamente a terceira muralha com sua 

face interna consagrada à botânica e a externa à ictiologia; 

a quarta, que representa de um lado as aves e do outro 

os insetos; a quinta, ocupada pelos animais terrestres nas duas faces, mas, paremos um momento diante da sexta que 

nos propõe um problema muito curioso. A face interior da muralha representa tôdas as artes 

mecânicas, os diversos engenhos conhecidos e as maneiras 

 pelas quais são usados nos diferentes países do mundo, mas, no exterior, vêmse “todos os inventores das leis. 

ciências e armas”. Foi lá, disse nosso navegador, “que 

encontrei Moisés, Osíris, Júpiter, Mercúrio, Maomé e

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riam mais despojados, mais santos e mais caridosos para com todos”.

 A esta consideração do original italiano (8), a edição 

latina de 1637 ajunta com prudência: “como eles estavam no tempo dos apóstolos e estão ainda, para a maioria”.Êsse Estado, onde florescem todas as virtudes, não 

deve sua perfeição à autoridade de um rei, ao governo  do povo ou ao de uma oligarquia, mas à ciência e à sabe-doria de seu chefe. Tudo depende da escolha que se faz  e é por isso que Campanella o cerca de múltiplas pre-cauções. “Ninguém pode ser o Sol, se não conhece, a his-tória de todos os povos, os ritos, os sacrifícios, as repú-

blicas, os inventores das leis e das artes; deve ainda saber as artes mecânicas que aprende, dia sim, dia não, graças à prática e às imagens. Que saiba, também, tôdas 

as ciências, matemáticas, físicas, astronômicas. Quanto às línguas, inútil se preocupar, pois, êste povo tem intérpre-tes que são seus gramáticos. Mas, antes de tudo, Sol deve ser um metafísico e um teólogo; deve conhecer a fundo  os princípios e as demonstrações de tôdas as artes e ciên-cias, as semelhanças das coisas e seus contrastes, a necessi-

dade, o destino e a harmonia do mundo, o Poder, a Sabe-doria, e o Amor de Deus que se encontram em tôdas as coisas; a hierarquia dos sêres, a correspondência entre os corpos celestes e os do mar e da terra; deve estudar bas-tante, enfim, as astronomia e os profetas. Eis o que deve 

ser o Sol. Não se chega a Sol antes dos 35 anos, mas, o Cargo é perpétuo até que se encontre alguém mais sábio ou mais apto a governar” (9).

Conquistado inteiramente pelo govêrno dos filósofos, Campanella segue resolutamente Platão neste ponto. Fosse êle um pobre homem de Estado, Sol não seria nunca cruel, nem celerado, nem tirânico; sabe muitas coisas para isto. Sobre tudo, sabe muito bem o que sabe; porque Sol não tem a cabeça cheia de gramática nem da lógica de

(8) Città d e i Sole , pág. 10. V. pág. 12: o protesto de Campanellacontra funcionários inúteis, que são a ruína do Estado, e seu elogio,tão moderno, do artífice e do operário: “Onde si ridono di noi ehe gliartefici appellamo ignobili. . . ”. Cf. pág. 25-26, o elogio do trabalhomanual e dos esportes.

(9) Città dei Sole,  pág. 13.

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 Aristóteles; não carregou inutilmente a memória com o 

que ensina tal ou qual autor. Seu estudo trata das coisas, não dos livros; não é como certas pessoas, que só sabendo 

uma ciência, não conhecem bem nem esta nem outras. Espírito aberto e livre, Sol está sempre pronto a aprender 

tudo aquilo que necessita saber, sobretudo em uma cidade 

como a sua, onde as ciências se aprendem com uma facili-dade tamanha, que nela se aprende mais em um ano do que 

em dez ou quinze anos nas nossas. O método descritivo de 

ensino, que aí se usa, permite ao chefe supremo aprender 

tudo, e a seus três ministros, o necessário para exercer bem suas funções. São todos, pelos menos, filósofos, e mais, historiadores, naturalistas e humanistas. Nunca se

 

 viu outorgar à sabedoria confiança mas absoluta, nem lhe 

confiar com tão poucas reservas a chefia suprema do 

Estado.

O defeito mais aparente desta cidade da Sabedoria 

é de ser, ao mesmo tempo, a Cidade dos Professores. Há 

 professores por tôda parte e são êles que governam, cada 

um no lugar que lhe vem de direito, em uma hierarquia 

governamental, que se confunde com a das técnicas e das ciências. Sol, que é metafísico, detém a sabedoria; co-

manda todos os solarianos como a metafísica, ciência 

arquitetônica, comanda todas as outras. Sob sua autori-dade vêm se alinhar o gramático, o lógico, o físico, o 

médico, o economista, o moralista, o astrônomo, o astró-logo, o geômetra, o cosmógrafo, o músico, o perspectivista, 

o aritmético, o poeta, o orador, o pintor e o escultor.

Sob Amor estão, entre outros: o geneticista, o educa-

dor, o alfaiate, o agricultor, o criador, o pastor, o cozi-nheiro. Sob Poder, vemos: o ministro da Defesa, o fe r-

reiro, o armeiro, o tesoureiro, o ministro das Finanças, 

o engenheiro, o chefe da Cavalaria, o artilheiro e outros 

mais. Cada um dêles tem sob suas ordens artífices corres-

 pondentes, que, judicialmente, dependem dêle e são jul-gados por êle segundo a lei estrita do talião; morte por 

morte, olho por olho e dente por dente, salvo casos de 

rixa não premeditada, onde somente os três grandes mi-nistros podem pronunciar as sentenças, sendo o direito de 

graça reservado ao metafísico.

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 As leis são, aliás, pouco numerosas. Todas estão gra- vadas em uma mesa de bronze, à porta do templo em 

cujas colunas se lêem as essências ou qüididades de todas 

as coisas: o que é Deus, que é o anjo, o mundo, o homem, 

etc. É lá que se assentam os juizes de todas as categorias e, logo que êles dão suas sentenças, contentamse em 

dizer: “Pois bem, tu pecaste contra esta definição, lêa”. Condenam, então, por ingratidão, preguiça ou ignorância

 

e, as condenações deste gênero são remédios ligeiros e 

não penas. Após os juizes e os tribunais, seguemse os padres 

e o culto. Êste govêrno dos sábios e professores é, ao 

mesmo tempo, dos padres, porque Sol é o SumoSacer 

dote, todos os altos dignatários são padres e seu ofício é  purificar as consciências. Cada um lhes confessa seus pró-

 prios pecados, e mesmo os dos outros, se se trata de faltas 

graves e prejudiciais ao interêsse comum. Aprendem assim, 

quais os pecados cometidos mais freqüentemente. Por sua 

 vez, êstes altos dignatários, se confessam aos três primeiros 

ministros, dizendo seus pecados, e de modo geral, os dos 

outros, mas sem nomear os pecadores. Não falta mais aos três, que se confessar ao Sol. Informado por êles dos 

gêneros de faltas mais cometidos, toma as medidas apro- priadas, oferece a Deus preces e sacrifícios, confessando lhe suas faltas, e, toda vez que é necessário, confessando

 

sobre o altar as do povo, a fim de corrigilas, mas sem 

dizer os nomes. No alto do templo, vinte e quatro padres 

se revezam dia e noite para cantar os salmos, dos quais 

se encontram modelos nas poesias italianas do próprio 

Campanella; para observar os astros e, graças à esta obser- vação, inferir as mudanças cpe se produzem nos povos. 

Indicam as horas favoráveis a procriação das crianças, os 

dias da sementeiras e das colheitas, em resumo, servem de 

intermediários entre Deus e os homens.É, geralmente, entre suas fileiras que se escolhe o Sol.

 

Estudando e escrevendo, só descem para comer, e não fre  

qüentam mulheres a não ser de tempos em tempos, por 

questões de higiene. Sol vai todos os dias falar com êles 

acêrca das descobertas que empreendem no interêsse da 

cidade e do mundo. No templo inferior, há sempre um

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 padre que faz as orações mudando de hora em hora, como 

fazemos nas “quarenta horas”. Após a refeição, dão gra-ças a Deus com música, “depois contamse as façanhas 

dos heróis cristãos, hebreus e pagãos de todas as nações”, 

assim como os hinos de amor, de sabedoria e de virtude. Cada um escolhe o hino que prefere e todos tomam parte  

em bailes magníficos, sob os claustros. Sem voltar à 

abadia de Thé è e,  porque a vida aí continua estrita-mente regulada, a Cidade do Sol baniu de seus claustros 

todo excesso de ascetismo, e o sincretismo religioso estra 

mente liberal que aí se cultiva não é inimigo dos amores 

e dos prazeres. Isto não é menos uma religião, porque os 

solarianos adoram um só Deus e é Êle que adoram na  

natureza, onde veem, antes de tudo, o seu templo. Inimi-gos de Aristóteles, por eles considerado um pedante, reco-nhecem dois princípios físicos, o Sol que é o pai, e a Terra  

que é a mãe. O mundo é para êles um imenso animal, no qual estamos, assim como os vermes em nosso corpo. Submetido à Providência de Deus, e não à do mundo, o homem tem uma alma imortal, que se encontra, após a 

morte, com os espíritos bons ou maus, segundo seu mere-cimento. Quanto aos lugares destas recompensas e dês tes castigos, parece razoável que sejam o céu e os infer-nos, mas, os solarianos não estão inteiramente certos a êste 

respeito. Curiosos de saber se estas penas são eternas ou 

não, estão certos de que há anjos bons, mas tristes, como  

acontece entre os homens. Se há ou não há outros mun-dos, os solarianos não sabem nada de certo; todavia, con-sideram absurdo dizer que existe o nada, porque não há o 

nada nem no mundo, nem fora do mundo, ou em Deus 

que é o infinito.O nada não é senão a falta do ser. Podese dizer,

 

contudo, com seus metafísicos, que há dois princípios das 

coisas, o ser e o nada, no sentido em que, se não há ne-nhuma carência de ser, nada poderia nascer ou se rom- per e não se veria produzir nem mal nem pecado, que 

não são senão uma carência de ser.Privados da revelação, os solarianos ignoram as rela-

ções das pessoas divinas e não conhecem os nomes que lhes 

damos; não é mais surpreendente vêlos adorar Deus na

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Trindade, e dizer que Êle é o Poder supremo do qual  procede a suprema Sabedoria, como de um e outro pro-cede o supremo Amor. Ê, ademais, porque, enquanto o são, todas as coisas se compõem a seus olhos de poder, 

sabedoria e amor, mas também de falta de poder, de sabe-doria e de amor, enquanto que dependendo do nãoser. É assim que merecem ou desmerecem, e o fazem a tal 

 ponto que não se podería explicar, sem admitir que uma grande desordem se tenha introduzido no mundo. Como ? Não é fácil dizer, mas julgam feliz o cristão que se con-tenta em crer que isto tenha acontecido por causa do 

 pecado de Adão. Por assim dizer, pensam que os filhos herdam o castigo antes da falta, e que a falta propriamente 

dita remontaria, primeiramente, dos filhos aos pais. Pen-semos na negligência que estes últimos provam, quando, após haver concebido filhos fora dos lugares e tempos convenientes, em estado de pecado e sem escolher o pai e a mãe segundo as regras de eugenia, os educam mal e os. instruem pior ainda! Os solarianos, ao contrário, tomam grande cuidado com a geração e educação de seus filhos e, quando há uma falta contra uma ou outra, dizem que o castigo, como a falta, recai, além dos filhos e dos pais, sobre a própria Cidade. A verdadeira religião deve aqui representar seu papel, porque ela consiste em conhecer o mundo para honrar a Deus em suas obras e usar das leis que as regulam para produzir outras obras que igualmente lhe prestem honra.

Os solarianos não são cristãos, porque não receberam  

ainda a revelação de Cristo. Não fazem, em tôdas as suas atividades, senão seguir a lei da Natureza, mas é esta a razão  

 pela qual os vemos tão próximos do cristianismo, “que não acrescenta nada à lei natural, salvo os sacramentos” (10). Esta observação define tão precisamente quanto possível, com a própria posição de Campanella, o sentido da Cidade 

d S l.  Seria, sem dúvida, exagerado dizerse que sonha com uma religião natural para substituir o cristianismo ou que pretenda situar o cristianismo nos limites de uma religião natural. Que o problema não seja perfeitamente claro em seu pensamento, admitese, tanto mais que, fa

(10) Città dei sole,  pág. 59.

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lando em termos gerais, o pensamento de Campanella não brilha quase pela precisão. Um ponto, pelo menos, parece 

seguro. Campanella considera aqui a reforma, senão do cristianismo, ao menos da teologia e da vida cristãs, pela eliminação de tudo o que aí se introduziu contràriamente à lei natural, salvo os sacramentos. Os solarianos, suas idéias e seus costumes formam aqui, para nós, uma expe-riência decisiva, precisamente porque, não sendo cristãos, estão, todavia, muito perto do cristianismo, resultando daí a conseqüência de que a religião cristã, não alterando em nada a lei da natureza, suas doutrinas e seus costumes 

 podem bem ser chamados complementos cristãos, mas não correções. Campanella propõe, pois, em sua utopia, o 

 projeto de uma reforma das idéias e dos costumes pelo retomo à lei natural, ficando bem entendido que o cris-tianismo deve permanecer para santificálos.

É difícil colocarse em seu ponto de vista e, mais ainda, de se manter nêle. Caso a atenção se volte sôbre um ou 

outro dos dois momentos de sua tese, vêse nêle tanto um cristão sincero a procura de uma reforma, como um 

deísta que trabalha a solapar as próprias bases do cristia-

nismo. Ora, o próprio de sua posição é de suprimir a alter-nativa. De qualquer maneira que o julguemos, êle próprio 

se vê certamente sob o aspecto de um reformador que, fazendo do cristianismo um simples complemento da lei natural, prova, sem contestação, que, se apenas o cristia-nismo é assim, será a verdadeira religião. Tudo se acha nesta única frase: “O cristianismo não acrescenta nada à 

religião natural, salvo os sacramentos; esta relação é, para mim, a prova de que a lei cristã é a verdadeira lei e que, 

uma vez afastados os abusos, será a senhora do mundo” ( n ). Pesandose os têrmos, verificarseá que esta declaração diz 

tudo.

( l i ) Città dei Sole,  pág. 69. Não havería nada de nôvo emsustentar o acôrdo, ou harmonia, entre o cristianismo e a lei da natureza; sem que o cristianismo tenha por efeito restaurar a lei da natureza para o fim de perfazê-la; tôda fórmula dêsse gênero seria normal.Não o é sustentar que corrigir os abusos introduzidos na lei naturalé suficiente para obter o cristianismo. Enganar-se-á recusando-se a crer nasinceridade dos sentimentos cristãos de Campanella, ou, a despeito detudo que sofreu, em sua ardente adesão à Igreja. Não é um deísta.O que caracteriza a posição de nosso reformador é sua ambigüidade

mesma. Considera a sua filosofia como a redescoberta da autêntica verdade cristã, e é justamente isto que lhe permite esperar que, reco-

 

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Campanella não imagina, todavia, que, assim purifica-

do, o cristianismo deva conquistar a terra apenas pela luz da  verdade. Conquistadores deverão lutar para êle e ganhar o império do mundo, mas, acontece precisamente que, como nos tempos em que o império de Augusto havia  unido na paz e na lei todos os povos da terra, a conjun-tura se anuncia favorável ao cristianismo. Ela o é de ma-neira mais forte do que antes. O império romano não havia unificado senão uma estreita faixa do globo terres-tre, tratase agora da terra inteira. Desde que o genovês Cristóvão Colombo descobriu a América, os espanhóis dela se apossaram e, apesar de alguns objetivos particulares que têm em mira, estes açambarcadores de terras não são senão instrumentos nas mãos de Deus. Conhecem o que acredi-tam fazer, mas, ignoram o que fazem, porque o termo real  de seus esforços é unir a terra inteira sob uma única reli-

gião. Movidos pela avareza, saem procurando países novos para nêles encontrar ouro, mas Deus se propõe um  fim bem diferente. Vêde o sol, êle procura queimar a terra, não fazer nascer plantas e homens, que é o que Deus lhe faz fazer; igualmente utiliza êsses descobridores e êsses fundadores de império a fim de estabelecer o reino de uma só e mesma verdade. Disto prestarão testemunho os filósofos eleitos por Deus, pois Deus se serve de uns como de outros, e que êle seja louvado por isto !

Campanella se despede de seus queridos solarianos em  páginas apocalípticas nas quais a lista de invenções moder-nas apóia inferências astrológicas para demonstrar que o tempo das grandes transformações se acha próximo. Teste-

munho clarividente, observa que a terra acaba de viver mais história em cem anos do que não vivera em quatro mil. A invenção da bússola, da imprensa e das armas de fogo preludia então a unificação do globo; os solarianos já

nhecida pela Igreja, ela possa tornar-se a lei de uma república universal.Daí seu  Atheismus tr iu mphatu s, seu rech ic ti o ad reli g ion em p er sc ie n ti arum  veritates,  Roma, 1631. O reconhecimento desta verdade não excluiría oensino dos dogmas cristãos. Ao contrário, permitiría melhorar a teologia pondo a verdadeira filosofia a seu serviço. Já seria bastanteexpulsar a doutrina corruptora de Aristóteles. É lamentável que apenaso comêço da “Suma teológica” de Campanella tenha sido até agorapublicado. Vê-se aí, porém, claramente, em que sentido uma dogmáticacristã lhe parecia ainda possível, como coincidência entre a teologia e a

metafísica, da religião e da razão.

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encontraram a arte de voar como pássaros, a única a faltar  ainda entre os homens. Graças ao telescópio, são desco-bertas conjunções planetárias inauditas e estrelas novas, que pressagiam a aparição de uma grande monarquia, a 

reforma das leis e das artes, a vinda de profetas e a reno- vação da terra. Certamente é preciso arrancar antes de  plantar e demolir antes de reconstruir. É o que se fará, mas o próprio fato de que os astros anunciam um tempo em que as mulheres dominarão, é um sinal de fecundidade.  Entre a Núbia e o Monomotapa reinam as amazonas; na Turquia, Roxelana, favorita depois mulher de Suleiman o Magnífico; Isabel, na Inglaterra; Maria, na Hungria; Cata-rina de Médicis, na França; Margarida, na Áustria; Maria 

Stuart, na Escócia; Isabel a Católica, na Espanha que acaba de descobrir um novo mundo, e tantas outras ainda que seria possível enumerar: todas anunciam uma era nova  num globo cujo circuito se poderá agora fazer. Graças às viagens dos marinheiros e dos exploradores, as religiões se estendem à África e à Ásia. Elas conquistam a terra à medida que se estendem os impérios, sejam puras como o cristianismo na Espanha e na Itália, sejam man-chadas de heresia como na Alemanha, na França, na Inglaterra ( 12). Tudo isto pode afinal lerse nos astros, 

 porque, apesar de não determinarem a vontade e deixa

(12) Seu ardor apostólico se revela no longo tratado  Quod rem i-  niscentur e t convertentur ad Dominum univers i f ines terrae   (Ps. XXI),Romanus Amerio, t. I, Pádua, 1939, XVII. Ignoramos se o t. II foipublicado. Sôbre esta obra escrita na prisão (1615-1618),  v. Eurico C arusi,  Nuovi docum en ti su i p ro ce ss i d i Tom maso Cam pan ella ,  noGiornale critico delia fi losofia italiana,  VIII (1927), fase. 5, doc. 72, de 22de maio de 1621. Retomando o projeto de Nicolau de Cusa, Campanelladecide convocar todos os povos a comparecer, a fim de restabelecer aunidade religiosa (pág. 12); sôbre sua vida em prisão, ver a emocionante

prece (pág. 28-28). É a campainha ( Campanella  ) que chama os homensa deporem as armas “quibus bestiarum more defendimus dogmata”(pág. 29). Não vê senão um só rebanho e um só pastor (pág. 33), 0

espetáculo da ruína da cristandade o aflige: “ubi est jam Ecclesia Anglicana ? ubi Pannonica ? ubi Suetia et Gothica ? ubi Dalmata ?”(pág. 47). Convoca tôdas as ordens religiosas para a luta comum:“Vexillum crucis capiamus et exeamus de claustris et litibus ineptissi-m is .. .” etc. (págs. 51-54). Seu zêlo é fora de dúvida, e há excelentes conselhos entre os que dá para reformar os abusos (pág. 58-60).Como Rogério Bacon, é pela abolição do Direito Civil em favor doDireito Canônico (pág. 59, art. 10); quer substituir a filosofia pagã pelade Cristo (pág. 59, art. 11); enfim, reclama para o papa a monarquiauniversal (pág. 68, 71). O ponto que nos importa é a idéia que fazCampanella da filosofia de Cristo. É, naturalmente, a sua própria filosofia que oferecerá ora ao papa, ora a Richelieu, como nexo dc uma

monarquia universal de que seriam os chefes.

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rem intato o livre arbítrio dos homens, podem agir sôbre os que se acham escravizados a seus sentidos, em lugar de serem submetidos à razão. Daí, a constelação que, do cadáver de Lutero, faz subir vapores deletéricos; aquela 

que, dos jesuítas contemporâneos, faz subir o perfume das  virtudes; a de Fernando Cortês, enfim que, na mesma época, promulga o cristianismo no México. Porque a heresia é obra dos sentidos, como o diz São Paulo, e é 

 por isto que os astros inclinam os sensuais à heresia, como inclinam os que usam da razão à lei santa e verdadeira da Razão primeira, que seja louvada para sempre, assim seja.

Como seu precursor Rogério Bacon, este unificador da terra passou grande n ' 1 ' " ~

não admira que os reformadores taçam a aura experiencia disto. Campanella não era, aliás, um simples reformador; era um agitador cujas aventuras políticas nada tinham de comum com os riscos puramente especulativos do exce-lente Rogério Bacon. O franciscano não tinha entrado em choque senão com o papa; nosso dominicano, que não temia empenharse por vêzes na conspiração política, ligou, sucessivamente, o êxito de sua própria reforma ao de 

muitos soberanos temporais. A nacionalidade do protetor importava pouco (13), contanto que servisse ao empreen

(13) Sucessivamente ofereceu SL_monarquia universal ao rei deEspanha ( Discorsi ai principi d’Italia,  1595), depois ao papa (11 governo  ecc lesiastico,  1595), e mais tarde ao rei de França (  M on archie d e ll e  

 Nazioni,  1635). A edição de 1687 de seu De sensu rerum et magia é  dedicada a Richelieu. Campanella lhe propõe fundar a Cidade do Sol;“Et civitas solis a me delineata, perpetuo fulgore nunquam eclipsata,ab tua Eminentia, splendescat semper”. Em 1638, ti ra o horóscopodo delfim de França, o futuro Luís XIV, que acabava de nascer. Atítulo de curiosidade, eis o texto, anônimo e não datado, narrandoesta anedota. Encontra-se no gabinete de Estampas da Biblioteca Na

cional de Paris, documentos “Delfim”, O. b 1, 1638-1639: está escrito ao verso da gravura de C. Le Brun, representando “o sistema do mundono momento do nascimento de Luís o Grande”. Êste título, só, tra iuma data posterior.

“Campanella, jacobino espanhol, (sic) que era tão bom filósofoquão entendido em predizer o futuro, estando prêso nas prisões dainquisição de Milão, encontrou acesso graças a seus amigos junto aoCardeal de Richelieu, que o tirou do cativeiro e o trouxe a Paris.

“Na ocasião, a Rainha Ana de Áustria, tendo dado à luz Luís XIV,cognominado Dieu-donné (Deus-dado), estava curiosa de saber qual odestino de um príncipe tão caro à França e tão longamente desejado.Falou a respeito ao Cardeal de Richelieu, o qual mandou procurar Campanella, cujo talento para as predições conhecia e ordenou-lhe quetirasse o horóscopo do delfim sem nada esconder da verdade. Êste

homens e as instituições

 

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dimento, mas é o espírito do próprio empreendimento o que nos interessa e, em primeiro lugar, o gênero de re-forma que quis impor à religião cristã, para dela fazer elemento de ligação de uma sociedade política de um 

tipo novo.Os historiadores de Campanella não estão de acordo 

nesse ponto. Uns, que se baseiam em sua teologia ainda 

 parcialmente inédita, não vêem nêle senão um teológo mais ou menos ortodoxo, apenas mais livre do que seus pre decessores; os outros concebem sua obra como uma ten-tativa para naturalizar integralmente o dogma e dar assim aos homens com que fundar uma sociedade univer-

sal. Êste desacôrdo se explica pela natureza de sua dou-trina. É certo que, para Campanella em pessoa, a ver-dade se achava em sua própria interpretação do dogma cristão, e era uma interpretação racionalista mas, na filosofia natural, como a de muitos reformadores de seu tempo (14), continha tantos mistérios como sua teologia

filósofo, nada podendo recusar ao Cardeal após os grandes favores quelhe devia, fêz despir completamente o delfim, e o tendo bem considerado por todos os lados, fê-lo vestir-se de nôvo, após o que se retiroupara sua casa para aí fazer suas observações.

“Ficaram algum tempo sem receber notícias suas. A Rainha impaciente de conhecer a sorte do delfim, tendo pedido resposta, Campanella retornou à corte, fêz despir de nôvo o prlncipezinho, e verificouse suas observações eram justas. O Cardeal pressionando-lhe a dizerafinal o que tinha observado, êle respondeu:

“Erit puer ille luxuriosus sicut Henricus Quartus, et valde superb.us,Regnabit diu, sed dure, tamen feliciter. Desinet misere, et in fine eritconfusio magna in religione et in império”.

Se a data e o texto do horóscopo fossem certos, seríamos tentadosa crer na astrologia.

(14) Por exemplo, Guilherme Postei (1510-1581).  Ver P ierre  Mes- nakd. T/essor de la philosophie politique aú XVIe siècle,   Paris, Boivin,1930 (livro V, c. 1). Noviço nos jesuítas, que considera encarregadosde conquistar e de unificar o mundo sob o reinado de Cristo, êsteantigo professor de lêtras gregas, hebraicas e árabes no Colégio dosLeitores Régios (Colégio de França) se transfere a Veneza onde sofrea influência de uma religiosa visionária. Daí seu livro sôbre Les très  mervei l l euses vi c toires des f emmes du Nouveau Monde et comme e l l es   doiven t à tou t l e monde par rai son commander e t même à c eux qui   auront la monarchie du monde c ivü   (Paris 1553). Com efeito, o intelecto{vir)  já foi resgatado por Jesus-Cristo; a razão ( f emina)  sê-lo-á peloEspírito Santo. A inquisição o prende, mas solta-o logo como doido.Dirige-se para Basiléia e entra em contato com reformados, mas, tendo verificado que a sua reforma não é a que pretende, vai para Dijon, ondeensina matemática, depois para Paris, onde passa muitos anos numa

 _ espécie de residência vigiada até 1581, data de sua morte. Entre

suas obras citemos:  A lcorani seu le g is Mahom eti e t E vangel is ta ru m  concordiae l iber,  1543.  Q ua tu or   l i b r o rwm   de orbis terras concorãia   primns,   Basiléia, 1544: fazer a unidade religiosa do globo pela conversão

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revelada. Vivia num mundo maravilhoso, cheio de ana-

logias, de correspondências secretas e de magia, no qual tudo, mesmo as pedras, tinha vida, percepção e senti-mento. Acrescentemos que se expressa diferentemente conforme os públicos diversos aos quais se dirige. Sua The l gia,  terminada em 1624, é dedicada aos teólogos: Campanella mantémse o mais próximo possível do dogma: mas, na Cidade d S l,  é bem êle que fala e exprime li- vremente seu profundo pensamento. Ora, êle mesmo escreverá mais tarde, em suas Questi ni suW ttifm p lí-

tica,  que sua utopia não era uma revelação de Deus, mas “uma invenção filosófica da razão humana para mostrar que a verdade do Evangelho se conforma com a natu-

reza” (15). Era um tema conhecido e se presta a todas as interpretações conforme o que se entende por “natureza” e por “verdade do Evangelho”. De fato, nunca a razão natural foi menos razoável que a de Campanella, mas seus devaneios iam todos à deriva no mesmo sentido: aquêles das revelações pessoais que teve em 15981599, em Estilo, na Calábria, e que lhe encarregavam de completar a re-

 velação de Cristo. Previa desde então o desaparecimento das seitas religiosas; o nascimento de uma fé racional; a 

reabilitação da natureza; o desenvolvimento de um modo de vida comunitário que, levado a suas últimas conse

das nações da terra ao catolicismo. Les raisons de la Monarchie   (1552):aproximar o mais possível a fé cristã da razão natural e a fé cristãda lei natural. Cosmographiae disciplinae compendium,  Basiléia, 1561:

 ver a dedicatória, na qual se compromete a dar a razão de tudo o que,até então, não foi possível senão crer. Enfim, Postei sonha com umaRepública Gálica de que, graças ao apoio do papa, os outros povos domundo aceitarão progressivamente a suserania. Os recalcitrantes serãosubmetidos pelo apêlo a armas secretas (taludes móveis, navios insub-mersíveis). Tendo falhado em convencer Francisco I, depois o imperadorda Áustria , Fernando I, se aborrece e dirige-se aos ismaelitas. V.

em Pierre Mesnakd, op. cit.,  pág. 451, textos que recordam estranhamenteRogério Bacon: “A fim de que, por efeito como por desejo, seja eraum só mundo, sob um só Deus, e sob um só rei e bispo soberano, umafé e uma lei e um só comum consentimento”, etc. Sòmente que, paraatingir a seu escopo, Postei racionaliza a fé em lugar de mergulhar arazão na Sabedoria cristã. Concebe-se sem esfôrço que Santo Inácio nãoteria admitido êsse noviço cujos métodos diferiam tanto dos da Companhia de Jesus. Ponto a salientar: como Campanella, e mais tarde Aug. Comte, êste universalista combate os protestantes e procura al istaros jesuítas. Os jesu ítas fizeram uma vez mais ouvidos moucos e osprotestantes viram muito bem que sua religião natural traía ao cristianismo. V. L éon  Blanchet, Campanella,  págs. 439-440. É um dosdados constantes do problema.

(15) L éon  Blanchet, Campanella,  pág. 73.

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qüências, não era senão uma laicizaçao da vida monástica,  paralela à racionalização do dogma; o advento de uma república universal enfim, tal e qual haviam prometido 

Santa Brígida e Santa Catarina. Tudo isto funcionava; tudo isto era seguro, tudo isto se achava preciso, pois o ano 1600 devia ser uma articulação decisiva nos tempos, 

 pois se compunha de 9 + 7, números sob a influência dos quais, no dizer de Platão, morrem as repúblicas e os impé-rios^6). O maior de seus biógrafos mencionou a loucura a propósito de Campanella. É possível, mas o epíteto não prova mais contra sua obra como não provará mais tarde contra a de Augusto Comte. Não esqueçamos a 

observação de G. K. Chesterton; um doido não é um homem que haja perdido a razão, é um homem que não 

tem senão a razão. A de Campanella acreditava ter feito ao menos duas descobertas. Primeiramente, que a socie-dade espiritual da Igreja devia metamorfosearse em uma sociedade temporal de todos os povos da terra, e que se se achasse um soberano capaz de tomar a iniciativa disto, a Europa estava madura para sofrer esta transformação. Em seguida, que esta transposição da Cidade de Deus 

sôbre o plano da cidade dos homens implicava uma outra  tocando o laço comum da sociedade futura: êsse laço 

não podia mais ser aquêle da fé, a menos que a própria  fé aceitasse tornarse razão. Dois desenvolvimentos são então possíveis: substituir a caridade pelo direito do pjano 

temporal e político; substituir a fé e a teologia pela razão natural e a metafísica no plano espiritual. As duas lições seguintes mostrarão sob que formas estes dois desenvolvi-mentos efetivamente se produziram.

(16) Op. cit.  pág. 36.

  4

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C apítulo  V I I

O Nascimento da Europa

 A E uropa   U nida  nasceu na França, há 

quase 250 anos, em conseqüência de um acidente de 

 veículos. Durante o inverno de 1706, um padre percor-ria as estradas da Normandia, quando sua liteira tombou, rompeuse e o deixou na lama. O acidente era banal, o 

 viajante o era bastante menos. Enquanto reparavam o 

 veículo, o nosso eclesiástico refletia sobre as causas da 

aventura e, logo que regressou ao lar, redigiu uma 

Memória sôbre a reparaçã d s caminh s,  que devia ser 

 publicada em Paris, no dia 10 de janeiro de 1708. “Eu 

acabava de pôr a última demão nessa memória,” nos diz 

ele próprio, “quando me veio ao espírito um projeto de 

estabelecimento, que, por sua grande beleza, me feriu de 

admiração. Desde quinze dias que me prende a atenção. Sintome tanto mais inclinado a aprofundálo que, quanto 

mais o considero e por suas diferentes facetas, assim o 

acho mais vantajoso para os soberanos. É o estabele-

cimento de um arbitramento permanente entre êles para 

terminar sem guerra suas dissensÕes futuras. Não sei se 

me engano, mas há fundamento para a esperança de que 

um tratado se assinará um dia qualquer, e que é possível sempre propôlo a um ou outro dos interessados, quando é 

fácil a cada um deles ver que, afinal de contas, terão muito  

mais vantagem em assinálo, do que em não o assinar. É 

com esta esperança que me entrego com ardor e alegria 

ao mais alto empreendimento que pode surgir no espirito 

humano. Não sei até onde irei, mas sei o que dizia Sócra

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crítica parecia atingir à administração do Regente, a corte indignouse, o livro foi apreendido e o próprio autor expulso da Academia Francesa por seus confrades no dia 

5 de maio de 1718. Tomada a coisa absolutamente, um acadêmico pode meterse a escrever, mas nunca sobre  política. O nosso consolouse nos salões, mas tornouse muito reservado em sua conversação. “A sopa”, dizia êle, “é um pouco salgada para mim”,  ou então, “a música francesa é mais agradável

para mim, presentemente,

  que a música italiana”; ou mesmo isto, que é a obraprima no gênero: “Eu não vejo isto ainda como vós”. Mas, sobre-tudo, êle inventa; não cessa de inventar projetos.

Propõe a criação de uma academia política: ela exjste. Propõe o estabelecimento de prêmios de virtude; êles existem. Propõe a fabricação de “trém uss irs”,  isto é, de poltronas mecânicas imitando com perfeição os so-lavancos de uma carruagem e, como êles, provocando a evacuação da biles, do fígado, do baço, e dos intestinos, sendo possível regular à vontade a amplitude e a inten-sidade das sacudidelas e fazer uma cura de diligência sem sair de casa: e fabricaramse

“trém uss irs”

. Voltaire

comprou uma delas; ainda são fabricadas, só que são elétricas. E afinal, para não enumerar todas, vamos àquela que nos interessa diretamente, a idéia de uma aliança européia para estabelecer a paz e mantêla.

Como todos os inventores, o “abbé” teve seus pre-cursores. A idéia estava no ar desde o século XVI. Um certo Emérico Cruce (morto em 1648) tinha publicado Le N uveau Cynée,  livro curioso inspirado pelo mais sin-cero desgosto pela guerra. Não lhe encontrava senão 

quatro causas concebíveis; a honra, sentimento sem valor a não ser quando em serviço do direito; lucro, o que é absurdo, pois, de qualquer modo, a guerra conduz à

estilo, Rousseau vê bem que é uma crítica ao regime: “Era bem aesperança de remediar êstes diversos inconvenientes que o levava apropor uma outra polisinodia inteiramente diferente da que fingia nãoquerer senão aperfeiçoar”, op. cit. t. VI, pág. 485. Aqui de restoRousseau critica “o bom abade de Saint-Pierre de procurar sempreum remèdiozinlio a cada mal particular, em lugar de subir à sua fontecomum” (  Emílio,  livro V, ed. cit. tomo V, pág. 265). Coisa mais notável,êle critica a “Polysynodie” pelo fato de não propor nada menos queuma revolução, cujos perigos denuncia, em têrmos que lembram Des

cartes, como o mais conservador dos políticos (  Ju g e m en t,  t. VI, pág. 488).

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ruína; uma violação do território, o que, desta vez é sério, mas que é possível remediar de outra maneira; o gosto pela rixa, enfim, e que parece natural em certos  homens; mas, porque não os mandar satisfazer êste gosto 

entre os selvagens ? Estarão aí dentro de casa. Como remédio, Cruce propunha uma concórdia geral entre todos os povos católicos, sob a proteção de soberanos colaborando na manutenção da paz perpétua e graças à iniciativa de um príncipe, como o rei da França, assaz  poderoso para impôla aos próprios muçulmanos (3).

Um projeto bem mais importante foi aquêle que o rei Henrique IV concebeu logo após a Paz de Vervins, entre  a Espanha e a França, em 1598. Somos informados a res-

 peito das idéias principais de que se inspira o rei pelas  preciosas Mem ires  de seu ministro, o duque de Sully.  A principal calamidade do tempo eram as guerras de reli-

gião às quais Henrique IV acabara de pôr um têrmo  

graças ao édito de Nantes. O exemplo do que Sully 

denomina “ c rp germânic ”,  sugeria que a paz pode-

ría ser mantida entre soberanos de religiões diferentes, contanto que formem uma sociedade. Esta, porém, não era a dificuldade. Esta nascia antes da “grande desigual-

dade que existia entre todas as potências da Europa”. O rei via que “a facilidade que tinha o mais forte em oprimir  o mais fraco, e de enriquecerse com seus despojos, seria 

sempre um grande obstáculo para a manutenção da paz”. Como trazer remédio para êste perigo senão, precisa-mente, organizando o que o rei denominava uma “socie dadede européia” ? Aqui ainda, o exemplo da sociedade germânica demonstra que a coisa deve ser possível. Por-

que, enfim, é certo que há nesse corpo “membros que são  vinte vêzes, trinta vêzes mais poderosos que outros que se acham em sua vizinhança e que os mais fracos não8

8) O Congresso da Europa Unida, reunido em Haia, em 1948, foio primeiro esfôrço visível para realizar êste sonho. Estávamos lá, e foipara nós uma agradável surprêsa ouvir Winston Churchill recordarLe Grand Cynée.  Quanto ao abade    de Saint-Pierre, ninguém, que saibamos, pronunciou seu nome uma só vez. Foi totalmente esquecido. Umfragmento do projeto de Emérico Cruce acha-se reproduzido no comêçoda seleta _ Les Français à la Recherche d'une Societé des Natións, Paris, (Bibliotlièque de Civilisation Française), 1920. Encontrar-se-átambém o essencial do projeto do abade de Sainl-Pierre, cujo textooriginal não se encontra fàcilmente nas bibliotecas.

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Está visto que, desde que teve esta idéia na cabeça, o "abbê” começou a falar dela em torno dêle. Provocou naturalmente pilhérias, mas elas não o desacorçoaram. Em 1712, em Colônia, publicou uma M émo ire pour rendre la paix perpétuelle en Enrope.  Era um balão de ensaio. O livro provocou objeçÕes, às quais respondeu numa se-gunda redação da obra, rojet pour rendre la paix per-

pétuelle en Europe, em dois volumes, Utrecht, no livreiro  Schouten, 1713. Um terceiro volume impresso por De  ville, em Lião, com indicação de Utrecht, traz igualmente a data de 1713.

 Abramos os dois volumes de Antônio Schouten. No  verso da folha de guarda do tomo I, uma gravura de 

Henrique IV, descobrindo uma estátua da Paz diante de 

uma assembléia de príncipes e altos dignatários da Igreja. Com isto, uma leganda em dois dêstes versos que passavam então por poesia:

Que son nom soit béni, qu’il éclate à jamais,

Lui seul nous a fait voir oü reside la paix(*).

Sabemos por que Henrique IV recebe esta homena-

gem. Em face, sobre a folha de título, uma carta do nôvo   país “Europa”, coberta por uma faixa trazendo esta epí-grafe: “Gloria in excelsis Deo et in terra p a x O tomo I 

* se compõe de seis discursos, cujos três primeiros justificamo projeto que é exposto nos três últimos. Sua idéia geral é simples: “Meu designo é propor os meios para estabe-lecer a paz perpétua entre todos os Estados cristãos”. Talvez fosse melhor dizer: a fórmula é simples, porque,  pensando bem, a idéia não o é tanto quanto possa parecer 

à primeira vista. Tentemos analisála.No primeiro plano, a idéia da paz. Ela é a finalidade, 

ela dá um sentido ao empreendimento e, em vista dela, todo o resto deve ser organizado. O meio para êste fim, é a Europa, ou ainda, uma “união européia”, uma “socie-dade européia”, esta última fórmula parecendo ser a que o nosso “abbé”   usa mais freqüentemente. Para obter esta

(*) “Que sen nome seja abençoado, que brilhe para sempre,

O único que nos fêz ver onde reside a paz”.

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sociedade, é preciso organizála, porque não a constituire-mos à força de guerras e de tratados. O vencido os assina 

sempre com a idéia de recomeçar sua luta na primeira 

ocasião favorável, e afinal, mesmo se ninguém os viola, não há nenhum órgão para assegurarlhe a execução. O

 

equilíbrio entre as grandes potências não é bastante, da 

mesma forma, para assegurar a paz, porque, a supor que 

não se rompa jamais, não garantirá às pequenas potências 

a menor segurança. O que sc trata dc obter é verdadeira-mente uma sociedade unindo os fracos e os fortes, sem 

 prejudicar aos fracos nem atentar contra sua soberania. Os exemplos alegados por SaintPierre são frisantes: a 

Holanda, então constituída em República das Províncias 

Unidas; a Suíça, atrás da qual via já o que denominamos 

hoje a Confederação Helvética; enfim, naturalmente, a 

 Alemanha, então mais partida em pedaços do que nunca 

e cuja confusa unidade, todavia, se podia sentir. A socie-dade européia uniria assim fracos e fortes. Êle já a vê; enumera por antecipação os 18 membros e, cada vez que 

relemos a lista, ficamos a sonhar: 1, França; 2, Espanha; 3, Inglaterra; 4, Holanda; 5, Portugal; 6, Suíça, com seus 

associados; 7, Florença e seus associados; 8, Gênova e seus 

associados; 9, Estados da Igreja; 10, Veneza; 11, Savóia; 

12, Lorena; 13, Dinamarca; 14, Curlândia com Dantzig; 15, Império Germânico; 16, Polônia; 17, Suécia; 18, isto 

que SaintPierre denomina modestamente Moscóvia. Como era simples, então e, todavia, como hoje esta Europa 

nos parece estranha, quase irracional! Que parecerá a 

nossa dentro de duzentos e cinqüenta anos ? E permitime 

abrir, aqui, um curto parêntese. Quando se fala em federa-

ção, pensase em união, e com razão, mas um dos efeitos 

mais seguros da federação consiste em perpetuar o reta 

lhamento unindo os retalhos. Uma vez federados, se tor-nam irredutíveis. Há casos em que se entrincheiram, desde 

então, mais ferozmente do que nunca em suas diferenças 

individuais. Daí que, se esta sociedade européia se hou- vesse feito em 1713, teríamos ainda uma república de 

Gênova dialogando com a Curlândia e uma república 

de Veneza trocando embaixadores com a Savóia, mas, não 

teríamos a Bélgica. Em suma, a data da assinatura do

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tratado de união marcaria o fim das histórias nacionais, ou, pelo menos, estabelecería um quadro ne varietur  das nacionalidades. O mesmo sucedería hoje, e isto não é 

uma objeção contra o projeto, mas uma observação sobre uma de suas implicações, nas quais geralmente quase não se pensa(7).

 Voltemos a nosso inventor. Para constituir esta so-ciedade européia, promessas mútuas não bastariam; preci-sava uma “arbitragem perpétua”, um “tratado de união”, um “congresso perpétuo”, e isto é uma terceira idéia. Daí, seu projeto da Grande Aliança, em cinco artigos prin-cipais: l.°, compromisso de manter o Statu qu territorial 

e de executar os últimos tratados; 2.°, a contribuição pro- porcional, já mencionada, para a segurança e para as des- pesas comuns da Grande Aliança; 3.°, renúncia definitiva ao emprêgo das armas para regular as contendas e o compromisso de tomar sempre o caminho da conciliação 

 pela mediação dos restantes grandes aliados por meio da assembléia geral e, em caso de malogro, pelo julgamento dos plenipotenciários dos outros aliados perpètuamente reunidos; 4.°, em caso de infração aos regulamentos da 

Grande Aliança, esta usará de sanções, militares ou eco-nômicas, contra os recalcitrantes; 5.°, uma vez deixados  pelos plenipotenciários reunidos em sua assembléia per- pétua, os artigos fundamentais não poderão mais ser mu-dados, salvo consentimento unânime dos grandes aliados. 

Em suma, nada falta, nem mesmo o veto.Isto não é tudo. Ao longo de sua exposição, o “abbé” 

de SaintPierre usa constantemente de uma expressão que já notastes de passagem. Em seu N uveau Cynée , Emé 

rico Cruce havia falado de uma concórdia geral de todos os povos “católicos”. O Grande Desígnio de Henrique IV, ou de Sully, ampliava o projeto ao conjunto dos Estados “cristãos”. O “abbé” de SaintPierre nos garante mesmo que, sob esta fórmula, o projeto teria sido aprovado pela 

SantaSé: “Desejava reunir tão perfeitamente tôda acristandade, de modo a não fazer senão um corpo que

(7) Em seu  Extrait   do projeto de Saint-Pierre, Rousseau modificaráa lista dos Estados europeus associados; não sòmente a lista, mas, a

ordem e os títulos.  V . R ousseau

, Oeuvres Complètes,  Paris, 1926, t.  VI,pág. 420-421.

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teria sido e se chamaria a República Cristã”. É porque, no terceiro discurso de seu projeto, SaintPierre também 

fala da sociedade européia como destinada a trazer a paz  

aos príncipes cristãos, não somente católicos e protes-

tantes, mas também ortodoxos, pois, sua Europa incluía 

a Moscóvia. Notemos bem que não pretendia excluir 

de sua sociedade o resto do mundo. Tinha, em certo 

momento, redigido seu texto com a intenção de incluir 

um dia a África e a América, mas, seus amigos lhe havendo  

feito compreender que era um projeto a um têrmo muito 

longo, aceitara reduzilo às dimensões da Europa cristã, que, sendo madura para esta reforma, se prestaria espon-taneamente à sua realização.

Não é menos verdade que idéias suplementares vies-sem aqui introduzirse no grande desígnio, e, com elas, complicações sérias que o sobrecarregam ainda hoje. Eis aqui duas no mínimo. Em primeiro lugar, querse fazer a Europa, o que é excelente, mas, porque somente a 

Europa ? Não é espantoso que SaintPierre haja pen-sado logo na África e na América, porque, se a razão 

que tinha de querer uma sociedade Européia era a de 

assegurar a paz, a idéiamãe do empreendimento rompia 

o quadro por todos os lados. A paz não é um bem 

europeu, mas humano. A primeira idéia de nosso sonha-dor não era boa ? O que tinha em realidade no espírito, desde o começo de seu empreendimento, era uma socie-dade fundada sobre uma ordem jurídica internacional de 

dimensões universais. E tocamos aqui numa das dificulda-des inerentes à noção de Europa, que, por certo, não é 

feita para nos afastar dela, mas em que convém refletir. É que, desde que ela tenta pensar em si mesma e for-mular a sua própria essência, a Europa tende a dissol

 

 volse em uma sociedade bastante mais vasta que ela pró- pria e para a qual, realmente, não conhece outros limites 

que aqueles do globo. Acostumada como está a reivin-dicar valores universais, no nosso caso a Paz pelo Direito, a justificação que apresenta para seu traçado abole do 

mesmo golpe suas fronteiras. A Europa é de tal modo 

feita que se vê soterrada em seu triunfo tôda vez que 

tenta se definir.

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 Vêse isto melhor se considerarmos a segunda noção que acaba de introduzir nosso precursor, a de república cristã. É a velha noção de Cristandade, submetida porém, à contração mais estreita que se já impôs a suas fron-

teiras, porque, afinal, mesmo se era verdade dizer, como já ouvimos em nosso tempo, que “a Europa é a fé”, não é certamente verdadeiro dizerse que a fé seja a Europa. 

 A Europa pode bem estar incluída na fé, não a fé na Europa. Esperase que ninguém se escandalizará desta ousadia: JesusCristo não é um europeu. Belém não está na Europa; Tarso, também, e quanto à fé em si mesma, que cristão podería concebêla sem horror como a sal-

 vação de uma das cinco partes do mundo, com a exclusão 

das outras quatro ? Ao refletir, ninguém pensa nisto, mas muitos de nossos contemporâneos falam como se assim 

 pensassem. Identificando as duas noções de Europa e de república cristã, o “abbé”  de SaintPierre dava o exemplo do êrro, hoje tão comum, que consiste em justificar um traçado de fronteiras por um princípio universal. Se a essência da Europa é ser uma sociedade cristã, ela cessa 

de ser a Europa; se funde na Cristandade.

O mais curioso é que esta mesma idéia haja atormen-tado o cérebro de um ilustre leitor de nosso abbé,  nada mais nada menos que JeanJacques Rousseau. Deveselhe um Extrait du projet de paix perpetuelle de Mr. Vabbé de Saint- ierre,  escrito em 1756 e publicado em 1761, com as reflexões que se lêem em seguida a esta obra, e onde o pensamento pessoal de Rousseau se torna pa-tente (8). Entre os numerosos amigos da Europa unida, uma das famílias espirituais’ mais interessantes é aquela 

composta pelos que nos animam a fazêla e isto pela curiosa razão de que é inevitável, ou melhor dito, já está feita. É exatamente a tese de Rousseau, e ele a defendeu 

com uma penetração notável. Escutemolo: “Todas as

(8) A passagem de  Emílio   que se refere ao projeto de Saint-Pierreparece ter sido escrito após o  Extrait   e antes do  Ju gem en t.  (Emílio,  1. V,ed. cit., t. V, pág. 261, nota). O Extrait du P ro je t d e Paix P erp etu elle d e   M. Vabbé d e Sa int P ie rre,  acha-se na edição citada, t. VI, págs. 397-439;acha-se imediatamente seguido do  Ju g em en t sur la Paix P erpétuelle , pág. 440-455. O  Extrait é   menos um resumo do que um requisitóriopessoal em favor do projeto; acha-se aí lanlo de Rousseau como de

Saint-Pierre; o  Ju g em en t   propõe os argumentos contra o projeto.

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 potências da Europa formam entre si uma espécie de sis-tema que as une pela mesma religião, pelo mesmo direito das gentes, pelos costumes, pelas letras, pelo comércio, e  por uma espécie de equilíbrio que é efetivamente necessá-

rio a tudo isto, e que, sem que ninguém pense de fato em conserválo, não seria fácil rompêlo como pensam muitas 

 pessoas”(9). Adm irável otimismo na verdade. Tal é a confiança de Rousseau na excelência da natureza, que o  problema para êle não é o de fazer a Europa, mas, antes, o de impedila de existir.

Todavia, a Europa não se fêz sozinha. Em todo o caso não existiu sempre, não houve sempre uma “sociedade dos povos da Europa”, e é importante conhecerlhe a 

origem porque as forças que a formaram servem ainda  para mantêla. São elas que fazem com que distingamos hoje, os europeus dos cafres e dos americanos, como outrora os gregos distinguiam os helenos dos bárbaros (10).  Quais são estas forças ?

Primeiramente a comunidade de povos criada pelo império romano. Um mesmo jugo político submeteu êstes  povos a uma única autoridade, depois lhes conferiu uma 

espécie de unidade civil e política. “Esta união, nota Rousseau, foi bastante estreitada pela máxima, ou muito sensata, ou muito insensata, de comunicar aos vencidos todos os direitos dos vencedores, e sobretudo pelo famoso decreto de Cláudio, que incorporava todos os súditos de Roma entre seus cidadãos”. Eis ainda uma idéia segu-ramente verdadeira em sua ordem, mas que, na medida 

em que é verdadeira, impõe, à Europa, limites ao mesmo tempo muito largos ou muito estreitos. Muito largos, pois, se a Europa continua o império romano, que faremos da Ásia e da África romanas ? Muito estreitos, pois seria  preciso cortar a Alemanha em duas, seguindo a famosa linha de Domiciano, renunciar à Moscóvia, o 16.° dos Estados europeus segundo o

abbé

  de SaintPierre. Con

(9)  J. J. R ousseau,  Extrait,  ed. cit., t.  V I, pág. 400. De conformidadecom uma das constantes em seu pensamento, Rousseau pensa que oproblema consiste em fazer passar a Europa, dada com um fato, doestado de natureza ao estado político.

(10) Op.c .,

  pág. 401.

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servemos, todavia, desta idéia, que escombros do império  romano achamse unidos de fato por uma comunidade de civilização que os predestina a tornaremse o núcleo de uma sociedade de povos mais vasta do que a sua.

O Direito Romano foi a segunda força unificadora da Europa. Duplicou, reforçou e por vezes substituiu a ligação política, que era uma força de fato, por um nexo jurídico, que era uma ligação de direito. Com o tempo, esta força puramente moral sc mostrou capaz de 

 vir em socorro das deficiências da antiga força política. “O código de Teodósio, e em seguida os livros de Jus tiniano, foram uma nova cadeia de justiça e de razão, substituindo convenientemente a do soberano, que se afrouxava sensivelmente. Êste suplemento retardou bas-tante a dissolução do império, lhe conservou durante muito tempo uma espécie de jurisdição sobre os pró-

 prios bárbaros que o devastavam.” Ainda aqui Roussseau tem razão, e nós o sabemos hoje, num tempo em que se discute se não há uma certa simplicidade em querer falar  a língua do Direito a povos para os cjuais a própria idéia de direito, quase estranha à sua historia, não tem ainda 

sentido. Todavia, volvemonos aqui a uma Europa uni  versalista, que não podería ser constituída sem a abolição 

de suas próprias fronteiras. A Europa é, talvez, o Direito, mas o Direito não é a Europa. O que é tipicamente europeu é conceber o Direito não como fundamento da civilização européia, mas da civilização simplesmente.

“Um terceiro liame, mais forte do que os precedentes, disse Rousseau, foi o da religião; e não se pode negar que seja sobretudo ao cristianismo que a Europa deve 

hoje a espécie de sociedade que se prepetuou entre seus membros; e, de tal modo, que aquele dos seus membros que não adotou a êste respeito os sentimentos dos outros 

 permanece sempre como um estrangeiro entre êles”(n ). Tratase, bem entendido, dos turcos, e nada mais lógico.  A partir do momento em que a Europa se define em têrmos de crença .religiosa, é inevitável que o Islã lhe marque a fronteira oriental, como no século XIÍ marcava11

(11) Op. cit.,  p âg.  402.

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a da cristandade. Eisnos numa encruzilhada. Admita-mos que o povo deva ser cristão para fazer parte da Europa, bastará que um povo seja cristão para tornarse europeu ? Se a Turquia da Ásia se tornasse cristã, tornar 

seia ela a Turquia da Europa ? E a Albânia, que é mu-çulmana, deve chamarse a Albânia da Ásia? A menos que não se contente com efeitos oratórios ou com efusÕes sentimentais, cumpre examinar a questão mais de perto (1213).

O século XVIII não o fêz, nem o XIX, nem, que o saibamos, o XX. Que queremos ? Que somos ? Já seria tempo de levantar a questão se desejamos calcular a nossa ação em vista de um futuro previsível (3). Porque, enfim, quando nossos contemporâneos falam em fazer a Europa, 

é bem no futuro em que pensam. O próprio Rousseau, que acreditava que ela existe, não a considera senão a matéria de uma sociedade possível. Mais exatamente, seguindo sua própria divisão da ordem humana em dois estados, entende fazer a Europa passar do estado de natu-reza para o estado político, organizandoa por meio de um pacto, pràticamente aquele do bbé  de SaintPierre,

( 12 ) Vê-se aparecer aqui a dupla noção de Europa na qual seatolam tôdas as discussões presentes sõbre a essência espiritual, ou“alma” da Europa unida; uma Europa concreta, geogràficamentesituada e politicamente organizada, e uma Europa abstrata, definidapor um “espírito” comum ou pela aceitação de certas noções comuns.Quando se crê segurar um oponente em uma destas duas Europas, êlese refugia logo na outra. Teríamos, pois, europeus no primeiro sentido(Marx, Hitler, Mussolini, etc.) que não são europeus no segundo. Inver-samente, idéias originária da Ásia (o cristianismo) ou que nos foramdevolvidas após se terem desenvolvido por lá (a matemática e a óticaárabes) embora não sendo européias no primeiro sentido, tornam-se nosegundo sentido. A confusão chega a seu cúmulo quando se fala da

 América. Trata-se do Canadá, dos Estados Unidos, do México ou dasrepúblicas sul-americanas, como situá-los na Europa ? Mas, também,como lhes atribuir, com variantes locais, muitas vêzes menos marcadasdo que as que se observam na própria Europa, outro espírito que o

Europa ?(13) O  Ju g em en t   de Rousseau começa por aprovar, por certo comrazão, o projeto de uma união política dos povos da Europa: “Sealgum dia uma verdade moral foi demonstrada, parece-me que é autilidade geral e particular dêsse projeto” (pág. 440); mas consideraquimérico contar com os príncipes para realizá-lo (pág. 442-443). Oque lhes interessa é o despotismo, que se adapta muito bem ao espíritoda guerra, apesar da condição dos vencedores não ser melhor do quea dos vencidos: “Venci os romanos, escrevia Anibal aos cartagineses,enviai-me tropas; submeti a Itália a tributos, mandai-me dinheiro”(pág. 444). Em suma, reconhecendo a possibilidade e a grandeza do fim,Rousseau critica Saint-Pierre pela puerilidade dos meios de que pretende lançar mão. Rousseau não tem dúvidas: (o projeto da república cristã não é quimérico” (pág. 448); Ilenrique IV o havia preparado em segrêdo e por meio de negociações bem encaminhadas (pags.

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que fará, desse agregado natural, um sistema jurídico, em suma, uma verdadeira sociedade. Nascerá, então, por fim, isto que denomina, por um nome tão belo, de República Européia. Mas, que é esta república europcia de Rousseau senão a filha da república cristã do bbé  de SaintPierre,  pela sua vez filha da república dos crentes de Rogério Bacon, e esta um avatar da Cidade de Deus de Santo 

 Agostinho ? Estamos aqui, exatamente no meio de que justamente apelidaram “a cidade celeste dos filósofos do século XVIII” ( 14). Mas, quando olhamos em torno de nós, que vemos ? Algumas casas ainda de pé no recinto de uma cidade em ruínas, e que pretendem, ainda, usar o 

nome. Um corpo que exige uma alma muito grande para êle, feita para habitar um outro, não somente mais vasto, mas, de natureza diferente. Esta ilusão de perspectiva não se acha hoje sem conseqüências. Nestas comoventes reu-

niões, onde tantos grandes espíritos auscultam com espe-

rança o futuro da Europa unida, tantas vêzes ouvimos  dizer: cavalheiros, outros estão tentando dar um corpo à

450-454); eram meios eficazes, em lugar dos quais Saint-Pierre nãonos oferece senão um livro. “Sem dúvida a paz perpétua é, preseiite-

mente, um projeto bem absurdo, mas, arranjem-nos um Henrique IV eum Sully, e a paz perpétua volverá a ser um projeto razoável; ou antes,admiremos um tão belo plano, mas consolemo-nos de não o ver executar;porque isto não se pode fazer senão por meios violentos e temíveis àhumanidade” (454-455). Aqui ainda o conservantismo prático de Rou-seau toma finalmente a d ianteira: “Não se vê o estabelecimento deligas federativas senão por meio de revoluções; e sôbre êsse princípioquem de nós ousaria dizer se esta liga européia deve ser desejada outemida ? Ela fa ria antes muito mais mal de uma vez, do que os bensque evitaria por muitos séculos” (pág. 455). Em suma, Rousseau nãoestá inteiramente seguro de que se possa obter a paz pelo direito sempagar êste resultado muito caro.

(14) C aiu,. L. Becker , The Heavenly City of the Eighteen Century  Phüosophers,  Yale Press, 1932: “Adquirimos o hábito de nos representar

o séc. XVIII como animado de um espírito essencialmente moderno. E,certamente, os filósofos pessoalmente se vangloriavam de ter abjurado asuperstição e as charlatanices do pensamento cristão da Idade Média(sic) e nós geralmente aceitamos acreditá-los sob palavras. Seguramente, dizemo-nos, o séc. XVIII foi eminentemente a Idade da Razão;seguramente os filósofos foram pessoas céticas, atéias de fato, senãodeclarados, dedicados à ciência e ao método científico, sempre prontosa esmagar a infâmia, defensores corajosos da liberdade, da igualdade,da fraternidade, da liberdade de palavra e tudo mais que se desejar.“Tudo isto é verdadeiro. Todavia, penso que os filosofos eram maispróximos da Idade Média, menos emancipados das idéias preconcebidasdo pensamento cristão da Idade Média do que êles próprios tinhamconsciência ou do que comumente se admite. Se temos sido mais doque eqiiitativos (ou talvez menos) a seu respeito, passando-lhes êstebom certificado de modernismo, é pela razão dêles nos falarem comuma linguagem fam il ia r. .. Suas negações, melhor do que suas afirmações, nos permitem tratá-los como irmãos de pensamento.

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Europa, mas se não lhe dermos uma alma, de que viverá  êsse corpo ?

Sem dúvida: mas que alma? E cada um toca a  propor então a sua, mas, que é sempre a alma de outra coisa que não a Europa; alguma coisa que ela não é e nunca será. Alguém ousa salientar isto ? Acusamno logo de não crer na Europa, de não ter fé na Europa, em re-sumo, de retardar um nascimento para o qual ele deveria trabalhar. Seus pensamentos podem ser completamente diferentes. Estima, talvez, simplesmente que, mesmo se es-

tivesse em nosso poder criar almas, procurar ter a certeza a respeito do corpo para que vai servir é uma precaução 

 prudente antes de iniciar o trabalho. Rousseau, o “ bbé” 

de SaintPierre estavam muito próximos de sua descoberta  para discernir claramente a sua natureza, mas não temos qualquer justificação para perpetuar suas ilusões(*15). No momento em que suas visões divinatórias devem afinal adquirir um corpo e encarnarse na realidade, chegou 

 para nós o tempo de medir exatamente não só a natureza,

“Mas , s e examinamos o s fundamen t os de sua f é , v emos que a c adamoment o o s f i l ó so fos de i xam apa r ece r sua d í v ida pa r a com o pensa men t o da Idade Méd i a sem se da r con t a d i s to . D enunc i a ram a f i l o so f i a c r i s t ã , mas de modo demas i ado , como f az em aquê l e s que não s ãosenão emanc ipados pe l a m e t ade de supe r s ti çõe s que de sp r ez am. Exp u l s a r am o t emor de Deus , mas conse rva r am uma a t i t ude r e spe i t o sa pa r acom a d i v indade . R id i cu l a r i z a r am a i d é i a de que o mundo fo i c r i adoe m 6 d i a s , m a s c o n t i n u a r a m a c o n s i d e r á - l o u m a m á q u i n a m a r a v i l h o s a men t e cons t ru ída pe lo S e r S up r emo , s egundo um p l ano r ac iona l , p a r as e rv i r de m orad i a ao homem. 0 p a r a í so t e r r e s t r e e r a - ll ie s um mi t o , éc e rt o , m as ê le s se d i r i g i am com inve j a pa r a a i da de d e ouro da v i r t uder o m a n a , o u a i n d a , a l é m d o s m a r e s , p a r a a p u r a i n o c ê n c i a d e u m ac iv il iz aç ão da A rcád i a que f l o r e sc ia em P ens i l v ân i a . R en unc i avam àa u t o r i d a d e d a I g r e j a e d a B í b li a , m a s d a v a m p r o v a d e u m a f é i n g ê n u an a a u t o r id a d e d a n a t u r e z a e d a r a z ã o . . . N a s liç õ es q ue s e g u e m , .. . e uine e s fo r ç a r e i po r mos t r a r que o s p r inc íp io s fundamen t a i s do pensa men t o do s é c . XVII I e r am a inda , sob r e s e rva de a l gumas mod i f i c açõe sim por tan tes em su a or ientaçã o , essenc ia lm ente os mesmos _ daq ue les doséc . XIII . Eu me proponho a demonst rar que os f i lósofos não demol i r ama C idade de Deus de S an t o Agos t inho s enão pa r a a r e cons t ru i r comm at e r i a i s menos fo r a de m od a” ( op . cit., p á g s . 29-31). E r a a i d é i a , j u s t aem s i mesma , s enão no de t a lhe de sua exp r e s s ão , de um l i v ro cu jot í t u l o é u m e x c e l e n t e p r o g r a m a , m a s q u e e s t á a i n d a p a r a s e r e s c r i t o .

(15) Essas ilusões, tocando o ponto preciso que visamos, não atingem à contribuição positiva de Saint-Pierre e de Rousseau para a solução do problema da Europa unida. O direito internacional é um dosmais importantes entre os elementos necessários dessa solução. É o que,após êle, e com uma notável profundidade de pensamento, Kant demonstrará em seu Projeto de Paz Perpétua   (1795)., trad. J. Gibelin,Paris, J . Vrin, 1848. Kant permanece fiel à noção cristão de “povo”.Não há senão a vontade prática que possa criar uma república dospovos criando-lhe um direito. A natureza não o pode fazer. Todavia,por um harmonia que faz lembrar a da natureza e da graça em L.eibniz,

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como os seus limites. A modéstia é uma bela virtude,  porque não visa a mesquinharia, mas medida que se re-gula a si própria nas dimensões exatas da realidade. Quando o corpo da Europa ficar pronto, receberá a sua alma, e aquêles que vierem depois de nós saberão o que ela é após havêla visto viver. Será sábia, mas não será a ciência. Saberá gerar na beleza, mas não será a Arte. Será justa, mas não será o Direito. E esperamos que seja cristã, mas não será a Cristandade.

a natureza já faz para os povos o que elevem normalmente querer.Sôbre êste curioso finalismo, v, ed. cit. págs. 38-39. Kant cita Sêneca:“fata volentein ducunt; nolentem trahunt”. E ain da: a “a naturezaquer de maneira irresistível que o poder retorne finalmente ao direito”(pág. 46). Sôbre a influência aqui exercida por Saint-Pierre e Rous-seau  v.  V. Delbos, La Philosophie Pratique de Kant,  pág. 2 8 0 .  A “sociedade cosmopolita” de que Kant retraça ou profetiza a história guardaligações profundas com a Cidade de Deus: “A história da naturezacomeça pelo bem, sendo obra de Deus; a história da liberdade começapelo mal, sendo obra do homem” (op. cit, pág. 239). Sòmente aqui, anaturalização da Cidade de Deus é completa. A cidade de Agostinhose metamorfoseia, pois, no reino dos fins, cuja noção já se vê compléta-mente desenvolvida na Crítica da Razão Prática.  Êsse mundus intelli-   gibüis ,  povoação de pessoas cada uma agindo como legislador, é aomenos “possível”, bem que não se possa constranger a quem quer queseja a entrar aí . A sociedade universal dos povos, regida por uma leicomum, deve sua universalidade à racionalidade de seu fundamentomoral e jurídico. Ela exerce todavia ainda, a título de preparadorado reino inteinporal dos fins, uma função análoga à de igreja, con-

- cebida como presença da eternidade no tempo e preparadora da Cidadede Deus. A influência de Kant sôbre as igrejas reformadas teria sido

menos profunda, se não houvesse em sua moral tantas noções cristãsprèviamente racionalizadas.

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C apítulo  V I I I

A Cidade dos Filósofos

Quano  abordamos  o “ bbé”  de SaintPierre 

depois de tantos reformadores teóricos,^ficamos chocados  pelo aspecto político, concreto e quase imediatamente prá-tico de seu projeto. A Europa, que invoca com seus de-sejos, pode existir amanhã, contanto apenas que os sobera-nos o queiram e é por isto que, mesmo antes de propor seu 

 projeto, o vemos obstinado a provar que é necessário.  A reação de Leibniz foi o inverso da nossa, ou, pelo menos, muito diferente. SaintPierre lhe tendo remetido seu livro, 

Leibniz o leu e gostou, e, no dia 7 de fevereiro de 1715,  escreveu ao autor para felicitálo. Os cumprimentos são 

sinceros, mas, pertencem ao gênero muito particular da-queles que um leitor dirige ao autor de um livro quando 

êle próprio tem as suas idéias sôbre a questão. “Não falta aos homens senão a vontade, assinala Leibniz, para se libertarem de uma infinidade de males. Se cinco ou seis pessoas quisessem, poderíam fazer cessar o grande cisma do Ocidente e pôr a Igreja numa boa ordem” (J). 

Que elevação ! E como êste bater de asas nos leva muito acima do honesto SaintPierre! Eis um homem a quem se fala de organizar politicamente a sociedade européia, e êle responde sôbre o cisma e sôbre a reorganização da Igreja. Enviandolhe seu livro, SaintPierre não podería ter dúvidas que o remetia a um gênio de todos os tem-

 pos, atormentado pelo mesmo problema, mas que dis1

(1) Foucher   de  C areil, Oeuvres de Leibniz, publiées pour la pre-  mière fois d'après les manuscrita originaux,  Faris, 1859-1875; 7  vqIs . 

Esta carta acha-se no t. IV, pág. 824.

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cernia os dados reais com uma profundidade diferente.  A verdadeira resposta de Leibniz é o tipo mesmo das cartas que se escrevem, mas, não se remetem. Nós a temos ainda sob o título

Observations sur le ro jet ( une aix erpétuelle de M. Vabbé de Saint- ier-re(2).

Êste projeto de resposta é dos mais interessantes, quando mais não seja pelo que nos ensina da história do problema, ou antes, do que deveriamos conhecer antes de começar a narrála. Com efeito, após haver louvado SaintPierre por sua coragem em face do “desen cadeamento dos trocistas”, Leibniz presta homenagem aos  predecessores. Emérico Cruce, naturalmente, de quem lera outrora

Le Nouveau Cynée

, sem lhe conhecer o 

autor, e do qual quase tudo esqueceu, salvo, todavia, a tese geral (3). Henrique IV, òbviamente, que poderia se 

grande rei, de propor um projeto a íncipes inferiores não ousariam assu-

mir a responsabilidade. Notemos a êsse proposto uma interessante observação de Leibniz, que pode não ser justa: é que podemos, talvez, atribuir a Henrique IV  a concepção de um projeto “com vistas à derrubada da Casa de Áustria, em lugar de estabelecimento da socie-

dade de soberanos”. Esta sombra do passado turva um  pouco nosso presente. Há, muitas vêzes, a parte do mêdo 

 por detrás de nosso amor da justiça e alguma Casà de  Áustria a afundar em nossas federações. Por falta do laço de um amor comum, contentase com um mêdo comum. É talvez o pecado original da Europa unida e, como  todos os outros, um dia deverá ser pago. Mas, volvamos à nossa história. Além dos predecessores já conhecidos, Leibniz cita um terceiro, que o é muito menos. O 

Landgrave de Hesse Rheinfels tinha escrito, uma obra em alemão intitulada

Le Catholique Discret,

  que continha

( 2 ) Op. cit.,  t. IV, pág. 328-336.

(3) “Sendo muito jovem, tive conhecimento de um livro intitulado Nouveau Cynea s,  cujo desconhecido autor aconselhava aos soberanos degovernar seus estados em paz, e de fazer julgar seus Estados por umtribunal estabelecido; mas, eu não sou capaz de encontrar mais êstelivro, e não me lembro de qualquer particularidade. Sahe-se queCinéia era um confidente do rei Pirro, que lhe aconselhava a descansarlogo, visto que tal era também seu objetivo, tão logo houvesse vencido a Sicilia, a Calábria, Roma e Cartago”, Observations sur un  

 p ro je t d e pa ix p erp étu elle ,  ed. cit. t. IV, pág. 328-329.

 permitir, sendo um respeito do qual pj

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neira maravilhosa e a procurar a solução em lugar dife-rente daquele em que ela se encontra.

Mas, com que lucidez Leibniz vê o tema do debate !  Antes de fundar sobre o cristianismo a união política dos povos, é preciso restabelecer a união religiosa. As armas da piedade são, aqui, mais necessárias do que as da guerra. Se o “abbé”  de SaintPierre nos pudesse tornar romanos”, diz Leibniz, se êle pudesse “fazernos crer na infalibilidade do papa, não havería necessidade de outro império que aquêle do vigário de JesusCristo”. Assim, no momento em que um padre acaba de descer o pro-

blema do plano filosófico e religioso para o plano polí-tico, um filósofo experimentado nas sutilezas da diplo-macia elevao ao plano religioso. Os dois planos são ne-cessários, mas, aquêle em que se coloca Leibniz não é so-mente mais real do que o outro, é o mais profundo.

Leibniz et V rganizati n religieuse de la terre:   êste título do livro de João Baruzi(5) é, de si, um programa.  

Livro vindo muito cedo para seu tempo, que revelava a 

seus leitores um Leibniz pràticamente desconhecido, ao qual sempre fora recusado o interesse porque parecia 

ultrapassado, mas que se tornou hoje mais atual do que nunca. Em 1676, nosso filósofo se estabelecera na côrte de Hanover, país protestante cujo soberano se convertera 

ao catolicismo. Nós o conhecemos ao menos pelo que diz a respeito Bossuet, na Orais n fúnebre d^Anne de G n- zague:  “João Frederico, duque de Brunswick e de Hano-

 ver, soberano poderoso que, reunindo o saber e o valor, a religião católica com as virtudes de sua casa, e . .. o ser-

 viço do império com os interesses da França”. Com 

 preendese, que, em semelhante meio, a aproximação entre  protestantes e católicos fosse um problema vivo. Isto não 

era desejado somente para o Hanover, mas para toda a

(5) Publicado em Paris, (1907). J. Baruzi viu e disse, desde estaépoca, em que série histórica a obra de Leibniz toma naturalmentelugar; “Visto em profundidade, o esforço religioso de Leibniz renovaum sonlio da Idade Média. Crer numa “cristandade”, querer monar-quias universais, destruir os “infiéis”; e, por outro lado, construiruma igreja no meio de seitas, descrever uma arbitragem supi‘ema,estender o cristianismo e a civilização para além do mundo antigo; istoHão é, através dos séculos, a persistente aspiração a um cristianismorealizado na terra ? Leibniz, realmente, descobre na Europa umaexpressão viva do cristianismo”... etc. Op. cit.,  pág. 267.

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Para acharlhe uma solução, Leibniz deve, necessària mente, mitigar a noção de Igreja. Se não p fizesse, como 

 poderia admitir duas igrejas, ou dez, ou cem na mesma sociedade cristã ? De fato, a nova posição do problema 

implica uma dissociação radical entre a noção de Igreja romana e noção de cristandade. A partir dêsse momento os homens poderão considerarse membros da mesma sociedade cristã, contanto que cada qual seja cristão ao seu modo. Admitamolo,

dat n n c ncess ;

 a conseqüên cia imediata desta posição é um afrouxamento da unidade espiritual e, por aí mesmo, da unidade social que deve fundar. Distendese o laço por quererse alargálo. Essa  perda de substância se percebe numa passagem significa-

tiva da carta de Arnauld ao Landgrave de Hesse Rheinfels, datada de 2 de março de 1684. “Não sei o que dizer de  vosso amigo”, escrevia Arnauld ao Landgrave, porque “já que vos declara que, se nascesse na religião católica, aí  permanecería, não vejo como teria a consciência em re- pouso se não se colocasse em estado de aí volver”. De fato, mas, o que quer Leibniz precisamente dizer, é que, já que nasceu na religião protestante, aí permanecerá, e 

 pela única razão de que ai nasceu. O que Arnauld não 

 pode compreender, sendo católico, é que não se veja que escolher uma igreja é escolher a verdade. Leibniz não o  vê mais, o que não teria importância senão para êle se êste enfraquecimento da noção de igreja não viesse com-

 prometer por antecipação suas oportunidades de resolver seu próprio problema. Admirase um pouco que não o haja visto, êle que comprazia tanto em repetir que é a mesma coisa dizerse “um

ser”

  ou dizerse“um

  ser”. Se não há ser sem unidade, não deveriamos dizer igualmente: é a mesma coisa dizerse “uma igreja”  ou dizerse “uma igreja”, e é a mesma coisa dizerse “uma cristandade”  ou dizerse “uma cristandade” ? No momento em que Leibniz empreende fundar uma sociedade cristã, rompe o laço 

 pelo qual êle mesmo anuncia que pretende unila (6).

( 6) A r a i z do m a l -e n te n d ido e s t av a n a p r ó p r i a n o ç ão que Le ib n izt i n l i a d a I g r e j a . Ê l e a d e s t i n gu i a e m “ in v i s í v e l ” e “v i s í v e l ” . A Ig r e j ainv i s íve l compreende tôdas a s a lm as de boa von tade . Não possu is e n ão um do gm a , o de am ar a De us a c im a de tô da s a s c o i s a s e , p o rconsegu in te , p re fe r i - lo a tudo o m a i s . É o “ tem plo de D eus” . AIg r e j a v i s í v e l r e v e s t e uma fo r ma e x te r i o r , t e m um c o r p o o r gan i z ado ,

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Na falta dêle, acharemos outro ? É naturalmente o que se pergunta o nosso filósofo, e êle encontra não um, mas muitos, mesmo, não sem, todavia, nos convidar a novos sacrifícios, e não é mais a noção de igreja, é a de cristianismo que esta deverá consentir em fazêlos. Para resolver seu problema, Leibniz tem necessidade de um cristianismo aceitável a todos aquêles que, num sentido qualquer, consentirão em dizerse cristãos. É isto que o conduziu, realmente, se bem que talvez contra suas inten-ções profundas, a naturalizar o cristianismo a fim de uni- versalizálo e, para fazer dêle a religião de todos os homens, a esvaziálo de seu conteúdo propriamente reli-gioso.

Não estava sozinho ao tentar a aventura. O exemplo de Campanella encontrara inumeráveis imitadores. A ex-trema tenuidade do deísmo tornao hoje quase imper-ceptível e temse trabalho em compreender, tentando ler êsses livros sem substância, como os séculos XVII e XVIII  tenham podido encontrar aí algum alimento. Tratavase em suma, de fazer ver que quase tudo o que ensina a reli-gião cristã é verladeiro, apesar de ser ela própria falsa, como afinal tôdas as religiões. Toland o havia muito 

bem explicado em seu “Cristianismo sem Mistérios”: Christianity n t M ysteri us  (Londres, 1696). Ora, acaba exatamente de ser publicado um texto escrito pela mão de Leibniz, e cujas idéias são em parte as suas, mas, em 

 parte um resumo de um escrito deísta qualquer, publi-cado em seu tempo(7). Não há senão uma religião ver

um a h i e r a r qu i a , e s e u c h e fe e s t á e m Ro m a . É o “ te m p lo do s h o m e n s ” .E m s u m a , t r a n s f e r e a v e r d a d e i r a i g r e j a , q u e é a i n v i s í v e l , à C i d a d ed e D e us . Po r qua t r o vê ze s , Bo s s ue t s e e l e vo u c o n t r a e s t a d o u t r i n ae r e j e i to u o r a c io n a l i s m o r e l ig i o s o que e l a im p l i c ava . C f . Foucher   de C areijl, t. IV, p ág s . 339-340.

(7) Paral lèle entre la raison originale ou la loi de la nature, le   pagan ism e ou corrupti on d e la lo i d e la natu re , la lo i d e Moise ou le   paganism e ré fo rm é, e t le Christ ianisme ou la lo i d e la na tu re réta b li e.  Assinalado e analisado por J . B aruzi, Leibniz et Vorganisation ... (págs.486-492): “Xenhum escrito poderia nos informar mais seguramentesobre a 'f é pessoal de Leibniz”, (pág. 486). J . Baruzi já sublinhava afórmula: “a lei natural é a religião católica” (pág. 488). 0 textofoi publicado depois por G. Grua, Leibniz, textes inédits,  t. I, pág. 46e seguintes. A interpretação dêste escrito é aqui bastante atenuada(t. I. pág. 46, n.° 174). É evidente que, se como pensa Baruzi, êstetexto representa o pensamento último e pessoal de Leibniz sôbre aquestão, nenhum outro é   necessário para estabelecer que êle naturalizouintegralmente o cristianismo.

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dadeira, a da “santa razão”, que é a voz de Deus, que, contràriamente ao que ensinará Rousseau, o Autor da na-tureza colocou no coração do homem “como um oráculo  infalível”. Bem entendido: esse oráculo é universal. As religiões de autoridade dependem de um livro e se perde-ríam se êle se perdesse: a razão não podería jamais se  perder completamente: “Assim, a Razão é o princípio de uma religião universal e perfeita, que se pode chamar com justiça a lei da natureza”. Esta lei da natureza “é 

espalhada por todos os povos e sempre a mesma e eterna”. Mas, não vamos imaginar com isto que nosso filósofo re-

nuncia ao cristianismo ! Muito ao contrário, é esta reli-

gião da razão o cristianismo autêntico. Que era primi-

tivamente a religião cristã senão uma liberação das supers-tições pagãs e do ritualismo judaico ? Longe de querer 

ajuntar novos ritos aos antigos, o cristianismo era “uma instituição destinada a ratificar a moral, a nos dar justas 

idéias acêrca da divindade e, conseqüentemente, extir-

 par . . . as opiniões e práticas supersticiosas”. Volvese 

ao cristianismo volvendose simplesmente à razão.Se tal era o pensamento exato de Leibniz a respeito  

dêste ponto, seria exato dizerse o que se disse efetiva-mente dêle: “União não quer dizer unidade. Leibniz  procurou menos a unidade dogmática do que a unifica-ção prática dos cristãos dogmaticamente separados” (3). O mesmo que dizer que se teria desesperado ao resolver o problema, porque êle mesmo viu muito bem que nada 

separa as almas mais profundamente do que as divisões dogmáticas, e, se toda sociedade digna dêste nome é uma 

união de almas, como unir pràticamente o que deixaría-

mos dogmàticamente separado ? Mas, estamos muito longe de achar que tal tenha sido seu pensamento o mais pro-fundo. Leibniz nunca desesperou de unir as almas numa só e mesma verdade dogmática. Tinha também seu 

“verdadeiro cristianismo”, menos simplista e com profun-

didade diferente da de Toland, mais verdadeiramente reli-gioso e por conseqüência mais cristão, mas que, não sendo no fundo senão um fantasma do Evangelho, não podia engendrar senão um fantasma de cristandade.8

(8) J. B abuzi, Leibniz,  Paris, 1909, pág. 58.

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Nada o faz ver melhor do que o texto que acaba de nos ser revelado: Specimen dem nstrati num cath lica-  rum seu Ap l gia fidei ex rati ne (9).

  Para fazer apologia 

da fé, cumpre recorrer à razão, mas, como Leibniz o entende ? Admiràvelmente informado como sempre, nada ignora dos métodos tradicionais da apologética crista, e os aprova. Milagres, mártires, tradição perpétua da 

Igreja, tudo isto é verdadeiro, e é excelente, mas não esqueçamos um argumento mais forte ainda e que temos debaixo dos olhos. Não é certamente sem razão que Deus 

 permitiu uma aliança cada vez mais estreita entre a razão filosófica e a fé, e que, no momento em que Leibniz  

escreve, acaba de realizar um acordo admirável entre o cristianismo e a verdade filosófica:C nsensus admirabilis 

religi nis n strae et phil s phiae verae.  Bem entendido, esta filosofia verdadeira é a de Leibniz. Particularmente não é a de Descartes, que combateu por muitas razoes, mas, muito especialmcnte porque, seus erros tornandoa 

inaceitável, ela produziría o risco de semear a divisão entre os espíritos e, por aí, tornar impossível a unidade da re-

 pública cristã. Isto não é uma inferência histórica; o 

 próprio Leibniz o diz dando a razão do desígnio de sua apologia. Escreve essas páginas “ne quid  (Ecclesia) Res- publica Christiana  . . . a phil s phia n va detrimentum  capiat” (10). Sua indecisão entre “igreja” e “república cristã” é significativa; para êle é a mesma coisa mas, seja qual fôr o nome que se lhe dê, é bem na sua própria filo-sofia que a sociedade realizará sua unidade, por achar aí sua verdade comum.

Não vejamos nisto qualquer traço de vaidade pessoal. Leibniz não a tem mais do que o sábio cujo entendimento  é o primeiro a inclinarse diante de sua própria desco-berta. Ademais, fala de experiência. Êle próprio começou sendo cartesiano, e, enquanto o era, a incompatibilidade entre a ciência nova e a fé cristã não lhe era senão muito evidente, mas, a proporção que construía sua própria filosofia, verificava com surprêsa que a nova filosofia

(D) G. Grua, Leibniz, textes inédits,  t. I, págs. 27-30.(10) Op. cit.,  t. I, pág. 27.

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 próprias palavras da Monadologie   (§88), a harmonia uni- versal “faz com que as coisas conduzam à graça pelas pró-

 prias vias da natureza”. Nunca se viu mais total naturali-

zação da graça, nem, por conseguinte, substituição mais completa da metafísica pela religião. Leibniz construía 

uma nova Cidade de Deus sobre as ruínas da Graça, da 

qual ela tirava, em Santo Agostinho, o ser, o movimento 

e a vida. Não se trata mais aqui de catolicismo e de pro-testantismo; Lutcro e Calvino teriam detestado êsse uni-

 verso, não digamos tanto como alguns de nossos escolás ticos, que deixavam pelo menos algum lugar para a natu-reza, mas mais ainda, não era pela natureza, nem mesmo 

com ela, mas contra ela que os reformadores esperavam chegar à graça. Ninguém imaginará Lutero escrevendo 

um tratado sobre a Harmonia das Leis da Natureza e da 

Graça. Estamos aqui, mais do que nunca, no que denomi-naríamos com C. L. Beker The Heavenly City of the 

Eighteenth-Century hilosophers.  A completa laicização 

da Cidade de Deus achase agora acabada. A única divin-

dade que domina é aquela que celebrarão logo os cultos 

revolucionários: a deusa Razão.

Convém não o esquecer, ao ler os últimos artigos 

do Discours de la M étaphysique,  cuja linguagem tão cristã 

é tão vazia de substância cristã. A Cidade de Deus é cons-tituída por aqueles que crêem nela e a amam, é “a mais 

 perfeita cidade, ou república, igual à do universo, com- posta de todos os espíritos reunidos”, sob a autoridade 

suprema do “Monarca dos espíritos”. Eis aí, diz Leibniz, importantes verdades, muito pouco conhecidas dos anti-

gos filósofos, mas que JesusCristo nos revelou em uma 

língua simples e familiar que todos podem compreender. 

Que anuncia, com efeito, sua pregação do “reino dos 

céus”, senão “esta perfeita república dos espíritos que 

merece o título de Cidade de Deus ?” A mesma idéia rea- parece na quarta carta a Arnauld, em que Leibniz fala 

“desta república universal da qual Deus é o monarca”, e ainda na quinta carta, em que aparecemos todos como 

cidadãos dessa cidade “composta de tantos pequenos deu-ses debaixo dêsse grande Deus. Porque se pode dizer que 

os espíritos criados não diferem de Deus senão na relação

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entre mais e menos, entre finito e infinito”; e de nôvo, na sexta carta, “a república do universo de que Deus é o monarca”. Toda a doutrina achase resumida no pará-grafo 16 do Système de la nature et de la c mmunicati n  des substances: “Todo espírito sendo como um mundo à parte, suficiente a si próprio, independente de tôda outra criatura, contendo o infinito, exprimindo o uni-

 verso, é tão durável, tão subsistente, e tão absoluto como o próprio universo das criaturas. Assim, se deve julgar o que aí deve sempre figurar da maneira a mais própria para contribuir à perfeição da sociedade de todos os espíritos, que faz sua união moral na cidade de Deus”.

Tal é, em seu espírito, o ideal social e político reco-mendado pelo Disc urs de la Métaphysique  (1685), do qual Leibniz envia, diplomaticamente, um simples resumo 

ao grande Arnauld; um sumário prudente, graças ao qual conta satisfazêlo e fazer passar o resto. Mas Arnauld fa-rejava uma armadilha. Em dois anos de correspondência, Leibniz não chegara a persuadilo de que sua doutrina não destruía o livrearbítrio; teria sido mais difícil ainda  provar a êste jansenista que ela não excluía a Graça. É, todavia, com esta doutrina inteiramente naturalista que 

contava nosso filósofo para unir as almas na cidade de Deus. O laço comum de sua república cristã devia ser um deísmo completamente descristianizado.

Nada o desencoraja. Incapaz de convencer Arnauld, não seria capaz ainda mais de converter Bossuet e seu catolicismo da razão. O ponto de vista do bispo de Meaux era simples: ouviuse dizer que um católico se acreditasse livre de aceitar ou de rejeitar as decisões 

do Concilio de Trento(12) ? Malogrado no terreno da Igreja visível, cujo chefe está em Roma, Leibniz se volta   para a Igreja invisível, da qual a Igreja Reformada é de certo modo o germe, esperando que se estenda à humani-dade. A verdadeira Cidade de Deus será aquela dos homens de boa vontade, a quem a paz na terra já é 

 prometida. Na verdade, poderseia denominála a huma-

(12) Sôbre a autoridade dos concílios, v. J . B aruzi, Leibniz   eíVorganisation . . . , págs. 328-332.

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nidade, salvo, todavia, uma reserva, tanto mais curiosa quanto é sempre a mesma. Desde o século XVI todos os profetas da sociedade universal contaram para fundála 

com os jesuítas; todos, salvo Augusto Comte, excluíram dela os turcos. Na realidade, Leibniz quer dizer os 

“muçulmanos”. E por que ? Coisa curiosa: é que êles não são cristãos. Os turcos foram sempre os inimigos de Cristo; completamente estranhos à doutrina de espí-rito e verdade pregada pelo Evangelho, sua religião é real-mente uma política e seu reino é o dêste mundo. Os turcos querem dominar, nada mais(13).

 Visivelmente, a situação tornase mais e mais inex trincável. Para entrar na terra prometida da sociedade 

universal, não é mais necessário ser verdadeiramente cris-tão, no sentido em que o entende a Igreja visível, mas importa permanecêlo suficientemente para ser ao menos leibniziano. O Disc urs de Métaphysique  é o evangelho da nova república cristã ( 14). Já que, não mais que Rogé-

rio Bacon no século XIII, Leibniz não espera converter os turcos, cumpre simplesmente suprimilos. Para isto de 

 veriam servir as cruzadas, e o crime de Luís XIV é o de não compreendêlo. Em lugar de atacar o Egito e de des-truir os turcos, foi baterse contra um país cristão tal como a Holanda, falhando assim de uma vez por todas a ocasião de garantir para sempre a liberação do mundo cristão. As guerras entre cristãos não são apenas ímpias,

(13) Sôbre os planos de conquista do Egito, op. cit.,  págs. 5-45.Sôbre a Rússia e o papel possível de Pedro o Grande, págs. 106-176.

(14) Seria preciso ler Leibniz com os antolhos que B. Russell trazhabitualmente para não ver esta evidência. Com plena razão J. Baruzillie perguntava, já em 1907, com que direito considerava a  Monadolo gie,  como “uma espécie de contos de fadas fantasistas, talvez coerente, mastotalmente arbitrário”. (  A Critica i Exposit ion o f th e Philoso phy o f  Leibniz,  1900, pág. VII). Com que direito, escrevia então J. Baruzi,considerar como totalmente arbitrária uma obra a respeito da qual opróprio Leibniz nunca disse que a considerava assim ? Sem dúvida,mas, isto não é o mais curioso. Com que direito, afastando a  Monado- logie,  Russell coloca em seu lugar o Discours de Métaphysique   como exprimindo a essência mesma do sistema de Leibniz ? A doutrina é exatamente a da  M onadolo gie ; o Discour s   progride, pelas mesmas vias, nadireção da mesma conclusão religiosa; em todos os casos, se há umponto em que as duas obras são indiscrimináveis, é bem no espírito

que as anima. Russell não é, desgraçadamente, o único a cometer semelhante êrro, nem Leibniz o único a ser vítima dêle. Quantos professôresde “história da filosofia” não ensinaram Malebranche sem a sua teologia e Augusto Comte sem a sua religião ?

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mento de sua pátria” ( 16). É, convém dizêlo, a sorte de todos os pacificadores. Êles não podem querer apagar as oposições sem atrair todas. Leibniz morreu sem ter con-

 vencido a quem quer que seja, às voltas com a descon-fiança geral dc todos aqueles que tinha querido unir, mas suas ilusões procuraram um outro corpo para nêle sobreviver. Veremos sob que forma, cem anos mais tarde, elas acreditaram teremno encontrado.

(18) Citado por J . B aruzi , Leibniz et Vorganisation.. pág. 508,n.o 2. Aqueles que são familiarizados com a obra de J . Baruzi eque lhe sentiram a unidade, não se surpreenderão ao aprender que,em sua inspiração mais profunda, os esforços de Leibniz em favor daunidade religiosa no espírito e na lêtra dos dogmas, têm tôda a suasimpatia. “Que importa, escreve êle, se esta  f é   não se assemelha à fétradicional ? Tôdas as noções teológicas se encontram em Leibniz semnada perder de sua essência” (op. cit.,  pág. 498). É todo o seu problema. As “noções teológicas” não são a fé, mas, se separando dela, deixampor isto de ser teológicas, se tornam filosóficas. Escreveriamos, aocontrário: tôdas as noções teológicas perdem sua essência no momentomesmo em que se separam da substância da fé. É precisamente por

isto que a fé dita racional, arrastada, desde o seu nascimento, peloperpétuo movimento da filosofia, foi Incapaz de fundar a unidade reli-giosa da terra.

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C apítulo  IX 

A Cidade dos Sábios

obra  de   Augusto Comte escapa a qualquer classificação. Nenhuma fórmula simples pode resumir a 

multiplicidade de seus aspectos e a história de sua influên-cia faz suficientemente ver que continha os germes de 

muitos sistemas possíveis na ordem da ciência, da filo-sofia, da política e da religião. O ângulo particular pelo 

qual o devemos considerar permanece, entretanto, um 

dos mais certamente legítimos e é, talvez, aquêle que per-mite descobrir o que foi, desde o comêço e tornouse, 

cada vez mais evidentemente com o tempo, a aspiração 

 profunda de sua doutrina. Para nós, Comte é um teste-munho sem igual e, se se pode dizer, uma experiência 

 perfeita. Quis constituir uma sociedade universal, fun-

dada sobre a aceitação de uma verdade comum a todos 

os homens, e como não reconhecia outra além da ciência, é sobre ela que se apoiou para construir sua obra. A  

 partir dêsse momento, as necessidades internas do pro-blema dominaram o empreendimento. Para que a ciência 

se tornasse um nexo social, se viu forçada a razerse filo-sofia e depois religião.

 A amplitude do problema aparece mais claramente 

ainda se, como é devido, relacionase a obra de Comte à 

de seu precursor e mestre, Henrique de Rouvroy, conde 

de SaintSimon, nascido em Paris no dia 17 de outubro de 

1760, morto em 1825. SaintSimon é, por si só, um

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mundo(I) e a diversidade de sua obra é tal que ela recebeu as interpretações mais variadas. Para alguns, SaintSimon é um dos messias do Positivismo: orgulho, tenacidade, fé em sua missão, exaltação intensa e por 

 vezes mórbida, tudo indica nêle a paixão quase mística do profeta. Para outros, se apresenta como um re fo r-mador social meditativo, nada místico e que não vaticina  senão para captar a atenção do público, não sem ademais advertir de um piscar de olhos os auditores inteligentes. Eis para o homem e eis para a doutrina. De um pri-meiro ponto de vista, uma crítica impiedosa de todas as religiões estabelecidas e um adversário de toda a teologia, e que substitui por toda parte a ciência à Revelação: 

afinal, o protagonista de uma reforma social fundada sôbre a produção industrial, que anuncia claramente com a “cibernética” de nossos comtemporâneos, a era dos orga-nizadores. A'las, também, o profeta de um “Novo Cris-tianismo”, que começa por declarar: Eu creio em Deus; o chefe do que se denominou “a religião Saintsimo niana”; afinal, aquele que se considerou em pessoa como o 

 portavoz de Deus junto dos homens. E a verdade parece bem ser que tenha sido tudo isto ao mesmo tempo, não 

ao acaso e em desordem, mas de um só jato. Desde seu  primeiro livro, as Lettre dhin habitant de Genève  (1803), SaintSimon anuncia a sua intenção de restituir o gênio ao lugar que deve ocupar na sociedade. Êste lugar é o pri-meiro, porque os homens de gênio são os únicos criadores e, por conseguinte, os verdadeiros produtores. “Mais

(1) Êste curioso personagem foi compreendido e julgado das maneiras mais diversas. Não iremos, felizmente, tomar partido sôbre suasanidade mental, porque, quer se tenha por normais ou patológicos,

certos traços têm para nós a mesma significação. Por exemplo, êle secria, ou se dizia, descendente de Carlos Magno. Ou melhor, seuantepassado Carlos Magno apareceu-lhe e disse-lhe: “Desde que omundo existe, família alguma teve a honra de produzir um herói e umfilósofo de primeira linha; esta honra estava reservada à minha casa.Meu filho, teus sucessos como filósofo igualarão os que eu obtive comomilitar e como político, e desapareceu”. Bem, o que nos interessa nãoé saber se nosso reformador descendia realmente de Carlos Magno, nemse acreditou nesta visão ou se a simulou; o importante é que, se êleinventou um antepassado, foi o fundador da cristandade medieval oescolhido.

Sôbre Saint-Simon e a formação do pensamento de seu discípulomais ilustre, deve-se consultar antes de tudo o trabalho, admirável sobtodos os pontos de vista, de Heijri  Gouhier , La jeunesse d’Auguste  Comte,  Paris, J. Vrin, 3 vols., 1933, 1936, 1941.

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honras para os Alexandre; vivamos Arquimedes !”. É dire-tamente à humanidade que dirige seu projeto de reforma, cujo espírito está claramente definido em sua segunda carta: tôdas as religiões existentes são abolidas, mas será organizada logo uma nova; ao lado de Deus se assentará Newton; o conselho que representará Deus sôbre a terra se denominará conselho de Newton; êsse conselho criará outros, cada um dos quais construirá um mausoléu de Newton, rodeado de colégios, laboratórios, de oficinas, em resumo, de tôdas as instituições necessárias à organiza-ção científica da sociedade humana. Mas, não hesitemos em dizer que êsse reformador social se considera, ao mesmo tempo, como um chefe religioso. “Foi Deus quem falou, declara tranqüilamente na segunda Lettre cFzm habi- tant de Genève;  um homem podería inventar uma religião superior a tôdas as que já existiram ?” (2) Como admirar se, depois disto, que sua obra haja recebido interpreta-ções tão diferentes ? Tôdas são verdadeiras. SaintSimon é um Messias que será enterrado no túmulo de Newton: ao mesmo tempo autor da Introduction aux travaux scien- tifiques du 19e siècle(3),  do Travail sur la gravitation  universelle  e do tratado De la réorganisation de la sociétè européenne ou de la nécessité et des moyens de rassembler les peuples de Europe en un seul corps po litique en

(2 ) S ain t-S imon , Lettres d’ im haMtant de Genève à ses contem-  pora in s   (170), em: Oeuvres chosies,  8 vols., Bruxelas, 1859; t. I, pág. 40(início da terceira carta ). Só uma revelação pode “dar à humanidadeo meio de forçar alguns de seus membros a seguir o preceito do amorao próximo” (pág. 41). Deus llie disse primeiro: “Roma renunciará à pretensão de ser o centro de minha Igreja; o papa, os cardeais, os bispos e ospadres cessarão de fa lar em meu n o m e.. .” etc. (pág. 32). O conselhode Newton, que deve dirigir a humanidade, “a dividirá em quatropartes que se chamarão: Inglêsa, Francesa, Alemã, Italiana...”

(sic, pág. 83). “Os fiéis, após sua morte, serão tratados como o mereceram durante a vida.” (pág. 34). Sôbre o culto, pág. 36. Sôbre asfuturas cruzadas: “Aprende que os europeus são os filhos de Abel;aprende que a Ásia e a África são habitadas pela posteridade de Caim. Vê como êstes africanos são sanguinários, nota a indolência dos as iáticos . . . Os europeus reunirão suas forças, libertarão seus irmãos gregos da dominação dos turcos. O fundador da religião será o comandante-chefe das fôrças armadas dos fiéis. Êstes exércitos submeterão osfilhos de Caim à re lig ião ... ” etc. t. I, pp. 38-39. Abel e Caim continuam aqui os antepassados das duas cidades, como em Santo Agostinho.

(3) Publicado em 1808. Êste nôvo Rogério Bacon encontrou umClemente IV; é Napoleão I. “O imperador é o chefe científico dahumanidade”, t. I, p. 61. “Eu espero que o chefe dos trabalhos doespírito humano, o grande Napuleão, tenha falado”, t. I, p. 226.“Ó imperador tinha necessidade de um ajudante de ordens cientista

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c nservcmt à chacun s n indêpendance na ti nale(A).

  Se houvesse encontrado a solução correta para êste pro-blema, ela nos teria sido infinitamente útil hoje. A sua é simples — é um novo cristianismo da ciência; que cada 

sociedade científica da Europa envie um ou mais deputa-dos a Roma, com poder e missão de eleger um papa e que,  logo eleito, o papa lance uma proclamação, cujo texto SaintSimon preparou como se já estivesse com a eleição garantida(5). Não lhe sobraria senão condenar as outras religiões como heréticas e assegurar assim, contra o cato-

licismo, o luteranismo e mesmo o judaísmo, o triunfo do novo cristianismo (6), isto é, do cristianismo verdadeiro, que é o seu. Porque a verdade do cristianismo é indu 

bitável. Nascido há mais de 1.800 anos, êle fundou a moral uma vez por tôdas sem que ninguém, depois, haja sido capaz de acharlhe outro fundamento. Nisto é que é divino. O cristianismo é destinado a tornarse a religião universal única porque a sua moral é a mais geral de tôdas. Para ser universal, importa que a moral seja una; ora a do cristianismo o é porque repousa sobre um único 

 princípio: “Os homens devem conduzirse como irmãos, uns relativamente aos outros.” Em resumo: a nova fó r-

mula do princípio do cristianismo inclui todo o sistema da organização social: a ciência, as belas artes, a indústria e o sentimento religioso(7).

capaz de compreender seus projetos e de supervisionar sua execução;era-lhe necessário um segundo Descartes”, t. I, p. 236. De acordo coma regra não ama bastante os protestantes (pp. 249-250), e dá grandeimportância a Carlos Magno, organizador da sociedade européia: “Êda religião que fêz a união federativa”; “Lutero colocou problemas nafederação” (p. 254). Entretanto não sonhou em converter os jesuítas-{pág. 251) e terminará por votá-los à exterminação: Le nouveau Chris-  tianisme,  t. III, p. 330 e p. 837. _ *

(4) Publicado em 1814. É lá que está a célebre parábola: "a filosofia do último século foi revolucionária; esta do XIX século deveráser organizadora, “t. II, p. 256.

(5) Conclusão do Travail sur la gravitation universel le   (1813); élamentável que Saint-Simon não tenha escrito senão algumas linhasdesta proclamação pontificai; ed. cit., t. II, pág. 249.

(6) É o título de sua obra de 1825: Le nouveau Christianisme. Saint-Simon nela condena como heréticos o catolicismo, o luteranismoe o judaísmo. Heréticos contra o que ? Contra o verdadeiro cristianismo que é o seu: “Acuso o papa e sua igreja de heresia .. .” etc.,t. III, p. 331. “Acuso os lu teranos.. .” p. 346.

, (7) “Sim, creio em Deus” (t. III, p. 321). Sôbre o princípio únicodo cristianismo, t. III, p. 322. Generaliza-o e estende a tôda a terra,t. III, págs. 826-827; pág. 301; pág. 309; págs. 878-379.

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Esta carreira de SaintSimon é como um esboço da 

de Augusto Comte, que a recomeça aperfeiçoandoa. Comte tinha tudo o que precisava para levar a cabo a 

iniciativa de SaintSimon, se tal fosse possível; a ciência, 

as aptidões filosóficas as mais eminentes, o sentido da organização e o dom da autoridade. Êle era daqueles que, 

como Maomé, não duvidam que sua obra inaugure uma 

nova era na história da humanidade. Seu “calendário po-sitivista para um ano qualquer”, que parte da revolução  

de 1789, ou começo da grande crise ocidental, merece 

o subtítulo acrescentado pelo próprio Comte: “Quadro 

concreto da preparação humana destinado, sobretudo, à 

transição final da república ocidental, formada depois de 

Carlos Magno, pela livre conexão das cinco populações avançadas, francesa, italiana, espanhola, britânica e ger-

mânica”. Os nomes ilustres que ornam os meses e os dias 

dêsse calendário são outras tantas evocações de um esforço 

coletivo, tão velho quanto a própria civilização ocidental,  para preparar o advento de uma humanidade enfim uni-ficada no conhecimento e no amor da mesma verdade.  Todos os temas que nos são doravante familiares estão 

aí, cada um no lugar que lhe compete nesta ordem, Carlos 

Magno e a cristandade da Idade Média, patrocinando aí, de uma vez por tôdas, uma república européia que se con-

sidera a si própria como o germe de que nascerá a huma-nidade. No dia 3 de Dante de 66 (terçafeira 18 de 

julho de 1845), Comte assinalava o catálogo de sua Biblio-teca Positivista em 150 volumes. A lista da quarta seção 

(Síntese), em 30 volumes, termina pela síntese das sínteses, que é o

Catecismo ositivista; os quatro primeiros volumes 

 porém, são: 1) Aolítica

  e aMoral

  de Aristóteles; 2) a 

Bíblia completa; 3) o Alcorão; 4) a Cidade de Deus,  de 

Santo Agostinho. A evolução intelectual de Comte re capitula a evolução histórica do problema: com a simpli-cidade de uma épura, põe em evidência as condições 

abstratas de sua solução.Quase não se lê mais o livrinho em que as intenções 

maisprofundas de Comte se exprimem com mais clareza. Seu simples título é um programa:

Catecismo ositivista,

 

ou “Exposição sumária da religião universal cm treze coló

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quios sistemáticos entre uma senhora e um sacerdote da humanidade”. Êsse gênero literário não é freqíientemente explorado pelos filósofos, mas, tornase necessário quando se pretende fundar uma religião. Ora, tal é o caso. Pu-blicado em 1852, o Catecism é endereçado aos simples fiéis da nova religião, como em agosto de 1855, o Apêl

a s C nservad res  se esforçará por conseguir a adesão dos dirigentes. Tratase, em ambos os casos, de uma religião ateia, fundada e propagada como tal por um ateu: cm suma, de uma religião que não seja mais, conforme a pró- pria etimologia da palavra, senão um laço social cuja única função seja a de ligar(8).

Como Agostinho, cuja iniciativa recomeça, Comte distingue três degraus de realidade social d mus, urbs, rbis,  que denominará em vernáculo a Família, a Pátria 

e a Humanidade. Na origem de tudo, a família, socie-dade doméstica elementar cujo nexo social é o amor. É a sociedade mais íntima e mais perfeita de todas, mas também, a mais restrita. Mais largas, menos íntimamente unidas, porém, as sociedades políticas se superpõem mais tarde às famílias. Seu princípio é a necessidade de uma 

ação coletiva em vista do bem comum de seus membros e a regra própria que preside a êsse gênero de grupos sociais é o grau de preponderância material que resulta desta associação. Para dizer a verdade, êsse grau não comporta nenhum limite teórico. Por que o corpo polí-tico restringida sem necessidade os limites de um poder de que depende a felicidade de seus membros ? De fato, a sociedade política tende naturalmente a alargarse, por uma extensão progressiva fundada sobre a força e, cujo 

declive inclina para a tirania. Em razão de sua pró- pria natureza, ela tende a estenderse universalmente, aumentando indefinidamente sua força; mas, a idéia pes-soal de Comte, muito penetrante e perfeitamente justa, é que isto é um êrro, porque a iniciativa é contradi-tória em seu princípio. De uma parte, há tendência

(8) Augusto  Comtk , Catecismo positivista, ou sumária exposição da  *religião universal,  edição apostólica do apostolado positivista Paris,1891 (Centésimo trigésimo terceiro ano da Grande Crise), quer dizer,depois de revolução de 1789. Há excelente trad. brasileira de M. Lemos

(N. do Tradutor).

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no sentido de uma sociedade universal; doutra parte, cada corpo político particular tende a tornarse, êle pró- prio, esta sociedade universal impondose aos outros pela

 

fôrça, como se o domínio material e tirania que dela re-sultam pudessem ser laços verdadeiramente “sociais”. Tão 

simples como profunda, esta visão de Comte elimina todas 

as tentativas, passadas ou vindouras, de fundar uma 

sociedade universal sobre a fôrça. Um império não me-rece o nome de sociedade.

Como então resolver o problema ? Já foi resolvido 

no passado ou, pelo menos, o princípio de sua solução já  

foi encontrado, se bem que a aplicação não tenha sido per-

feita. A Idade Média compreendeu muito bem que uma sociedade de sociedades políticas não poderia ser, ela 

mesma, uma sociedade política; tal não poderia ser senão 

uma sociedade religiosa. Ela compreendeu, também, que 

uma sociedade digna deste nome repousa sobre a aceita-ção comum de uma mesma verdade, único laço capaz de 

ligar organicamente seus membros. É, pois, um fato que o 

único meio de ultrapassar a sociedade política é entrar na 

sociedade religiosa. Não se trata aqui de um artifício  

ou de um paliativo para encobrir a dificuldade. Não se trata também de recorrer a alguma nova metafísica  

 para substituir a religião ausente. Ser uma “sociolatria”, isto é, se fazer aceitar como o único nexo social possível além da cidade, será, doravante, a essência mesma da re-ligião. A êste título, pelo menos, ela será absolutamente 

necessária. A humanidade será uma religião, ou não será.O menos previsto de todos, êste último avatar da 

Cidade de Deus se deduz, todavia, dos dados do pro-

blema, tais como Comte os entende, com um rigor geo-métrico. Não se trata, para êle, de vo lver à Idade Média, que é um passado irrevogàvelmente abolido. A célebre 

lei dos três estados ensina que, em seu desenvolvimento 

linear e progressivo, o espírito positivo ultrapassa, suces-sivamente, os estados teológico e metafísico do pensa-mento, e que, normalmente, êle os ultrapassa para não 

mais volver. A Cidade de Deus da Idade Média achavase 

ligada à crença na existência de um Deus, causa primeira 

e fim último do homem. O problema era, pois, simples;

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um Deus, uma verdade, um amor, uma sociedade que não era senão a Cidade de Deus. Que se passou, então, depois ? Simplesmente isto: esse Deus cessou de existir no espírito dos homens; não por ter havido a necessidade de fazêlo  

morrer, mas, simplesmente, porque o desenvolvimento na-tural do espírito fêlo passar do estado de ser real para o de princípio metafísico, antes de. eliminálo completa-mente em benefício da explicação científica. Deus não foi morto, mas, ultrapassado; caiu progressivamente em desuso. A prova disto é fornecida pelo Curso de Filo-

sofia ositiva,  suma das conclusões filosóficas gerais fun-dadas sobre a ciência, e que substituirão, doravante, a teologia da Idade Média e a metafísica do século XVII 

no espírito dos homens. Não há mais Deus nem teo-logia, logo, não há mais religião ou sociedade universal; 

tal parecería dever ser a conclusão de Comte. A brilhante ousadia de seu empreendimento, mesmo condenada ao malogro, se mede pela conclusão inteiramente contrária que deduziu dessas premissas. Comte desejou alcançar o fim sem os meios. Querendo uma sociedade universal sem Deus, concluiu que o tempo chegara para instaurar uma religião atéia para construir sobre ela a sociedade 

universal do futuro. Nada o diz mais claramente como o Sistema de olítica os itiva(9).   Seja o que se pense do conteúdo que seu inventor lhe atribui, a noção de “fé po-sitiva”, que é uma “fé demonstrável”, doravante substi-tuída por Comte à de “fé teológica”, ilustra admiravel-mente a necessidade dialética interna que domina a solu-ção do problema. Uma rigorosa analogia de proposições se impõe, se se pretende construir a cidade dos homens em contrapartida à Cidade de Deus(10).

Se pudéssemos empregar a palavra livre de qualquer implicação desfavorável, poderiamos dizer que a Humani-

dade de Comte parodia a Cidade de Deus de Santo Agos

(9) Système de pol i t ique posit ive ,  cap. V, t. II, pág. 305: “O positi vismo vem hoje retomar esta imensa construção (sc. da idade média)com uma doutrina conveniente, e em uma situação favorável, de maneira a determinar a formação decisiva da verdadeira igreja universal.Conquanto seu domínio social deva se limitar primeiro ás populaçõesocidentais e àquelas que daí derivam, sua fé é bastante real e bastante completa para convir igualmente a todas as partes do planêtahumano.

(10)  Augtiste Com te con serva teu r   (Extratos de sua obra final,1851-1857), Paris, 1898, p. 254.

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tinho. Segundo o bispo de Hipona, uma cidade era um conjunto de sêres racionais reunidos pelo amor comum de uma mesma verdade e de um mesmo bem. Comte, também, coloca o “amor por princípio” na base da socie-dade de amanhã. Está convencido de que “nenhuma associação humana pode persistir se não se torna essen-cialmente voluntária”. Na cidade cristã de Agostinho, o objeto dêste amor era dado pela Fé sobrenatural; tere-mos, doravante, uma fé natural, que, incluindo tanto a atividade como a inteligência e o sentimento, fornecerá a verdade comum da qual a humanidade deve viver. Somente “a fé positiva que, sem qualquer esforço, abarca 

realmente tôda a existência humana, pode ligar as diversas sociedades terrestres”, enquanto se espera o desenvolvi-mento da nova igreja(n ) O positivismo vai ter êxito onde o cristianismo não podería senão malograr. Porque 

também é um dogma, mas, um dogma demonstrado, tão certo como a ciência de que toma emprestado seu conteúdo, e, por conseguinte, diretamente universalizável, ou diretamente universal de pleno direito. Dispõe, tam-bém, de um poder espiritual, mas, é um poder espiritual 

legítimo, pois que o dogma sobre o qual repousa é ne-cessário perante a razão. Também pode ter um sacer-dócio, porque, assim como outrora os padres detinham a 

 verdade teológica da Fé, os filósofos positivistas deterão 

doravante a verdade doutrinária que fará dêles os guias e 

os chefes da Humanidade. Acrescentemos que êsse nôvo sacerdócio não cometerá os erros do antigo em matéria  de autoridade política e social. Respeitando melhor do que foi feito no passado, a estrita distinção entre o espi-ritual e o temporal, o sacerdote positivista não governará, êle formulará, ensinará e manterá as regras segundo as quais as sociedades políticas serão governadas, sem ter ne-cessidade, para assegurar sua autoridade, de outra coisa além 'da ascendência espontaneamente exercida sobre os 

espíritos e os corações pela evidência da doutrina. Assim entendido, “o poder espiritual” será apanágio de dois grupos inseparàvelmente unidos numa colaboração cons-

tante: os sábios, ou se se prefere, os sacerdotes, deten( l l ) Système de pol i t ique pos i t ive ,  cap. VI, t. II, p. 806.

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tores da verdade teórica do positivismo e formando, por  conseguinte, o “poder intelectual”; as mulheres, esclare-

cidas pelos sacerdotes e exercendo o “poder moral” que 

lhes será justamente atribuído. A esses dois poderes espi-rituais acrescentaremos um terceiro poder social, o poder material, concentrado na mão dos poderosos e dos ricos, e que constituirá o poder temporal propriamente dito. 

 Assim pois, a força pertencerá ao poder temporal; a razão e o afeto pertencerão ao poder espiritual, tão bem que a sociedade positivista reunirá numa síntese completa todas as forças construtivas requeridas para edificar uma sociedade digna dêsse nome.

Basta apenas assinalar as relações de analogia e por  vezes de paralelismo, entre a cristandade medieval e a humanidade positivista. O próprio Comte freqüentemente indicou, não somente para pagar uma dívida que não pen-sava em renegar, mas, ainda e sobretudo, porque seu posi-tivismo se considerava ainda o único herdeiro do passado, e, pois, também único fundador qualificado do futuro. Tal como o entendia, a Idade Média tornavase em seu pen-samento a “preparação católica” da era positiva. A pro-

 pagação da fé cristã e a expansão do culto do Deus cris-tão não tinham feito senão preparar o tempo “em que o 

 verdadeiro GrãoSer ocupará dignamente o planeta hu-mano’^ 12). O GrãoSer, isto é, o substituto de Deus na religião positivista: a Humanidade.

(12) Système de polit ique posit ive,  t. II, pág. 363. Falta muitopara que a religião de Comte seja uma simples transposição do catolicismo, ao qual não poupa críticas logo que, aos seus olhos, êste" omereça. Portanto, é bem da Igreja católica que o positivismo reivindica a sucessão. O próprio Grão-Ser, ou a Humanidade, é uma verdadeira cidade eterna, que se compõe mais de mortos que de vivos eque inclui o futuro como o passado. Vai tão longe que, em suadoutrina, o presente não pode ser concebido a não ser em funçãodo passado e do futuro ( op. cit.,  cap. VI, pp. 364-365). Cf. no mesmosentido: “O positivismo se limita, pois. a reconstituir sistemàtica-mente o que o teologismo tinha sempre instituído espontâneamente.. . ”cap. VI t. 4, p. 371. “O homem agita-se e a Humanidade o conduz”cap. VII, t. II, p. 455. É necessário ademais, para se convencer do lugarque êle próprio pensava ocupar na história, de reler sua carta de 28de fevereiro de 1852 ao senador Vieillard : “Era preciso, em seguida,constatar que a nova filosofia, que reorganizava diretamente as idéiasmodernas, podia completar seu ofício normal, conduzindo-se a fundar aúnica religião capaz de reorganizar também os sentimentos correspondentes, motores supremos da existência real. Em uma palavra, à carreira de Aristóteles devia suceder a de São Paulo, sob pena de insucesso

final da incomparável missão que eu tinha primeiro ousado me atribuir”Système de po l i t ique pos i t ive ,  Prefácio do t. II , p. X X X I .

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Comte viveria um sonho ? Isto não estava uno em seu espírito. O dogma positivista já existe: é sua filosofia. O sacerdócio é já representado pelos discípulos, pouco 

numerosos que sejam, que o ensinamento de Comte ganha  progressivamente para a nova filosofia. O sumo sacerdote da humanidade é automàticamente designado, não carece de ser eleito: não pode ser outro senão o seu fundador e o seu profeta, que, após ter sido Aristóteles na primeira me-tade de sua carreira, soube tornarse São Paulo na segunda. 

 A nova igreja é, pois, uma realidade de fato, mas seu chefe não pensa em desprezar as lições que contém a história da antiga.

 A Igreja tinha um papa; a humanidade terá o sumo sacerdote, e como há em nossos dias o óbulo de São  Pedro, Comte previu a necessidade de um subsídio posi-tivista. Nesta matéria, o grãosacerdote da Humanidade  vê longe, mas, prevê com razão que as despesas serão consideráveis. Se 600 mil francosouro que pede . pare-

cem uma subvenção generosa, cuidemos que já se vê rodeado de sete “superiores nacionais”, vale dizer, bispos, sem falar nos 100 000 sacerdotes, vigários ou aspirantes, 

 para não os chamar seminaristas, cujo recrutamento êle  prevê logo(13). Como mais de um de seus predecessores, Comte sonha converter os jesuítas. Nada de mais natural. 

Que interêsse teria a Companhia de Jesus, o mais poderoso sustentáculo da Igreja, em apoiarse sobre um dogma do-ravante ultrapassado ? Que substitua, ao contrário, sua teologia medieval pelo dogma positivista, se servirá ao mesmo tempo que servirá a religião da Humanidade. O novo papa não pensa em deixar perder as forças espirituais 

brotadas outrora do gênio religioso de Santo Inácio de Loyola(14).

(13) Haverá três ordens sacerdotais: os aspirantes (28 anos); os vigários ou suplentes (35 anos) e os sacerdotes (42 anos). Cathécisme   posit ív is te,  pág. 268. Um sacerdote deveria ganhar 12 000 francos-ouro,“mais as indenizações de visita pastoral” (pág. 270). Cada “presbitériofilosófico” compreende sete sacerdotes e três vigários (ibid.). O casamento dos sacerdotes é obrigatório.

(14) “Nas instruções que desejais a êste respeito, eu vos recomendo um contato especial com os jesuítas, que são, por todos os moti

 vos, os melhores órgãos e defensores do catolicismo. Deverão ser, emNova York, espontaneamente purgados dos vícios que a esperança dedominar lhes inspira em Paris. São aquêles, dentre os católicos, que po-

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 A esta nova hierarquia eclesiástica, a autoridade dou-

trinai não fará falta. Seu chefe saberá falar com a força que dará às palavras a certeza de exprimir verdades de-

monstradas. Nada de mais de justificado do que um dogma quando não mais repousa sobre uma fé, mas um saber. Não há liberdade de pensamento em matemática:  por que a nova igreja toleraria a insurreição contra a ver-dade ? Assim, como recomeça Campanella em seu apelo aos jesuítas, Comte o renova em sua denúncia dos pro-testantes, esses dissidentes por vocação, cuja oposição essencial a todo dogmatismo é uma ameaça constante à unidade doutrinai, sem a qual nenhuma unidade social 

digna deste nome é possível. O novo dogmatismo da razão positivista reivindica todas as prerrogativas do dogmatismo da fé cristã, de que é herdeiro. Desde o 

 princípio do prefácio que escreve para seuCatecism

sitivista,

  o novo papa exerce, pois, sem escrúpulos, o di-

reito de excluir da igreja nova os heréticos, cismáticos e, falando em geral, os rebeldes quaisquer, cuja dissidência ameaça a unidade da humanidade. As sanções são também 

 previstas, classificadas e hierarquizadas, desde a repri-

menda doméstica pelas ofensas privadas, até a execução  pública e, se fôr preciso, a “excomunhão social”, tem- porária ou perpétua, para os delitos públicos mais graves.  A religião positivista não recua nem mesmo diante do regime de interdito (15).

derão mellior apreciar a aptidão do postivismo à reconstrução do poderespiritual, tentada em vão pelos fundadores do jesuitismo.”  Auguste  Comte conservateur,  pá;?. 256. É, aliás, por isto que, ao mesmo tempo quedescristianizava o catolicismo, Comte “desjesuíta” os jesuítas; denomina-os: Inacianos, o que os “liberta de um nome tão vicioso em simesmo, como geralmente, desacreditado”. Inversamente, “protestantismo” é uma palavra sinônima de “anarquia” (pág. 259).

(15) Com efeito, Comte reproduz aqui a excomunhão já proferidaem 19 de outubro de 1851, ao terminar “após um resumo de cincohoras”, seu terceiro Cours philosophique sur Vhistoire générale de  VHumanité”.  Eis o texto: “Em nome do passado e do futuro, os ser vidores teóricos e os servidores práticos da HUMANIDADE vêm tomardignamente a direção geral dos assuntos terrestres, para construirenfim a verdadeira providência, moral intelectual e material: excluindoirrevogàvelmente da supremacia política todos os diversos escravos deDeus, católicos, protestantes ou deístas, como sendo ao mesmo tempoatrasados e perturbadores. ” Cathéchisme Positiviste,  Prefácio, pág. 1. A expressão “escravos de Deus” mostra que há, apesar de tudo, umelemento comum entre o positivismo de Comte e o materialismo dialé

tico de Feuerbach; 6 a rebelião do homem eonlra Deus. Não é umsimples ateísmo mas um antiteísmo.

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 Vêse daí que, em se fazendo racional, a fé se asse-

gura o direito de exercer uma autoridade totalitária. Ne-nhuma ordem da vida social escapará doravante à influên-cia do sacerdócio, porque aquêle fornecerá tanto a arte como a ciência. Havia uma grande arte religiosa na Idade Média; numa sociedade em que o poder espiritual con-trola toda a produção intelectual, da qual detém, de fato, o monopólio, tôda arte, tôda literatura, serão doravante re-ligiosas. Para sermos breves, digamos que, uma vez posta ao serviço do GraoSer, a vida de cada homem será intei-

ramente devotada a seu culto. Como tem seu calendário e seus santos, a religião positivista tem um culto privado com suas preces da manhã, do meio dia e da noite (16). Ela tem seus sacramentos, não apenas sete, mas nove.

Pouco após o nascimento, a apresentaçã informa à humanidade da vinda ao mundo de seu futuro membro; aos 14 anos, a iniciaçã ao serviço da Humanidade; aos 21 anos a admissã a seu serviço; aos 28 anos, a desti naçã ,  ou escolha de uma carreira; na altura dos 30 anos, o casament , compromisso irrevogável e indissolúvel, mesmo pela morte do cônjuge(17); aos 42 anos a m atu-

ridade,  que assinala o momento em que o servidor da Humanidade atinge a plenitude de sua maturidade social; aos 63 anos, a retirada , o tempo em que o homem abdica livremente de sua atividade prática e não aspira dora-

 vante senão a uma função consultiva; o antepenúltimo sacramento é a transf rmaçã , para substituir “a horrível cerimônia fúnebre” que são as exéquias católicas, como se Comte não compreendesse que êle toma emprestado ao vita mutatur, n n t llitur,  da liturgia da Igreja, o pro-

testo mesmo que eleva contra ela; ao curso desta ceri-mônia que, para consolo dos parentes, fazemlhe aguardar

(16) Système de Polit ique Posit ive,  t. IV, pág. 114-118. Sobre a“sociolatria”, págs. 120-121. Cf. Cathéchisme positiviste,  págs. 107-111.

(17) Comte sèriamente examinou o problema dos casamentos mistos.Êle os autoriza, a título provisório, e enquanto espera o triunfo geralda nova religião, entre positivistas de uma parte, e monoteístas, poli-teístas e mesmo fetichistas de outra. Bem entendido, o casamentomisto não é  permitido “senão a todo positivista assaz liberto das religiões anteriores para participar passivamente de suas cerimônias quaisquer, sem qualquer adesão mentirosa”, Système de Polit ique Posit ive, t. IV, págs. 408-410. A conversão da esposa ao positivismo é um resul

tado que se pode sempre esperar.

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a incorporação  solene do defunto à Humanidade, que é o objeto do último sacramento, administrado séte anos após sua morte, se o sujeito é digno (18).

Mesmo para a religião da Humanidade, a propaga-ção da fé positiva coloca problemas, mas, Cornte não 

ignora totalmente o que será o futuro. Sabe que o tempo 

trabalha para êle. O desenvolvimento necessário ao es- pírito positivo, que alcança sua maturidade na obra do primeiro GrãoSacerdote da Humanidade, garante o 

sucesso futuro do empreendimento. Cedo ou tarde, mais cedo se as instituições se organizam com o fito de fa-

 vorecer o seu progresso, o positivismo conquistará o 

govêrno das sociedades como conquistou o governo da natureza, e a nova religião se estenderá proporcional-mente ao progresso do espírito positivo do mundo. O núcleo da futura sociedade universal já existe, e é êle que temos visto descrito pelo subtítulo do Calendário osi-

tivista.  É a República Ocidental, compreendendo a Fran-ça, a Itália, a Espanha, a Inglaterra e a Alemanha. Cornte não ignora a existência dos Estados Unidos, para onde pensara em dirigirse, durante sua mocidade, mas 

não chega a descobrirlhes uma existência espiritual dis-tinta. Benjamin Franklin, o Sócrates Moderno, tem toda 

a sua admiração, mas é um europeu. Quanto à Rússia, da qual respeita “o nobre Tzar”, inspiralhe mais temores do que confiança. Cornte teme dêste lado um novo uni-

 versalismo político, cuja capital seria São Petersburgo. Não se poderá dizer que o futuro não justificou seus temores; em lugar de São Petesburgo, basta ler Moscou  para que Cornte tenha inteiramente razão.

Toda sociedade política exige uma capital, qual seria a da Humanidade ? A resposta e um problema para a his-tória. Desde que coloca o problema, Cornte cai de novo

(18) Sôbre êsse sistema sacramental da religião da Humanidade, v. o Cathéchisme Positiviste,  págs. 111-121. Sôbre os futuros templosdo Grão-Ser todos orientados para Paris, v. 124. Sôbre o plano dogrande templo da Humanidade, com seu sistema de escolas e de coleções científicas, v. 394-396.

O único templo positivista construído segundo as prescrições deCornte, embora em proporções reduzidas c com sacrifício das edificações complementares, é o do Rio de Janeiro, à rua Benjamim Constant,na Glória. (N. do T.)

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rno sulco traçado pelos séculos e que segue, naturalmente,todo historiador da civilização ocidental. Retoma, por suavez, e sem dúvida de maneira completamente espontâneao velho tema medieval de translati ne studii.  Houve,antes, Atenas, depois Roma, de onde a civilização se transportou para Paris. É ai que ela está desde a Idade Média; Paris pois, de fato, é a capital da República Oci-dental. Pelo menos no presente. Mas, mesmo no pre-sente, o fato acarreta, aos olhos de Cornte, uma grave  dificuldade. Ao mesmo tempo que sede do poder espi-ritual da República Ocidental, Paris é a capital política da França. Ora, sabemos que Cornte insiste sôbre a estrita distinção entre os podêres espiritual e temporal. Não se 

 preocupa de ver o GrãoSacerdote da Humanidade amea-çado em sua independência espiritual pelo poderio polí-tico do chefe de Estado. Pouco importa: se Paris deve escolher entre permanecer capital da França ou tornarsea Roma da República Ocidental, Cornte não duvida um instante que essa escolha seja feita. Eilo, pois, que descen-traliza a França e a recorta em 17 províncias. Para usar de sua própria linguagem, Cornte submete a França a uma “decomposição política”, necessária à “reorganização reli-

giosa”. Como Paris hesitaria entre continuar a capital  política da França e tornarse a capital religiosa da Huma-nidade ? Isto mesmo, todavia, não devia ser o último estado do projeto. Na medida em que envelhecia, Cornte se fechava cada vez mais na lógica de seu sonho, ao mesmo tempo um dos mais irreais e dos mais lúcidos que algum filósofo concebera algum dia. A Humani-dade, na qual já vive, e que atinge, em seu pensamento, os limites da terra, não podería ter indefinidamente como 

capital uma cidade tão puramente ocidental como a pre-sente capital da França. Cornte prevê, pois, a transferência 

de Paris para Constantinopla(19). Na imaginação, Cornte já vê a terra coberta de templos positivistas, rodeados de 

claustros nos quais os futuros sacerdotes da Humanidade,

(9) Por um cálculo, que faz lembrar aquêle dos teólogos cristãossôbre as idades do mundo, Cornte “presume que esta revolução finalterá lugar dentro de sete séculos”. Cathéchisme Positiviste,  pág. 398.

Com a ressalva do caso brasileiro, onde funcionou a Religião daHumanidade, e ainda há positivistas “ortodoxos”, v. J. C. de  Oliveira 

 Tôrres, O posi tivism o no Brasil,  Editora Vozes, Petrópolis, 1957. (N. doT.).

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iniciarseão em paz na sua tarefa de diretores espirituais 

do mundo. Entretanto, os primeiros e melhores discí- pulos de Comte mostramse inquietos em face de uma

 

evolução espiritual que os conduz tão longe da ciência 

 positiva de onde partira. Littré, Stuart Mill e outros 

ainda, desertam um após outro a causa que não mais re-conhecem como sua. Com efeito, Comte fala, doravante,

 

de coisa bem diferente de síntese filosófica das ciências 

que de início prometera e procurara. Acaba de realizar a 

última metamorfose da Cidade de Deus numa cidade 

terrestre da qual o homem é, ao mesmo tempo, deus e 

sacerdote, e na qual se adora a si próprio, como o quer a 

razão.

Desta vez, a esperiência foi conduzida com um rigor 

tão perfeito que a podemos considerar concludente. Se, 

nascida da religião, a sociedade universal aí retorna no 

 positivismo de Augusto Comte, é que, entre êle e Agosti-nho, todo o resto experimentou, por sua vez, e experi-mentou em vão. Não há mais igreja positivista e o sonho

 

do seu fundador morreu com êle. Nem o aristotelismo 

escolástico oferecido por Dante ao assentimento dos homens, nem a teologia metafísica de Campanella, nem a 

metafísica teológica de Leibniz, nem a filosofia científica 

de Comte forneceram à sociedade universal o liame ne-cessário, que, desde os tempos de Agostinho, a Sabedoria

 

cristã da fé lhe oferecera imediatamente. Restanos tirar 

a lição desta experiência logo envelhecida em vinte 

séculos. Pode acontecer, e o caso está longe de ser o 

único, que, procurando uma sociedade universal pelas 

únicas vias de que dispõe o homem sem Deus, nossos con-

temporâneos queiram um fim cristão sem querer um meio 

cristão. Esta lição será, pois, simples: a menos que nos 

resignemos uma vez mais à falsa unidade de qualquer 

império fundado sobre a força, ou de uma pseudosocie 

dade sem laço comum nas inteligências e nos corações, 

é preciso, ou renunciar ao ideal de uma sociedade univer-

sal, ou procurarlhe o laço na fé cristã. Pode haver uma 

cidade dos homens, e não se fará sem os políticos, os juristas, os sábios e os filósofos, mas não se fará, menos 

ainda, sem a Igreja e os teólogos.

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C apítulo  X 

A Igreja e a Sociedade Universal

O s dados do problema  cuja evolução através

do tempo vimos seguindo, não são muito numerosos

nem difíceis de reconhecer, mas, como se misturam cons

tantemente com outros, que são dados de problemas dife-rentes, não será supérfluo classificá-los.

Em primeiro lugar, tôda esta história pressupõe gue a definição agostiniana do povo seja verdadeira e, mesmo, a única verdadeira, ao menos quanto ao sentido e sejam quais forem os termos de que usamos para exprimila. 

 Admitir sua veracidade não implica que todos os grupos humanos que denominamos povos satisfaçam às exigên-cias desta definição. Pouquíssimos homens se acham uni-dos por seu amor comum de bens realmente idênticos,  mas não formam um povo senão na medida em que o são. Reino mineral, vegetal ou animal, não são senão metáfo-ras. A sociedade propriamente dita não começa senão com a razão, logo, com o homem. A força física, certa-mente é uma ligação, mas não um nexo social. Há socie-

dade somente onde a concórdia das razoes e dos corações  ligam mütuamente os indivíduos e as pessoas. Êles for-mam então um povo, cuja concórdia e o laço.

Esta história pressupõe, ademais, que o cristianismo 

haja revelado a idéia de uma sociedade religiosa fundada na fé em Jesus Cristo, aberta aos homens de todas as raças e de todos os países, contanto somente que vivam  da fé. Santo Agostinho denomina êsse povo de Cidade de

 

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Deus, da qual a Igreja de Cristo é a operária no tempo e neste mundo. Esta cidade, que inclui os mortos e aqueles que ainda estão para nascer, conjuntamente com os vivos, satisfaz exatamente à definição de povo, porque nasce de 

um amor comum por um bem comum, conhecido de maneira idêntica, graças à unidade perfeita da fé.

Neste sentido, o problema da Cidade de Deus se con-funde pràticamente para nós com o da Igreja, cuja função  própria é conduzir os homens ao reino de Cristo, que é o reino dos Céus. É noutro plano que as dificuldades aparecem. Nenhum cidadão da Cidade de Deus pertence à cidade terrestre, que lhe é a antítese, mas, todos per-tencem a uma cidade temporal qualquer. Cada um deles 

 possui, por assim dizer, uma dupla fidelidade^), e o fato de ser uma delas natural, a outra sobrenatural, não su-

 prime o problema, porque, introduzindo um povo cristão na cidade temporalj a Igreja não suprime o tempo. Ela cria, no tempo, um povo, cujo comportamento tempo-ral é o de um povo cristão. Os costumes comuns aos 

 povos em virtude de serem cristãos constituem a civiliza-ção cristã. O conjunto dos povos unidos por seu amor do bem comum da civilização cristã, constitui a cristan 

dade. .Um dos aspectos mais curiosos desse problema reside 

no fato de que tenha permanecido, até hoje, por assim dizer, à margem da teologia propriamente dita. Não é uma questão clássica, análoga às que temos a certeza de encontrar em não importa qual comentário sobre as sen-tenças ou suma de teologia, e que podemos provar com certeza em que parte destas obras ela se encontrará.

(l ) A observação vale indistintamente para todos os homens, porque os que não pertencem à. Cidade de Deus, encontram-se, por êstepróprio fato, cidadãos da Civitas terrena,  cuja incidência sôbre otemporal não é menos visível nem menos poderosa do que a CidadeCeleste. Isto não foi mais claramente visto como o é hoje. O marxismoé a tentativa mais bem realizada que o mundo já viu para estabelecer aperfeita coincidência entre a cidade temporal e a cidade terrestre. Êleprepara ativamente o reino do Anti-Cristo. A jurisdição da Igreja sôbreo temporal tem por fim lhe interditar de colocar-se a serviço da cidadeterrestre e de colocá-lo a serviço da Cidade de Deus. A doutrinade Santo Tomás, no De regimine principum,  relativa à subordinação

-hierárquica do temporal à Igreja, lhe define o fundamento com umaclaridade de perfeita; é uma subordinação de meio a fim.

 

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São Boaventura, Santo Tomás de Aquino, Duns Scotus, Guilherme de Ockam, todos possuem uma doutrina defen-dida a respeito das relações entre o poder temporal e o 

Doder espiritual, ou entre o império e o papado, mas, nosso 

Droblema, que é o da Cidade de Deus em peregrinação ao 

ongo dos tempos, com suas conseqüências possíveis para 

a organização da terra, unificação política do globo e 

advento de uma era de justiça temporal e dç paz, se o 

 vemos brilhar na obra de uns raros visionários como Ro-gério Bacon e Dante, permanece, geralmente, no segundo 

 plano da especulação cristã.Êle está, não obstante, certamente ligado a um outro 

cujo lugar central que ocupa na teologia não se pode  

menosprezar: o da fé e sua propagação entre os homens.Na medida em que é teológico, êsse problema ultra-

 passa a competência do filósofo e, mais ainda, a do histo-riador. A única coisa que êsse último pode fazer é obser-

 var a maneira pela qual tem sido pôsto. É o imenso 

 problema teológico da apologética, e não é simples. Re-duzido a seus dados essenciais, consiste em saber como 

se pode universalizar uma verdade de fé, que transcende 

essencialmente ao poder da razão demonstrativa. Duma 

 parte, Deus concedeu a seus apóstolos e aos sucessores 

dêstes a missão de ensinar a todas as nações; doutra parte, 

o ensino que êle os encarregou de transmitir é a fé no 

Filho de Deus e a esperança em um Reino, em lhes 

 prometendo ademais, que estaria com êles em seu trabalho 

até a consumação dos tempos. Há vinte séculos que o 

trabalho prossegue e que os pregadores do Evangelho 

estão às voltas com as mesmas dificuldades: é bom, justo 

e necessário acumular razões de crer; é possível demons-trar que o homem deve crer na palavra de Deus; é pos-sível demonstrar qual é a palavra de Deus, e que o que

 

ela ensina é racionalmente verdadeiro ou racionalmente 

 possível; certos teólogos como Anselmo e Duns Scotus 

se consideram capazes de dar demonstrações necessárias 

de sua possibilidade; quando tudo é dito, porém, a fé não 

é naturalmente transmissível pelo modo de simples de-monstração racional; não resulta de um simples assenti-mento à evidência do conhecimento intelectual, mas de

 

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um consentimento no qual a vontade toma parte e é pre-cisamente por isto que se coloca o problema de saber

 

como universalizar a fé.

Certifiquemonos, primeiro, dêsse ponto. Se há teó-logo de que não se pode duvidar que mostre confiança na

 

razão é bem Santo Tomás de Aquino. Sua C ntra Gen tiles,  contém, no livro I, capítulo 6, uma exposição dos

 

motivos que provocam a aceitação, pela razão, de ver-dades que a superam. O Cristianismo não conquista,, como 

o Islã, pela força das armas; não seduz os homens pela 

 promessa do prazer; convidaos ao desprezo do mundo 

e ao amor de coisas invisíveis, para as quais lhes solicita 

renunciar a tudo que de ordinário atrai o consentimento dos homens e mesmo, se fôr necessário, a sofrer perse-

guições pela verdade. Em suma, o cristianismo teria 

contra si todas as oportunidades se Deus não houvesse 

apoiado sua predicação por meio de obras miraculosas 

que ultrapassam os meios naturais de que dispõem os homens. Provando assim que era êle quem falava, Deus  provou igualmente que era racional crer na verdade de

 

sua palavra, mesmo quando a evidência desta verdade 

escapa à razão natural. Se se acrescenta a isto um milagre 

mais surpreendente ainda do que a cura de doente e a 

ressurreição dos mortos: a inspiração divina dos dons do 

EspíritoSanto cumulando, instantaneamente, de eloqüên cia e sabedoria espíritos simples e sem instrução, com 

 preenderseá que uma inumerável multidão de ignorantes 

e de sábios haja adotado a religião cristã. Mas, depois 

de tudo, um assentimento fundado sobre um milagre não 

deixa de ser um milagre. É mesmo, diz Santo Tomás de 

 Aquino, o maior dos milagres, êste de ver os espíritos 

dos mortais darem seu assentimento a esta fé cristã, cujo 

ensinamento excede à capacidade do entendimento huma-no, refreia as voluptuosidades carnais e ensina a despre-zar as coisas visíveis do mundo para aspirar às invisíveis:

 

quibus ânim s m rtalium assentire et maximum miracul -

 

rum est et man ifestum divinae inspirati nis pus.  Todo 

esse desenvolvimento é um comentário da Epístola aos 

'Hebreus, 2, 3; e se acomoda perfeitamente ao ensina-mento de Santo Tomás acêrca da fé: fides n n habet

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inquisiti nem rati nis naturatís dem nstrantis id qu d cre 

ditur  (Sum . The l.  Ila Ilae, 2, 1, ad lm ); afinal retoma 

simplesmente a doutrina constante da Igreja desde São 

Paulo: fides est n n apparentiwn   (Heb. 11, 1). É, ade-mais, nisto que a fé é religiosamente meritória: não há 

mérito em reconhecer o que se pode demonstrar.Esta natureza da fé está na origem de nosso problema:  

impõe aos obreiros da Cidade de Deus a tarefa literal-mente “sôbrehumana” de obter dos entendimentos huma-nos a aceitação de uma verdade que não é naturalmente 

demonstrável. Não somente a fé não é transmissível por  via de simples demonstração racional, mas ainda, preci-

samente enquanto que fé, ela não comporta mesmo a pes-quisa: n n habet inquisiti nem rati nis natura lis de-

m nstrantis id qu d creditur.  A Fé não é procura, mas, é a paz na adesão à palavra de Deus. Os grandes escolás ticos não se enganaram; todo seu esforço de inteleção se 

movia no interior da fé e do mistério, que nenhum dentre 

eles queira expulsar. Sua teologia era pesqufsa, mas, uma 

 pesquisa que, sem o repouso da fé, ficaria sem objeto. É porque, defender e propagar a fé pela teologia lhes 

aparecia como o único meio possível de constituir uma cidade comum a todos os homens, a única sociedade uni-

 versal cuja noção fosse clara em seus espíritos não era a 

República dos Crentes, nem a cristandade, mas, a Igreja. 

Sua posição permanece boa ainda hoje, e é a única a ser 

clara e, ao mesmo tempo, verdadeira. A Igreja é a Jeru-salém terrestre que prepara no tempo a realização da

 

 Jerusalém celeste; é a sociedade perfeita formada pelos 

cristãos precisamente enquanto cristãos, em suma, a unica 

sociedade cuja essência é exatamente a de ser cristã. Se existem outros tipos de sociedades que pretendem o 

título de “cristãs”, tôdas pressupõem a Igreja, que não 

 pressupõe nenhuma. Ela é a Sociedade Cristã Integral, suficiente a si própria e completa por definição.

Seguese daí que todo projeto de uma República 

Crista estendendo ao temporal as fronteiras da Igreja 

 postula a existência e o reconhecimento prévios da Igreja. 

Nós dizemos da Igreja, c não dc uma igreja, porque se ela 

se quer universal, esta sociedade se quer única , e se se

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quer ún ca  deve ser a extensão, no temporal, de uma só e mesma igreja, da qual toma de empréstimo sua unidade.

Isto mesmo não basta. Para receber de empréstimo sua 

unidade, toda sociedade que alega pertencer à Igreja deve aceitar a jurisdição religiosa, e, com mais forte razão moral, estendida a toda ordem temporal na medida em que se colocam os problemas de moralidade. Êstes não são os únicos problemas que se põem, mas se põem por toda 

 parte: a propósito da ordem política e social cuja tran qüilidade se chama paz; a propósito da guerra, que pode ser justa ou injusta, mas, que não escapa em caso algum  às regras do direito e da moral; a propósito dos governos 

e seus súditos, nenhum dos quais está acima das leis de Deus e dos direitos que estas leis impõem. Que se chame direta ou indireta, pouco importa quanto ao fundo, con-tanto cjue esta jurisdição seja reconhecida nos termos e no espirito em que a definiu Santo Tomás de Aquino:  em matéria espiritual, é melhor obedecer ao papa; em matéria temporal, é melhor obedecer ao príncipe, mais ainda, porém, ao papa que ocupa o vértice das duas ordens (In 11 Sent.  d. 44, expos. textus, ad 4m). O sentido destas 

 palavras é claro. O espiritual não é submetido ao tempo-ral; o príncipe, que tem autoridade no temporal, não a tem,  pois, alguma no espiritual; mas o temporal é submetido ao espiritual; o papa, que tem autoridade no espiritual, tem pois também autoridade no temporal, na medida em que este depende do espiritual. A fórmula é simples e basta aplicála para ver que ela comporta um sentido 

 preciso. O papa não é soberano político de nenhum dos  povos da terra, mas, tem autoridade soberana sobre a 

maneira pela qual todos os povos conduzem a sua polí-tica (2). Vigário de Cristo Rei, ele os julga a todos em Seu nome e em virtude de Sua autoridade.

( 2 ) Inumeráveis mal-entendidos não cessam de reaparecer sôbre êsteponto, tanto os dados em questão são complexos. Duma parte, o papanão é rei, presidente ou primeiro-ministro de nenhum povo particular.Enquanto a política de um povo é um conjunto de meios temporais,utilizados em vista de fins temporais, o papa, “não faz política”.Mas, isto não quer dizer que não “se ocupe de política”, proposiçãomanifestamente falsa (e recorda-se de Leão XIII e sua política de'“ralliement” na França) e, ademais, absurda. Isto não significa nemao menos que a sua ação sôbre a política não seja senão indireta;é absolutamente direta e imediata, mas, de outra ordem. O papaexerce uma ação direta sôbre a política como a graça sôbre a

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É fácil prever que reação aguarda semelhantes pa-lavras; nós pedimos, todavia, que, antes de baterse contra fantasmas, aceitese escutar esta resposta em função do  problema de que estudamos prèviamente os dados his-tóricos. Mesmo se tivesse a força, a Igreja não que-rería recorrer a ela para suprimir as outras religiões; n n vi lentia,  diz Santo Tomás (C ntra Gentiles,  1, 6): a pregação pelas armas não fica bem aos enviados do Príncipe da Paz. Igualmente, a Igreja não pensa em impor a sua jurisdição sôbre o temporal, graças à vio-lência ou à astúcia; aí ainda, ela não possui os meios, e se os tivesse, de nada serviríam a seus fins(3). Tratase, 

aqui, de outra coisa. Dirigimonos àqueles, mais numero-sos do que se crê, que gostariam de construir a sociedade universal cuja idéia a Igreja revelou ao mundo, sem aceitar a unidade da Igreja nem lhe reconhecer a jurisdi-ção. Ninguém os obriga a querer semelhante sociedade, mas, se êles a querem, e com razão, como um fim em si desejável, devem querer, também, os meios. Não há 

 violência, nem intolerância no lembrar que é simplesmente contraditório querer um fim e recusarlhe os meios.

natureza e a fé sôbre a razão. É a mesma. E, como esta ação sôbre otemporal não se pode exercer senão no temporal, existe necessàriamenteuma política da Igreja, Conduzida no mundo pela Igreja na pessoado soberano pontífice, agindo efetivamente como soberano. Ó quemantém a distinção das ordens não é que a jurisdição da Igreja seja“indireta”, é que atua diretamente sôbre o temporal, em vista de umfim não-temporal e que intervém na política dos povos, visando resultados esp eclficam en te    diversos daqueles que são visados imediatamente,por isto que chamam de política. É por isto que seus meios de açãopolítica são outros. 0 poderio efetivo da Igreja no mundo repousa,afinal de contas, sôbre a difusão e profundidade da fé.

(3) Parece-me impróprio descrever a autoridade da Igreja sôbreo temporal como “indireta”. Isto não é, ademais, necessário, para sal vaguardar a distinção entre o temporal e o espiritual, que é da naturezae da graça, considerada sob um de seus aspectos particulares. Agraça não suprime a natureza: a revelação não suprime a razão; aIgreja não suprime o Estado, o papa não espolia César; a graça restaura e aperfeiçoa a natureza em tôdas as ordens, precisamente porque ela própria não é natureza. Não tira o esse ,  confere o b e n e    essCTÉ por isto que, mesmo se é o povo que é César, o papa tem o direitode govêrno direto sôbre êle; mas não o governa como César. Para retomar a fórmula de Pascal: “isto é de outra ordem e superior”. Nãoliá outra causa para a exasperação visível de que fazem prova, contraIgreja, os diversos Césares candidatos ao império do Mundo. Os efeitospolíticos e temporais da jurisdição de Roma nascem de uma coisa que,precisamente por não ser política nem temporal, escapa-lhes. Suas armas,que são as da fôrça física, podem devastar a cristandade e desolar aIgreja, são finalmente sem fôrça contra a fé. Porque ela, também, é

de outra ordem e superior. Compreende-se assim, sem introduzir umadistinção cuja intenção é sã, mas cujo fundamento é duvidoso, que o

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É, no entanto, o que se passa em nossos dias. No mês de outubro de 1933, na sessão de encerramento do Sexto Congresso Católico da Igreja Episcopal, reunido em Filadélfia, o bispo protestante William T. Manning, 

de N. York, declarava com força, que “os espíritos huma-nos estão abertos ao ideal de uma igreja. Una, Católica e Universal, como testemunha da unidade da humanidade. Nenhuma religião seja de uma seita, de uma província, ou simplesmente individualista, podería hoje satisfazer os corações ou as imaginações dos homens. O ideal de uma igreja católica das dimensões do mundo, da sociedade divina de que o Cristo é o chefe e a pedra angular, é o único suficientemente grande para responder às intenções 

e às aspirações de nosso tempo”. Quem, dentre nós, não aproveita tais palavras ? (4) Somente elas não devem ser

religioso circula na totalidade do político c o governa por dentro semse misturar com êle. “Subjiciens ei principatus et potestates”, lê-sena Sexta-Feira Santa, na missa dos Pré-santifieados. Aquilo por quea Igreja ora, é isto mesmo que ela deseja. Não se trata de retirarde César o que é de César, mas, de compreender que o que é de Césarpertence primeiro a Deus. É um ponto que nenhuma fórmula simples écapaz de definir. Dizia-se recentemente: o Estado não é um instrumentoa serviço da Igreja, e vice-versa. O pensamento do autor é provàvelmentesão, •mas, a frase deixa fugir por todos os lados a realidade quetenta exprimir. O Estado é um instrumento a serviço dos fins rel igiosos  da Igr e ja ;    admita ou não, isto é que êle é para ela. Inversamente, é

absolutamente verdadeiro que a Igreja não é um instrumento a serviçodo Estado, mas, não é menos verdadeiro que, por servir ela própria aum fim superior ao do Estado, êste tem necessidade da Igreja, queo torna melhor, mesmo não lhe prestando “serviço”. É porque a jurisdição religiosa da Igreja, sem mudar de modo nenhum a natureza,possui incidências políticas diretas. Ela não seria capaz de exercer-sesobre o temporal e não os ter. Pe la mesma razão, não há motivo paraesperar que os que negam a existência da ordem sobrenatural religiosaaceitem que a autoridade religiosa da Igreja sôbre o temporal não sejaessencialm ente   política. Pois que tudo é política para êles, a jurisdiçãoque o papa exerce o é por definição. Por exemplo, se o papa interdiz

 votar nos comunistas, todo comunista verá uma intervenção políticanuma decisão religiosa cuja incidência direta sôbre a política é manifesta. Êle se enganará de fato e de dire ito; um êrro, irremediávelenquanto a ilusão de perspectiva subsistir, não é menos êrro por isto.Nós já o dissemos: a verdade parece ser que a Igreja nunca  fa z   poMtica,mas que se ocupa disto sempre e de pleno direito. Tem autoridadeembora que se ocupe disto em razão de suas implicações morais e religiosas, isto é, segundo a fórmula tradicional, contanto que a políticainteresse, positivamente ou negativamente. à fé e aos costumes.

(4) Tiramos êstes textos do New York Times, sexta-feira, 27 deoutubro de 1933: “Não vamos introduzir a política na religião, diziaainda o bispo Manning, mas, introduziremos a religião na política e na vida inteira. Incumbe-nos fazer ver que pertencer à Santa IgrejaCatólica, não é questão de teologia e de teoria sòmente, mas de vidae de prática”. Sem dúvida, mas como obter uma igreja “católica”,sje não se faz acôrdo sôbre a teologia e a teoria ? A secretária edois bispos do congresso não cometeram êrro ao declararem no diaseguinte, no mesmo jornal, que o objetivo do movimento não era a“reunião com Roma sob a autoridade do papa”. Que dúvida. ..

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separadas do comentário. Não se trata absolutamente, dizia logo um portavoz da mesma igreja, de uma reunião com Roma sob a autoridade do papa. “Não pode haver 

união completa com Roma, dizia de seu lado George Craig Stewart, bispo protestante em Chicago, enquanto Roma não haja abandonado seu postulado de que, quem não se encontra em comunhão com Roma, não é cató-lico (New Y rk Times, 27 de outubro de 1933). Em suma, a primeira condição requerida para que uma so-ciedade religiosa seja possível é que a única igreja que seja una, renuncie logo a seu ser, abdicando de sua uni-dade.

Não se trata aqui, e nós esperamos que o sintam, de uma refutação dialética. A eficácia dela seria medíocre, como de costume. É inútil querer fazer para um inter-locutor uma pergunta para a qual êle não tenha uma res-

 posta própria, porque sempre há uma: a única coisa im- portante consiste em procurar com êle uma resposta à sua  própria pergunta. Sem uma verdade cristã, não podería haver nem igreja cristã, nem sociedade cristã. Sem uma 

 verdade una, não podería haver igreja una, nem sociedade 

cristã verdadeiramente una. Na desunião de fato em que estamos, a tolerância mútua entre as igrejas é uma coisa excelente, mas, seria melhor que não tivesse oportunidade de exercerse. De qualquer modo, ela não podería passar  por uma união, menos ainda por uma unidade. Podese não querer uma jurisdição, mas não se pode querêla e recusar a autoridade. “O dever imperativo do protestantismo, diz um protestante, é a paz mundial. Se o protestantismo não quer tolerar uma autoridade como a de Hildebrando, o que é certamente o caso, então, por amor do céu! que lhe sugira uma jurisdição mais eficaz” (5). Sim, mas, se 

fôr incapaz de lhe sugerir uma, que o protestantismo re-nuncie a fazer a unidade espiritual e temporal da terra, ou bem, pelo amor do céu ! que aceite a jurisdição de Hil-debrando.

Se se pode extrair uma lição da história da Cidade de Deus e dos avatares pelos quais passou no curso dos

(5) S. P arkes  C adman , ChristAanity and the State,  N. Y. MacMillan,1924, pág. 327. Particularmente, c. IX: The ChaUenge to Protestantism.

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séculos, é, pois, primeiramente que ela não é metamorfo 

seável: mas, é também que tôda tentativa para usurparlhe 

o título e a finalidade traz desgraça às sociedades huma-

nas que a pretendem realizar na terra. O traço comum a todas estas tentativas é de substituir ao laço da fé um 

laço humano, como filosofia ou a ciência, na esperança 

de que se universalizará mais facilmente do que a fé e 

que se facilitará, por aí, o nascimento de uma sociedade 

temporal universal. A operação é compensada normal-mente por um malogro. Importa sabêlo e dizêlo num

 

tempo em que tantos espíritos generosos se esforçam para 

dar um sentido a noções tão importantes como as de 

Europa e de Humanidade. Nada de mais legítimo do 

que o ideal de que cada uma delas traz o nome, mas são 

 projetos de sociedades temporais, isto é, sem serem exclu-sivamente materiais, mas, concebidas em vista de garantir

 

aos homens mais felicidade nesta vida, e aquela que é 

a condição de todas as outras: a paz. Tratase bem desta 

 vez da paz tal como o mundo a dá, ou ao menos como 

gostaria melhor de fazêlo.

Qualquer que deva ser um dia a sua forma, a Europa não poderá jamais ser senão uma realidade geográfica, 

economica, política e social, tão fecunda em realizações 

espirituais no futuro, como o foram, no passado, os povos 

que a compuseram; mais fecunda mesmo, se possível, e 

sobretudo, mais feliz, noção que seria impossível carre-gar de um sentido místico que nada a destina a trazer.

 

Saberemos o que é a Europa quando lhe conhecermos a 

estrutura e as fronteiras políticas; será sempre perigoso 

erigir esta Europa real numa igreja temporal, criadora 

e detentora da verdade universal que, unicamente, pode 

unir os homens. Os povos da Europa foram poderosos 

transformadores e multiplicadores de bens espirituais que 

receberam de todos os lados, desde a Caldéia antiga e do 

Egito fabuloso, até a Palestina, e que não lhe poderíam 

 pertencer como próprios, pois, são universais de pleno di-

reito. O que é verdadeiro na América o é também na 

Çuropa, seja de que ordem de verdades fôr. O que é belo na Europa também o é na América, seja de que 

arte fôr. Seria deplorável que o nascimento da Europa

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fôsse ocasião de um nôvo nacionalismo relativo às coisas do espírito, de proporções um pouco mais amplas do que o antigo, quanto à amplitude, mas nem por isto mais inte-ligente do que o antigo. Seria mais lamentável ainda que fossemos presenteados ao ensejo com o mito nôvo do “Homem europeu”, com o qual somos ameaçados, sem ademais saber muito como o definir, senão, como já foi 

 proposto sem ironia, pela dupla oposição, de uma parte, ao homem russo, c dc outro, ao homem americano. Por mais firmemente que queiramos uma Europa política, importa mais de não fazer dela uma cjuimera espiritual(6). É preciso resignarse com antecedência: o homem da Europa será um homem como os demais, sem privilé-

gios espirituais, e que valerá exatamente o que será. Para o mal, como para o bem, tudo o que se fará na Europa será igualmente europeu.

Isto é o mesmo que dizer que a Europa em pessoa não pode nascer senão como um dos países do mundo entre os outros. A aspiração confusa dos homens de hoje em direção a “um mundo só”, tão fortemente expressada  pelo livro de Wendell Wilkie, é um sinal certo de que a terra se acha em gestação de sua unidade. Êste nasci-mento não se fará sem dores; não seria prudente multi- plicálas por prazer, comprometendose por antecipação em becos sem saída. O pior êrro seria imaginar a Europa, ou mesmo a humanidade, como um aperfeiçoamento da noção de igreja universal ou como a verdadeira Cidade de Deus. De qualquer maneira que se organizem e se unam, as sociedades temporais não formarão, jamais, senão uma sociedade também temporal, mais vasta, mas da mesma natureza. Que esta sociedade tenha ligações espi-rituais, e que algumas destas ligações sejam de valor uni-

 versal, nada mais certo. A ciência, a arte, as letras, o di-reito, a filosofia, muitas técnicas, mesmo, a respeito das quais se quer esperar que, se forem progressivamente menos

(6) Em desespêro de causa, propuseram recentemente de definiro Europeu como o homem da contradição, simbolizado pelo dilacera-mento da cruz. Êste símbolo é importado da Ásia. Reconheçamos, todavia, que esta definição é irrefutável. Como fazer ver que umanoção qualquer de Europeu é falsa e, quanto mais contraditória,melhor se aplica ? É lamentàvelmente impossível verificar até queponto sua própria inconsistência a substrai à refutação.

 

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nocivas, e cada vez mais humanas, são tantas forças que,  por sua natureza espiritual e seu alcance universal, não cessarão de unir cada vez mais estreitamente os homens. Mas, a amplitude de uma sociedade não lhe muda em nada a essência. Para que seja outra coisa do que um aglo-merado de povos mais ou menos empiricamente impe-didos de se entredevorarem, importa que esta sociedade 

 viva de uma verdade una. Para tornarse ela própria povo, cumprelhe realizar, por sua vez, a definição esta-belecida por Santo Agostinho: um conjunto de homens comungando no amor de um mesmo bem(7).

história dos avatares da Cidade de Deus desde a Idade Média, significa, que não se encontrou, tirando aquele da fé, um universalismo da razão capaz de a substituir. Por mais paradoxal que seja, o resultado da experiência é claro: mesmo onde a razão divide, a fé une. Mas, é mesmo um paradoxo ? Sem uma exceção, todos os teólo-gos ensinam que a verdade da palavra de Deus é mais certa e mais infalível do que mesmo as certezas da razão mais bem demonstradas.

(7) Sem grande esperança de evitar as confusões de todo modoinevitáveis, exprimimos, todavia, o desejo de que não nos façam negaro que não afirmamos, e que não temos de afirmar porque isto nãofaz parte do nosso tema. Não nos metemos a mostrar em que condições temporais uma sociedade européia, ou humana, é possível, mas,de sublinhar a condição cristã cuja rejeição ou cujo esquecimento atornaria impossível. Longe de subestimar-lhe a importância, estimamos que as técnicas jurídicas, políticas, econômicas, industriais e financeiras sejam aqui de primeira necessidade. É ainda mais verdadeiro para a fôrça unificante dos universalismos temporais da verdadenatural em tôdas as ordens. Temos, ao contrário, muitas vezes, la mentado ver a tarefa urgente de sua organização técnica sacrificada à sua utilização sutil pelos nacionalismos, velhos ou novos, que

os utilizam em vista de seus fins próprios, ou de quimeras cujaprocura desvia-os do objetivo verdadeiro. Se se preparasse antes ocorpo, acharia logo sua alma. Sòmente que, quando tudo já foi dito,a condição religiosa continua necessária ao sucesso do empreendimento.De qualquer maneira, não será, sem dúvida, jamais completo. Pelosimples fato de ser uma concórdia, logo um consentimento, um povopode chocar-se com a recusa de pertencer-lhe. Fora ainda dos querecusam, não integra verdadeiramente aquêles que não fazem senãosuportá-la: as pedras da cidade que não são pedras vivas. Mas,precisamente, a cidade temporal universalizar-se-á tanto mais seguramente e tornar-se-á tanto mais verdadeiramente um “povo”, na medida em que se ordenará tanto mais completamente ao fim da Igreja,que é a Cidade de Deus. Pode-se temer que ela se recuse a isto.Êm tal caso, continuará a procurar em vão através de falsas ordense de unidades falsas. Em resumo, ela continuará a procurar sem

jamais chegar a existir.

Qual será êste bem ? Se sentido, a

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 Visto com atenção, o que, no plano puramente empí-rico da história, aparece como um paradoxo, de fato, aparece com uma verdade de direito no plano transcen-dente da teologia. Não é surpreendente, mas necessário 

que, enquanto as razões se dirigem aos inteligíveis mais 

altos, cujo conhecimento é o fim último do homem, o 

acordo perfeito e estável das luzes naturais dependa de 

uma luz sobrenatural que as una. Não é menos surpreen-dente, mas necessário, que o acordo dos homens no amor 

do bem comum temporal, na medida em que a lei natural 

 permite conhecêlo e atingilo, não engendra jamais 

senão uma sociedade, real sem dúvida, mas vivendo de 

uma ordem provisória e dotada de uma unidade imper-feita. Na medida em que, como o esperamos, a sociedade

 

humana de amanhã é realizável, será preciso, pois, não 

tomála em si mesma por uma igreja, mas, aceitar da 

igreja a unidade perfeita para qual se dirige e que é inca-

 paz de se dar.

Nós o esquecemos, e eis que já torna a desfilar diante 

de nossos olhos o cortejo das antigas respostas, vinte 

 vêzes ensaiadas, vinte vezes refutadas, pelos fatos, e, todavia, 

sempre as mesmas. Oferecemnos um império universal, 

como nos tempos de Alexandre Magno, de Augusto, de 

Napoleão I, ou de outros ainda que temos conhecido de- pois. Não é completamente certo que os impérios sejam 

totalmente nocivos, ou mesmo inúteis. Muitos deles con-tribuíram, por sua parte, para diminuir o retalhamento po-

lítico da terra, mesmo a preço de grandes sofrimentos, e 

nada prova que o tempo dêles já passou. Somente, é 

assaz difícil prever a escolha do destino, uma aventura 

sendo melhor conhecida depois de começada. Mesmo  James Bunham que propunha recentemente um “impé-

rio mundial americano”, isto é, “uma federação mundial criada e dirigida pelos Estados Unidos”, via claramente, 

de um lado, que uma “federação mundial russa” é uma 

 possibilidade igualmente aberta e, por outro lado, que 

mesmo um império mundial de intenções tão generosas 

como aquêle dos americanos, e que não seria, de comêço, 

senão uma “associação protetora dos povos”, podería 

degenerar num despotismo tirânico por parte da nação

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inicialmente protetora. Que se trate de uma simples pos-sibilidade, como é aqui o caso, ou de uma certeza absoluta, como no caso de um império russo, o resultado seria fi-nalmente o mesmo; havería um império, isto é, submissão 

ao poder, nunca a união dos corações e, pois, uma socie  dade(8). A última tentativa conhecida de definição de 

 verdade comum a todos os homens e de fazer de seu amor o laço comum de uma sociedade verdadeira, é a de 

 Augusto Comte (9). Isto não prova que deva permanecer a última; mas, como a verdade em que Comte se funda-

is)  Após haver longamente refletido, não nos pareceu que omarxismo fôsse evidentemente incluído na história de nosso problema. Enquanto cidade do homem erig ida contra a Cidade de Deus,a sociedade universal de Marx não somente nada ajunta ao ateísmo

de Comte, mas se revela, à analise, ineomparàvelmente mais pobrede conteúdo. Seguramente, é um outro sinal dos tempos e, comotal, a noção é digna de estudo, mas, não acrescentaria nada ao quejá sabemos. Além disto, e sobretudo, o materialismo dialético deMarx é completamente estranho, de fato e de direito, à grande tradição de uma sociedade espiritual ünicamente fundada sôbre o reconhecimento de uma mesma verdade por homens comungando nummesmo amor. Persuadido, na linha de Condorcet, de que o progressohumano é, afinal de contas, fatal, Marx não vê, todavia, a causanuma otimista filosofia das “luzes”, mas, na eficácia das leis econômicas necessárias, cujo efeito nossa incapacidade pode retardar, masnão impedir. Não mais o espírito que conduz, mas, a matéria.

 Admita-se ou não sua doutrina, o marxismo do próprio Marx terminapela visão da humanidade ligada pela submissão afinal consciente aomesmo determinismo, menos diferente da aceitação estóica do cosjnodo que se pensa e que, de Agostinho a Comte, nenhum daqueles queexaminamos denominaria uma sociedade. Comte tinha o positivismocomo o único antídoto eficaz contra o comunismo. Acrescentemos que,de Lenine a Stalin, o marxismo não fêz senão descer a rampa doimperialismo político. No dia em que escrevemos estas linhas, oscandidatos ao império universal acliam-se em Moscou.

(9) Dissemos: uma sociedade fundada sôbre o mesmo amor damesma verdade. É um ponto que é preciso compreender, porque escritos recentes, assinados por filósofos, consideram assentado que aIgreja e o marxismo sejam “totalitarismos” do mesmo gênero. Nadadisto, e pela simples razão de que o fim da Igreja difere do fimdos Estados, e não. sòmente o fim, mas, como o dissemos, os meios.Nada o faz ver melhor do que as atitudes respectivas em matéria de

 verdade doutrinária. É a verdade do cristianismo que faz e mantéma Igreja, enquanto que os Estados e os partidos fazem e mantêm,enquanto duram, a verdade da doutrina em que se apóiam. Ora,precisamente porque se apóiam em verdades temporais, o artifício é visí vel claramente, e em nenhum lugar mais do que no caso do marxismo,tornado um leninismo, depois um estalinismo e que, todavia, pretende ser a mesma verdade “científica” que alegava, há mais de cemanos, o  M anif es to Comunista.  Se é a mesma, estamos em presençado fenômeno único na história dos tempos modernos: um sistema“científico” velho de um século e, todavia, ainda vivo .. . A noçãode dogma religioso tem um sentido, e é por ser religioso, que, sendoeterno, êle se impõe imutàvelmente aos fiéis que o servem; a própria noção de dogma científico é absurda, e é por isto que, emlugar de servi-lo, os fiéis devem impô-lo a fim de servir-se dêle. OPartido não tem razão por ser a doutrina verdadeira, a doutrina é verdadeira porque o partido tem sempre razão.

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menta é a de ciência positiva, é difícil imaginar que a 

razão natural possa propor doravante um laço cuja uni- versalidade seja mais estritamente natural. O que faz do 

comtismo uma experiência decisiva é que, para extrair dele um nexo social, seu autor haja devido prèviamente 

organizar a verdade objetiva da ciência em função de um 

 princípio subjetivo. O fundador do positivismo expres-samente demonstra que o que se chama hoje positivismo 

absoluto, ou puro, é impossível. Demonstrou, em conse 

qüência. que a ciência das coisas não poderia ser a verdade 

unificadora dos homens, nem o liame de sua sociedade. Acontece que, na medida em que se vai realizar, a 

sociedade temporal dos homens não realizará jamais senão 

uma imagem da sociedade sobrenatural e perfeita que é 

a Cidade de Deus. A Igreja propôs inicialmente aos ho-mens, por Santo Agostinho, o ideal de uma sociedade 

dos filhos de Deus, unidos a Êle e entre si, pelos laços 

da fé, da esperança e da caridade. Com efeito, se disseram, eis a única sociedade digna dêste nome, mas, vamos fazêla,

 

nós mesmos, sôbre esta terra, cm vista do homem e por seus 

 próprios meios. Sabese o resultado e Santo Agostinho, por 

sinal, o previra. Chamase Babel ou a confusão. É o caso 

típico destas idéias de que G. K. Chesterton dizia que o 

mundo está cheio: uma idéia cristã enlouquecida. Sua 

família é numerosa, mas fàcilmente reconhecível: é a dos 

fins divinos que o homem, quando ocorre terse como 

seu inventor, confisca em seu proveito. A série das me-tamorfoses da Cidade de Deus não tem outro sentido. É

 

a história de um esforço obstinado para fazer desta cidade 

eterna uma cidade temporal, colocando no lugar da fé não importa que laço natural concebível como força 

unitiva desta sociedade.Seguese daí que a Igreja trabalha contra a cidade

 

dos homens ? Muito ao contrário. Aquêles que trabalham 

contra ela são aquêles que, encorajandoa a agarrarse a um 

sucedâneo da igreja, tornamlhe contraditória a noção e o 

nascimento impossível. Tudo deve ser progressivamente 

executado para construíla, inclusive as grandes forças 

espirituais que sua universalidade mesma habilita para 

essa tarefa: a ciência, a arte, o direito e a moral. Que

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üma sociedade humana de um tipo qualquer possa nascer 

ao termo destes esforços, ninguém podería duvidar, mas 

será tanto menos indigna do título de sociedade perfeita 

quanto se ordene em direção à sociedade perfeita que 

ela não sabería ser, e em vista da qual seu próprio fim 

não passa de meio. Empenhados, como homens e como 

cidadãos, no esforço de conseguir o bem comum de suas 

cidades temporais, os cristãos se encontram, como cris-tãos, sobrecarregados de uma responsabilidade mais alta

 

ainda, a de manter e estender a informação do temporal 

 pelo cristianismo por toda parte onde se encontram e em 

todos os domínios em que lhes é dado agir. A êles pois, 

 para usar um nome muitas vêzes secular, pedimos aos teólogos de dizer se convém ou não designálos por êste 

motivo com o nome de cristandade.

Por qualquer palavra que os designemos, êsse povo 

cristão é o mesmo que a Epíst la a Di gitet e a Cidade

 

de Deus  descreviam já como espalhados no mundo, igual 

à alma que por toda a parte está copresente no corpo 

que ela anima. Não há outro ser que aquêle da Igreja, 

outro fim que o da Igreja, e não o podería atingir senão 

sob a tutela da Igreja. Em si, fora do tempo, a ver-

dade da igreja pode exprimirse numa multiplicidade 

de línguas e animar uma pluralidade de instituições tem- porais que se sucederão no tempo e estenderseão no

 

espaço. Eis aí porque, mesmo se êsse povo cristão muda 

de fisionomia ao longo dos séculos porque habita suces-sivamente cidades temporais diversas, permanece uno no

 

tempo, como o é no espaço, porque vive da vida una e 

imutável da igreja.Esta parte da Cidade de Deus, peregrina no tempo, é

 

também o levêdo da cidade temporal, que procura nascer, 

e da qual a cidade celeste é a idéia. Fora do povo cristão 

e de qualquer modo em sua fímbria, mas, em sua zona de 

irradiação e de influência, achase a cidade temporal que 

não é ainda renascida do Verbo e do Espírito, e que 

todavia, a simples presença da Igreja solicita e persuade 

lentamente a se reformar à sua imagem. Assim nasce, em 

tôrno da igreja, uma espécie de civilização difusa obser- vável ao longo da história e que constitui, se assim se

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 pode dizer, o catecumenato da civilização pagã ao título 

de civilização cristã. É, também, pelo que já possui de 

cristã, mesmo que se defenda disto ou o ignore, que é 

esperança e preparação duma sociedade temporal que, 

 para unir todos os homens, devese apelar para um prin-cípio que transcenda ao homem. Não há outro senão 

Deus conhecido pela fé. O cristão crê na Cidade de Deus 

e a esperança que nela deposita é uma certeza; o homem  

tem o direito de esperar na cidade humana, mas, sua espe-ã é A ú i i hi i d