gildo manuel espada a afirmaÇÃo do direito de Águas tese

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Gildo Manuel Espada A AFIRMAÇÃO DO DIREITO DE ÁGUAS Tese com vista à obtenção do grau de Doutor em Direito Público, no I° Programa de Doutoramento conjunto entre a ESD-ISCTEM e a FD-UNL Orientador: Professor Doutor Jorge Bacelar Gouveia Maputo, Dezembro de 2014

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  • Gildo Manuel Espada

    A AFIRMAO DO DIREITO DE GUAS

    Tese com vista obteno do grau

    de Doutor em Direito Pblico, no I

    Programa de Doutoramento

    conjunto entre a ESD-ISCTEM e a

    FD-UNL

    Orientador:

    Professor Doutor Jorge Bacelar Gouveia

    Maputo, Dezembro de 2014

  • Gildo Manuel Espada

    A AFIRMAO DO DIREITO DE GUAS

    Tese com vista obteno do grau

    de Doutor em Direito Pblico, no I

    Programa de Doutoramento

    conjunto entre a ESD-ISCTEM e a

    FD-UNL.

    Orientador:

    Professor Doutor Jorge Bacelar Gouveia

    Maputo, Dezembro de 2014

  • Declarao anti-plgio

    Declaro por minha honra que o texto apresentado de minha exclusiva autoria

    e que toda a utilizao de contribuies ou textos alheios est devidamente

    referenciada.

    _____________

    Gildo Manuel Espada

  • A Afirmao do Direito de guas

    _____________________________________________________________________

    iv

    Dedicatria

    Aos meus pais, a quem tudo devo.

    Ivete, o amor da minha vida.

  • v

    Agradecimentos

    Ao terminar os trabalhos de elaborao desta Tese, depois de um longo

    percurso feito, obriga-me a conscincia a reconhecer as pessoas e entidades

    que contriburam para que a mesma fosse concluda.

    Em primeiro lugar, minha irm mais nova, Augusta Espada, que

    suportou pacientemente o temperamento e as indisposies que me foram

    assolando ao longo de todo o processo de elaborao desta Tese, sem nunca

    deixar-se vergar e sem nunca deixar-me desamparado. Toda aquela ateno

    e cuidado em relao minha sade, alimentao e ao meu aprumo e

    disciplina provaram ser cruciais. Por isso, para ti, um obrigadssimo muito

    especial.

    O Instituto Superior de Cincias e Tecnologia de Moambique, na

    pessoa do Magnfico Reitor, Professor Doutor Joo Leopoldo da Costa,

    ofereceu-me a frequncia do Programa de Doutoramento sem custos, e

    permitiu que me ausentasse, vrias vezes, para que pudesse fazer as

    pesquisas necessrias para a concluso da Tese.

    O Instituto Superior de Artes e Cultura, na pessoa do seu Director Geral,

    Sr. Dr. Filimone Meigos, financiou grande parte das despesas relativas s

    viagens por mim feitas e aquisio de bibliografia.

    O Sr. Professor Doutor Jorge Bacelar Gouveia orientou a elaborao da

    Tese. Mas foi muito mais que um mero orientador: deu-me foras quando

    delas precisei, amparou-me quando sozinho me sentia em terras lusas e tudo

    fez para que eu nunca desistisse.

    Ao Sr. Dr. Vctor Serraventoso e ao Sr. Engenheiro Rui Gonzlez, da

    Direco Nacional de guas de Moambique, agradeo pelo imensurvel

    apoio na conceptualizao da Tese, e na recolha de material de estudo.

  • A Afirmao do Direito de guas

    _____________________________________________________________________

    vi

    O Sr. Prof. Dr. Henriques Henriques deu-me todos os incentivos e

    apoios necessrios, e tudo fez para que as necessrias dispensas do servio

    que permitiram as ausncias para as minhas pesquisas fossem concedidas.

    Os verdadeiros amigos tambm foram importantes nos momentos

    crticos, incentivando-me e mostrando preocupao com os meus estudos: o

    Sr. Dr. Raufi Tabo, o Sr. Dr. Salim Omar e o Sr. Prof. Dr. Carlos Serra foram

    os que assumiram as despesas decorrentes das minhas ausncias,

    substituindo-me nas minhas tarefas de docncia. Agradeo-vos, e em

    particular, um obrigado muito especial ao Sr. Dr. Salim Omar.

    O Sr. Prof. Dr. Teodoro Waty e o Sr. Professor Doutor Benjamim Alfredo

    aceitaram amavelmente ler e opinar sobre a Tese, e por isso muito agradeo

    pelas contribuies.

    O Sr. Prof. Dr. Almeida Machava e a Dra. Ivete Mafundza muito

    ajudaram na reviso e edio do texto final.

    A todos vs, nhibongile!

  • vii

    Apresentao

    A presente Tese de Doutoramento foi elaborada como requisito parcial

    para a obteno do Grau de Doutor em Direito Pblico, no mbito do Primeiro

    Doutoramento Co-organizado entre o Instituto Superior de Cincias e

    Tecnologia de Moambique e a Universidade Nova de Lisboa.

    Tendo o Programa de Doutoramento iniciado em 9 de Junho de 2008, o

    mesmo comportou uma parte lectiva, com durao de dois anos, tendo o

    candidato no cmputo geral sido aprovado para a segunda parte do Programa

    de Doutoramento, cuja notificao recebeu em Setembro de 2010.

    Com a notificao da admisso segunda fase do Programa de

    Doutoramento, e nos termos regulamentares, o candidato submeteu no dia 15

    de Novembro de 2010 um plano de investigao ao Conselho Cientfico da

    Universidade Nova de Lisboa, em relao ao qual recaiu uma deliberao

    positiva a 19 de Janeiro de 2011, e da materializao dos trabalhos de

    pesquisa da ento proposta resultou a presente Tese.

    Na origem do tema da Tese de Doutoramento e certamente para a

    deliberao favorvel em relao sua aprovao, muito contou o apoio e

    encorajamento do Professor Doutor Jorge Bacelar Gouveia, que com muita

    amabilidade e de forma pronta aceitou ser o orientador.

    Entretanto, importa referir que para a escolha e at para a delimitao

    do tema e do mbito da investigao muito contou a experincia passada do

    aqui candidato na elaborao da dissertao de mestrado, cujo objecto era

    igualmente o estudo do Direito de guas, apesar de em mbito e dimenso

    muito menores, em termos de pesquisa e abordagem.

    A fase inicial da elaborao da presente Tese de Doutoramento

    consistiu na criao de um plano de trabalho, do qual foram estabelecidas

    como metas iniciais a recolha da bibliografia essencial para o tema, tendo em

    conta os objectivos a alcanar, a identificao de centros de excelncia que

  • A Afirmao do Direito de guas

    _____________________________________________________________________

    viii

    permitiram beber da experincia comprovada em locais de reconhecido mrito

    e identificar situaes concretas que permitiriam provar, em caso de estudo,

    as teses volta das quais a discusso iria decorrer.

    A recolha de bibliografia para a elaborao da presente Tese foi feita em

    vrios pases, nomeadamente Moambique, frica do Sul, Angola, Botswana,

    Brasil, Portugal, Frana, Espanha, Itlia e Holanda. E porque oportuno, na

    mesma altura, foram visitados alguns centros de excelncia no estudo do

    Direito de guas, nomeadamente a African Water Issues Research Unit

    (AWIRU), em Pretria, o Departamento de guas da SADC, no Botswana, e o

    Centro de Estudos de Direito do Ordenamento, do Urbanismo e do Ambiente

    (CEDOUA), em Coimbra, Portugal.

    De igual modo, encetmos a leitura sistemtica da bibliografia,

    acompanhada sempre da escrita e tomada de notas que foram corporizando a

    Tese final, num exerccio que nos obrigou a compulsar, para alm de

    bibliografia diversa em Ingls, Francs e Portugus, legislao de pelo menos

    19 pases, sendo 15 da regio da SADC e os restantes Portugal, Frana,

    Holanda e EUA, para alm de jurisprudncia do Tribunal Internacional de

    Justia, imprescindvel para a cabal discusso e anlise do Direito de guas,

    nos termos traados.

    Pelo que entre a aprovao do Tema pelo Conselho Cientfico da

    Universidade Nova de Lisboa aos 19 de Janeiro de 2011 e apresentao da

    presente Tese passaram-se trs anos e 11 meses, e o resultado final o

    documento que agora apresentado para provas pblicas de defesa da Tese

    de Doutoramento.

  • ix

    Plano Geral

    CAPTULO I INTRODUO

    Razes justificativas do mbito da investigao

    Objecto e objectivo da Tese

    Indicao de sequncia

    I Sntese conclusiva do captulo I

    CAPTULO II - O DIREITO INTERNACIONAL DE GUAS NA

    ENCICLOPDIA JURDICA

    O Direito Internacional

    O Direito Internacional de guas como ramo do Direito Internacional

    O Direito Internacional de guas como Direito de confluncia de normas

    I I Sntese conclusiva do captulo II

    CAPTULO III - A CODIFICAO DO DIREITO DE GUAS

    Os trabalhos da International Law Association e do Institut du Droit

    International

    O Status jurdico das regras do Direito Internacional de guas: entre hard law

    e soft law.

    III Sntese conclusiva do captulo III

  • A Afirmao do Direito de guas

    _____________________________________________________________________

    x

    CAPTULO IV - FONTES DO DIREITO INTERNACIONAL DE GUAS

    As decises judiciais

    Doutrinas e teorias sobre o Direito Internacional de guas

    Princpios do Direito Internacional de guas

    Direito Costumeiro Internacional de guas

    Os Tratados Internacionais aplicveis ao Direito Internacional de guas

    As regras de Berlim da ILA

    Quadro comparativo entre as Regras de Helsnquia, a Conveno de Nova

    Iorque e as Regras de Berlim

    I V Sntese conclusiva do captulo IV

    CAPTULO V - O DIREITO DE GUAS DA SADC

    O Tratado da SADC

    Os instrumentos de cooperao em guas na SADC

    Os Protocolos de guas na SADC

    V Sntese conclusiva do captulo V

    CAPTULO VI - A INTERACO ENTRE AS NORMAS UNIVERSAIS,

    REGIONAIS E LOCAIS

    A sedimentao das normas e princpios do Direito Internacional de guas a

    nvel regional e de bacia hidrogrfica

    A transposio das normas e princpios do Direito Internacional de guas para

    o cenrio regional e de bacia hidrogrfica

    A gesto conjunta dos recursos hdricos

  • xi

    O papel das Organizaes de Bacia Hidrogrficas na gesto dos recursos

    hdricos internacionais

    Os comits de gesto de bacias hidrogrficas da SADC

    Os cursos de gua partilhados e os acordos bilaterais e multilaterais sobre

    guas na regio da SADC

    Os acordos de bacia hidrogrfica celebrados por Moambique

    VI Sntese conclusiva do captulo VI

    CAPTULO VII- AS LEIS DE GUAS DOS PASES DA SADC

    A legislao de guas da Repblica da frica do Sul

    A legislao de guas da Repblica de Angola

    A legislao de guas da Repblica do Botswana

    A legislao de guas do Reino do Lesoto

    A legislao de guas da Repblica de Madagscar

    A legislao de guas da Repblica do Malawi

    A legislao de guas da Repblica das Maurcias

    A legislao de guas da Repblica da Nambia

    A legislao de guas da Repblica Democrtica do Congo

    A legislao de guas da Repblica das Seychelles

    A legislao de guas do Reino da Suazilndia

    A legislao de guas da Repblica da Tanznia

    A legislao de guas da Repblica da Zmbia

    A legislao de guas da Repblica do Zimbbw

    VII Sntese conclusiva do captulo VII

    CAPTULO VIII- O DIREITO DE GUAS MOAMBICANO

    O regime jurdico das guas de Moambique

  • A Afirmao do Direito de guas

    _____________________________________________________________________

    xii

    O Direito material de guas de Moambique

    O Direito institucional de guas de Moambique

    VIII Sntese conclusiva do captulo VIII

    CAPTULO IX A COOPERAO NO USO DAS GUAS DE CURSOS

    INTERNACIONAIS

    Os benefcios da cooperao em guas

    A cooperao no sector de guas da SADC e a necessidade de reformas

    legais

    O processo de harmonizao da legislao de guas na SADC

    Benefcios da harmonizao da legislao do sector de guas da SADC

    Situao actual concernente a harmonizao das legislaes nacionais sobre

    guas na SADC

    Questes especficas a harmonizar na legislao de guas dos pases da

    SADC

    IX Sntese conclusiva do captulo IX

    CAPTULO X CONFLITOS PELA GUA NA SADC

    A gua como fonte de conflito

    Natureza dos conflitos pela gua

    Os conflitos pela gua o caso de Moambique

    A resoluo de conflitos pela gua

    X Sntese conclusiva do captulo X

    CAPTULO XI O DIREITO HUMANO GUA

    A evoluo do direito humano gua

  • xiii

    Os Comentrios Gerais do ECOSOC

    O Comentrio Geral n. 15

    O direito humano gua

    XI Sntese conclusiva do captulo XI

    TESES

    BIBLIOGRAFIA E DOCUMENTOS CITADOS

  • A Afirmao do Direito de guas

    _____________________________________________________________________

    xiv

    Nota prvia

    A investigao conducente presente Tese de Doutoramento foi

    concluda em Janeiro de 2014. A pesquisa por ns feita obrigou-nos a recorrer

    a muita legislao, de diversos pases. Para alm da natural dificuldade em

    encontrar bibliografia para o tema, por ser novo e pouco estudado, outra

    preocupao enfrentada derivou do facto de a legislao em causa estar em

    trs lnguas diferentes (Portugus, Ingls e Francs), tendo sido necessrio

    fazer um grande esforo para identificar a legislao, apurar se a mesma

    estava em vigor ou no, e s ento proceder anlise da mesma.

    Neste processo tivemos que nos socorrer de bases de dados digitais,

    mormente a FAO LEX, a LexisNexis, a HeinOnline, e a UNTreaty Database,

    que foram de grande utilidade, mas que ao mesmo tempo mostravam muitas

    limitaes, por no fornecerem informaes completas dos diplomas jurdicos

    publicados nas bases de dados.

    Para alm da legislao usada, recorremos a muitas fontes

    bibliogrficas, em relao s quais devemos desde j referir que toda

    bibliografia honesta. Isto , as fontes por ns referidas na presente Tese so

    aquelas a que de facto tivemos acesso e pudmos compulsar.

    Ao referir as fontes, nas notas de rodap, decidimos citar o nome

    completo dos autores, em maisculas, seguida pela indicao completa de

    todos elementos de citao textual, fazendo idntica situao mesmo no caso

    em que a mesma foi repetida em notas de rodap que referiam a mesma obra

    de forma consecutiva.

    A razo de ser para esta tcnica de citao justificou-se pela

    necessidade de no perdermos a lgica das referncias ao longo da escrita,

    que devido arrumao textual obrigou-nos a alterar ou deslocar contedos

  • xv

    de um local para outro vrias vezes. E, no fim, sentimo-nos to confortveis

    com tal tcnica que decidimos mant-la no documento final, mantendo todos

    os detalhes das referncias e citaes doutrinais em toda a Tese.

    Por ltimo, por uma questo metodolgica, no fim de cada captulo,

    fomos fazendo snteses conclusivas parcelares, e com isto evitmos

    apresentar uma concluso final e em bloco, que no permitiria, do nosso ponto

    de vista, criar um encadeamento conclusivo lgico dos diversos assuntos que

    so tratados em captulos autnomos, se as concluses estivessem

    mescladas num nico texto.

    Todavia, porque a Tese de facto unitria e tem um objectivo claro e

    comum que se alcana compartimentando as questes discutidas em vrios

    captulos, no fim inclumos um total de 13 teses, que espelham de forma

    resumida as grandes concluses a que chegmos e aquilo que achamos ser

    nosso contributo para a melhor percepo e justificao afirmao do Direito

    de guas como prenncio da concretizao da autonomia dogmtica do

    Direito de guas.

  • A Afirmao do Direito de guas

    _____________________________________________________________________

    xvi

    Siglas e abreviaturas

    AJIL

    The American Journal of International Law

    Am. U. Int'l L. Rev.

    American University International Law Review

    ARA

    Administrao Regional de guas

    ARAs

    Administraes Regionais de gua

    Ariz. J. Int'l & Comp. Law

    Arizona Journal of International and Comparative Law

    Berkeley J. Int'l L.

    Berkeley Journal of International Law

    B.C. Envtl. Aff. L. Rev.

    Boston College Environmental Affairs Law Review

    B.U.L. Rev.

    Boston University Law Review

    Cardozo J. Intl & Comp. L.

    Cardozo Journal of International and Comparative Law

  • xvii

    Case W. Res. J. Int'l L.

    Case Western Reserve of International Law

    Chi.-Kent J. Int'l & Comp. L.

    Chicago-Kent Journal of International and Comparative Law

    CICOS

    Comisso Internacional da bacia do Congo-Oubangui-Sangha

    Colo. J. Int'l Envtl. L. & Pol'y

    Colorado Journal of International Environmental Law and Policy

    Colum. J. Asian L.

    Columbia Journal of Asian Law

    Conn. J. Intl L.

    Connecticut Journal of International Law

    CRA

    Conselho de Regulao do Abastecimento de gua

    CRM

    Constituio da Repblica de Moambique

    Cur. Intl L. Journal

    Currents International Law Journal

    Denv. J. Intl L. & Poly

    Denver International Law and Policy

  • A Afirmao do Direito de guas

    _____________________________________________________________________

    xviii

    Denv. Water L Rev.

    Denver Water Law Review

    DNA

    Direco Nacional de guas

    Duke J. Comp. & Int'l L.

    Duke Journal of Comparative & International Law

    Ecology L.Q.

    Ecology Law Quarterly

    ECOSOC

    Comit para os Assuntos Econmicos, Sociais e Culturais

    EJIL

    European Journal of International Law

    EUA

    Estados Unidos da Amrica

    FIPAG

    Fundo de Investimento e Patrimnio do Abastecimento de gua

    Fordham Int'l L.J.

    Fordham International Law Journal

  • xix

    GATT

    General Agreement on Trade and Tariffs

    GC15

    General Comment number 15

    Geo. Int'l Envtl. L. Rev.

    Georgetown International Environmental Law Review

    Hastings Intl & Comp. L. Rev.

    Hastings International and Comparative Law Review

    Hastings W.-N.W. J. Env. L. & Pol'y

    Hastings West Northwest Journal of Environmental Law & Policy

    Harv. Int'l. L. Club Bull.

    Harvard International Law Club Bulletin

    Harv. Int'l L.J.

    Harvard International Law Journal

    Hofstra L. Rev.

    Hofstra Law Review

    ICESCR

    International Covenant on Economic, Social and Cultural Rights

  • A Afirmao do Direito de guas

    _____________________________________________________________________

    xx

    IDI

    Institut du Droit International

    ILC

    International Law Commission

    ILA

    International Law Association

    INCOMAPUTO

    Comit Tcnico Permanente Tripartido do rio Incomti

    Int. J. Global Environmental Issues

    International Journal of Global Environmental Issues

    J. Envtl. L. & Litig.

    Journal of Environmental Law and Litigation

    J. Int'l L. & Prac.

    Journal of International Law and Practice

    J. Land Resources & Envtl. L.

    Journal of Land, Resources and Environmental Law

    LIMCOM

    Comit da Bacia do Rio Limpopo

  • xxi

    Loy. L.A. Int'l & Comp. L.J.

    Loyola of Los Angeles International and Comparative Law Review

    LTA

    Autoridade do Lago Tanganyika

    Melbourne J. of Int'l Law

    Melbourne Journal of International Law

    MICOA

    Ministrio para a Coordenao da Aco Ambiental

    Minn. J. Intl L.

    Minnesota Journal of International Law

    MOPH

    Ministrio das Obras Pblicas e Habitao

    Nat. Resources J.

    Natural Resources Journal

    N.Z. J. Envtl. L.

    New Zealand Journal of Environmental Law

    N.Y.U. Envtl. L.J.

    New York University Environmental Law Journal

    NYU J.L. & Liberty

    New York University Journal of Law & Liberty

  • A Afirmao do Direito de guas

    _____________________________________________________________________

    xxii

    N.C.J. Int'l L. & Com. Reg.

    North Carolina Journal of International Law and Commercial Regulation

    NWA

    National Water Act

    NW. J. INT'L L. & BUS.

    Northwestern Journal of International Law & Business

    NWRA

    National Water Resources Authority

    OMS

    Organizao Mundial da Sade

    ONU

    Organizao das Naes Unidas

    OKACOM

    Comit Permanente da Bacia do Rio Okavango

    ORASECOM

    Comit da Bacia do Rio Orange-Senqu

    Or. Rev. Int'l L.

    Oregon Review of International Law

  • xxiii

    Pac. McGeorge Global Bus. & Dev. L.J.

    Pacific McGeorge Global Business and Development Law Journal

    RSA

    Republic of South Africa

    SADC

    Southern African Devlopment Community

    Santa Clara J. Int'l L.

    Santa Clara Journal of International Law

    Sustainable Dev. L. & Pol'y

    Sustainable Developmant Law and Policy

    Stan. J Int'l L.

    Stanford Journal of International Law

    Tex L. Rev.

    Texas Law Review

    TIJ

    Tribunal Internacional de Justia

    Tul. Envtl. L.J.

    Tulane Environmental Law Journal

    TPTC

    Tripartite Permanent Technical Committee

  • A Afirmao do Direito de guas

    _____________________________________________________________________

    xxiv

    U. Ark. Little Rock L. Rev.

    University of Arkansas at Little Rock Law Review

    U. Botswana L.J.

    University of Botswana Law Review

    U. Denv. Water L. Rev.

    University of Denver Water Law Review

    U. Pa. J. Int'l Econ. L.

    University of Pennsylvania Journal of International Economic Law

    UCLA J. Envtl. L. & Poly

    University of California Journal of Environmental Law and Policy

    UA

    Unio Africana

    UN

    United Nations

    UNEP

    United Nations Environmental Program

    Va. J. Int'l L.

    Virginia Journal of International Law

  • xxv

    Vill. Envtl. L.J.

    Villanova Environmental Law Journal

    Willamette J. Int'l L. & Dispute Res.

    Williamette Journal of International Law & Dispute Resolution

    Wis. Int'l L.J.

    Wisconsin International Law Journal

    WHO

    World Health Organization

    WTO

    World Trade Organization

    WWF

    World Wild Fund

    Yale J. Int'l L.

    The Yale Journal of International Law

    N.Z. J. Envtl. L.

    The New Zealand Journal of Environmental Law

    ZAMCOM

    Comit da bacia do Rio Zambeze

  • A Afirmao do Direito de guas

    _____________________________________________________________________

    xxvi

    Resumo

    A presente Tese tem em vista demonstrar a afirmao do Direito de

    guas, como prenncio da autonomia dogmtica deste ramo do Direito. A

    Tese pretende igualmente esclarecer que este ramo do Direito no se

    confunde com outras disciplinas circundantes. Para tal, a tese comea por

    analisar as razes da existncia de uma dogmtica prpria do Direito de

    guas, que surge a nvel internacional e igualmente uma realidade a nvel

    regional e local.

    A Tese analisa a gnese do Direito Internacional de guas, discutindo

    as razes do seu surgimento, o objecto e a importncia deste ramo do Direito.

    Mais ainda, a Tese explica a relao existente entre cursos de gua

    internacionais e a necessidade de regulao dos mesmos, considerando que o

    uso e gesto de tais recursos, apesar de ser de criao internacional, tm

    sempre aplicao regional e local.

    A Tese demonstra que por os cursos de gua serem internacionais, isto

    , sempre que atravessem ou separem dois ou mais Estados, eles

    circunscrevem-se a determinados pases e ou regies, o que justifica a

    existncia de normas de Direito Internacional de guas aplicveis a nvel

    regional, adequado regio e ou bacia hidrogrfica que visa regular em

    concreto.

    Por isso, a presente Tese relaciona no s o Direito Internacional de

    guas com o Direito regional de guas aplicvel, mas tambm o Direito

    regional com as normas aplicveis a nvel das bacias hidrogrficas e

    particularmente aos Estados de bacia, estudando e discutindo a relao que

    se estabelece entre estes trs espectros de normas, nomeadamente as de

    natureza internacional ou universal, as regionais e ainda as de bacia

  • xxvii

    hidrogrfica. Para demonstrar tal facto, usamos a regio da SADC como

    objecto do estudo de caso que fazemos.

    Como no deixaria de ser, a Tese tambm analisa e discute quem so

    os destinatrios finais de tais normas, que identificamos como sendo os

    Estados, por um lado, e por outro, todos os que de forma directa fazem uso e

    ou beneficiam das guas que pertencem a cursos de gua internacionais. E

    em ltima instncia conclui-se que tais normas destinam-s s populaes dos

    vrios Estados, cujos direitos de acesso, uso, e gesto de tais recursos

    encontram-se regulados pelo conjunto de normas internacionais, regionais e

    de bacia hidrogrfica, sendo o caso, por um lado, mas que por outro agem no

    estrito respeito pelas normas internas em vigor nos respectivos ordenamentos

    internos.

    Como se pode imaginar, no fcil conciliar todos estes conjuntos de

    normas, aplicveis para um recurso escasso ao qual concorrem vrios sujeitos

    que se encontram em vrios Estados, e que se destina a vrios fins, muitas

    vezes conflituantes. E a forma de interaco dos diversos interesses

    existentes, que deve ser feita tendo em considerao vrios espectros de

    normas, leva-nos a analisar como este processo todo feito. E a razo e

    fundamentao de tal discusso o ponto central da defesa que fazemos da

    Afirmao do Direito de guas, como prenncio de uma verdadeira Autonomia

    Dogmtica do Direito de guas.

    Para chegar a esta concluso, num primeiro momento, sabendo da

    existncia de normas aplicveis a nvel do Direito internacional de guas, a

    Tese analisa como e at que ponto as mesmas se fazem sentir nos

    ordenamentos jurdicos internos dos Estados vinculados por Tratados

    Internacionais e regionais.

    Por outro lado, a Tese estuda a situao tendo em conta que, tratando-

    se de cursos de guas internacionais, questes h que dizem respeito aos

    Estados parte de bacias hidrogrficas que muitas vezes estabelecem regras

  • A Afirmao do Direito de guas

    _____________________________________________________________________

    xxviii

    de uso e gesto, e at de convivncia, que podem ser pouco pacficas, o que

    gera conflitos. Neste diapaso, a Tese procura descortinar as solues

    jurdicas existentes, tendo como ponto de partida a necessidade de uma s

    convivncia causada por esta comunho de recursos naturais.

    assim que a Tese compara as normas internacionais com as normas

    internas relativas a guas de todos os Estados da SADC, e procura ver o nvel

    de interaco e conformao existente entre as mesmas.

    Considerando de antemo que os vrios Estados membros de bacias

    hidrogrficas devem confinar-se ao cumprimento, primeiro, das suas normas

    internas, e segundo s normas do Direito Internacional, que muitas vezes tm

    o mesmo valor das normas internas dos Estados, e terceiro, s regras que

    entre si estabeleam em consequncia da utilizao partilhada dos recursos

    da bacia hidrogrfica, fazemos a nossa anlise com vista a perceber que os

    diversos interesses existentes (que vezes sem conta esto por detrs de cada

    Estado, que age em nome das suas populaes) criam as mais diversas

    situaes jurdicas passveis de vrias interpretaes, que levam, muitas

    vezes, a conflitos entre os Estados, entre as comunidades utentes do curso de

    gua ou ainda entre particulares. Neste aspecto, a regio da SADC

    apresentou-se-nos como local excelente para o nosso estudo de caso.

    E, discutir como resolver tais questes, que normas so aplicveis, e

    quais os princpios que norteiam a aplicao das mesmas, significa fazer

    anlises e propor solues para uma situao em que o objecto de estudo a

    gua, como bem jurdico sujeito tutela. Mais ainda, considerando a

    existncia do direito humano gua, hoje uma realidade, a Tese discute a

    natureza e a efectivao de tal direito, tendo em conta as premissas atrs

    referidas. Pelo que, tal como conclumos, a vasta discusso em torno da gua,

    como objecto de relaes jurdicas, uma manifestao clara do que deve ser

    aceite como sendo a autonomia dogmtica deste ramo do Direito.

  • xxix

    Abstract

    This thesis aims at demonstrating the dogmatic autonomy of Water Law.

    It also intends to clarify that this branch of law must not be confused with other

    similar subjects of law. To accomplish this task, the thesis justifies the

    dogmatic autonomy of Water Law beginning by discussing the emergence of

    this branch of law both at international and regional levels.

    The thesis analyses the emergence of International Water Law,

    discussing the reasons of its existence, its subject and importance. It also

    explains the relationship between international watercourses and the need to

    regulate them, considering that rules related to the use and management of

    such resources, although created at international level, are meant to be applied

    at regional and local levels.

    The thesis demonstrates that the fact that some waters are international,

    because they cross different states or serve as border between two or more

    states, justifies the existence of international water law rules aplicable to the

    region and to the watercourse they are supposed to regulate.

    For this reason, this thesis considers not only international water law in

    relation with the aplicable regional water law, but also the regional law in

    relation with the rules aplicable to the water basins and particularly with the

    concerned water basin states. This relationship between rules leads us to

    discuss how these three spectrums of rules are conciliated, namely

    international or universal, regional and water basin rules. To demonstrate how

    all this works we chose SADC for our case study.

    The thesis also studies the States who benefit from rules of international

    water law, and all other subjects who directly use water from international

    watercourses, and the conclusion we reach is that who really benefits are the

    population of such states whose rights of access, use and management are

    regulated by international, regional and basin rules.

  • A Afirmao do Direito de guas

    _____________________________________________________________________

    xxx

    As we can imagine, it is not easy to concile so many different rules,

    applicable to a scarce resource to which many subjects in many states

    compete for. And the interaction of the different interests, which is done under

    different spectrum of rules, is what guided our study, in which we analyse how

    all this process functions. And the main reason of all the discussion is to

    conclude that there is, in fact, a dogmatic autonomy of water law.

    To reach such a conclusion, the thesis begins by studying how

    international water law is applied at local level. Considering that international

    watercourses usually have different regimes adopted by the basin states,

    which difference may cause conflicts, the thesis discusses how water law may

    contribute to solve possible conflicts. To do this, the thesis studies and

    compares rules of international water law with rules of water law applicable to

    SADC states, and figures out the level of interaction between such rules.

    Considering that basin states have to obey to local rules, first of all, and

    after that to international and basin level rules, the thesis studies how the

    differents interests at stake are managed by riparian states, who act on behalf

    of their population. SADC appeared to provide an excellent case study to reach

    this goal. And the thesis discusses all these matters, the rules and principles

    applicable, and provides solutions where applicable, always considering water

    as subject of our study.

    Accordingly, we discuss the right to water, its nature and how it

    functions, considering the facts mentioned previously. And, as we conclude, all

    these legal discussions over water are a clear sign of the dogmatic autonomy

    of water law

  • Captulo I- Introduo

    ____________________________________________________________________________

    1

    CAPTULO I Introduo

    1. Razes justificativas do mbito da investigao

    1.1. Consideraes gerais

    A gua um elemento essencial para a existncia da vida na terra. Os

    seres vivos so compostos maioritariamente de gua, sendo os seres

    humanos compostos por entre 60 a 80 por cento de gua. Por isso, uma

    pessoa pode viver cerca de um ms sem alimento, mas no resistiria mais do

    que uma semana sem gua. Para alm de ser fundamental para garantir a

    subsistncia da vida na terra, a gua essencial para o desenvolvimento

    econmico e social, ao bem-estar e ao equilbrio ambiental.

    As estatsticas provam que h gua suficiente no mundo para responder

    s necessidades presentes e futuras da populao mundial, satisfazer as

    necessidades industriais, hidroelctricas e de desenvolvimento urbano e rural1.

    Na verdade, a quantidade total de gua existente no mundo no aumenta nem

    diminui, supondo-se que a quantidade de gua existente hoje a mesma que

    existia h trs bilies de anos.

    Entretanto, alguns factores fazem com que o cenrio actual no que ao

    acesso gua diz respeito se mostre preocupante e at drstico,

    comparativamente com a situao que existia pelo menos h um sculo atrs.

    O primeiro factor tem a ver com o consumo de gua per capita a nvel

    mundial, que mostra um decrscimo da disponibilidade de gua existente,

    tanto em quantidade assim como em qualidade. Este decrscimo atribudo

    ao aumento dramtico dos nveis de consumo de gua, por um lado, e ao

    1EYAL BENVENISTI, Collective Action in the Utilization of Shared Freshwater: The Challenges

    of International Water Resources Law, Am. U. Int'l L. Rev., Vol. 90, No. 3, 1996, p. 384.

  • A Afirmao do Direito de guas

    _____________________________________________________________________

    2

    aumento da populao, por outro, que devem ser somados s mudanas de

    hbitos em relao ao uso da gua e ao desenvolvimento cientfico, que so

    factores que interagem. Veja-se, por exemplo, como as necessidades de gua

    mudaram de h 50 ou 100 anos para c, em que mais gente passou a viver

    em urbes e a ter melhores condies de vida que, para mant-las, muita gua

    necessria.

    Por outro lado, o desenvolvimento cientfico tambm estimula a procura

    de gua, como elemento necessrio para a funcionalizao dos mecanismos e

    instrumentos resultantes da criatividade humana, sendo alis esta a razo pela

    qual os maiores consumidores de gua so os que vivem nas cidades mais

    avanadas tecnologicamente.

    O segundo factor est relacionado com a distribuio da gua pelo

    mundo. De facto, a gua encontra-se mal distribuda a nvel mundial: enquanto

    certas regies enfrentam secas severas, noutras as cheias provocam

    inundaes devastadoras; regies que no inverno so abundantes em gua

    sofrem de escassez de gua no vero; e regies que so abundantes em

    gua nalguns anos so ameaadas por secas, noutros.

    Assim, a gesto dos recursos de gua doce em grande medida uma

    questo de redistribuio deste recurso natural, tendo em conta os

    constrangimentos fsicos, econmicos, ambientais e sociais a ele inerentes.

    Esta m distribuio da gua pelo mundo muitas vezes gera conflitos de

    interesse, causados pela escassez, outras vezes por uma sobre-explorao da

    mesma, outras ainda pela utilizao intensiva, entre outros motivos.

    O terceiro factor tem a ver com o uso da gua, que muitas vezes

    ineficiente, e por isso mesmo inflacionando a demanda, porque muitos pases

    continuam ainda a ter um uso ineficiente e insustentvel, em consequncia de

    prticas pouco correctas na agricultura, por exemplo, por via de prticas

    menos recomendveis, como a asperso ou ainda a inundao dos campos

  • Captulo I- Introduo

    ____________________________________________________________________________

    3

    agrcolas, que so tcnicas que usam grandes quantidades de gua mas que

    no fim somente metade da gua usada consumida pelas plantas.

    So vrios os fins a que se destinam as guas do planeta. As mesmas

    podem servir de fronteira entre os Estados. A gua tem tambm um

    importante papel econmico, como bem de alto valor econmico, para

    produo de energia e, acima de tudo, considerando que o mais importante

    elemento natural de que o homem se socorre para manter a sua vida, para

    satisfazer as suas necessidades humanas bsicas, seja para destin-la a fins

    econmicos (mormente a agricultura, a indstria etc.), seja para fins de lazer

    ou outros que se podem apontar.

    E porque a gua um bem de que todos necessitamos2, este acaba

    sendo um problema global e comum da Humanidade. Com os actuais nveis

    de crescimento populacional e com as cada vez maiores concentraes de

    pessoas nas cidades que implicam algumas vezes a necessidade de

    importao da gua, surge um cenrio em que por um ou outro destes

    motivos, ou ainda por uma combinao dos mesmos, aumenta o risco de

    frico entre os pases que partilham os mesmos recursos de gua, sendo por

    isso que se aventa, como discutiremos adiante, a possibilidade de ocorrncia

    de guerras no futuro.

    Porque um facto que as grandes cidades, com o grande nmero de

    habitantes que tm hoje (que faz crescer o consumo de gua per capita), tm

    cada vez mais a necessidade de buscar gua em fontes distantes, por via dos

    mais diversos mtodos, as consequncias da advenientes, incluindo conflitos

    entre os Estados, tornam-se um risco. Por exemplo, quando um Estado

    2 E por isso mesmo certa doutrina defende que ela constitui um direito colectivo (ou direito de

    terceira gerao) de que so titulares as geraes presentes e futuras. Neste sentido, HELENA

    PEREIRA DE MELO, As Geraes Futuras e o Direito gua, in Direito, Cidadania e

    Desenvolvimento. XIX Encontro da Associao das Universidades de Lngua

    Portuguesa, Associao das Universidades de Lngua Portuguesa, 2009, p. 53.

  • A Afirmao do Direito de guas

    _____________________________________________________________________

    4

    desvia, atravs de canais, a gua necessria para alimentar cidades que no

    esto prximas de cursos de gua, sendo o rio internacional, o que causa ira

    noutros Estados por eventualmente estar-se a violar o seu direito.

    Como de imaginar, o cenrio aqui colocado leva a que vrias

    situaes tenham que ser enfrentadas, discutidas e ou solucionadas. Porque,

    se por um lado a gua preciosa, por outro lado ela pode ser problemtica.

    Primeiro porque pode gerar conflitos entre os Estados. Segundo porque sendo

    a gua um bem que pelas suas caractersticas reputado de bem

    fundamental e consequentemente passvel de invocao como direito

    fundamental, tal facto cria um dever dos Estados garantirem a existncia de

    gua para todos. E terceiro porque o cumprimento deste dever por parte dos

    Estados legitima aces com vista satisfao de tal direito. E em quarto, e

    ltimo, por a gua ser um bem econmico, a exigncia e satisfao do direito

    gua no feita de forma linear, principalmente se tivermos em conta que a

    satisfao do direito gua das populaes por parte dos Estados pode no

    depender somente da vontade deste, porquanto a garantia da existncia de

    gua pode estar condicionada a um factor natural: o facto de a existncia de

    gua em quantidades satisfatrias, internamente, depender de cursos de gua

    internacionais.

    neste desiderato que surge a grande discusso despoletada pelos

    cursos de gua internacionais: at que ponto um certo Estado pode arrogar-se

    o direito de usar as guas de um curso de guas internacional, para a

    satisfao das suas necessidades internas e qual o regime jurdico aplicvel

    para o acesso, uso e gesto dos mesmos?

    esta a questo que nos propomos sobre ela dissertar, na presente

    Tese, que, partindo de uma situao geral, porquanto o tema de Direito

    internacional, analisar o regime jurdico dos cursos de gua internacionais,

    num primeiro momento, que conduzir ao estudo e anlise da forma como o

    Direito Internacional de guas aplica-se a nvel regional, cuja anlise ser

  • Captulo I- Introduo

    ____________________________________________________________________________

    5

    afunilada a uma regio especfica, a da frica Austral, cujo direito vigente, no

    que aos recursos hdricos internacionais diz respeito, emana da Comunidade

    Para o Desenvolvimento da frica Austral (Southern African Development

    Community, SADC, no original).

    1.1.1. A Problemtica da gua

    A questo da gua (doce) tem sido apontada como um dos maiores

    desafios que o mundo enfrenta actualmente3. De facto, a importncia vital da

    gua como recurso necessrio para a subsistncia humana, e como elemento

    necessrio para o desenvolvimento scio-econmico das sociedades, tal

    que justifica-se, na maior plenitude, o ditado sem gua no h vida4.

    Entretanto, se considerarmos a quantidade de gua existente no mundo

    e o nmero de habitantes existentes no planeta, haveria gua suficiente para

    todos5. Todavia, o desafio que se coloca em relao gua o facto de ela

    3 EDITH BROWN WEISS, The Evolution of International Water Law, Martinus Nijhoff

    Publishers, Leiden/Boston, 2009, p. 177.

    4 Referindo estudos que apontam a gua como uma das preocupaes principais da

    humanidade no futuro prximo, vide CARLOS MANUEL SERRA e FERNANDO CUNHA, Manual de

    Direito do Ambiente, Centro de Formao Jurdica e Judiciria, 2 Edio, 2008, p. 51.

    5 A gua cobre 2/3 da superfcie terrestre, sendo todavia somente 3% desta gua doce,

    porque 97% de toda a gua existente est nos oceanos, sendo portanto salgada. Considerando a

    percentagem de gua doce existente, importa referir que dessa poro 77% est retida nos glaciares

    e icebergs, no sendo directamente aproveitvel e 22% constituem gua subterrnea (aquferos), que,

    por vezes, se localizam a grandes profundidades, o que impede ou dificulta a sua captao. Assim,

    apenas uma reduzida percentagem de gua (1%) se encontra nos rios, lagos e solo, podendo ser

    aproveitada pelo homem. Se excluirmos as reservas de gelo das calotas polares e glaciares, a gua

    doce utilizvel representa apenas 0.6% da gua do nosso planeta, que se reparte desigualmente

    pelas diversas regies continentais. Destes 0,6% de gua doce utilizvel, 97% correspondem a guas

    subterrneas (aquferos), representando os rios e os lagos uma percentagem muito pequena.

  • A Afirmao do Direito de guas

    _____________________________________________________________________

    6

    estar mal distribuda6. Esta distribuio desigual da gua elucidada com

    factos concretos, que mostram que as regies ridas (que so os locais nos

    quais a evaporao maior que a precipitao) compem 33% da Europa,

    60% da sia, 85% da frica, quase toda a Austrlia e parte significativa da

    Amrica do Norte7.

    De acordo com a FAO8 mais de 2.8 bilies de pessoas em 48 pases

    estaro em situao de stress hdrico ou de escassez de gua, at 2025, e at

    2050 esse nmero de pases pode subir para 54. O conceito de stress hdrico,

    que se baseia no confronto entre as necessidades mnimas de gua per capita

    para manter uma qualidade de vida adequada em regies moderadamente

    desenvolvidas situadas em zonas ridas. A definio baseia-se no

    pressuposto de que 100 litros dirios (36,5 m3/ano) representam o requisito

    mnimo para suprir as necessidades domsticas e a manuteno de um nvel

    adequado de sade9.

    A escassez de gua pode ser definida como o ponto no qual o impacto

    agregado de todos os utentes reflecte-se na oferta ou qualidade da gua a

    ponto de, a procura por parte de todos utentes da mesma, incluindo para fins

    ambientais, no pode ser totalmente satisfeito. Entretanto, o conceito de

    escassez de gua relativo, e a mesma pode ocorrer a qualquer nvel da

    6 Se toda a gua doce existente no planeta fosse dividida equitativamente pela populao

    mundial, haveria entre 5.000 e 6.000 m3 para cada indivduo por ano. Tendo em conta que um

    indivduo necessita no mnimo, por ano, de 1700 m3 este clculo mostra que existe de facto gua em

    abundncia para todos. Vide http://www.fao.org/nr/water/docs/escarcity.pdf, consultado em 26 de

    Outubro de 2012, as 14.19h.

    7 Vide EDITH BROWN WEISS, The Evolution of International Water Law, Martinus Nijhoff

    Publishers, Leiden/Boston, 2009, p. 178.

    8 Vide. http://www.fao.org/nr/water/docs/escarcity.pdf, consultado em 26 de Outubro de 2012,

    as 14.19h.

    9 Vide Coping with water Scarcity. Challenge for the Twenty-First Century

    http://www.un.org/waterforlifedecade/scarcity.shtml, consultado a 26 de Outubro de 2012, as 13. 47h.

    http://www.fao.org/nr/water/docs/escarcity.pdfhttp://www.fao.org/nr/water/docs/escarcity.pdfhttp://www.un.org/waterforlifedecade/scarcity.shtml

  • Captulo I- Introduo

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    7

    procura ou da oferta. A escassez pode ser uma construo social (um produto

    da expectativa ou comportamento costumeiro) ou consequncia da alterao

    dos padres de oferta ou procura (em consequncia da mudana climtica,

    por exemplo) 10.

    Deste modo, tendo em conta que s 0,5% da quantidade de gua total

    existente no planeta que directamente acessvel aos homens, preciso

    esclarecer que este no um acesso referente a toda populao mundial,

    porque a distribuio dos recursos de gua doce seguiu ditames naturais, o

    que leva a uma outra anlise necessria, que a da distribuio geogrfica do

    recurso: se nalguns locais a gua abundante, noutros nem por isso, havendo

    uma verdadeira escassez do recurso, sendo as regies ridas (as que nas

    quais a evaporao superior precipitao) que, naturalmente, mais se

    ressentem. De facto, a descrio do cenrio acima referido apenas uma

    parte dos problemas que tornam a questo da gua um verdadeiro desafio,

    porquanto vrios outros se colocam, nomeadamente:

    a) A questo relativa aos diversos usos da gua, que podem ser, dentre

    outros, o abastecimento pblico, dessedentao animal, uso industrial,

    agricultura irrigada, gerao de energia elctrica, transporte aquavirio,

    turismo e lazer, aquacultura e pesca, que podem ser concorrentes, o que cria

    o desafio de saber como balancear os vrios interesses, e quais os critrios de

    tomada de deciso a seguir na priorizao de certos usos em detrimento de

    outros;

    b) Os impactos dos usos da gua: efluentes domsticos, industriais e

    agro-pecurios, navegao e no processo de gerao de energia

    hidroelctrica, que podem ser divergentes entre usurios da gua;

    10 Vide Coping with water Scarcity. Challenge for the Twenty-First Century

    http://www.un.org/waterforlifedecade/scarcity.shtml, consultado a 26 de Outubro de 2012, as 13. 47h.

    http://www.un.org/waterforlifedecade/scarcity.shtml

  • A Afirmao do Direito de guas

    _____________________________________________________________________

    8

    c) Os impactos sobre a sociedade: inundaes, secas e doenas de

    veiculao hdrica, que sendo muitas vezes alheios vontade humana,

    representam sempre uma grande preocupao;

    d) Os impactos ambientais correlatos sobre os recursos hdricos: uso

    inadequado do solo nas reas urbana e rural, prticas agrcolas inadequadas,

    desmatamento, queimadas, minerao, o fraco saneamento bsico ou a total

    inexistncia do mesmo, etc.

    e) A questo institucional: questes associadas ao arcabouo jurdico

    institucional, relativas principalmente ao recorte de bacias, mas com

    rebatimento nas questes internas de cada estado, no sentido de saber que

    medidas devem ser tomadas para proteger os recursos hdricos, que medidas

    legais e institucionais devem ser tomadas para garantir uma coordenao

    adequada, etc.

    Deste modo, constata-se que a distribuio dos recursos hdricos no

    mundo, porque inconstante, acaba tornando-se um dos principais motivos que

    tornam o uso e a gesto da gua um verdadeiro desafio.

    Refira-se igualmente que a escassez da gua, para alm de afectar

    directamente s populaes, tem tambm um impacto directo nos Estados que

    de forma natural sofrem devido variabilidade de gua existente, devido por

    exemplo aos maiores ou menores nveis de precipitao, a boa ou m

    cooperao existente entre os Estados que partilham bacias hidrogrficas, a

    nveis de consumos mais ou menos reduzidos, etc., sendo certo que os pases

    que mais demandas de gua tm nem sempre so os mais ricos em gua.

    Presentemente, o crescimento econmico e a natureza das actividades

    econmicas praticadas que determinam os nveis de procura e consumo de

    gua, mas interessante notar, por exemplo, que at 2025 quase todos os

  • Captulo I- Introduo

    ____________________________________________________________________________

    9

    pases da frica Sub-sahariana estaro sob stress hdrico ou ainda numa

    situao de escassez11.

    Uma questo importante a analisar a de descortinar que desafio ser

    este e sobre quem recai o nus de enfrent-lo, considerando que, como j se

    disse, a distribuio da gua uma questo relativa, pases havendo que tem

    gua em abundncia e outros que passam por uma verdadeira escassez12,

    tendo em conta os impactos advenientes tanto do stress hdrico assim como

    da escassez de gua.

    Malin Falkenmark foi um dos pioneiros da ideia de stress hdrico.13 Nas

    suas anlises, concluiu que o ratio da quantidade de gua renovvel

    disponvel para a populao no territrio de um certo Estado um perfeito

    indicador de escassez de gua. Assim, poder-se-ia dizer que um pas

    encontra-se seguro em relao gua disponvel se tivesse 10,000 metros

    cbicos de gua per capita. Por outro lado, um pas seria considerado com

    quantidade de gua adequada se o mesmo tivesse entre 10.000 e 1.666

    metros cbicos per capita. Entretanto, os Estados que tivessem quantidades

    de gua que variassem entre 1000 e 1600 metros cbicos per capita seriam

    considerados como Estados enfrentando stress hdrico.

    Na mesma senda, seriam considerados como tendo um stress hdrico

    crnico os Estados que tivessem entre 500 e 1000 metros cbicos de gua per

    11 Vide An Overview of the State of the Worlds Fresh and Marine Waters, 2nd Edition - 2008,

    disponvel em http://www.unep.org/dewa/vitalwater/article14.html, consultado a 26 de Outubro de

    2012, as 22. 40h.

    12 Devido presso crescente sobre os recursos hdricos mundiais, a UN-Water identificou a

    escassez de gua como tema do dia mundial da gua, em 2007, e muitas aces foram

    empreendidas nessa data. Vide Coping with water Scarcity. Challenge for the Twenty-First Century,

    acessvel em http://www.un.org/waterforlifedecade/scarcity.shtml, consultado a 26 de Outubro de

    2012, as 13. 47h.

    13 MALIN FALKENMARK, Global Water Issues Confronting Humanity, Journal of Peace

    Research, Vol. 27, No. 2, 1990, p. 183.

    http://www.unep.org/dewa/vitalwater/index.htmlhttp://www.unep.org/dewa/vitalwater/article14.htmlhttp://www.un.org/waterforlifedecade/scarcity.shtml

  • A Afirmao do Direito de guas

    _____________________________________________________________________

    10

    capita ou abaixo desses nveis. Estes indicadores de stress hdrico foram

    baseados essencialmente na estimativa das quantidades necessrias para a

    produo agrcola com base na irrigao. Assim, um Estado que no fosse

    auto-suficiente na produo de alimentos seria considerado como estando sob

    stress hdrico, apesar de as quantidades de gua per capita serem suficientes

    para cobrir necessidades domsticas.14

    Malin Falkenmark analisa ainda a quantidade de gua necessria para

    um indivduo durante um ano, e o resultado foi o de 100 litros por dia,

    diferentemente de Peter Gleick, que estima em 50 litros por dia, para cozinhar,

    banho, beber e fins sanitrios.15 Estas questes so importantes a nvel das

    bacias hidrogrficas partilhadas, na medida em que preciso saber que

    quantidade de gua necessria para garantir o direito humano gua das

    pessoas, e como que a mesma deve ser distribuda proporcionalmente entre

    os Estados, de acordo com a relao que se estabelece entre as

    necessidades existentes versus situao do pas no contexto da partilha

    (poro territorial, existncia de outras fontes, etc) para que haja um acesso

    equitativo, o que previne disputas.

    Porque um facto que a escassez de gua induz competio pela

    gua entre os diversos utentes, entre sectores da economia, entre pases e

    entre regies16 que partilham recursos naturais, neste caso rios internacionais,

    so muitos e diferentes os interesses em jogo, e preciso encontrar solues

    equitativas para as vrias questes que se colocam. Os conflitos pela gua,

    14 JULIE TROTTIER, Water Wars: The Rise of a Hegemonic Concept. Exploring the making of

    the water war and water peace belief within the IsraeliPalestinian Conflict, Water for Peace: A Cultural

    Strategy, UNESCO-IHP, 2003, p. 146.

    15 PETER H. GLEICK, The Worlds Water: The Biennial Report on Freshwater Resources

    19981999, Washington, D.C., Island Press, 1998, p.44.

    16 Sejam os mesmos ricos ou pobres; terras ridas ou ricas em gua; infra-estruturas ou meio

    ambiente natural; grupos principais ou marginais; actores locais, ou autoridades centrais.

  • Captulo I- Introduo

    ____________________________________________________________________________

    11

    por exemplo, podem surgir porque a escassez de gua afecta comunidades

    locais, pases e regies que devem partilhar um recurso limitado e insuficiente,

    e na falta de instrumentos legais necessrios ou ainda na falta da devida

    cooperao, esses conflitos so exacerbados, e caso os poderes, as

    instituies ou regras institudas no sejam capazes de manter a ordem, passa

    a prevalecer a lei do poder, em que vence o mais forte, pelo que o discurso a

    ser incentivado o de partilha dos recursos por via de acordos e no o de

    alocao de quotas. Por isso que a gua vista como um verdadeiro factor

    de cooperao entre os Estados e no de conflito. Mas esta mxima s se

    aplica, obviamente, caso tal cooperao seja bem-sucedida.

    Quase sempre, o volume total de gua de cada pas no de grande

    importncia, pois est directamente relacionado com a sua rea geogrfica.

    Esta afirmao torna-se mais verdadeira se considerarmos que muitos dos

    rios e lagos existentes no planeta so partilhados por dois ou mais pases, o

    que conjugado com muitos outros factores como a qualidade, o acesso, o uso

    e a distribuio desses recursos, pode levar-nos concluso de que a

    variabilidade entre os valores mximos e mnimos de recursos hdricos

    disponveis, mesmo sendo muito alta, pode contribuir para a gerao de

    problemas sazonais de escassez, e eventualmente de conflitos, entre os

    vrios utentes.

    A gua disponvel per capita reduziu-se em termos globais em cerca de

    80 por cento, no sculo passado, e sendo este um processo contnuo, h cada

    vez maior escassez de gua, maiores disputas, uma reduo da fluidez

    ambiental e provavelmente maior uso insustentvel da gua17, sendo por isso

    a garantia da gua para satisfao das necessidades bsicas humanas, dos

    17 ANTHONY TURTON AND RICHARD MEISSNER, The hydrosocial contract and its

    manifestation in society: A South African case study, In: Hydropolitics in the Developing World: A

    Southern African Perspective (ANTHONY R. TURTON and R. HENWOOD, Eds.), AWIRU, Pretoria,

    2002, p. 48.

  • A Afirmao do Direito de guas

    _____________________________________________________________________

    12

    ecossistemas, da agricultura, indstria, recreao, etc., um verdadeiro desafio.

    A referncia ao facto de a existncia de gua para a satisfao de

    necessidades humanas ser um verdadeiro desafio nos dias de hoje no

    significa que outras aces antrpicas no possam ser realizadas com vista a

    minimizar o problema. Tendo em conta a demanda dos recursos hdricos a

    nvel mundial, e as aces antrpicas para satisfazer tal demanda de gua -

    construo de poos, barragens, audes, aquedutos, sistemas de

    abastecimento, sistemas de drenagem, projectos de irrigao e outras

    estruturas - constata-se, mesmo assim, que aproximadamente 20% dos 5,7

    bilhes de habitantes da Terra sofre com a falta de um sistema de

    abastecimento confivel de gua e, alm disso, mais de 50% da populao

    no dispunha de um sistema adequado de instalaes sanitrias18.

    Por outro lado, a referncia ao facto de a gua ser um verdadeiro

    desafio no deve, entretanto, ser vista escala macro, numa perspectiva de

    escassez ou stress de gua que afecta os Estados. Na verdade, so as

    populaes ou talvez at algumas populaes dos vrios Estados nessas

    situaes (de escassez e stress hdrico) que de forma directa ou indirecta

    sofrem os impactos nefastos dos mesmos, no importando aqui discutir se so

    maiorias ou minorias. A premissa , na verdade, a igualdade de direitos e de

    oportunidades que os cidados tm na satisfao dos seus direitos

    fundamentais.

    18 Os nmeros mais recentes apontam para cerca de 700 milhes de pessoas em 43 pases

    assoladas pela escassez de gua. At 2025, 1.8 bilies de pessoas estaro a viver em pases ou

    regies com escassez de gua absoluta, e dois teros da populao mundial poder estar a viver em

    condies de stress hdrico. E, com o actual cenrio de mudanas climticas, quase metade da

    populao mundial viver, at 2030, em cenrios de stress hdrico elevado, e as estimativas indicam

    que s em frica este nmero est entre 75 e 250 milhes de habitantes, sendo a regio da frica

    sub-sahariana a que maior impacto sofrer. Vide Coping with water Scarcity. Challenge for the

    Twenty-First Century http://www.un.org/waterforlifedecade/scarcity.shtml, consultado a 26 de Outubro

    de 2012, as 13. 47h.

    http://www.un.org/waterforlifedecade/scarcity.shtml

  • Captulo I- Introduo

    ____________________________________________________________________________

    13

    Por isso, problemas como falta de acesso gua, falta de saneamento

    bsico, problemas de sade relacionados falta de gua, fome e malnutrio

    crnica so apenas exemplos dos problemas concretos que afectam as

    populaes cuja causa principal relacionada escassez de gua. E, apesar

    de todos os esforos que so feitos com vista a reduzir o nmero de pessoas

    sem acesso gua19, o mundo continua a enfrentar dificuldades em colmatar

    o problema, isto porque a soluo no se circunscreve somente vontade

    individual dos Estados, mas muitas vezes forma como a nvel das relaes

    estatal e inter-estatal a questo tratada.

    Por ltimo, preciso referir que a gesto de recursos hdricos tem

    recebido cada vez maior ateno a nvel mundial, dada a constatao da

    problemtica generalizada das limitaes quantitativas e qualitativas da gua,

    para os quais contribuem o aumento populacional, a urbanizao crescente e

    a degradao ambiental, que so uma realidade na frica Austral20, que

    uma regio de clima rido e semi-rido com nveis muito altos de taxa de

    natalidade, e em que as populaes dependem grandemente dos recursos

    hdricos das bacias hidrogrficas partilhadas.

    Assim, o risco de surgimento de conflitos na regio grande, mais no

    seja pelo facto de a regio sofrer uma grande variabilidade de temperatura e

    pluviosidade, sendo ao mesmo tempo uma regio tropical, semi-rida e rida,

    o que a torna susceptvel ocorrncia de cheias e secas, que vo ocorrendo

    de forma cclica. De acordo com os estudos existentes, cerca de sete por

    cento da regio da SADC desrtica, com menos de 100 mm de precipitao

    19 Um dos Objectivos de Desenvolvimento do Milnio (o objectivo n. 7) prev, no seu ponto

    10 reduzir, at 2015 a proporo de pessoas sem um acesso sustentvel gua potvel e condies

    sanitrias bsicas.

    20 Vide SALMAN A. SALMAN, Legal Regime for Use and Protection of International

    Watercourses in the Southern African Region: Evolution and Context, Nat. Resources J. , Vol. 41,

    2001, p. 981.

  • A Afirmao do Direito de guas

    _____________________________________________________________________

    14

    anuais; cerca de um tero da regio semi-rida, com precipitao varivel

    entre os 100 e os 600 mm, e apenas trs por cento da regio que tem

    precipitao superior a 1500 mm por ano, sendo comum a regio ser fustigada

    por secas imprevisveis, nalguns anos, e cheias cclicas, noutros anos21.

    1.1.2. O uso da gua: questes fundamentais

    Estimativas apontam para uma crise mundial de gua que no ano 2025

    afectar dois teros da populao mundial, que no ter gua potvel

    suficiente para satisfazer as suas necessidades22 23, na medida em que a

    poluio, as mudanas climticas, o uso insustentvel e um crescimento

    exacerbado da populao mundial tm comprometido a segurana dos

    recursos de gua existentes.24

    Espera-se ainda que at ao ano 2015 mais de trs bilies de pessoas

    vivam em pases com stress hdrico25 e a escassez da gua aumentar

    tenses no Oriente Mdio, na frica sub-sahariana e no Norte da China.26

    21 Vide SALMAN A. SALMAN, Legal Regime for Use and Protection of International

    Watercourses in the Southern African Region: Evolution and Context, Nat. Resources J. , Vol. 41,

    2001, p. 985.

    22 Vide RONA NARDONE, Like Oil and Water: The WTO and the Worlds Water Resources, 19

    Conn. J. Intl L., 2003-2004, p.183.

    23 Prev-se que pases como o Paquisto, frica do Sul, ndia e China passem por crises de

    escassez absoluta de gua. Vide CHRISTOPHER SCOTT MARAVILLA, The Canadian Bulk Water

    Moratorium and Its Implications for NAFTA, 10 Cur. Intl L. Journal, 2001, p. 29.

    24 Vide Ministerial Declaration of the Hague on Water Security in the 21st Centuary, Second

    World Water Forum, 2000, disponvel em http://www.worldwaterforum.net/index2.html consultado a 12

    de Maro de 2013. Vide igualmente PATRICIA WOUTERS et al., The Legal Response to the Worlds

    Water Crisis: What Legacy From the Hague? What Future in Kyoto? 4 U. Denv. Water L. Rev., 2001,

    p. 420.

    25 Um pas que esteja sob stress hdrico aquele no qual a precipitao anual menor que

    1,700 metros cbicos per capita por ano. Vide CHRISTOPHER SCOTT MARAVILLA, The Canadian

    Bulk Water Moratorium and Its Implications for NAFTA, 10 Cur. Intl L. Journal, 2001, p. 30.

    http://www.worldwaterforum.net/index2.html

  • Captulo I- Introduo

    ____________________________________________________________________________

    15

    A escassez de gua e a inacessibilidade de recursos aqui analisados

    no so mero espectro do futuro.27 Presentemente, as estimativas mostram

    que 1.1 bilio de pessoas no tm acesso gua potvel, 2.4 bilies de

    pessoas no tem acesso a servios sanitrios e a limitao de gua afecta

    actualmente a mais de 450 milhes de pessoas em 29 pases.28 Actualmente,

    a gua considerada escassa em 14 por cento dos pases a nvel mundial, e

    somente 35 por cento dos pases tm disponveis mais de 10.000 metros

    cbicos per capita disponveis29.

    De acordo com certos autores, existem trs tipos de escassez de gua:

    escassez estrutural, escassez induzida pela procura e a escassez induzida

    pela oferta.30 A escassez estrutural refere-se ao facto de a gua estar

    distribuda de forma desigual, facto que muitas vezes passa despercebido ou

    26 Vide CHRISTOPHER SCOTT MARAVILLA, The Canadian Bulk Water Moratorium and Its

    Implications for NAFTA, 10 Cur. Intl L. Journal, 2001, p. 30.

    27 Hidrologistas sugerem que uma regio pode ser considerada como sofrendo de escassez

    de gua aguda quando os nveis de gua renovvel se encontrem abaixo dos 1,000 metros cbicos

    por ano per capita. Vide SIMON NICHOLSON, Water Scarcity, Conflict and International Water Law:

    An Examination of the Regime Established by the UN Convention on International Watercourses, 5

    New Zealand Journal of Environmental Law 2001, p. 94.

    28 Vide PATRICIA WOUTERS et al., The Legal Response to the Worlds Water Crisis: What

    Legacy From The Hague? What Future in Kyoto? 4 University of Denver Water Law Review, 2001, p.

    419. Note-se, todavia, que as limitaes da gua no afectam somente o consume domstico e

    industrial. Estes mesmos pases no tero gua suficiente para a irrigao e abeberamento do gado,

    por exemplo. CHRISTOPHER SCOT MARAVILLA, The Canadian Bulk Water Moratorium and Its

    Implications for NAFTA, 10 Currents International Law Journal, 2001, p. 30.

    29 Vide EDITH BROWN WEISS, The Evolution of International Water Law, Martinus Nijhoff

    Publishers, Leiden/Boston, 2009, p. 178. Refira-se ainda que a linha de pobreza para o acesso gua

    potvel de 1000 metros cbicos por pessoa por ano, e que trs quartos da populao mundial

    encontra-se em situao de acesso limitado gua, havendo estimativas que indicam que at 2025

    35 por cento da populao mundial, que reside em 52 pases, estar em situao de stress hdrico ou

    mesmo de escassez de gua. Ibidem.

    30 Vide V. PERCIVAL & T. HOMER DIXON, Environmental Scarcity and Violent Conflict: The

    Case of South Africa, 35 Journal of Peace research, 1998, P.280.

  • A Afirmao do Direito de guas

    _____________________________________________________________________

    16

    erradamente interpretado porque no geral ficamos com a ideia de o nosso

    planeta ser abundante em gua pelas imagens do mesmo, vistas do espao,

    que indicam uma aparente abundncia de gua, no se relacionando, por

    exemplo, a abundncia da gua com os mares e oceanos.

    A escassez induzida pela procura surge em resultado do aumento da

    procura da gua, exacerbada pela crescente explorao da gua devido ao

    crescimento da populao e pelas presses do desenvolvimento, tendo este

    tipo de escassez um maior impacto em regies ridas e semi-ridas, nas quais

    j se verificavam problemas de escassez de gua.31

    A escassez induzida pela oferta refere-se degradao dos recursos

    hdricos num ritmo mais rpido do que o necessrio para a reposio natural

    do recurso. A poluio e o uso insustentvel de guas subterrneas so dois

    dos factores que mais contribuem para este tipo de escassez.32

    Dos trs tipos de escassez referidos, no h dvidas que a escassez

    estrutural a mais preocupante de todas porque, na verdade, um dos maiores

    problemas relacionados com a gua a sua localizao geogrfica33 e a

    31 Vide SIMON NICHOLSON, Water Scarcity, Conflict and International Water Law: An

    Examination of the Regime Established by the UN Convention on International Watercourse, 5 N.Z. J.

    Envtl. L., 2001, p. 95. Para estatsticas em relao disponibilidade de gua e respectivo uso, por

    pas, vide World Bank, World Development Indicators 2005, disponvel em

    http\\www.worldbank.org/data/wdi/environment.html (consultado a 12 Setembro 2012).

    32 Vide SIMON NICHOLSON, Water Scarcity, Conflict and International Water Law: An

    Examination of the Regime Established by the UN Convention on International Watercourses, 5 N.Z. J.

    Envtl. L. 2001, p. 97. Um outro problema o que est relacionado com as perdas durante o

    transporte urbano. A necessidade de transportar a gua de locais distantes para os locais de consumo

    leva a perdas massivas devido evaporao e a fugas de gua (estas ltimas responsveis pela

    perda de entre 30 a 50% da quantidade total da gua transportada). Ibidem.

    33 De facto, tal como o Professor Stephen MacCaffrey afirma, if you took the total available

    water and divided it by the number of people on the planet, there would be plenty of water to go

    around. The problem is its in the wrong places! Vide STEPHEN C. MACCAFFREY, Water, Water

    Everywhere, But Too Few Drops T Drink: The Coming Fresh Water Crisis and International

  • Captulo I- Introduo

    ____________________________________________________________________________

    17

    histria de subdesenvolvimento de alguns pases que partilham cursos de

    gua internacionais, quando comparados com outros pases que partilham a

    mesma bacia hidrogrfica.

    A questo que se coloca liga-se necessidade que os pases tm de

    fazer a explorao dos recursos hdricos, para o que devem desenvolver

    sistemas de distribuio e gesto da gua, e para tal precisam quase sempre

    reabilitar ou construir as infra-estruturas necessrias para um melhor uso e

    gesto das guas em benefcio das populaes.

    Mas isto tem que ser feito, muitas vezes, num contexto de possveis

    reclamaes provenientes dos demais Estados de bacia, tratando-se de rios

    internacionais, porque os demais pases tambm tm interesses a proteger,

    situao esta que se torna mais complicada nos casos em que determinados

    pases alcanaram nveis muito altos de desenvolvimento que demandam

    altos nveis de uso de gua, enquanto outros no puderam desenvolver por

    razes econmicas ou polticas.

    O problema, neste caso, tem tambm a ver com a distribuio desigual

    da gua, que, tal como afirma o Professor Canelas de Castro, aparece em

    unidades naturais dividida entre os Estados, atravessando fronteiras ou

    formando-as,34 e dessa forma justificando a sua natureza fugitiva.35

    Environmental Law, 28 Denver Journal of International Law & Policy, 1999-2000, p. 330. Vide

    igualmente URS LUTEBACHER, ELLEN WIEGANDT, Cooperation or Confrontation: Sustainable

    Water Use in an International Context, in EDITH BROWN WEISS et al. (eds.), Fresh Water and

    International Economic Law, Oxford University Press, 2005, p. 12, que referem que uma parte do

    problema da distribuio da gua est relacionado com a diviso do globo em regies hmidas,

    semiridas e ridas.

    34 Vide PAULO CANELAS DE CASTRO, The Future of International Water Law, Luso-

    American Foundation, Lisbon, 2005, p. 12, que explica, de forma incisiva, que a lgica omnipotente

    (suprema potestas) da afirmao da propriedade soberana (dominium), que expressa na mxima

    Romana ius utendi, fruendi et abutendi, e que ainda aplicada nos dias de hoje para a terra, nunca

    foi aplicvel gua, porque a gua geralmente encontrada em cursos correntes, que tal como o

  • A Afirmao do Direito de guas

    _____________________________________________________________________

    18

    Os nmeros mostram que h mais de 250 rios no planeta que so

    internacionais (atravessam dois ou mais Estados ou formam fronteira entre

    dois ou mais Estados), e as bacias hidrogrficas partilhadas ocupam cerca de

    50 por cento da superfcie terrestre, e porque de facto a procura mundial de

    gua cresce diariamente a nvel internacional, assiste-se, hoje em dia, a uma

    verdadeira crise internacional.36

    Para alm disso, os oceanos contm 97 por cento de toda a quantidade

    de gua do planeta (e enquanto o processo de dessalinizao da gua do mar

    continuar muito oneroso, o mundo no pode usufruir da abundncia da gua

    do mar pois a mesma imprpria para beber, para a agricultura ou para fins

    industriais).37

    prprio nome sugere (curso de gua) mvel, no respeitando soberanias ou jurisdies demarcadas

    por fronteiras e sinalizadas por administraes. Ibidem. (nfase original).

    35 A expresso propriedade fugitiva pertence a R. COOTER & T. ULEN, Law and Economics

    (2nd edition, 1997), citados por SIMON NICHOLSON, Water Scarcity, Conflict and International Water

    Law: An Examination of the Regime Established by the UN Convention on International Watercourses,

    5 N.Z. J. Envtl. L. 2001, p. 93.

    36 Vide PAULO CANELAS DE CASTRO, The Future of International Water Law, Luso-

    American Foundation, Lisbon, 2005, p. 12. E no difcil de perceber tal situao: porque a gua no

    um recurso fisicamente esttico, a competio pela gua envolve diferentes conjuntos de conflitos;

    Por um lado porque os rios so usados por milhares de pessoas, e esta situao geradora de

    conflitos, e por outro lado, porque o prprio ciclo da gua, com as suas pocas altas e baixas, acaba

    causando outros conflitos entre os utentes. Vide FRANOIS DU BOIS, Water Rights and the Limits of

    Environmental Law, 6 Journal of Environmental. Law, 1994, p. 77.

    37 possvel, por tcnicas de dessalinizao, que incluem a destilao e osmose reversa,

    converter gua salgada ou gua salobra em gua potvel. Todavia, estes processos requerem o uso

    de tecnologia de ponta, bastante onerosa, o que torna o processo todo bastante oneroso, e logo,

    pouco acessvel. O World Research Institute estima que a dessalinizao custa trs a quarto vezes

    mais que as tcnicas usuais de retirada da gua dos cursos de gua ou aquferos subterrneos. Vide

    SIMON NICHOLSON, Water Scarcity, Conflict and International Water Law: An Examination of the

    Regime Established by the UN Convention on International Watercourses, 5 N.Z. J. Envtl. L.2001, p.

    93.

  • Captulo I- Introduo

    ____________________________________________________________________________

    19

    Deste modo, considerando que s trs por cento da quantidade total de

    gua existente no planeta doce, correspondente a um volume total de

    aproximadamente 35 milhes de quilmetros cbicos, e ainda assim, grande

    parte desta gua potencialmente til estar para alm do alcance imediato do

    homem, pois uma parte encontra-se nas calotes polares, em glaciares ou

    ainda em profundos aquferos subterrneos, somente 0.3 por cento das

    reservas totais de gua (menos de 100,000 km3) esto disponveis em rios e

    lagos, nos quais grande parte da populao mundial depende, para satisfazer

    as suas necessidades.38

    E como se depreende, vezes sem conta estes factos causam

    desentendimentos e at disputas, que so vistos como problemas clssicos e

    modernos do Direito de guas,39 uma vez que a disponibilidade de gua em

    quantidade suficiente importante no s para salvaguardar o

    desenvolvimento econmico e a robustez ecolgica, mas tambm para

    salvaguardar a paz e segurana internacionais.40

    38 Os dados diferem, de acordo com as fontes, embora a magnitude seja prxima, nas

    diversas apreciaes. Os dados aqui apresentados foram retirados de PETER GLEICK, An

    introduction to Global Fresh water Issues, in PETER GLEICK(ed), Water in Crisis: A Guide to the

    Worlds Fresh Water Resources, Pacific Institute For Studies in Development, Environment and

    Security,1993, P. 198.

    39 Com a mesma opinio, mas numa anlise do caso do Afeganisto, vide A. DAN TARLOCK

    e JAMES C. MCMURRAY, The Law of Later Developing Riparian States: The Case of Afghanistan, 14

    N.Y.U. Envtl. L.J., 2004, p. 745.

    40 Vide, todavia, o paradoxo apresentado pelo caso entre o Canad e os Estados Unidos, em

    relao bacia dos Grandes Lagos: Comparada maioria das mais contestadas bacias hidrogrficas,

    tais como a Amu Darya na sia Central, Bacia do Rio Nilo, ou ainda do rio Zambeze, o nvel de

    controvrsia em relao ao uso e gesto das guas dos Grandes Lagos inverso em relao

    quantidade de gua disponvel naquela bacia. Isto , os lagos contm 20% da quantidade total de

    gua superficial existente no planeta. Todavia, em termos comparados, muito pouca gua usada

    nesta bacia, em quantidades que no ultrapassam os cinco por cento. Para mais discusses em

    relao situao dos Grandes Lagos, vide A. DAN TARLOCK, Five Views of the Great Lakes and

    Why They Might Matter, 15 Minn. J. Intl L., 2006, p. 21 e ss.

  • A Afirmao do Direito de guas

    _____________________________________________________________________

    20

    Se um facto a problemtica da quantidade reduzida de gua, no

    menos preocupante a questo da qualidade de gua, que posta em causa

    devido a problemas ligados poluio. A poluio reduz a quantidade de gua

    disponvel, uma vez que pode torna-la intil, por culpa das actividades agrcola

    e industrial, principalmente, o que faz que algumas vezes as pessoas

    consumam gua inadequada, que acaba sendo um vector de doenas.

    Outras razes como a mudana do uso que se faz da gua, como forma

    de acompanhar o desenvolvimento econmico, outro factor que pode

    exacerbar potenciais conflitos.41 Isto acontece, por exemplo, no caso do

    Afeganisto, que visto como um verdadeiro pesadelo do clssico regime de

    cursos de gua transfronteirios42, pois um pas cujo desenvolvimento deu-

    se tardiamente e agora exige dos pases com quem partilha rios internacionais

    o direito de acesso a uma quantidade de gua que lhe permita alcanar os

    seus planos sociais e econmicos, o que se torna agora bastante difcil de

    materializar, em face da intensa explorao que feita pelos demais Estados

    ribeirinhos, que no s construram infraestruturas de gesto, reteno e

    distribuio de guas, como tambm tem usado a gua para diversos fins

    cujas metas foram traadas a longo prazo.43

    41 Vide URS LUTEBACHER e ELLEN WIEGANDT, Cooperation or Confrontation: Sustainable

    Water Use in an International Context, in EDITH BROWN WEISS et al. (eds.), Fresh Water and

    International Economic Law, Oxford University Press, 2005, p. 12, que afirmam que essa competio

    existe no s em regies geogrficas mas tambm entre tipos de usurios. A agricultura, a indstria, a

    produo de energia e os usos domsticos exigem todos cada vez maiores fornecimentos de gua,

    sendo certo que as quantidades do recurso regra geral no aumenta, por razes como as mudanas

    climticas, sobre-uso ou ainda devido poluio.

    42 Esta expresso pertence a A. DAN TARLOCK e JAMES C. MCMURRAY, The Law of Later

    Developing Riparian States: The Case of Afghanistan, 14 New N.Y.U. Envtl. L.J., 2004, p. 713.

    43 Outro exemplo clssico o da Etipia, que contribui com 85% do fluxo do Rio Nilo,

    jusante para o Sudo e o Egipto. Mas o Egipto invoca usos histricos para controlar o rio Nilo e

    bloquear quaisquer empreendimentos de vulto que requeiram o uso da gua. Vide JOSEPH W.

  • Captulo I- Introduo

    ____________________________________________________________________________

    21

    Outro excelente exemplo das crises que podem ser originadas pela

    gua pode ser encontrado na China, que o pas mais populoso do mundo, e

    igualmente um dos pases mais carentes de gua do mundo, devido s

    limitaes que enfrenta.44 A disponibilidade desproporcional de gua, tanto

    no tempo assim como no espao, agrava a situao da gua na China, j

    bastante crtica. De facto, os recursos hdricos da China esto

    geograficamente desigualmente distribudos; existe muito mais gua no sul do

    que no norte. O sul da China, incluindo a regio de Changjiang, alberga 53.5

    por cento da populao chinesa, numa rea correspondente a 36.5 por cento

    da rea total do territrio chines. Entretanto, nesta mesma regio, encontra-se

    80.9 por cento da quantidade total dos recursos hdricos do pas.45

    Em contrapartida, o norte da China, incluindo as regies de Liaohe,

    Hailuanhe, Huanghe, Huaihe, alberga 46.5 por cento da populao total do

    pas, numa rea que corresponde a 63.5 por cento do territrio nacional, para

    os quais esto meramente disponveis 19.1 por cento da quantidade total de

    gua do pas. 46

    Consequentemente, a distribuio desigual de gua apontada como

    uma das causas primrias da falta de desenvolvimento social e econmico

    deste pas, no qual mais de 400 das suas 668 grandes cidades sofre de

    limitaes de gua, incluindo Beijing (com uma populao de 15.36 milhes

    em 2012), Tianjin (11.19 milhes) Xian (9.03), Taiyuan (5.22 milhes), Datong

    DELLAPENNA, The Two Rivers and the Land Between: Mesopotamia and the International Law of

    Transboundary Waters, 213 BYU Law Review, 1996, p. 220.

    44 Vide PATRICIA WOUTERS et al. The New Development of Water Law in China 7, U. Denv.

    Water L. Rev., 2003-2004, p. 250.

    45 Vide PATRICIA WOUTERS et al. The New Development of Water Law in China 7, U. Denv.

    Water L. Rev., 2003-2004, p. 250.

    46 Vide PATRICIA WOUTERS et al. The New Development of Water Law in China 7, U. Denv.

    Water L. Rev., 2003-2004, p. 250.

  • A Afirmao do Direito de guas

    _____________________________________________________________________

    22

    (5.05 milhes), Qingdao (9.16 miles), Yantai (8.45 milhes) e Dalian (7.58

    milhes).47

    Em face do exposto, e na procura de solues para estes problemas, e

    porque as quantidades de gua so fixas, discute-se como aumentar as

    quantidades de gua disponveis. Obviamente que a resposta deve ser a

    necessidade de recurso a melhores prticas e hbitos, que devem ser

    buscados na disciplina do Direito do Ambiente, recorrendo reciclagem das

    guas, captao das guas da chuva, e outros mtodos e tcnicas

    ambientalmente recomendveis, por um lado, e por outro, o uso de

    tecnologias para a conservao da gua que muitas vezes abunda em certos

    perodos e escasseia noutros, construindo diques e canais.

    Em Agosto de 2002, os delegados Cimeira das Naes Unidas sobre

    Desenvolvimento Sustentvel, decorrida em Joanesburgo, comprometeram-se

    em reduzir o nmero de pessoas sem acesso gua potvel em 50 por cento,

    at ao ano 2015, mas sublinharam que para tal seria necessria cooperao

    entre os pases.48 Por outras palavras, isto significa que a comunidade

    internacional ter que trabalhar em conjunto para ultrapassar os desafios

    culturais, financeiros, legais e operacionais para que juntos ultrapassem a

    crise de gua mundial, pois este no um problema de uma s nao ou

    povo, mas de toda a Humanidade. Porque enquanto no houver consenso

    sobre como mitigar a crise de gua, haver sempre o receio de os conflitos e

    disputas latentes poderem transformar-se em verdadeiras guerras.

    Da que questes relativas ao quadro normativo interno vigente nos

    vrios Estados podem ser mais ou menos favorveis reduo dos dfices de

    47 Vide PATRICIA WOUTERS et al. The New Development of Water Law in China 7, U. Denv.

    Water L. Rev., 2003-2004, p. 252.

    48 Vide RONA NARDONE, Like Oil and Water: the WTO and the Worlds Water Resources, 19

    Conn. J. Intl L., 2003-2004, p. 183.

  • Captulo I- Introduo

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    23

    acesso gua, e dos problemas que da podem advir. Porque h uma relao

    directa entre a escassez de gua e a falta de acesso mesma e o direito

    vigente, na medida em que a existncia ou no de um quadro jurdico

    favorvel ao acesso gua pelas populaes pode determinar o maior ou

    menor grau de carncia do recurso por essas mesmas populaes, uma vez

    que, havendo um nus legal por parte do Estado em providenciar o acesso

    mnimo de gua o mesmo tem que fazer os esforos mnimos necessrios

    para garantir que tal direito seja de facto efectivado, sob pena de colocar-se

    em situao de incumprimento e sujeitar-se a todos os tipos de presso.

    Entretanto, um facto que a escassez de gua, no sendo um facto

    novo, teve sempre os mais diversos tipos de soluo ao longo da histria

    comum da civilizao humana. Na verdade, o nvel de desenvolvimento das

    sociedades esteve sempre dependente da quantidade e qualidade de gua

    disponvel, pois esta sempre condicionou questes como alimentos, energia,

    transporte e indstria, nos vrios momentos da civilizao humana.

    E, sempre que houve crises ou escassez de gua, foi possvel encontrar

    mtodos e meios de ultrapassar as crises existentes. Pelo que a procura

    contnua de solues para os problemas da gua mais no que um diapaso

    da prpria evoluo humana, com a diferena de se estar em outros tempos,

    com outro tipo de meios, e recurso a outras tcnicas que podem ser mais ou

    menos onerosas, e por isso deve-se afirmar, desde j, que a actual crise de

    gua no ser ultrapassada simplesmente com base nas novas tecnologias,

    como a dessalinizao, por exemplo, mas com base em solues transversais

    que levam em conta uma matriz social e ideolgica dos povos.49 Como se

    depreende, as limitaes do acesso gua acabam se tornando verdadeiros

    motores de inovao da Humanidade, motivando, encorajando e incentivando

    49 FEKRI A. HASSAN, Water Management and Early Civilizations: From Cooperation to

    Conflict. Water for Peace: A Cultural Strategy, UNESCO-IHP, 2003, p. 115.

  • A Afirmao do Direito de guas

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    24

    as populaes a descobrir novas formas de solucionar os problemas de

    escassez de gua.

    1.1.3. A questo do acesso gua

    A gua um elemento fundamental para a vida e para a sade. o

    recurso natural no qual toda a vida depende. Sem gua, a sobrevivncia dos

    seres vivos impossvel. Da que o acesso a gua seja crucial para a

    sobrevivncia humana, em particular, pois na gua que se centra o

    desenvolvimento socioeconmico, a luta contra a pobreza, e uma vida

    saudvel50. A Organizao Mundial da Sade estima que a nvel mundial mais

    de 1.1 bilio de pessoas no tem acesso a gua potvel. Em consequncia,

    2.2 bilies de pessoas morrem em mdia devido a doenas ligadas a gua, e

    1.87 bilies de crianas morrem devido a diarreias causadas pelo consumo de

    gua imprpria51.

    O acesso gua vital porque uma das condies essenciais para a

    satisfao das necessidades bsicas das populaes, agora e no futuro.

    Regra geral, o acesso gua geralmente analisado numa perspectiva de

    acesso fsico e acesso econmico, em quantidade e qualidade adequadas

    suficientes para satisfazer necessidades bsicas das pessoas52 .