gilbert simondon - do modo de existência dos objetos técnicos_introdução

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Do modo de existência dos objetos técnicos Gilbert Simondon Tradução de Du mode d’existence des objets techniques (Gilbert Simondon, Paris: Aubier-Montaigne, 2008 [1958]), por Pedro Peixoto Ferreira (tradução) e Christian Pierre Kasper (revisão). Paginação original e notas dos tradutores (NT) entre colchetes. Notas de rodapé são indicadas no corpo do texto com número entre parênteses e exibidas, em parágrafo separado (logo após o parágrafo no qual elas ocorrem), entre colchetes e em tamanho de fonte menor. [9] INTRODUÇÃO Este estudo é animado pela intenção de suscitar uma tomada de consciência do sentido dos objetos técnicos. A cultura se constituiu como sistema de defesa contra as técnicas; ora, essa defesa se apresenta como uma defesa do homem, supondo que os objetos técnicos não contêm realidade humana. Nosso intuito foi mostrar que a cultura ignora, na realidade técnica, uma realidade humana, e que, para desempenhar plenamente seu papel, a cultura deve incorporar os seres técnicos enquanto conhecimento e valor. A tomada de consciência dos modos de existência dos objetos técnicos deve ser efetuada pelo pensamento filosófico, que deve cumprir aqui um dever análogo àquele que desempenhou na abolição da escravidão e na afirmação do valor da pessoa humana. A oposição entre a cultura e a técnica, entre o homem e a máquina, é falsa e sem fundamento; ela esconde apenas ignorância ou ressentimento. Ela mascara atrás de um humanismo fácil uma realidade rica em esforços humanos e em forças naturais e que constitui o mundo dos objetos técnicos, mediadores entre a natureza e o homem. A cultura trata o objeto técnico como o homem trata o estrangeiro quando se deixa levar pela xenofobia primitiva. O misoneísmo orientado contra as máquinas é menos um ódio pela novidade do que uma recusa da realidade estrangeira. Ora, esse ser estrangeiro é ainda humano, e a cultura completa é aquilo que permite descobrir o estrangeiro como humano. Da mesma forma, a máquina é a estrangeira; é a estrangeira na qual está aprisionado algo de humano, desconhecido, materializado, escravizado, mas ainda humano. A mais forte causa de alienação no mundo contemporâneo reside nesse desconhecimento da máquina, que não é uma alienação causada pela máquina, mas pelo não-conhecimento de sua [10] natureza e de sua essência, pela sua ausência do mundo das significações e por sua omissão no quadro dos valores e conceitos que participam da cultura. A cultura é desequilibrada porque ela reconhece certos objetos, como o objeto estético, e lhes atribui cidadania no mundo das significações, e ao mesmo tempo rechaça outros objetos, em particular os objetos técnicos, no mundo sem estrutura daquilo que não possui significações, mas

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Do modo de existência dos objetos técnicosGilbert Simondon

Tradução de Du mode d’existence des objets techniques (Gilbert Simondon, Paris: Aubier-Montaigne, 2008 [1958]), por Pedro Peixoto Ferreira (tradução) e Christian

Pierre Kasper (revisão). Paginação original e notas dos tradutores (NT) entre colchetes. Notas de rodapé são indicadas no corpo do texto com número entre parênteses e

exibidas, em parágrafo separado (logo após o parágrafo no qual elas ocorrem), entre colchetes e em tamanho de fonte menor.

[9]

INTRODUÇÃO

Este estudo é animado pela intenção de suscitar uma tomada de consciência do sentido dos

objetos técnicos. A cultura se constituiu como sistema de defesa contra as técnicas; ora, essa defesa

se apresenta como uma defesa do homem, supondo que os objetos técnicos não contêm realidade

humana. Nosso intuito foi mostrar que a cultura ignora, na realidade técnica, uma realidade humana,

e que, para desempenhar plenamente seu papel, a cultura deve incorporar os seres técnicos enquanto

conhecimento e valor. A tomada de consciência dos modos de existência dos objetos técnicos deve

ser efetuada pelo pensamento filosófico, que deve cumprir aqui um dever análogo àquele que

desempenhou na abolição da escravidão e na afirmação do valor da pessoa humana.

A oposição entre a cultura e a técnica, entre o homem e a máquina, é falsa e sem

fundamento; ela esconde apenas ignorância ou ressentimento. Ela mascara atrás de um humanismo

fácil uma realidade rica em esforços humanos e em forças naturais e que constitui o mundo dos

objetos técnicos, mediadores entre a natureza e o homem.

A cultura trata o objeto técnico como o homem trata o estrangeiro quando se deixa levar pela

xenofobia primitiva. O misoneísmo orientado contra as máquinas é menos um ódio pela novidade

do que uma recusa da realidade estrangeira. Ora, esse ser estrangeiro é ainda humano, e a cultura

completa é aquilo que permite descobrir o estrangeiro como humano. Da mesma forma, a máquina

é a estrangeira; é a estrangeira na qual está aprisionado algo de humano, desconhecido,

materializado, escravizado, mas ainda humano. A mais forte causa de alienação no mundo

contemporâneo reside nesse desconhecimento da máquina, que não é uma alienação causada pela

máquina, mas pelo não-conhecimento de sua [10] natureza e de sua essência, pela sua ausência do

mundo das significações e por sua omissão no quadro dos valores e conceitos que participam da

cultura.

A cultura é desequilibrada porque ela reconhece certos objetos, como o objeto estético, e

lhes atribui cidadania no mundo das significações, e ao mesmo tempo rechaça outros objetos, em

particular os objetos técnicos, no mundo sem estrutura daquilo que não possui significações, mas

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apenas um uso, uma função útil. Diante dessa recusa defensiva, pronunciada por uma cultura

parcial, os homens que conhecem os objetos técnicos e sentem sua significação buscam justificar

seu julgamento atribuindo ao objeto técnico o único estatuto atualmente valorizado além daquele de

objeto estético, aquele de objeto sagrado. Nasce então um tecnicismo intemperante que não passa de

uma idolatria da máquina e, através dessa idolatria, por meio de uma identificação, uma aspiração

tecnocrata ao poder incondicional. O desejo de poder consagra a máquina como meio de

supremacia e faz dela o elixir moderno. O homem que quer dominar seus semelhantes suscita a

máquina andróide. Diante dela, ele abdica de sua humanidade e a delega. Ele busca construir a

máquina de pensar, sonhando poder construir a máquina de querer, a máquina de viver, para ficar

atrás dela sem angústia, liberado de todo perigo, eximido de todo sentimento de fraqueza e

triunfante mediante sua invenção. Ora, nesse caso, a máquina que a imaginação torna esse duplo do

homem que é o robô desprovido de interioridade, representa de maneira bem evidente e inevitável

um ser puramente mítico e imaginário.

Queríamos precisamente mostrar que o robô não existe, que ele não é uma máquina da

mesma forma como uma estátua não é um ser vivo, mas apenas um produto da imaginação e da

fabricação fictícia, da arte da ilusão. No entanto, a noção da máquina que existe na cultura atual

incorpora em ampla medida essa representação mítica do robô. Um homem culto não se permitiria

falar dos objetos ou personagens pintados sobre uma tela como verdadeiras realidades, tendo uma

interioridade, uma vontade boa ou má. Esse mesmo homem fala, no entanto, das máquinas que

ameaçam o homem como se atribuísse a esses objetos uma alma e uma existência separada,

autônoma, que lhes conferisse sentimentos e intenções para com o homem.

A cultura comporta assim duas atitudes contraditórias com relação aos objetos técnicos: por

um lado, ela os trata como puros [11] conjuntos de matéria, desprovidos de verdadeiro significado e

apresentando apenas utilidade. Por outro lado, ela supõe que esses objetos são também robôs e que

eles são animados por intenções hostis com relação ao homem, ou representam para ele um perigo

permanente de agressão, de insurreição. Julgando ser bom conservar o primeiro caráter, ela quer

impedir a manifestação do segundo e fala em colocar as máquinas a serviço do homem, crendo

encontrar na redução à escravidão um meio seguro de impedir qualquer rebelião.

De fato, essa contradição inerente à cultura provém da ambigüidade das idéias relativas ao

automatismo, nas quais se esconde um verdadeiro erro lógico. Os idólatras da máquina apresentam

geralmente o grau de perfeição de uma máquina como proporcional ao grau de automatismo.

Ultrapassando aquilo que a experiência mostra, eles supõem que, por um crescimento e um

aperfeiçoamento do automatismo, chegaríamos a reunir e interconectar todas as máquinas entre si

de maneira a constituir uma máquina de todas as máquinas.

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Ora, na verdade o automatismo é um grau bastante baixo de perfeição técnica. Para tornar

uma máquina automática, é preciso sacrificar várias possibilidades de funcionamento, vários usos

possíveis. O automatismo – e sua utilização sob a forma de organização industrial que chamamos de

automação – possui uma significação econômica ou social mais do que uma significação técnica. O

verdadeiro aperfeiçoamento das máquinas, aquele que, poderíamos dizer, eleva o grau de

tecnicidade, corresponde não a um aumento do automatismo mas, ao contrário, ao fato de o

funcionamento de uma máquina guardar uma certa margem de indeterminação. É essa margem que

permite à máquina ser sensível a uma informação exterior. É por essa sensibilidade das máquinas à

informação que um conjunto técnico pode se realizar, muito mais do que por um aumento do

automatismo. Uma máquina puramente automática, completamente fechada sobre si mesma num

funcionamento pré-determinado, não poderia oferecer mais que resultados sumários. A máquina

dotada de alta tecnicidade é uma máquina aberta, e o conjunto das máquinas abertas supõe o

homem como organizador permanente, como intérprete vivo das máquinas umas com relação às

outras. Longe de ser o vigia de um grupo de escravos, o homem é o organizador permanente de uma

sociedade dos objetos técnicos que precisam dele como os músicos precisam do maestro. O maestro

da orquestra só pode reger os músicos porque ele interpreta, como eles e tão [12] intensamente

quanto todos eles, a peça executada. Ele acalma ou apressa os músicos, mas é também acalmado e

apressado por eles; de fato, através dele, a orquestra acalma e apressa cada músico. Ele é para cada

um deles a forma movente e atual do grupo em sua existência presente; ele é o intérprete mútuo de

todos com relação a todos. Assim, o homem tem por função ser o coordenador e o inventor

permanente das máquinas que estão à sua volta. Ele está entre as máquinas que operam com ele.

A presença do homem às máquinas é uma invenção perpetuada. Isso que reside nas

máquinas é algo da realidade humana, do gesto humano fixado e cristalizado em estruturas que

funcionam. Essas estruturas precisam ser sustentadas no curso de seu funcionamento, e a maior

perfeição coincide com a maior abertura, com a maior liberdade de funcionamento. As máquinas de

calcular modernas não são puros autômatos; elas são seres técnicos que, acima de seus

automatismos de adição (ou de decisão pelo funcionamento de basculadores elementares), possuem

possibilidades muito vastas de comutação de circuitos, que permitem codificar o funcionamento da

máquina restringindo sua margem de indeterminação. É graças a essa margem primitiva de

indeterminação que uma mesma máquina pode extrair raízes cúbicas, ou traduzir um texto simples

composto de um pequeno número de palavras e de formas de uma língua para outra.

É ainda por meio dessa margem de indeterminação, e não pelos automatismos, que as

máquinas podem ser agrupadas em conjuntos coerentes, trocar informação umas com as outras por

meio desse coordenador que é o intérprete humano. Mesmo quando a troca de informação é direta

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entre duas máquinas (como entre um oscilador piloto e um outro oscilador sincronizado por

impulsões), o homem intervém como ser que regula a margem de indeterminação a fim de que ela

seja adaptada à melhor troca possível de informação.

Ora, poderíamos nos perguntar qual homem pode realizar em si a tomada de consciência da

realidade técnica e introduzi-la na cultura. Essa tomada de consciência dificilmente pode ser

realizada por aquele que é ligado a uma só máquina pelo trabalho e pela fixidez dos gestos

cotidianos; a relação de uso não é favorável à tomada de consciência, pois seu recomeço habitual

esfuma no estereótipo dos gestos adaptados a consciência das estruturas e dos funcionamentos. O

fato de governar uma empresa utilizando [13] máquinas, ou a relação de propriedade, não é mais

útil do que o trabalho para essa tomada de consciência: ele cria pontos de vista abstratos sobre a

máquina, julgada pelo seu preço e pelos resultados de seu funcionamento mais do que em si mesma.

O conhecimento científico, que vê em um objeto técnico a aplicação prática de uma lei teórica,

tampouco está no nível do domínio técnico. Essa tomada de consciência pareceria antes poder ser o

feito do engenheiro de organização, que seria como o sociólogo e o psicólogo das máquinas,

vivendo no meio dessa sociedade de seres técnicos da qual ele é a consciência responsável e

inventiva.

Uma verdadeira tomada de consciência das realidades técnicas apreendidas em sua

significação corresponde a uma pluralidade aberta de técnicas. Não poderia ser de outra forma, pois

um conjunto técnico mesmo pouco estendido compreende máquinas cujos princípios de

funcionamento dependem de áreas científicas muito diferentes. A especialização dita técnica

geralmente corresponde a preocupações exteriores aos objetos técnicos propriamente ditos (relações

com o público, forma particular de comércio) e não a uma espécie de esquemas de funcionamento

incluídos nos objetos técnicos; é a especialização segundo direções exteriores às técnicas que cria a

estreiteza de visão censurada nos técnicos pelo homem culto que pretende se distinguir deles: trata-

se de uma estreiteza de intenções, de fins, muito mais do que de uma estreiteza de informação ou de

intuição das técnicas. São muito raras atualmente as máquinas que não são em alguma medida

mecânicas, térmicas e elétricas ao mesmo tempo.

Para devolver à cultura o caráter verdadeiramente geral que ela perdeu, é preciso

reintroduzir nela a consciência da natureza das máquinas, de suas relações mútuas e com o homem,

e dos valores implicados nessas relações. Essa tomada de consciência exige a existência, ao lado do

psicólogo e do sociólogo, do tecnólogo ou mecanólogo. Além disso, os esquemas fundamentais de

causalidade e de regulação que constituem uma axiomática da tecnologia devem ser ensinadas de

maneira universal, como são ensinados os fundamentos da cultura literária. A iniciação às técnicas

deve ser colocada sobre o mesmo plano que a educação científica; ela é tão desinteressada quanto a

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prática das artes, e domina tanto as aplicações práticas quanto a física teórica; ela pode atingir o

mesmo grau de abstração e de simbolismo. Uma criança deveria saber o que é uma [14] auto-

regulação ou uma reação positiva como ela conhece os teoremas matemáticos.

Essa reforma da cultura, procedendo por alargamento e não por destruição, poderia devolver

à cultura atual o poder regulador verdadeiro que ela perdeu. Base de significações, de meios de

expressão, de justificações e de formas, uma cultura estabelece entre aqueles que a possuem uma

comunicação reguladora; saindo da vida do grupo, ela anima os gestos daqueles que assumem as

funções de comando, fornecendo-lhes normas e esquemas. Ora, antes do grande desenvolvimento

das técnicas, a cultura incorporava as técnicas usuais, na forma de esquemas, símbolos, qualidades,

analogias. Ao invés disso, a cultura atual permanece presa aos esquemas ultrapassados das técnicas

artesanais e agrícolas dos séculos passados, esquemas que servem de mediadores entre os grupos e

seus chefes, impondo, por causa de sua inadequação às técnicas atuais, uma distorção fundamental.

O poder se torna literatura, arte de opinião, defesa baseada em verossimilhanças, retórica. As

funções diretrizes são falsas porque não existe mais entre a realidade governada e os seres que

governam um código adequado de relações: a realidade governada comporta homens e máquinas; o

código repousa apenas sobre a experiência do homem trabalhando com ferramentas, ela mesma

enfraquecida e distante porque aqueles que empregam o código não acabam, como Cincinato, de

largar o arado. O símbolo se reduz a simples fórmula de linguagem, o real está ausente. Uma

relação reguladora de causalidade circular não pode se estabelecer entre o conjunto da realidade

governada e a função de autoridade: a informação não chega mais porque o código se tornou

inadequado ao tipo de informação que ele deveria transmitir. Uma informação que exprimirá a

existência simultânea e correlativa dos homens e das máquinas deve comportar os esquemas de

funcionamento das máquinas e os valores que eles implicam. É preciso que a cultura, especializada

e empobrecida, volte a ser geral. Essa extensão da cultura, suprimindo uma das principais fontes de

alienação e restabelecendo a informação reguladora, possui um valor político e social: ela pode dar

ao homem meios para pensar sua existência e sua situação em função da realidade que o rodeia.

Essa obra de alargamento e aprofundamento da cultura também tem um papel propriamente

filosófico a desempenhar pois ela conduz à crítica de um certo número de mitos [15] e de

estereótipos, como aquele do robô, ou dos autômatos perfeitos a serviço de uma humanidade

preguiçosa e saciada.

Para operar essa tomada de consciência podemos tentar definir o objeto técnico em si

mesmo pelo processo de concretização e de sobredeterminação funcional que lhe dá sua

consistência ao termo de uma evolução, provando que ele não poderia ser considerado um puro

utensílio. As modalidades dessa gênese permitem apreender os três níveis do objeto técnico e sua

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coordenação temporal não dialética: o elemento, o indivíduo, o conjunto.

O objeto técnico sendo definido por sua gênese, é possível estudar as relações entre o objeto

técnico e as outras realidades, em particular o homem adulto e a criança.

Enfim, considerado como objeto de um julgamento de valores, o objeto técnico pode

suscitar atitudes muito diferentes conforme ele seja tomado ao nível do elemento, ao nível do

indivíduo ou ao nível do conjunto. Ao nível do elemento, seu aperfeiçoamento não introduz nenhum

transtorno que gere angústia por entrar em conflito com os hábitos adquiridos: é o clima de

otimismo do século XVIII, introduzindo a idéia de um progresso contínuo e indefinido, trazendo

uma melhoria constante da condição humana. Ao contrário, o indivíduo técnico se torna durante um

tempo o adversário do homem, seu concorrente, porque o homem centralizava em si a

individualidade técnica quando só existiam as ferramentas; a máquina toma o lugar do homem

porque o homem realizava uma função de máquina, de portador de ferramentas. A essa fase

corresponde uma noção dramática e apaixonada do progresso, tornando-se violação da natureza,

conquista do mundo, captação das energias. Essa vontade de potência se exprime através da

desmedida tecnicista e tecnocrática da era da termodinâmica, que tem um aspecto ao mesmo tempo

profético e cataclísmico. Enfim, no nível dos conjuntos técnicos do século XX, a energética

termodinâmica é substituída pela teoria da informação, cujo conteúdo normativo é eminentemente

regulador e estabilizador: o desenvolvimento das técnicas aparece como uma garantia de

estabilidade. A máquina como elemento do conjunto técnico se torna aquilo que aumenta a

quantidade de informação, aquilo que aumenta a neguentropia, aquilo que se opõe à degradação da

energia: a máquina, obra de organização, de informação, é, como a vida e com a vida, aquilo que se

opõe à desordem, ao nivelamento de todas as coisas que tende a privar o universo de poderes de

mudança. A máquina é aquilo pelo qual [16] o homem se opõe à morte do universo; ela ralenta,

como a vida, a degradação da energia, e se torna estabilizadora do mundo.

Essa modificação do olhar filosófico sobre o objeto técnico anuncia a possibilidade de uma

introdução do ser técnico na cultura: essa integração, que não pôde se operar nem no nível dos

elementos nem no nível dos indivíduos de maneira definitiva, o poderá, com maior probabilidade de

estabilidade, no nível dos conjuntos; a realidade técnica tornada reguladora poderá se integrar à

cultura, reguladora por essência. Essa integração não poderia se fazer senão por adição quando a

tecnicidade residia nos elementos e por arrombamento e revolução quando a tecnicidade residia nos

novos indivíduos técnicos; hoje, a tecnicidade tende a residir nos conjuntos; ela pode então se tornar

um fundamento da cultura à qual ela trará um poder de unidade e de estabilidade, ao torná-la

adequada à realidade que ela exprime e que ela regula. [NT: Esta tradução foi publicada no décimo

primeiro número da revista Nada (Lisboa, 2008)]